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Como lidar com crianças com “inconformidade de gênero”?

Vivemos em uma sociedade que é organizada para garantir privilégios masculinos e a exploração das mulheres. Uma das formas mais sutis e poderosas de garantir essa estrutura é a organização de papeis sociais que nos são impostos desde o nosso nascimento e que são definidos de acordo com nosso sexo. Esses papeis foram se tornando cada vez mais rígidos e insidiosos e sempre que fazemos um movimento de garantir maior liberdade de comportamento vemos novos estratagemas para garantir que pessoas nascidas do sexo masculino desenvolvam atributos e crenças que os tornem dominantes em relação a pessoas do sexo feminino.

Nesse cenário, crianças que demonstram resistência, interesse, curiosidade ou propensão em questionar as imbecis regras de comportamento a que são submetidas (e não só pela família, mas por toda sociedade), vão ter sérias dificuldades, serão punidas e serão levadas de todo jeito a se “encaixar”. Mas vamos entender mais sobre isso.

O gênero

Gênero, falando a grossíssimo modo, é um conjunto de ‘regras’ que existem para definir e demarcar qual é a expectativa sobre o comportamento de um grupo que nasce com um determinado sexo. Ou seja, se uma pessoa nasce com pênis, ela é designada como sendo do sexo masculino e empurrado para o “clube de formação de homens”, que vai dizer que essa pessoa tem que ser forte, viril, usar azul, gostar de esportes, carros, etc, etc. Da mesma forma se ela nasce com vagina, é designada como sendo do sexo “feminino” e vai para o “clube de formação de mulheres” que vai ensinar que ela deve gostar de rosa, ser delicada, feminina, bela, maternal, brincar de bonecas, etc etc etc. Esse “clubes” e seu regulamento, na verdade, é o que chamamos de “identidade de gênero”.

As regras do gênero são formadas puramente por estereótipos, que são um conjunto de pressupostos, ideias pré-concebidas que formamos sobre como uma determinada categoria deve parecer, ser, e se comportar. Estereótipos são “pré-conceitos”, conceitos que antecedem um fato. Quando dizemos que meninas gostam de rosa, ou quando meninas são mais delicadas, isso é um estereótipo de gênero. E estereótipos de gênero são a base de formação do machismo na nossa sociedade porque todos eles reforçam a ideia de que homens são melhores e mais importantes que mulheres.

O gênero tem uma função estratégica fundamental porque ele define como o grupo de pessoas do sexo masculino vai se comportar na sociedade, assim como o grupo do sexo feminino. E se você analisar o conjunto dos estereótipos que são definidos para cada um vai notar que como resultado temos um grupo que tem comportamento dominante (homens), que por isso conquistam e detém privilégios, em função da dominação de um grupo com comportamento subalterno (mulheres), que são exploradas incessantemente, há milênios. É a fórmula mágica da manutenção do patriarcado.

Crianças nascem, tem seu sexo designado e imediatamente começam a ser socializadas para pensar, sentir-se e comportar-se de acordo com as prerrogativas do gênero a que pertencem. O nosso cérebro é moldado em função disso porque todas as experiências que nos são oferecidas na vida, em sociedade, estão moduladas pelo gênero. Desde o guarda-roupa azul e os brinquedos e brincadeiras, até os modelos de comportamento que vemos, valores que recebemos, produtos culturais que consumimos.

Mas crianças são pessoas, e são mais ou menos resistentes a essa socialização já que, ser educada dentro do gênero implica em reduzir pelo menos pela metade todo o seu potencial de experimentação do mundo, além de ter sua psiquê profundamente revirada e deformada. Se você é uma menina naturalmente mais assertiva, ativa, combativa, vai ser podada. Se você é um menino naturalmente sensível, delicado, tímido, vai ser podado. Esses protótipos de crianças não servem ao patriarcado que quer adultos o mais masculinizados e feminilizados possível. Então se uma criança, por sua personalidade, apresenta “sinais trocados”, se uma menina aparenta ser “masculina” (ou seja, tem mais aderência aos estereótipos que são eleitos para os homens), ou se um menino é “feminino” (ou seja, tem mais aderência aos estereótipos que são eleitos para as mulheres), há um curto-circuito no sistema que rapidamente se encarrega de tolir esse comportamento, tradicionalmente através da censura, do constrangimento, do banimento social e da violência.

