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Eu me chamo mãe

Eu me chamo mãe. E há muita, mas muita mesmo, confusão sobre o termo “mãe” na nossa sociedade. Afinal, quem seria a mãe? O que ela faz? O que a caracteriza? Seria gestar? Mas e as mães adotivas? Seria parir? E as mães de aluguel? Seria então amamentar? E as inúmeras mulheres que não amamentam? Mãe é quem cuida? E as mulheres que precisam terceirizar os cuidados? E as avós, as tias, as vizinhas, as babás, que estão ali pelo cuidado dessas crianças? O que determina afinal, quem é a mãe?

Vamos por partes. Primeiramente é preciso entender como se dá a cadeia do trabalho reprodutivo e demarcar bem demarcado a função específica da mulher nesse processo de reprodução da vida. Há aqui tarefas fisiológicas essenciais e irreproduzíveis que apenas e tão somente mulheres podem realizar, a saber: gestar, parir e em alguma medida, amamentar (já que esse processo já pode ser reproduzido com eficiência embora não com equivalência). E embora se possa dizer “mas sem os espermatozoides não há concepção”, sem óvulos também não há. Inclusive mulheres podem doar óvulos, homens doar esperma e a fertilização ser realizada sem a necessidade de contato sexual. Então o jogo começa empatado. Efetivamente é no útero da mulher que o show começa. Quem desempata esse game é a maravilhosa fábrica de produzir pessoas, chamada corpo feminino.

Essa é a parte biológica, imutável, da criação de crianças. O vínculo indissociável que toda e qualquer mulher possui com a maternidade. Por seu aparelho reprodutivo ela já nasce uma mãe em potencial.

No entanto, uma vez a criança gestada e parida, o fato é que qualquer um pode se encarregar dos seus cuidados.

QUALQUER PESSOA.

Seja homem, seja mulher.

Criar uma criança, amá-la, realizar todo o trabalho de cuidado físico, emocional, social, educação, sustento, não tem nenhum pré-requisito biológico. Não requer “dom”, “vocação”, não requer “instinto”, não requer absolutamente nada específico exceto comprometimento. Assim um casal pode criar uma criança. Dois homens podem criar uma criança. Duas mulheres podem criar uma criança. Uma aldeia inteira pode criar uma criança. Alguns desenhos até indicam que ela pode ser criada por lobos ou macacos embora eu duvide um pouco.

E no entanto, esse trabalho de cuidar é realizado quase que exclusivamente por mulheres. Sempre. Guarde essa informação.

E, veja só o nó, conceber, gestar/parir, e criar são tarefas interdependentes mas não necessariamente conectadas. Ou seja, dá sim pra uma pessoa conceber, outra gestar/parir, e outras criarem. Exemplo: quem é a mãe de uma criança que nasce de fertilização in vitro de doadores anônimos, na barriga de aluguel de uma terceira pessoa? É a doadora do óvulo? É a mulher que gestou? É a mulher que criou? E se ela for criada por homens, ela não tem mãe? Um deles é “pãe”? Se levarmos em conta a parte do “mãe é quem cuida” então, a coisa fica muito mais complicada. Quantas e quantas crianças não são criadas por diversas pessoas ao longo da vida? Passam por avós, tias, vizinhas. Ou passam tanto tempo com a babá, que ela vira o adulto de referência com muito mais força que a própria mãe.

O que é ser “mãe”?

Voltemos um pouco. Gestar e parir coloca mulheres no epicentro das possibilidades de continuação da espécie. Nós produzimos pessoas, apenas. Produzimos trabalhadores para serem explorados, produzimos herdeiros para explorar. Do servo ao senhor. Do burguês ao proletário. Produzimos fucking PESSOAS. Isso é forte e absurdamente poderoso. O que aconteceria se nós tivéssemos ciência do poder disso e nos recusássemos a realizar esse trabalho? O que aconteceria se mulheres se recusassem a assumir os cuidados das crianças? Se mulheres parissem e entregassem aos homens dizendo: “já fiz minha parte, agora boa sorte”?

Como evitar então que mulheres simplesmente se neguem a produzir mais crianças? Como evitar que elas parem de se engajar em todas as tarefas necessárias para entregar trabalhadores prontinhos pro sistema funcionar?Sistema capitalista, racista e patriarcal, a propósito, onde homens exploram mulheres em todas as esferas possíveis (e homens brancos ricos estão no topo da cadeia alimentar). Como evitar que mulheres tomem consciência que são domesticadas para realizar esse trabalho, enquanto homens apenas usufruem os benefícios?

Ganha um brinde quem disser: maternidade compulsória. Um sistema que se retroalimenta e que faz que toda e qualquer menina, assim que indicada como tal pela identificação de que possui uma vulva, seja imediatamente inserida numa lógica de funcionamento do mundo onde sua única finalidade é concretizar seu potencial biológico de gestar.

A MATERNIDADE, como conhecemos, é um sistema compulsório, simbólico e cultural que é estruturante e pilar fundante da dominação patriarcal, onde mulheres são doutrinadas e submetidas a realizar todo o trabalho de gestação e cuidado de novas pessoas para o funcionamento do mundo.

E é importante demarcar isso bem claro porque maternidade não é sobre amor. Não é sobre seus sentimentos em relação a criança que você cuida. O seu amor por ela tem a ver com o relacionamento que vocês desenvolvem com uma pitada bem generosa de socialização. A maternagem é uma marca quase impressa a ferro na psiquê de todas as meninas que são treinadas para o cuidado de terceiros desde a infância. Levadas a relacionar amor e cuidado. Levadas a acreditar que ter filhos é a melhor coisa que podem fazer da própria vida. Que é uma “missão”, um “dom”, uma “função da mulher”. Meninas são sistematicamente subestimadas e rejeitadas para que se convençam de que o amor maternal é a experiência mais sublime que podem experimentar.

