Até quando amamentação será um assunto dos homens?
Agosto Dourado e voltamos às campanhas e ao debate em torno da amamentação. Debate esse que gira invariavelmente em torno da “conscientização” das mulheres sobre a importância de amamentar seus filhos, e aí entram vários argumentos sobre benefícios de saúde para o bebê e também para a mãe, e também um universo bastante rico de informações no sentido de orientar mulheres para realizar essa tarefa. E isso seria muito bonito se a amamentação na nossa sociedade não fosse um privilegio de classes mais abastadas e também mais do mesmo na lógica patriarcal da exploração do corpo da mulher. Até quando amamentação será um assunto dos homens?
E para entendermos melhor essas afirmações tão polêmicas que eu trago assim logo de cara, é importante a gente conhecer pelo menos um pouco sobre a história da amamentação desde sempre.
A importância do leite humano como alimento imprescindível para sobrevivência de bebês sempre foi compreendida desde a pré-história quando perceberam que oferecer alimentos alternativos era infrutífero. No entanto nem sempre foi considerado importante que a amamentação fosse realizada pela mãe da criança
Apenas na antiguidade acredita-se que mães amamentavam seus filhos livremente, e corrobora com isso muito da mitologia que conhecemos até hoje, onde Deusas de diferentes panteões aparecem realizando essa prática, além de registros diversos. Já no Império Romano (que acabou em 476 DC) há registros do uso da figura da “nutriz”, que era uma mulher — escrava — cuja função era amamentar crianças. A famosa “ama-de-leite”.
Por séculos, existiu a “indústria da nutriz”, onde todos (pobres e ricos) se utilizavam da mão-de-obra de uma outra mulher (primeiro escravizada depois “contratada”) para amamentar os filhos. Com a Revolução Industrial, onde todo mundo foi parar nas fábricas, criação dos centros urbanos como conhecemos, atomização da família e principalmente o avanço das tecnologias de nutrição infantil a indústria do leite em pó veio acabar com esse nicho de mercado, transformando as nutrizes em “babás” e fazendo desabar as taxas de amamentação ao redor de todo mundo. Agora mulheres eram convencidas de que até leite condensado era melhor que o seu próprio leite e que ela deveria ser “livre” (para trabalhar na fábrica e enriquecer a indústria, no caso).
Aí vem a pergunta que não quer calar, e que quase ninguém lembra de fazer: por que mulheres pararam de alimentar seus próprios bebês, entregando a outras mulheres, se esta é uma atividade relativamente natural e consequente ao parir? Simples, porque HOMENS assim o decidiram já que:
a) lactantes demoravam a engravidar novamente e ter muitos filhos era estratégico, porque a mortalidade infantil era altíssima e crianças eram patrimônio dos pais (trabalhadores braçais, se meninos, ou parideiras para vender em casamento, se meninas).
b) no início do advento do cristianismo, lactantes eram constrangidas a não fazer sexo e os homens queriam transar.
Então a amamentação de crianças pela mãe era um péssimo negócio para homens já que sua esposa ficava envolvida numa tarefa que poderia durar anos, sem produzir novos bebês e com pouca disponibilidade – e permissão religiosa – para transar.
Atualmente, pesquisas comprovam a amamentação como estratégica para o melhor desenvolvimento dos bebês e a tarefa passa a ser reincorporada como uma boa prática, agora a encargo das próprias mães.
E aí você pensa, uau, finalmente! Evoluímos hein! Só que claro que não, se a gente olha para nossa história para aprender alguma coisa, a lição que temos aqui é: alimentação de bebês sempre foi uma coisa pensada e decidida por homens e imposta às mulheres sobre diferentes artifícios. Mulheres nunca tiveram autonomia sobre seus corpos, e, principalmente, a importância e a maneira como é realizada alimentação infantil sempre esteve ligado muito mais a fatores econômicos do que pensados realmente no bem-estar de crianças e mulheres.
E é nessa hora que eu te convido a pensar junto comigo, sem emoção, sobre esse tema.
O que acontece agora é que os principais problemas foram superados: lactantes já podem transar sem culpa e também não vão engravidar por isso. E homens entenderam que bebês bem amamentados se tornam adultos mais fortes, inteligentes, saudáveis e com mais longevidade. Entenderam que isso é um bom investimento a longo prazo.
