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A paternidade é facultativa

Vivemos em uma sociedade onde a paternidade é facultativa e a maternidade é compulsória. Mulheres aprendem que a maternidade é um destino, uma função que devem cumprir para serem completas. Desde o seu nascimento recebem todo um treinamento que a encaminham para a culminância da sua vida que, segundo lhe dizem, acontece quando ela engravida e se torna mãe.

Homens, por outro lado, aprendem muito claramente que paternidade é uma atividade facultativa, que podem ou não exercer sem muitos constrangimentos sociais. O menino nasce e desde já tudo a sua volta gira em torno de ensiná-lo sobre transitar no mundo agressivamente, exercendo dominância e recolhendo recompensas na forma de dinheiro e sexo. Ele recebe carros, bolas, bonecos de guerreiros, soldados, super-heróis. Ele assiste por toda a parte homens em combate. E fantasia matar inimigos e ser o herói.

Se o treinamento da menina é para a vida doméstica e o cuidado (do lar, de si mesma, dos menores, dos pais); o treinamento do menino é para enfrentar o inimigo (o ladrão, o vilão, o alienígena, o monstro). A mídia, as propagandas, desenhos, filmes, livros, situam sempre o homem na posição de homem conquistador, resolvedor dos problemas, em que tudo gira a sua volta. Ele cresce com a superestimada noção de que o universo existe esperando por ele para salvar o dia.

Qual é a função do homem na sociedade? O que ensinamos a esses meninos? Que eles devem ter sucesso, dinheiro, mulheres, aventuras, e aproveitar a vida enquanto podem. Que o mundo está a disposição deles e devem se divertir. Devem ser fortes, viris, conquistadores. Machos. Provedores. Gostar de coisas de “homem”. Carros, esportes, sexo, drogas e diversão. Que mulheres existem para limpar o que eles sujam, cozinhar para que eles comem, servi-los , cuidá-los e fazer muito sexo com eles. Porque é sua função enquanto mulheres.

Que parte da educação de um menino o orienta sobre a importância da família? Do cuidado? De se respeitar mulheres? De valorizar o amor não-sexual? Um relacionamento? A família? Que parte da educação de um menino orienta sobre sua responsabilidade com seus futuros filhos? Nenhuma.

Crianças fazem suas primeiras brincadeiras imitando o que elas vêem no seu cotidiano. Se um menino demonstra interesse em brincar de imitar aquilo que vê sua mãe fazer (limpar, cuidar, cozinhar), o que acontece? é imediatamente reprimido e orientado que “aquilo não é brincadeira de homem”. Se ousar brincar com uma boneca, alimentá-la, vesti-la, banhá-la, penteá-la, fazê-la dormir, pode até ser castigado. Quantas famílias compram para seus meninos conjuntos de panelinha, vassoura, boneca, para que eles exercitem e naturalizem no seu repertório sua parte nos cuidados com a casa onde vive e com as outras pessoas do ambiente? Quantos meninos convivem em um ambiente ondem vêem os homens atuando ativamente com o cuidado dele, da casa e de todos a sua volta? Quantos conseguem crescer em um ambiente onde não assistem o trabalho doméstico de mulheres sendo explorado? Ou um ambiente sem violência?

Limpar o que suja, cozinhar a própria comida, ser capaz de dar conta da organização do ambiente onde vive, ter auto-cuidado, cuidado com o outro, não são habilidades femininas. São pré-requisitos básicos para uma sobrevivência autônoma na vida adulta. Exaltamos tanto uma criação que valorize a independência, mas no caso dos meninos alimentamos uma cultura que os torna co-dependentes a vida inteira de alguém que vai lhe garantir a estrutura mínima para sua sobrevivência, como comida, organização e limpeza pessoal.

No entanto, meninos são, quase sempre, completamente impossibilitados, desde a infância de treinar habilidades de cuidado doméstico, cuidado com si mesmo e com o próximo. São ensinados que CUIDADO é uma tarefa de mulheres. Crescem sem desenvolver nenhuma noção de responsabilidade com nada, principalmente com crianças que exigem dedicação absoluta. E se tornam homens que primeiro são dependentes da mãe para que lhes frite um ovo, passando essa tarefa para uma esposa, ou então para uma trabalhadora doméstica.

E meninos não aprendem como encaixar as responsabilidades que ter uma família significa dentro das ambições que são cultivadas no seu mundo. A família é um dilema, uma armadilha. É o ponto de ruptura entre uma vida de direitos, aventura, esbórnia e diversão das suas fantasias e uma vida de deveres, tédio, previsibilidade. E muitos crescem e se casam como quem vai para a execução na guilhotina. É o “game over”.