E muitas mulheres só encontram algo parecido com “realização” ao ceder a essa profecia auto-realizável sobre suas vidas.

Ser “mãe” é único lugar de real “destaque” que é reservado para mulheres na sociedade. Por isso a maternidade é romantizada, exaltada. Por isso que ninguém fala sobre a realidade das mulheres-mães. Por isso que ela é justificada, divinizada. Porque sob o patriarcado, se mulheres não forem mães, elas não poderão ser mais nada. E mulheres que se recusam são demonizadas e perseguidas e culpabilizadas. E mulheres que maternam são “exaltadas” para que não percebam a armadilha em que foram atiradas ao mesmo tempo que tem seu comportamento fiscalizado para saber se não estão rebelando-se.

E todas as mulheres, TODAS, seguem pela vida com essa necessidade de serem “mães” arraigada, nunca conseguem se livrar completamente. Com senso de responsabilidade em serem cuidadoras de tudo e de todos. Toda mulher em algum momento já se autodeclarou mãe de alguma coisa ou alguém: “eu sou mãezona”, “é como se fosse um filho”, “adotei pra mim”. Ter um filho para chamar de seu. Seja parentes, companheiros, vizinhos, colegas de trabalho, amigos, plantas, pets, nada escapa.

Então, em um mundo onde homens exploram mulheres por causa do seu potencial exclusivo de produzir pessoas, e onde todas essas mulheres são condicionadas, coagidas e submetidas a cumprir esse destino, não faz nenhum sentido discutir quem é a “mãe”.

Toda mulher é “mãe”, não importa se ela teve, tem ou terá filhos, porque uma vez potenciais gestantes todas são treinadas para ocupar uma função em algum ponto da cadeia de trabalho reprodutivo, se necessário. E é por isso também que a categoria “mãe” é PROPOSITALMENTE confusa porque ela é feita para abarcar toda e qualquer mulher, a qualquer momento. E quanto mais tarefas dessa linha reprodutiva essa mulher acumula mais consolidada está a função de “mãe” para ela. Uma mulher que gestou, pariu, amamentou, cria seus filhos é aquela que sente todo o peso do pé do patriarcado no pescoço. É a mãe concretizada.

“Mãe” é toda mulher que é diretamente envolvida e responsabilizada em alguma etapa do trabalho reprodutivo de pessoas.

Dessa forma, em algum nível, a que gesta e pare é mãe. A que é responsabilizada pela tutela é mãe. A que é cria é mãe. Se você borra essa categoria, mesmo ela sendo propositalmente confusa, indistinta, você não consegue delimitar esse grupo a partir dessas funções que são compulsoriamente realizadas. E se você não delimita, você não consegue lutar por DIREITOS.

Não consegue discutir licença-parental, apoio puerperal, apoio à amamentação, não consegue denunciar a dupla/tripla jornada, não consegue discutir a divisão dessas tarefas de cuidado, falar sobre exclusão dos espaços, sobre discriminação no mercado de trabalho, sobre precarização, sobre pobreza, sobre abandono parental, sobre aborto, sobre políticas de contracepção, sobre violência sexual, sobre casamento, sobre exploração de útero de aluguel, sobre divisão de bens, sobre educação e proteção de crianças, sobre inúmeros temas que são problemas de mulheres envolvidas em trabalho reprodutivo: MÃES.

E é por isso que feminismo é sobre maternidade. Que maternidade é o tema-chave que deveria interessar a todas as mulheres (mãe e não-mães). Que está no epicentro da nossa opressão. Parar de falar o nome disso não vai fazer as questões desaparecerem, muito pelo contrário, isso é uma estratégia pra minar os esforços cada vez mais conscientes de mulheres que finalmente estão entendendo o recado do feminismo sobre isso e estão se organizando como CLASSE. Dividir para conquistar, lembram?

“Mãe” precisa ser entendida como uma categoria de análise fundamental para desmantelar o poder do patriarcardo (em confluência com o capitalismo e o colonialismo numa superstrutura). Essa é uma nomenclatura que deve ser fortalecida e discutida e não embaçada ou diluída. Isso é categoria política de mulheres sob exploração. Mulheres, repito. Apenas mulheres. Pessoas nascidas com aparelho reprodutor feminino. Porque são mulheres que possuem potencial de gestar e parir pessoas e isso é intransferível e é isso que nos “torna mulher” nesta sociedade. Com todas as suas implicações.

Não caiam em armadilhas de inclusividade excludente. A sociedade patriarcal sabe muito bem definir, apontar, encontrar e responsabilizar a “mãe”, quando lhe é conveniente. Quem é mãe sabe que é, e sabe como é, ainda mais quanto mais for atravessada por outras opressões como raça e classe.

E é por isso eu me chamo “mãe”. Porque esse nome foi marcado na minha testa pelo patriarcado quando eu nasci. Não me chame de outra coisa, porque vai ser no reconhecimento dessa categoria que vamos implodi-la. Então vai ter feminismo materno sim e a revolução será pela via da derrubada desse pilar da maternidade compulsória. Só as mulheres conscientes do lugar a que foram levadas por sua capacidade reprodutiva e organizadas como categoria POLÍTICA é que poderão fazer isso.

Seguimos. A militância é materna.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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