E do mesmo jeito que mulheres foram convencidas que deveriam entregar seus filhos para nutrizes e depois que deveriam dar leite em pó para seus bebês, agora estão sendo convencidas sobre como ela deve assumir a tarefa da amamentação . Porque é um “ato de amor”, um “dever”, que é “bom pra sociedade”. Dizendo (muito sutilmente, claro) que se você não amamenta, você não ama seu filho, não quer o melhor para ele. Romantização na veia. A velha fórmula não muda.
E aí, é preciso ver com clareza qual a mulher escolhida pelo sistema capitalista para que amamente essas crianças que serão os adultos premiados do futuro. Quais são os bebês selecionados para uma existência mais saudável e com menos risco de adoecimento. E para descobrir eu sugiro um experimento simples: coloquem a hastag #smam em qualquer mídia social e observem bem as fotos. O que você vê? Mulheres brancas com acesso a bens econômicos e culturais.
Porque a amamentação e saúde de bebê para longo prazo, não é para todas as pessoas. Muito menos para a camada mais pobre da classe trabalhadora, quase toda formada de pessoas racializadas e pobres. Essa população precisa estar economicamente ativa alimentando a indústria do leite em pó, enquanto um outro grupo mais privilegiado, que tem raça e tem classe definido vai poder fazer valer o uso de todas as recomendações preconizadas pela OMS.
Ou você espera que uma mulher proletária, salário mínimo, chefe de família, quase sempre com mais de um filho, com nenhuma rede de apoio, com apenas 120 dias de licença maternidade, amamente por 6? Como? Com uma lei que te dá dois intervalos de apenas meia hora durante o período laboral para a amamentar? Com oferta mínima de creches para deixar o bebê? Com pediatras que orientam introdução alimentar aos 4 meses de idade com danoninho?
Como nós vamos falar sobre “livre demanda” com essa mulher? Quando ela passa facilmente 12 horas fora de casa? Sobre “confusão de bicos”? Quando diversas outras pessoas se encarregam de alimentar o bebê nesse período e ela perde completamente o controle do processo? Vamos dizer para ela “ordenhar” e “conservar” o leite? De que mulher estamos falando que consegue fazer isso? Aquela mulher que trabalha na fábrica, que trabalha o dia inteiro em pé na loja do shopping, que trabalha atrás de um balcão, no painel de um atendimento telemarketing?
E aí você pode argumentar: “mas os países com maior taxa de aleitamento são países muito pobres da África ou do Oriente Médio”. São sim, e quando você vai olhá-los na lupa quase sempre descobre que quase todos são países minúsculos que serviram como laboratório das campanhas da ONU. Ou você acha que se realmente houvesse vontade política de incentivar o aleitamento nós teríamos apenas 34 países (incluindo o Brasil) cumprindo a recomendação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de conceder ao menos 14 semanas de licença à mãe com remuneração não inferior a dois terços dos seus ganhos mensais?
Com quem estamos falando quando dizemos que o recomendado é que o bebê seja amamentado até os dois anos de idade? Quem é essa mulher que consegue fazer isso? Quais condições de VIDA são necessárias para isso que não flertam com privilégio de raça e classe? Ou que sejam apenas uma conjunção de perrengue e sorte?
Quão cruel é jogar essas campanhas no colo de uma mulher pobre que se chicoteia intimamente porque “não conseguiu amamentar” quando ela não teve informação, apoio e teve que voltar a trabalhar para sustentar a família? Por que ficamos falando apenas sobre amor e saúde e nunca sobre sobrevivência?
Ou vamos admitir finalmente que realmente não interessa nem um pouco a saúde de crianças pretas, pardas, pobres. Que ninguém se importa se elas se alimentam de mingau de fubá, se ficam subnutridas, adoecidas, se morrem. Porque pobre é exército de reserva mesmo, e o que mais tem no mundo são pessoas pobres, não é mesmo? E ninguém se importa com a subjetividade da mulher proletária, dane-se que ela sabe que Mucilon não é o melhor para o seu bebê, porque veja, finalmente ela está informada, mas é só aquilo que ela consegue prover, com culpa, com medo. Já que essa mulher está o tempo inteiro lidando com viver ou morrer, literalmente, e está o tempo inteiro fazendo redução de danos. Nunca escolhas.
