Maternidade dá trabalho mas não é um emprego
Está aquecido o debate sobre maternidade enquanto um trabalho não remunerado. Há muito feministas denunciam sobre a exploração da mão-de-obra das mulheres para o trabalho reprodutivo e para o trabalho doméstico. Inúmeras pesquisas já demonstram o quanto vale o trabalho invisível que mulheres exercem para a economia global (trilhões), tanto na administração dos seus lares quanto na criação das crianças (incluindo aí o aleitamento). Chegamos finalmente a um momento que esse problema, a exploração de mulheres para manutenção do privilégio masculino, começa a vir a tona de maneira consistente, perceptível, a ponto de movimentar discussões, teses e legislações a respeito.
No entanto, ao finalmente percebermos o problema, me parece que estamos indo num caminho bastante equivocado em relação a uma possível solução.
Quando analisamos a história compreendemos que homens entenderam o quão estratégicas são as mulheres para o funcionamento da vida e rapidamente apressaram-se em dominá-las, explorando sua força reprodutiva. Compreendemos que existe um sistema político extremamente complexo que é estruturado para garantir a perpetuação dos privilégios masculinos. Que papeis sociais são desenhados para serem desempenhados por homens e por mulheres, que são aprendidos durante nossa socialização e constantemente reforçados socialmente. Que esses papéis sociais de sexo reforçam essa estrutura hierárquica, criando meninos para se tornarem homens dominantes e meninas para ocuparem o papel de mães e esposas, subalternizadas. Percebemos que existem inúmeros mecanismos sociais, culturais e institucionais que existem somente para garantir que esta hierarquia seja mantida, e com ela os privilégios masculinos. Que em uma sociedade patriarcal mulheres estão na posição de servas domésticas e sexuais dos homens.
Quando dizemos que mulheres são exploradas, que a atividade doméstica não remunerada é um trabalho, que cuidar de crianças é um trabalho, que a maternidade é um trabalho, estamos fazendo a denúncia do papel que é delegado às mulheres dentro do sistema capitalista-patriarcal. Estamos dizendo: às mulheres é destinado o papel de executar sozinhas essas tarefas, que resultam em produção de riqueza para homens usufruírem. E com esta denúncia queremos também reivindicar: esse papel social precisa ser extinto.
Portanto, a solução para a exploração das mulheres dentro do sistema patriarcal, não é remunerar mulheres. Não é reivindicar salários. Essa provocação é justa no sentido de denunciar o papel que mulheres ocupam mas não tem validade enquanto possibilidade de reestruturação social. Até porque inserir uma lógica de remuneração não extingue a exploração de ninguém, temos aí um sistema chamado capitalismo nos mostrando isso todos os dias.
Quando de fato vamos pelo caminho de exigir “salários” para o trabalho reprodutivo e doméstico nós estamos reforçando esse papel social que é destinado às mulheres dentro do patriarcado. Mulheres são socializadas para realizar essas tarefas gratuitamente como ato de “amor” e muito pouco muda ao trocarmos isso por “dinheiro”. Ainda serão as mulheres realizando esse trabalho. A divisão sexual do trabalho permanece completamente inalterada.
Remunerar mulheres pelo trabalho reprodutivo não discute a lógica da distribuição das tarefas de cuidado. Não tira o peso de serem as mulheres as responsáveis pela execução desses trabalhos e tampouco insere homens para realizarem essas tarefas. Ao contrário é uma solução que beneficia muito mais aos homens porque é a resposta que eles precisam para a reivindicação por divisão igualitária dos trabalhos domésticos.
Ao exigir “salários para o trabalho doméstico”, como uma proposta mais que meramente retórica estamos propondo mercantilizar e precificar o papel social destinado às mulheres, inserido-as numa lógica capitalista neoliberal de mercado. E isso não só não rompe com a lógica de subordinação baseada no sexo, como ainda piora tudo transformando-se também em um problema de luta de classes.
Afinal, para existir um trabalhador remunerado é preciso existir um patrão, não? E para quem mães estarão trabalhando? Para o pai da criança? Para o Estado? E se maternidade é um “trabalho” de fato, os filhos são então um “produto”? E o corpo da mulher? Poderá ser tratada como uma “fábrica”? E os pais? Como entram nessa equação? Se cumprirem sua função na parte de cuidado dos filhos devem também ter um salário? E como fica a relação com o filho? Como fica a relação intrafamiliar sendo operada por uma lógica mercantilista? E como fica a relação entre homens e mulheres quando pedimos medidas que ratificam nosso lugar de eterna cuidadora? Como isso opera para romper a hierarquia estabelecida?
Quando dizemos: “a maternidade é um trabalho, portanto me pague”, estamos concordando e assumindo para nós em definitivo essa função que o patriarcado há tantos milênios se organiza para nos dedicar. Estamos dizendo também que é função das mães assumirem o cuidado integral dos filhos, que é função das mulheres serem mães, estaremos consolidando em definitivo nossa posição subalterna de reprodutoras de pessoas a serviço de um Estado patriarcal e elevando essa relação a outro patamar.
Neste panorama dado de exploração das mulheres o que podemos e devemos fazer é rejeitar e rediscutir para já os papeis sociais baseados em sexo. Devemos rejeitar a ideia de que somos inerentemente cuidadoras. Que nascemos com esse “instinto”, com esse “dom” e discutir nosso papel na reprodução e cuidado de crianças. Excetuando gestar e parir não há nenhuma tarefa que exija ser realizada exclusivamente por uma mulher. Portanto precisamos decidir, enquanto classe: que papel mulheres e homens devem ter na criação de crianças? E qual o papel que Estado deve ter no suporte para a criação de crianças?
Mulheres precisam exigir que homens assumam sua parte nas tarefas de cuidado reprodutivo e doméstico. Devem recusar o papel de cuidadoras exclusivas, de rainhas do lar. Precisamos recuperar nossa autonomia reprodutiva junto ao Estado para que possamos realmente decidir quando, como e de que maneira desejamos ter filhos. Para que a maternidade não seja uma coisa compulsória. Que não sejamos jogadas nesse lugar sem escapatória, mas agora com um salário para calarmos a boca.
Ser mãe dá trabalho, mas maternidade não é um emprego. Precisamos redefinir as tarefas impostas pelo patriarcado para nós mulheres, na nossa maternidade. Que mãe seja apenas o nome dado para a fêmea humana adulta que gesta. E que ser mãe não signifique mais nada além disso. Nada. Que não venha com nenhuma atribuição embutida que não seja previamente entendida, combinada e aceita por aquela mulher, com seus pares, na criação e cuidado daquela criança. E que crianças deixem de ser posse do seu núcleo familiar para serem vistos como seres íntegros, de direitos, amparados por uma politica de Estado voltada para o suporte ao crescimento digno dos seus cidadãos. A maternidade no patriarcado é um trabalho do qual precisamos pedir demissão e não remuneração.