Uma outra coisa que vem acontecendo de uns anos pra cá é a patologização da resistência da criança a socialização de gênero. Quando ela não demonstra estar em conformidade ao invés de deixarmos ela em paz porque ela está certa em resistir a essa violência, dizem que o problema é que ela nasceu no “corpo errado” e que é preciso adequar o sexo de nascimento (que é imutável, leiam sobre em biologia) ao “gênero” que ela se sente confortável. O que tem acontecido em larga escala com base em muita medicalização e cirurgias danosas e irreversíveis.

A Disforia

A disforia corporal é um sentimento de mal estar persistente sobre alguma característica do próprio corpo. É uma condição clínica que pode afetar a qualquer um e que tem diferentes tipos e graus de manifestação. Muitas pessoas que tem anorexia por exemplo sofrem de disforia corporal. E crianças que são persistentemente confrontadas em relação aos seus gostos pessoais como sendo do sexo opostos podem tender a desenvolver também, afinal, como fica a cabeçada um indivíduo em formação que escuta o tempo inteiro que “isso é coisa de menina”, “parece uma menina”, “não pode, só as meninas”? Ele naturalmente pensa: “tudo que eu gosto é para meninas, e eu não sou uma menina, odeio meio corpo”.

O tratamento para a terapia corporal é terapia, acolhimento, conforto, aceitação do próprio corpo, elevação da estima, autocuidado. Você não receita dietas ou cirurgias plásticas para pessoas disfóricas por causa do seu peso corporal por exemplo. Eu me pergunto então por que estamos tratando disforia de crianças com a validação do sentimento de inadequação e dando como solução hormonização e cirurgia.

Os absurdos critérios médicos para identificar “disforia de gênero”

A SBP (Sociedade Brasileira de Medicina) elaborou, há tempos, um material sobre como lidar com crianças com “inconformidade de gênero”, identificar se uma criança é possivelmente “trans”. As indicações são uma coleção de orientações equivocadas porque são baseadas em identificar “desvios” a partir do enquadramento da criança em comportamentos estereotípicos de gênero, ou seja, se gosta de azul de carrinho é menino, se gosta de boneca é menina, se o sinal está trocado então talvez o gênero esteja trocado, portanto talvez seja uma boa ideia trocar o sexo dessa criança.

Tudo isso parece burro, violento e assustador, e é mesmo. Ainda mais vindo de uma instituição formada por médicos que deveriam ter compromisso com a ciência. Mas aí a gente lembra que até hoje está brigando para que boa parte da obstetrícia pare de violar mulheres e se utilize práticas baseadas em evidências científicas ou que precisamos insistir que a Terra não é plana, e nem se espanta tanto.

E eu sei que tudo isso que vou falando soa quase muito surreal. Mas aí eu não preciso continuar a dizer, posso mostrar sobre o que estou falando, mais especificamente sobre o documento da SBP que indica os critérios para identificar “disforia de gênero”. Leiam e cheguem as suas próprias conclusões.

Como lidar com crianças com "inconformidade de gênero"
fonte )

E aqui alguns comentários sobre os indicadores:

A: incongruência acentuada entre o gênero designado e o gênero experimentadoexpresso por pelo menos 6 meses através desses comportamentos: 
(aqui já começa errado que o que é designado ao nascer é o sexo, mas tudo bem, o que esperar né) 