A família para o homem é um símbolo de “status” , uma prova de que agora se tornou um “homem responsável”, que “tomou juízo”, “tomou jeito”. É uma prova de amadurecimento que ele oferece à sociedade. A mulher é tida como sua propriedade, como uma aquisição que vai cuidar dele e da casa. E os filhos são os acessórios necessários para provar sua virilidade e fertilidade. E só são importantes na medida que representam o vínculo com a mulher. Porque o homem aprende que os filhos são dela, e um desejo e uma necessidade da mulher. E que a única relação que eles precisam desenvolver com os filhos é o de provedor, a única responsabilidade que devem ter em relação a filhos é a de pagar pensão. E sentem-se muito orgulhosos de si mesmos quando pagam, porque mesmo isso já é uma exceção.

Quantas e quantas crianças não crescem sofrendo inúmeras violências e abusos por parte do seu pai? Vendo sua mãe apanhar cotidianamente? Para quantas famílias o homem é a figura a ser temida, “respeitada”, acatada? É a figura que é suportada apenas em função dele ser aquele que coloca comida dentro de casa. Olhem os índices de violência doméstica, de abuso sexual intra familiar. São assustadores. Quem são os perpetradores? Homens. Que fazem da sua mulher e filhos seus escravos particulares, exercendo sobre eles toda sorte de agressões. Olhem os números.

A paternidade é uma mentira. Fingimos todos que homens estão ali fazendo parte afetivamente daquela família, mas quase sempre ele é o elemento autoritário, abusivo e desagregador. Aquele que tem permissão para entrar e sair do acordo a hora que quiser. Nenhum homem é constrangido por não registrar seus filhos, por não contribuir para o seu sustento, por abandoná-los emocionalmente. Quantos e quantos homens que após separar-se e formar uma nova família simplesmente esquecem a existência dos filhos crescidos?

A função do pai na sociedade patriarcal não é o de cuidador dos seus filhos. O que é esperado do homem é o papel de macho-alfa conquistador. E esse lugar da paternidade só existe socialmente se for exercida nesses moldes. É isso sim que lhes é cobrado todo dia, incessantemente. Que homens sejam MACHOS, todo o tempo e qualquer desvio dessa norma, qualquer performance que ele execute que se aproxime vagamente de uma ideia de feminilidade ou qualquer tarefa que execute que esteja no espectro que é designado a uma mulher será criticado, punido, execrado. E é nesses moldes que a paternidade é exercida e é por isso que aos homens é facultado o direito de cuidar ou não dos seus filhos, de estar ou não presente. Por isso a eles é facultado o direito de abandonar, de sair para o mundo em aventuras, fazendo mais filhos, abusando, conquistando. Ou de ficarem e serem donos de uma família, onde podem fazer o que bem entender.

Esse pai sorridente, presente, de propaganda de margarina é uma exceção total, completa e absoluta sob o patriarcado. Eleger e vender esse modelo como padrão só serve para jogar para debaixo do tapete a verdadeira função do pai, e nos impede de discutir, nos defender, e rechaçar e convocar a transformação desse modelo.

O principal desafio da paternidade hoje é um desafio anterior que é o de romper com o padrão de masculinidade a que todo homem é submetido. Porque sem rever o que é o papel do homem na sociedade, sem quebrar o pacto com os estereótipos de gênero e com a hierarquia sexual, não há pai cuidador possível. É preciso ressignificar completamente a posição do homem no núcleo familiar a começar pelas razões com que as famílias são formadas e isso passa por ter coragem de rasgar a cômoda cartilha do papel social que diz quais as funções deveriam ser do homem ou da mulher. As regras dessa cartilha que, implícita e explicitamente exigem que o homem reine tiranicamente no lar e explore o trabalho de uma mulher.

Se um homem quer ser um bom pai, deve começar parando de explorar sua mulher. Assumindo que foi educado para ter privilégios e romper com isso. Assumindo que é o modelo de homem que seus filhos estão observando e vão reproduzir e/ou inconscientemente buscar. Envolvendo-se de verdade na ética do cuidado. Com si, com seu espaço, com o outro. Responsabilizando-se. E devem romper com a violência, romper com a agressividade como modo de estar no mundo e se relacionar com mulheres, crianças e demais populações vulneráveis.

E sim, sabemos que homens não são socializados para isso e que acham que o mundo está nas suas mãos. Mas homens também são seres pensantes, dotados de capacidade crítica e perfeitamente capazes de buscar a desconstrução desse conjunto de instruções em que é socializado. E esse papel que se cumpre sem refletir também tem um preço. E as mulheres, estão cobrando. E não vão parar de cobrar.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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