fbpx

Mãe de pet também é mãe?

Mãe de pet também é mãe? Em todo Dia das Mães ressurge a polêmica sobre as tutoras que intitulam-se mães dos seus animais de estimação versus os exaustivos argumentos de mulheres-mães que se se sentem incomodadas e até ofendidas com esse título.

De tudo que sempre é dito, sempre me resta a mesma reflexão: o que é SER mãe? Note que não estou perguntando o que uma mãe FAZ (logo a resposta não é “cuidar”); tampouco estou perguntando o que uma mãe SENTE (para que se diga que ser mãe é “amar”).

Dizer que ser mãe é amar e cuidar é bastante incompleto, inclusive. Vejamos, se uma mãe está em DPP (Depressão Pós Parto) e não consegue sentir amor pelo seu filho, naquele momento ela não é mãe? E se ela não vier efetivamente a sentir esse amor avassalador? Deixa de ser mãe?

Ser mãe é cuidar? Se uma mulher tem algum fator que a impede de cuidar dos filhos ela deixa de ser mãe? Se é a avó que cuida dos netos, ela deixa de ser avó para ser a mãe?

Ser mãe é gestar? E as mães adotivas? Se um pai ama e cuida, ele é mãe? Se amar e cuidar é prerrogativa de “ser mãe”, o que sobra para o pai?

Perceba então que não é tão simples definir a partir de parâmetros de comportamento ou sentimento o que uma mãe é. Até porque existe esse script que fala de amor e cuidado que dita como uma mulher deve agir para ser qualificada como um mãe. E este é um script romantizado, uma ferramenta da maternidade compulsória para que mulheres queiram ocupar esse lugar de qualquer jeito. Que queiram ser mãe. Porque o que é vendido é que maternidade é status. Que mães são seres especiais, que mulheres são seres mágicos com o dom divino de cuidar e amar. Que uma mulher só está completa quando cumpre sua missão de cuidadora. De gente, de bicho, de planta. E em troca vão receber muito amor. E dar todo o amor que toda mulher tem que cultivar dentro de si pra distribuir por aí.

Nós mulheres somos socializadas dentro de uma carência profunda. Somos ensinadas a cultivar um vazio emocional que só consegue ser preenchido com um vínculo afetivo duradouro e presente. Seja um romance, seja um filho, seja um pet. Somos ensinadas que uma vida com amigos, família, relacionamentos casuais ou ocasionais não pode ser plena. Não pode ser leve. Temos que ter alguém. Ali. Alguém “nosso”. Então companheiros, filhos, ou pets, muitas vezes vêm pra preencher um buraco que não tem fundo que foi cavado no nosso subconsciente.

Antes de uma mulher desdobrar-se pra explicar sobre os motivos pelos quais ela é mãe do seu pet (eu sei, ela o ama e cuida “como a um filho”), se poderia parar, respirar, e pensar na necessidade que toda mulher demonstra de maternar alguma coisa. Por que a necessidade de humanizar um animal, chamá-lo de “filho”? Em que momento a ideia de que ser mãe virou essa batalha tão importante? Porque para uma “mãe de pet”, teoricamente, não deveria fazer tanta diferença a escolha carinhosa como ela trata seu animal de estimação. Ela o ama, ela cuida. E tem diversas opções de interação com este animal que não vão ser legisladas pela sociedade. Ela pode se dizer tutora (que é o que ela é) e chamá-lo de mil nomes amorosos. Isso não vai ter nenhum peso social. Ao contrário.

Uma mãe não pode chamar o seu filho de “pet”. Não pode dizer “vem cá, meu cachorrinho”. Ela não tem a opção de “animalizar” o seu filho. Uma mãe não tem nenhuma opção a não ser um manual de instruções bem detalhado sobre como ela deve agir, pensar e se comportar sob pena de ser durante constrangida, penalizada e rechaçada socialmente. E está aí onde reside toda a diferença. Para “mães de pet” maternidade é escolha. É “amor”. Para mães, maternidade é compulsória. E suas ações na maternagem não são fruto de nenhuma escolha individual que consiga tomar com liberdade. Maternidade é uma questão política e a grande questão que permeia essa polêmica das mães de pet é que isso revela além de uma imprecisão tremenda sobre a realidade do maternar uma grande romantização do que é a maternidade. E nenhuma mãe precisa de mais romantização sobre suas cabeças. A maternidade tem peso sobre todas as mulheres, traz consequências materiais para suas vidas, não tem a ver com sentimento, com amor, mas com ter um filho, uma pessoa, sob sua guarda para cuidados. Quase sempre compulsoriamente.