  1. forte desejo de pertencer a outro gênero, ou dizer que seu gênero é outro —Quando seu menino diz que é menina, ou sua menina diz que é menino. Talvez porque eles gostem de brincar e se comportam de uma maneira que não condiz com os estereótipos que esperam deles e ficam dizendo a eles que eles estão errados. Exemplo? O menino pega uma boneca e fica ouvindo que isso é coisa de menina, ele vai brincar de comidinha e fica ouvindo que é coisa de menina, ele coloca as roupas da mãe pra brincar e fica ouvindo que isso é coisa de menina. Mas ele realmente gosta muito dessas coisas, então ele conclui que é menina. A menina não gosta de vestido, gosta de correr, pular e jogar bola, e fica ouvindo que é um “moleque”. Ela não gosta de se enfeitar, fica ouvindo que é não é “feminina”, ela odeia tudo que ensinam a ela sobre como ser uma “mocinha” e aí ela conclui que é um homem.) Ou eles estão só fantasiando mesmo. Meu filho por algum tempo dizia que era um gato. Acontece nas melhores famílias.
  2. Em meninos uma forte atração por vestir roupas femininas. Em meninas uma forte atração por vestir roupas masculinas. — Por favor, decidam se “existe roupa de menino e de menina” ou não, para poder continuar essa discussão. Gostar de “roupas femininas típicas” (leia-se, vestidos, saias, tons pastéis, motivos florais e “fofos”) te torna menina? Gostar de “roupas masculinas típicas (leia-se, bermuda, camiseta, calça, tons frios, motivos esportivos) te torna menino? Sério? E percebam a armadilha: roupas para meninas são muito mais coloridas, divertidas, engraçadas e atraem muito mais atenção e elogios. É natural despertar o desejo por usá-las, nos meninos. Roupas para meninos são muito mais práticas, confortáveis e protetoras. É natural despertar o desejo por usá-las, nas meninas. Mas não pode. Senão a criança está enquadrada num inciso da Sociedade Brasileira de Pediatria que insinua que ela tem um problema psicológico.
  3. Forte preferência por papéis transgêneros em brincadeira de faz-de contas — ou seja, se o seu filho brinca que é uma menina, ou uma princesa, ou a rainha, ou a “mãe”, ou a mulher-maravilha, ou a Elza do Frozen. Ou se sua filha brinca que é um menino, ou um príncipe, um guerreiro, o “pai”, o Super-Man, o Batman, o Ben 10. Não sei o que fazer caso eles brinquem que são um elefante, talvez procurar um veterinário.
  4. Forte preferência por brincadeiras, jogos ou atividades tipicamente usados ou preferidos por outro gênero. — É isso mesmo que você leu. Lembra do “não existe brincadeira de menino e brincadeira de menina”? Parece que os pediatras da SBP discordam. OU SEJA, se seu filho brinca de boneca, casinha, comidinha, princesa, e sua filha brinca de futebol, carrinhos, avião, lutar, guerreiros, ou sei lá mais o quê, ela pode ter um disforia de gênero. Corre, troca o sexo dessa criança.
  5. Forte preferência em brincar com pares de outro gênero. — Exatamente isso, se seu filho gosta mais de brincar com meninas do que com meninos, aparentemente é um “sintoma”. A mesma coisa se sua filha preferir brincar mais com meninos do que com meninas. Afinidade, personalidade, nada disso importa mais, pelo visto.
  6. Em meninos, forte rejeição de brinquedos, jogos ou atividades tipicamente masculinas e forte evitação de brincadeiras agressivas e competitivas; em meninas, forte rejeição de brinquedos, jogos e atividade tipicamente femininas — Isso é errado de tantas maneiras que não sei nem por onde começar. Mas basicamente reforça a ideia de que existem brinquedos de meninos e meninas, e mais, se o seu filho não gostar de “brincadeiras agressivas e competitivas” tem algo errado com ele. Porque homem tem que ser agressivo e competitivo. Depois a gente vê as estatísticas de violência, vê como homens são empurrados para serem essas máquinas de matar e não entende como isso acontece.
  7. Desejo intenso de por características sexuais primárias e/ou secundárias, compatíveis com o gênero experimentado. — Com tanta repressão sobre o comportamento para ser enquadrado de qualquer maneira numa expectativa de gênero quem não iria querer mudar né? A criança não pode brincar do que quiser porque é sinal que tem algo “errado”, não pode se vestir do que gosta sem que isso signifique alguma coisa, o seu comportamento o tempo inteiro sendo legislado, avaliado, e a única saída possível para ter sossego é assumir outro “gênero”. Porque é mais fácil acreditar que o “gênero está errado” do que deixar a criança ser DO JEITO QUE ELA QUISER.

E aí, temos o item B:

B. A condição está associada a sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, acadêmico o em outras áreas importantes da vida do indivíduo.

E a pergunta aqui é: como vocês acham que é a vida de uma criança, como ela se sente crescendo em ambientes onde 1. fabular que é de outro sexo, 2. querer vestir roupas de outro gênero, 3. brincar que é um personagem de outro sexo, 4. gostar de brincar livremente, inclusive de brincadeiras associadas ao outro gênero, 5. gostar de brincar com amigos do sexo diferente do seu, 6. é um menino que não gosta de ser agressivo ou é uma menina combativa; são vistos com um sintoma de que algo está errado com ela?

É óbvio que ela vai entrar em sofrimento psíquico. E tudo que ela não precisa nesse momento é de uma equipe médica reforçando que sim, ela está errada apenas por querer ser uma pessoa livre e completa.

Existem crianças “inconformes com o gênero”? Claro. Assim como adultos. Os estereótipos de gênero têm como resultado as perfomances de feminilidade e masculinidade e ninguém está 100% em conformidade com estas regras de maneira absoluta. E é por isso até que as discussões sobre gênero degringolaram apresentando gênero como um “espectro”. O gênero se reinventa para acomodar o incômodo das pessoas, mas não se extingue, nos mantendo sempre numa graduação entre a masculinidade e a feminilidade.

