Como a educação machista tritura crianças
Nossa sociedade prega uma educação machista que tritura crianças. Já reparou que quando queremos que alguém seja forte, decidido, corajoso nós dizemos: “seja homem!” e quando queremos insinuar que alguém é fraco, frágil, medroso, vulnerável, dizemos “é uma mulherzinha!”? Que a mulher sempre é representada como uma vítima, como objeto de disputa ou conquista, alguém que precisa ser salva, alguém que causa problemas, enquanto o homem chega e resolve tudo (normalmente com bastante violência?). Que “mulher no volante, perigo constante”, “só podia ser mulher”, “lugar de mulher é em casa com os filhos”, “mulher não nasceu para comandar”, “mulher fala demais”, “mulheres são invejosas”, “mulheres são muito fofoqueiras”, “mulher demora demais para se arrumar”, “mulher é tudo fresca”, “mulheres são vaidosas”, “mulher tem que se cuidar”, “mulher tem que cuidar da casa”, “a responsabilidade com os filhos é da mulher”, “mulher não tem cabeça para essas coisas”, “homem não gosta de mulher inteligente”, “homem não gosta de mulher independente”, “mulher provoca”?
E o homem? “Homem é assim mesmo”
Isso são estereótipos de gênero reforçando a ideia de que mulheres são seres inferiores aos homens.
E o cruel disso tudo? Já dissemos. Estereótipos são expectativas, não expressam a verdade de um indivíduo. Todas as características que citamos na verdade podem ser de qualquer pessoa, não escolhem em que sexo biológico vão se manifestar. “Delicadeza”, por exemplo, é um atributo. Que mulheres podem ter. Ou não. E homens também. E tudo bem.
A grande questão é que tudo isso está tão intrinsecamente arraigado na nossa cultura e nos é ensinado a todo momento e há tanto tempo que passamos a acreditar que é de fato REAL. Passamos a acreditar que as pessoas de fato SÃO os seus estereótipos de gênero.
A maioria das mulheres hoje, quando engravida, é estimulada a esperar saber o sexo da criança para comprar todo o enxoval de acordo com uma determinada cor que é usada como um marcador para o sexo biológico do bebê.
E por que é tão importante saber se o bebê é menino ou menina e informar isso para a sociedade? Porque ferimos nossas bebês, furando suas orelhas, pendurando acessórios na sua cabeça, para que não se corra nenhum risco do seu sexo ser confundido? Por que as pessoas ao invés de perguntar o nome da criança primeiro, costumam perguntar seu sexo? Que diferença faz para adultos a genitália de um bebê?
E eu respondo: é importante saber o sexo daquela criança para que desde cedo já fique muito claro para a sociedade qual o clube (feminino ou masculino) a que ela pertence. E para que ela seja tratada, educada e instruída de acordo com as regras do seu estereótipo de gênero. E que ache que aquilo tudo é natural, nasceu com ela.
Você nunca reparou como o tratamento do bebê muda, a partir do momento em que você informa qual o sexo? (“ que princesinha LINDA!”, “que garotão FORTE!”)
E esse “treinamento” é bastante limitador e cruel. Meninos e meninas vão ser ensinados a se sentirem, serem e se comportarem de acordo com as expectativas do seu gênero, desde bebê, de forma sutil ou bem direta.
Fábrica de heróis
Meninos vão ser inseridos na cultura dos “heróis”, dos “campeões”, dos “guerreiros” (que já trazem embutidos os valores de força, coragem, ousadia, rapidez, e agressividade e violência). Verão a si mesmos representados como protagonistas em tudo, filmes, novelas, desenhos e terão uma noção distorcida da própria importância. Sempre como o personagem principal, o mais importante, o herói que salva o dia, aquele de quem todos precisam e a quem todos servem.
Brincarão com coisas que trabalham sua criatividade, suas habilidades racionais, espaciais, lógica. Serão estimulados a correr livremente e praticar esportes, com o desenvolvimento de sua potência física valorizada. Serão treinados para ter uma vida profissional e estimulados a quererem profissões desafiadoras, de status, carreiras de sucesso.
Não aprenderão que devem ter responsabilidades de auto-cuidado, cuidar dos filhos ou da própria casa, porque percebem que não precisam se preocupar com essas coisas já que sempre tem uma mulher fazendo isso por eles. Seja a mãe, seja uma irmã, seja a companheira, seja uma trabalhadora doméstica.
Qualquer contato com o universo de brincadeiras das meninas será duramente repreendido e aprenderão a rir e a debochar das meninas, porque serão tratados como mais espertos, mais fortes, mais inteligentes, mais rápidos, mais “legais”. E que meninas são o seu oposto, logo tolas e chatas. Serão incentivados a punir os amigos que demonstrarem estarem “saindo da linha”das regras da masculinidade xingando de “mulherzinha”, “mariquinhas”, “viadinho”. E os espancando se for preciso para “virarem homens”.
A agressividade desde muito cedo será naturalizada e valorizada. Serão estimulados a brigar e a bater uns nos outros. Brincarão de lutar. E de matar. A competir e a sempre vencer. A não “deixar por isso mesmo”. E serão duramente repreendidos se não se demonstrarem másculos, viris, agressivos. Se não partirem para a “porrada”.