Mais uma vez a decisão sobre quem amamenta e que bebês serão nutridos está nas mãos dos homens, e mulheres estão fora do debate e das decisões e políticas que impactam diretamente a autonomia do seu corpo e a saúde dos seus filhos.
Para um política verdadeiramente honesta sobre o tema, a amamentação é focada em saúde para todos os bebês e não só os que são estratégicos ao capital. E mulheres são chamadas ao debate e não chantageadas emocionalmente. E recebem todas as condições materiais para que possam realizar a tarefa para o qual estão sendo convocadas.
E por condições materiais eu falo da ampliação da licença maternidade para o mínimo de 6 meses segundo as recomendações da OMS assim como um “auxílio-lactação” pelo mesmo período para que toda mulher pobre, sem renda, não precise entregar seu filho com 30 dias na mão de terceiros e ir trabalhar. É preciso falar em ampliação da assistência de creches para que se possa deixar outros filhos durante o dia, enquanto dá assistência ao recém-nascido. É preciso uma ampla rede de assistência ao parto e ao puerpério, com profissionais de apoio à amamentação fazendo visitas domiciliares, orientando e acompanhando essa mãe. É preciso ampliação da licença parental, para que haja uma outra pessoa apoiando essa mulher nas demandas domésticas. E aí sim, dadas as condições para que qualquer mulher, de qualquer raça ou classe, que queira, possa amamentar, podemos falar em orientação, conscientização, incentivo, apoio.
E isso falando apenas de uma via completamente reformista.
Pensando de maneira revolucionária, pra começar, mulheres precisam retirar essa decisão da mão dos homens. Que ainda que não o façam diretamente hoje, a conduzem através das pesquisas científicas, das invenções industriais, das leis, das normas e diretrizes de saúde, das campanhas. Homens que instrumentalizam mulheres desde sempre para prestação de serviço ao sistema patriarcal e capitalista.
Precisamos tomar esse debate para nós e fazê-lo nos nossos termos, pensando juntas qual o papel que como mulheres e mães queremos, podemos e precisamos realizar, num grande pacto social. Isso significa construir coletivamente sobre qual o custo (mental, emocional, psicológico, financeiro, físico), da amamentação para nós. Pensar no lugar do nosso corpo nisso tudo. Combater essa estratégia de romantização da amamentação que é uma clara estratégia para culpabilizar e responsabilizar mulheres pela nutrição de seus bebês.
E pensarmos, juntas, nós, mulheres. Porque são muitas as questões e poucas as respostas construídas através do acúmulo do nosso olhar e das nossas experiências de mulher: e fazer isso desapaixonadamente, sem coerções emocionais.
Como a nutrição adequada de bebês deve ser gerida por nós enquanto sociedade? E como nós, mulheres, seres que somos capazes de realizar essa tarefa, queremos estar neste contexto? Esse é um lugar completamente diferente e libertário para pensar amamentação. Algo inédito e que ainda não foi feito de verdade: do ponto de vista das mulheres.
E sim, mulheres podem amar amamentar, está liberado também. Porque para muitas é uma experiência bonita e repleta de beleza num vínculo muito especial com a criança. E mais uma vez isso não tem a ver com maternidade. Mulheres amamentam, seus filhos e os filhos de outras mulheres. A experiência subjetiva de cada uma é particular e incomunicável.
O importante é a consciência de que potência não é obrigatoriedade. Que amamentar não é ato de amor, é ato de política pública de saúde. Que tem uma função estratégica importantíssima: garantir cidadãos de plena saúde e vigor para construir a sociedade. E ser nutrida deve ser um direito universal de todas as crianças, e não só das que podem pagar por isso. E amamentar deve ser um direito das mulheres, que devem conduzir esse debate como pessoas estratégicas nessa função, como sujeitos e não como objetos eternamente instrumentalizados para cumprir os objetivos dos homens nesse mundo capitalista e patriarcal.