Como lidar com crianças com “inconformidade de gênero”?

É impossível para uma criança ser livre e feliz se tiver que cumprir todos os ditames dos estereótipos de gênero. Porque crianças são pessoas e tem personalidade própria. E também são uma esponja e rapidamente aprendem que tipo de comportamentos e posturas são desejados para que eles sejam aprovados, e perceber que aquilo que realmente gostam é muito diferente daquilo que esperam pode ser muito dolorido, principalmente se a criança for o tempo todo coberta de críticas, censuras, declaração de “preocupação” dos pais porque eles não tem um comportamento correspondente ao esperado pela sociedade para o sexo dele.

Um menino, por exemplo, que é mais sensível, delicado, avesso a combates, e/ou interessado por “coisas de meninas” vai ser visto como “mulherzinha”, “criança viada”, “gay”, “afeminado”, e será profundamente rechaçado e rejeitado socialmente. Uma menina que é mais ativa, mais agressiva, agitada, assertiva, que goste de esportes, vai ser marginalizada, chamada de “moleca”, vai ser terrivelmente cobrada para que seja uma “mocinha”.

E o que eu queria dizer aqui é: seu filho não é uma menina porque gosta de bonecas, e cor de rosa, e não gosta de socar os amigos, nem sua filha é um menino porque ela não quer se maquiar, ou usar vestidos, ou brincar de casinha. E tampouco tem alguma coisa de errado com eles.

Quando uma criança tem uma personalidade que acaba destoando muito da expectativa social sobre ela, a família deve acolher a dor dessa criança, promover um ambiente familiar seguro, de experimentação, liberdade e conforto, explicar o motivo pelo qual ela está sendo rechaçada socialmente e pensar junto com ela mecanismos para que ela possa estar segura e protegida também nos espaços fora de casa.pa, que não tem nada de errado com ela, que existe uma sociedade que quer impor um comportamento castrador, a família pode oferecer uma zona de conforto e segurança dentro do lar que garanta total liberdade de comportamento e experimentação, pode pensar em estratégias que garantam uma maior segurança no trânsito em sociedade, pode partir para o enfrentamento dessas regras, entre diversas outras estratégias.

A outra opção, a pior delas, é acreditar que realmente tem alguma coisa de errada com a criança, que ela nasceu “no corpo errado”, e que você vai “ajudá-la” a se “encaixar”. Acreditar que o problema está com a cria e não com essa sociedade horrorosa e castradora.

Ajudar a se “encaixar” é uma palavra mágica um tanto irresistível que faz muito pais desesperados tomarem decisões bastante questionáveis sobre suas crianças. Eles não querem que os filhos sofram, sabemos como a sociedade é cruel com quem não se encaixa. É compreensível.

Mas aí cabe pensar o preço que estas crianças estão pagando para se “encaixar” nessa sociedade que está aí, ao invés de confrontarmos e lutarmos e colocarmos abaixo essas regras. Pensar se é nessa sociedade terrível, sexista, racista, elitista, cruel, que queremos que nossos filhos se encaixem. Pensar se não é mais fácil até, simplesmente deixarem nossas crianças se desenvolverem livremente experimentando tudo aquilo que a personalidade deles vai demandando. E buscando referências, novas maneiras de estar no mundo, que ainda são poucas mas que estão surgindo sim, impulsionando essa possibilidade (veja aqui 5 filmes infantis que nos ajudam a pensar um pouco sobre isso)

Hoje, cada família precisa escolher qual vai ser a filosofia que vai adotar na criação dos seus filhos. Porque claramente vemos discursos que parecem o mesmo mas são claramente contraditórios. Ou acreditamos que estereótipos de gênero são um problema e deixamos as crianças livres para experimentar ser do jeito que quiser, acreditamos que não existe brinquedo de menino e menina, que não existe cor de menino e de menina, e damos a possibilidade de uma infância mais rica e menos reprimida, ou adotamos definitivamente esse manual de comportamento de gênero para ser seguido desde o nascimento.

Rejeitar o gênero, transgredir essas regras, definir-se como PESSOA, e não como “homem” ou “mulher”, segundo os parâmetros do patriarcado, é a verdadeira revolução. Todos nós somos, ou deveríamos ser inconformes com o gênero. Porque ele é uma armadilha, uma prisão. Crianças são seres visionários e tem muito a nos ensinar. Deveríamos aprender com elas ao invés de tentar “encaixá-las”.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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