Serão estimulados a hipervalorizar o sexo, e sua maior responsabilidade social será sempre mostrar que é “macho”. Carregarão o peso da virilidade nas costas, de conquistar sempre o maior número possível de mulheres, estarem sempre à caça. Nunca negarem sexo, mesmo que não estejam com vontade. Buscar sempre exibir uma mulher bonita, como um troféu. Que mulheres dizem “não” querendo dizer “sim” e como eles possuem um “instinto animal” que não conseguem conter, isso justifica ultrapassar qualquer limite.
Serão coibidos de mostrar os próprios sentimentos, a nunca parecerem que se importam de verdade, porque sentimentos pertencem ao universo feminino. E aprenderão que tudo que é desse mundo é inferior e fragilizante. Entenderão que sua única preocupação é desbravar o mundo e que tudo lhe pertence. Inclusive as outras mulheres, de quem crescem tão distantes, tão separados, que têm dificuldade de enxergar como pessoas. Pensarão que mulheres são seres de outro planeta (mulheres são de “Vênus”, homens são de “Marte”), são um objeto, e que só os outros homens os entendem e são verdadeiramente dignos da sua amizade e companheirismo.
Triturador de donzelas em perigo
Meninas vão ser embebidas na cultura das “princesas” (um título que já traz embutido diversas das características que são empurradas para as mulheres como beleza, docilidade, vulnerabilidade, fragilidade, delicadeza, etc etc); Serão treinadas para serem vaidosas, prendadas, domésticas, mães, cuidadoras, através dos brinquedos que são destinados a elas (bonecas, pelúcias, conjuntos de cozinha, e tudo que é parafernália de beleza).
Verão a si mesmas sempre representadas como coadjuvantes, donzelas em perigo, princesas à espera de um príncipe. Nunca se verão em cargos importantes, ganhando prêmios, vivendo aventuras, realizando grandes descobertas. E se acostumarão com a ideia de ocupar um lugar secundário na sociedade. De se ver como um acessório.
Perceberão como em toda parte mulheres sempre estão sendo elogiadas apenas pelo seu corpo e sua aparência. E receberão mensagens confusas sobre estar sempre disponível sexualmente e ao mesmo tempo “se valorizarem”. Serão vigiadas para que não engordem e duramente censurada caso comam muito. Aprenderão a odiar o próprio corpo que nunca será suficientemente belo. A se acharem sujas. “Bonita” é o principal elogio que ouvirão e crescerão com a percepção (reforçada pela mídia) que este é o único atributo de poder que possuem.
Serão estimuladas a dançar, cantar, sensualizar, participar de concursos de beleza. Brincarão com brinquedos que simulam cuidados com o lar, com os filhos e serão responsabilizadas precocemente para realizar atividades domésticas, para “ir aprendendo”. Cuidarão dos irmãos. Serão desestimuladas a realizarem atividades esportivas, ativas, “brutas”, ou qualquer coisa que fira sua imagem “feminina” de objeto de decoração. Serão subestimadas se decidirem se aventurar pelo mundo das ciências exatas. Ridicularizadas e afrontadas se demonstrarem apreço por itens do universo masculino.
Serão orientadas a ficarem quietinhas, caladas, de perna fechada, sem gritar, correr, protestar, porque “são meninas boazinhas”. Serão censuradas sempre que manifestarem desagrado, sempre que forem mais incisivas, que falarem aberta e objetivamente sobre seus desejos. Serão exploradas emocionalmente, chamadas de loucas.
Ouvirão desde o nascimento que o seu destino é “conseguir um namorado”. Que é a maternidade onde uma mulher se completa. Que felicidade está na manutenção de uma família e não de uma carreira. Que homem não gosta de mulher que não se cuida, não gosta de mulher inteligente, não gosta de mulher independente. Que outras mulheres são falsas e querem roubar seu homem de todo jeito. E apesar disso, também aprenderão a nunca confiar completamente no homem porque ele tem uma “natureza animal” irrefreável.
Essas são as instruções que todos nós recebemos e que nós, adultos, ensinamos para as crianças. Reforçamos e reforçamos e reforçamos estereótipos de gênero e prendemos as crianças nessa armadilha que as obriga a performar um personagem que muitas vezes está longe de fazer parte da essência dela, da personalidade dela.
Ou você, mulher, realmente se identifica com todas as características que são atribuídas ao sexo feminino? Elas fazem parte da sua personalidade só porque você nasceu com uma vagina? E você, homem? Você realmente nasceu assim?
Como é que se vai conhecer de verdade a personalidade do bebê se ele já nasce com tantas expectativas sobre como ele deve ser, se comportar, agir, só por causa do sexo biológico dele? E se todo esse treinamento de gênero que se está oferecendo não tiver nada a ver com ele? E se a menina odiar bonecas e adorar carrinhos? E se o menino adorar bonecas e odiar lutar?
Crianças são pessoas em desenvolvimento.
Crianças estão sofrendo por causa dos estereótipos de gênero. Por causa do seu machismo. Meninas e meninos estão sendo privados de um despertar pleno, de terem contato com o desenvolvimento de todas as suas habilidades porque só são estimulados pela metade.
Nossas crianças estão no meio de uma guerra de estereótipos e estão sofrendo. Tendo que atender desde cedo expectativas muito duras de comportamento. E isso é especialmente mais grave e cruel com nossas meninas, que são criadas para serem a parte mais fraca e são as maiores vítimas dessa cultura machista que violenta, abusa e mata mulheres.
Romper com os estereótipos é difícil mas não é uma tarefa impossível. É um enfrentamento que começa com o entendimento de como a engrenagem funciona e com o desmantelamento da sua lógica interna.
Vamos ser livres.