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Do profundo desamparo da maternidade

Basta que uma mulher torne-se mãe para descobrir que não há com quem contar e conhecer o profundo desamparo da maternidade. Nenhuma mulher é preparada para as implicações da maternidade. E nenhuma mulher consegue cuidar de uma criança sozinha, sem nenhum tipo de apoio. Se tornar mãe é, em instância primeira, perder a autonomia. Um outro ser humano passa a depender de você num nível de simbiose tal que te impede de qualquer outro tipo de performance plena. E é quando se perde esta autonomia e percebe-se a necessidade de uma rede de amparo, que nos damos conta que ela não existe. Não existe.

O retrato de uma maternidade sem amparo

Com o que de fato mulheres podem contar ao terem filhos? A reposta é: nada.

  • Não podemos contar com nenhum método contraceptivo eficiente, pois nenhum é 100% seguro (tampouco podemos contar com a parceria dos homens que dificilmente se preocupam em apoiar um método de dupla barreira: camisinha + outro método).
  • Não podemos contar com o apoio do Estado para garantir a interrupção de uma gravidez que é compulsória, com a mulher tendo empurrada para si a responsabilidade de controlar a contracepção, sendo culpabilizada caso ocorra uma gravidez indesejada.
  • Não podemos confiar no sistema obstétrico numa realidade em que a rede pública te oferece violência obstétrica e a rede privada te vende cesárea eletiva.
  • Não podemos contar com o apoio, companheirismo e fidelidade dos companheiros durante a gestação e o puerpério, que via de regra exigem que a mulher continue performando plenamente o papel de “esposa”, inclusive gerando uma pressão absurda em relação à estética e libido.
  • Não podemos contar com leis trabalhistas que garantam que você consiga suprir plenamente o período de seis meses da amamentação exclusiva que tanto é cobrada.
  • Não podemos contar com quem deixar os filhos para trabalhar porque a rede de creches públicas é numericamente insuficiente e a rede privada é cara demais.
  • Não podemos contar com apoio no mercado de trabalho, empregabilidade, plano de carreira, salários justos, flexibilidade de horários, porque mulheres-mães são vistas como um problema.
  • Não podemos contar com um sistema de saúde pediátrico que esteja disponível, atualizado e oferecendo as melhores informações para as mulheres-mães e seus filhos.
  • Não podemos contar com uma indústria que ofereça alimentos saudáveis e confiáveis a preços acessíveis.
  • Não podemos contar com o apoio dos companheiros para dividir o cuidado doméstico e com os filhos.
  • Não podemos contar com acessibilidade e políticas de inclusão para filhos neuroatípicos e com deficiência.
  • Não podemos contar com lugares e pessoas que sejam acessíveis e amigáveis com crianças e suas especifidades características da infância.
  • Não devemos contar com o suporte dos filhos, quando ficarmos velhas. E tudo ficar difícil demais. Porque preferimos não dar trabalho.

A felicidade não é a regra

E entenda, isso não é sobre você. Individualmente. Não é sobre você que nunca teve uma gravidez indesejada nunca ficou desesperada sem saber o que fazer. Ou seu parto humanizado. Ou sobre seu marido bacanão, que ainda está aí, assumiu os próprios filhos e ainda troca a fralda deles. Ou sobre seu chefe legal que te libera mais cedo para você pegar seus filhos naquela creche Montessori. Todas essas coisas existem sim, mas infelizmente. estão longe de ser a regra. Esse texto é sobre o desamparo materno. Sobre não haver nenhum sistema estrutural de apoio a uma mulher-mãe, para que ela possa criar seus filhos mantendo sua sanidade mental. Mantendo algum nível de felicidade.

As mães estão infelizes. Mães se sentem inseguras o tempo inteiro. Porque não podem, simplesmente não podem, contar com 100% de certeza com nenhum tipo de apoio em nenhuma área. Não temos segurança mínima se vamos conseguir uma boa gestação, um bom parto, se o companheiro será realmente um bom companheiro, se vamos conseguir sustentar os filhos, se vamos conseguir bons médicos, se a informação que recebemos é segura, se vamos ter apoio para amamentar, se o trabalho vai nos aceitar, ou se vamos conseguir trabalho, onde vamos deixar os filhos e se ele estará seguro, se conseguiremos bons médicos, acesso a remédios, acesso a boa informação, acesso a boa alimentação, acesso a opções de lazer. Não há espaço de segurança para crianças, não há leis que regulem e protejam e garantam o exercício da maternagem sem a exploração da mulher. Sem a imposição da disponibilidade feminina para cuidar e sua conformidade em não ser cuidada.

É muito cruel sermos educadas para cuidar de tudo, e nunca para “dar trabalho”. Nós mulheres nunca “damos trabalho”, apenas tomamos todo o trabalho do mundo pra executarmos. E ninguém está segurando essa onda. Mulheres mentem dizendo que está tudo bem e que dão conta. Mentem para os outros. Mentem para si mesmas. Porque fomos ensinadas que é pra isso que servimos. Porque não tem nenhuma opção mesmo. É muito mais profundo que romantização da maternidade.

As mulheres-mães estão doentes, depressivas, estressadas, solitárias. Suportando casamentos fracassados e relacionamentos abusivos por falta de suporte para sustentarem seus filhos. As mulheres estão em sub-empregos, se prostituindo para alimentar suas crias. Estão interrompendo seus estudos. Estão o tempo inteiro tendo que escolher entre si mesmas e os filhos e sendo julgadas por isso. Contando com a sorte para cuidarem das crias porque não há políticas públicas sérias e eficazes para apoiar a maternagem. Dizem que as mães são sagradas, crianças são anjos. Isso é mentira. Ninguém se importa de verdade com mulheres e seus filhos. Não há nenhuma rede de apoio estrutural que apoie mães. Mulheres-mães e seus filhos são vítimas sistemáticas de todo tipo de violência. Ninguém se importa.

A única coisa que uma mãe pode contar, de fato, é com a sorte.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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