E socialmente mulheres pagam o preço por serem mães, não há nada de romântico ou de belo nisso. Se você quer saber quem é mãe e quem não é, não pergunte a uma mulher, pergunte a um homem. Ele sabe quem é a mulher que ele vai abandonar, desprezar, julgar, qual mulher ele vai classificar como “sexo casual”. Quer saber quem é mãe? Pergunte ao Estado. Ele sabe bem quem ele considera um peso social. A quem cobrar e culpabilizar. Pergunte ao mercado de trabalho quem é a mãe. Ele sabe quem ele vai contratar, quem vai ser vista como problema. Ser mãe não é um sentimento ou algo que você se auto-define. É algo que é definido quando você tem um filho.

E é importante também ressaltar que, apesar de todas as dificuldades da maternidade, está é uma condição propositalmente ocultada nas narrativas. O que vemos é a exaltação da figura materna como sendo a mais importante função que uma mulher ocupar. É o único posto a que é conferido algum “status” e reconhecimento (ainda que falso) na condição de mulher perante os olhos da sociedade em geral. Então é bem previsível que mulheres inconscientemente disputem esse espaço. A rivalidade feminina está em toda parte.

Dessa forma, a reivindicação das mães perante as tutoras não passa por querer legislar sobre a vida privada dessa mulher nem sobre a maneira como ela chama seus animais de estimação. É sobre abandonar a por um título que confere opressão. É sobre empatia e consciência política. Ela está pedindo reflexão sobre o papel da maternidade. Está pedindo que essas mulheres que não tem filhos OUÇAM as mulheres que tem filhos. Que estão pedindo ajuda. Estão pedindo que elas não engrossem o coro da romantização que tanto prejudica a luta política das mulheres que pautam a problematização da maternidade. Estão pedindo que, como mulheres, possamos avançar nas pautas do feminismo combatendo uma das principais formas de opressão que nos assolam.

Uma mulher, tecnicamente, pode se declarar mãe do que quiser. Animais, vegetais, plânctons. Não importa. Mas entenda que é um privilegio poder escolher se afirmar mãe de alguma coisa que não um ser humano, com suas demandas bem específicas, e listar como motivo para isso “o amor”. É bonito. Só que uma mulher nunca saberá de verdade o que é maternidade até ter um SER HUMANO sob sua tutela. Porque ela só será mãe, e entenderá o que é ser mãe, quando a sociedade colocar seu carimbo na testa dela.

Maternidade não se trata de se sentir mãe. Se trata de ser tratada como mãe. E entenda, isso não tem nada de bom. Ser tratada como mãe é ser humilhada, perder autonomia, ser relegada a segundo plano, ser ignorada. Taí a treta da mãe de pet que não me deixa mentir onde mulheres-mãe estão exaustivamente falando, se explicando, pedindo voz. E continuamente sendo silenciadas. Ignoradas. Pois, repito, ninguém se importa com as mães. Essa discussão incessante, em boa parte alimentada pela competição feminina (socialização não falha) poderia dar outros frutos num ambiente de escuta. Mas somos tachadas de ridículas. Somos acusadas de falta de empatia. Chega a ser irônico.

Você, “mãe de pet”, não quer ser TRATADA como mãe. Você quer se SENTIR mãe porque foi ensinada que isso é muito importante, e sublime e bonito. Estamos todas nós, mulheres, muito fudidas nesta história. E enquanto a maternidade não for vista como pauta política do feminismo vamos chafurdar nessa lama. E continuar a sermos massacradas.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

Post Relacionados

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *