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Criar crianças antirracistas é garantir que vidas negras importam

Criar crianças antirracistas é garantir que vidas negras importam. E para ensinar crianças sobre antirracismo é preciso contar-lhes histórias. Contar sobre como, ao longo de toda a trajetória da nossa civilização, grupos de pessoas — quase sempre brancas — sistematicamente invadiram outros territórios e dominaram os povos ali nativos, os assassinaram, e espoliaram.

Precisamos contar como esses grupos foram acumulando riquezas saqueadas e aumentando seu poder de invasão e domínio, sempre privilegiando seus iguais. Uma prática ancestral, imemorial, e definidora quando falamos da formação do que conhecemos como Brasil.

Precisamos explicar aos nossos filhos como fomos invadidos por um povo de homens brancos ricos, que chegaram e exterminaram milhares e milhares de pessoas que aqui viviam suas vidas. Sobre como eles perseguiram e escravizaram os habitantes que sobreviveram, e aqui se instalaram e começaram a apropriar-se de tudo, com fúria, à custa de muito sangue derramado. Precisamos explicar como esse lugar se tornou refúgio de uma monarquia acossada que veio para cá fugida e quis transformar essa terra no seu albergue particular. Como fizemos parte e aperfeiçoamos o tráfico sistemático de pessoas negras trazidas do continente africano para trabalho escravo, pessoas que eram vendidas como coisas, como objetos na banca do camelô da praça e vilipendiadas.

Temos que contar as nossas crianças como durante séculos, milhares e milhares e milhares de seres humanos foram tratados como coisas, comercializados, explorados até a última gota de suor e como, em algum momento, esse modelo de economia esgotou-se e eles foram “libertos”. E explicar a farsa da abolição da escravatura e deixar que crianças entendam como, há pouco mais de 100 anos, uma incalculável população de pessoas negras, homens, mulheres, crianças, foram jogadas na rua. Sem casa, sem comida, sem emprego, sem patrimônio, sem estudo. Para permanecerem, a partir daí, eternamente coagidas economicamente por pessoas brancas, oprimidas por uma estrutura criadas para mantê-las eternamente em posição de subalternidade racial, em subempregos, sempre vistas como seres sem distinção ou dignidade.

E precisamos dizer também como todas as mulheres indígenas e escravizadas foram sistematicamente estupradas, como foram abusadas por seus senhores, que nossa nação “feliz e miscigenada” é fruto da dor e da violência sexual sofrida pelas nossas ancestrais.

Não basta “falar sobre racismo” para crianças ou “reconhecer o seu privilégio branco” sem explicar os motivos pelos quais o racismo existe. Sem explicar a estrutura que é sustentada pela segregação racial que existe para manter pessoas brancas em situação de vantagem econômica, social, financeira e em posição de manter sua hierarquia sobre pessoas negras, para que elas continuem servindo, continuem fazendo o trabalho pesado, subutilizado, que os brancos não querem realizar.

É preciso apontar que pessoas negras hoje, como resultado de tudo que pessoas brancas fizeram, compõem a maioria das pessoas pobres, periféricas, menos escolarizadas, imersas em situação de violência, exploração, marginalidade, violência sexual, abandono parental. Que sofrem exclusão institucional, são a maioria da massa carcerária, a maioria da massa evadida das escolas, a maioria da massa que está subempregada. Que jovens negros são executados compulsoriamente pela polícia. Que estão à margem dos sistemas de justiça. Que elas apenas passaram a ser vistas como “pessoas”, há pouco mais de 100 anos, tendo que correr atrás de tudo que lhe foi roubado, herança, história, cultura, patrimônio, ancestralidade. Que muitas dessas pessoas não sabem nem definir quem foram seus tataravós porque eles foram retirados à força do seu lugar de origem, separados da sua família e jogados em uma senzala. Que isso tudo acontece porque pessoas negras foram raptadas, traficadas, foram assassinadas, foram escravizadas, por anos e anos. Tudo isso feito por pessoas brancas.

Então não adianta falar sobre racismo para crianças se você também não fala em privilégio e principalmente se você não fala em reparação. Se você acredita em meritocracia. Se você fala de tudo o que acontece com a população negra como se isso não fosse um problema que, mesmo que você, indivíduo, não tenha causado diretamente, hoje se beneficia. Se você conhece seus ancestrais, se sua família tem um patrimônio, se você tem herança a receber, é porque seus antepassados brancos, em algum lugar, estiveram escravizando uma pessoa negra. E hoje você colhe os frutos dessa exploração. Você acumula para si os resultados de anos de sangue negro derramado.

E sim, é preciso que as crianças brancas que estão aí hoje entendam isso. Que mais que entender-se com sendo detentores de inúmeros privilégios, que mais que serem capazes de não reproduzir preconceitos raciais, elas sejam capazes de recuar. Educar crianças para combater o racismo é mais que mostrar que pessoas negras existem, mostrando fotos de revista ou programas de TV, é sobre alertá-las que é preciso tirar o joelho do pescoço das pessoas negras. Porque nascemos com esse joelho posto, lhes tirando o ar.

Ensinar crianças sobre democracia racial é sobre a compreensão de toda a violência que pessoas brancas impuseram e impõem à pessoas negras. É sobre reconhecimento de todo o privilégio que advém dessa violência estrutural. E é sobre reparação. Sobre apoiar e lutar sobre essa reparação. Sobre recuar nos seus direitos adquiridos à custa do sangue dessas pessoas para permitir que pessoas negras acessem os espaços dos quais foram historicamente alijados, sobre eleger pessoas negras para ocupar espaços de poder, sobre consumir de pessoas negras, sobre defender pessoas negras da violência estatal.

Você vai ser capaz de tirar o seu filho do banco protegido do carro e caminhar com ele pelas ruas onde a população negra se atropela pedindo comida? Ou vai mostrar pessoas negras pela janela? Você vai ser capaz de abrir mão de colocar o seu filho nas “melhores escolas” e nos “melhores ambientes”, com “pessoas da classe dele”, para que ele possa “vencer na vida”, em nome dele frequentar lugares mais democráticos, plurais? Você vai ser capaz de manter seu filho em universidades particulares que você pode pagar em nome de abrir espaço na disputa das melhores escolas públicas? Você vai ser capaz de abrir espaço nos concursos públicos? Vai abrir mão de explorar a mão de obra doméstica de pessoas negras? Vai deixar seu filho brincando com as pessoas da “comunidade”? Se você não atravessa sua prática com essa compreensão de como cada pessoa negra chegou até aqui dentro desse sistema e não consegue dar passagem, não adianta nada usar camiseta com frases bonitas e hashtags.

Se você no fundo olha pra todo menino negro maltrapilho como um potencial trombadinha, se você olha para toda menina negra como uma serviçal, se você é incapaz de reconhecer beleza e potência neles. Se você mesma os rejeita, acusa e pune na primeira oportunidade. Enquanto pessoas brancas que estão dispostas a repensar seus privilégios não assumirem esse nível de consciência sobre as origens e desdobramentos dessa questão, vamos apenas ficar em articulações momentâneas que passam em poucos dias dando lugar apenas a novas ondas de indignação quando uma outra pessoa branca comete uma nova atrocidade.

Antirracismo é uma prática diária. É uma vigilância constância sobre o pensamento colonialista com que cada pessoa branca é socializada no sentido de manter todos os privilégios rapinados por seus ancestrais com violência e morte. É a recusa de privilégios travestidos de direitos.É retirar esses privilégios dos próprios filhos em detrimento de um sistema justo. Escancarar as vísceras desse sistema e assumir a responsabilidade por como chegamos até aqui. É assumir para si, definitivamente, o compromisso de que vidas negras importam.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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