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É possível educar crianças para repudiar a homofobia?

Será que é realmente possível educar crianças que cresçam para não só não praticar como para repudiar a homofobia? Eu acredito que a resposta é talvez, e apenas talvez, por mais progressistas que sejamos, porque para ensinar como não discriminar pessoas homossexuais precisamos repensar todo o conceito de heterossexualidade.

Em primeiro lugar, precisamos entender um pouco dos motivos pelos quais ser homossexual é considerado um problema tão grande na sociedade que vivemos hoje. Sim, porque o comportamento homossexual não é novo, nem novidade, nem incomum, nem nos humanos e nem em inúmeras outras espécies. Inclusive existem estudos antropológicos que remontam práticas rituais homossexuais já há cerca de 10.000 anos, ou seja, pessoas transam com outras pessoas desde sempre, a despeito de serem ou não do mesmo sexo.

E quando tudo isso começou a mudar sistematicamente? Com o fortalecimento de instituições como o casamento e a família nuclear que surgiram para garantir a manutenção da heterossexualidade compulsória.

É o que é a heterossexualidade compulsória?

É um regime político organizado para garantir o controle da sexualidade de mulheres, de forma que elas estejam sempre subordinadas sexual e afetivamente a homens, ligadas a uma família nuclear e comprometidas com o cuidado do ambiente doméstico, da manutenção da vida de um homem, com a reprodução e cuidado de crianças. E dizemos que é um regime compulsório porque essa é a única forma de relacionacionamento afetivo-sexual que é permitida aos indivíduos, tendo mecanismos punitivos desde sutis (preconceito velado), até bem contundentes (a morte) para os que não seguem. Vivemos sim em uma sociedade em que não apenas é proibido não ter um comportamento heterossexual como todas as instituições sociais se organizam para garantir a heterossexualização dos seus indivíduos.

E como isso acontece? Desde boa parte das religiões que tem cláusulas bem específicas sobre o tema, passando pelos modelos de conduta ensinados na família, escola, etc (que reforçam a ideia da formação de uma família nuclear, com pai, mãe e filhinhos, como o ápice do acontecimento de uma vida), passando pelas instâncias legais que não reconhecem uniões homoafetivas (e isto está mudando bem aos poucos com muita luta dos grupos interessados), até o principal propagador: a cultura de massa, que nos bombardeia incessantemente com a romantização das relações heteroafetivas.

Ou seja, a despeito de como se constitui a atratividade afetiva e sexual (pergunta para a qual não existe uma resposta definida), ter homens e mulheres unidos e reproduzindo a espécie, com a fêmea em situação de subordinação (que é uma situação dada pela maneira como o casamento se organiza) é uma estratégia basilar do patriarcado e do capitalismo. Não é interessante que mulheres (e aí também homens, consequentemente) sejam livres para de repente decidirem que NÃO querem formar um tipo de organização social (a família-nuclear) que é a peça-chave para a manutenção desse sistema que nos oprime.

Entender a compulsoriedade da heterossexualidade é fundamental para compreendermos o fenômeno da discriminação sexual. Pessoas que decidem fazer sexo com outras do mesmo sexo, de forma não-procriativa, estão transgredindo não só as leis de “Deus”, mas principalmente as leis de regulação da mão de obra para a sustentação do capitalismo e as leis de manutenção da hierarquização sexual entre homens e mulheres. Isso não é sobre “heteronormatividade”, é muito maior que isso. É, repito, um regime político, uma agenda para garantir a imobilidade das castas sexuais.

E aí você pode se perguntar: mas se o patriarcado está aí há 6000 anos porque tão recentemente é que podemos dizer que existe uma organização tão complexa para garantir a heterossexualização das pessoas? Simples, porque antes mulheres não tinham direito a dar nenhuma opinião sobre o destino dos seus corpos. Elas eram vendidas, negociadas pela família, trocadas entre tribos, dadas de presente, como meros objetos comerciais. Mulheres e homens não precisavam ser convencidos a nada quando se tratava de reproduzir a espécie, isso era um negócio, uma solução para ter mãos para lavoura. Até o advento da disseminação das ideias eclesiais, sexo não andava junto com a ideia de casamento, ou amor, ou nada que valha. Quando a prática de vender mulheres em casamento foi abolida (e ainda é uma prática muito comum em muitas partes do mundo, não se enganem), e mulheres começaram a ter alguma autonomia sobre quem seriam seus parceiros, ganharam no colo uma bomba chamada romantização dos relacionamentos heterossexuais, toda a sociedade se reordenou para que a essência de como as uniões se organizavam não mudasse tanto assim, para que sequer pensássemos nisso, em outras formas de estar, de amar, de desejar. Para que mulheres sequer cogitassem a ideia de não unirem-se nunca mais a homens, por exemplo. Continuamos a celebrar os mesmos rituais medievais, mas agora chamando de “escolha”.

Eu acredito firmemente que a maneira mais fácil de educar crianças sobre relacionamentos é buscando fugir o máximo possível dessas noções heterossexualizantes, que estão presentes em tudo que ensinamos, o tempo inteiro, na nossa linguagem, nossa cultura, nos nossos modelos. Dizemos que a vaca é a “mulher do boi” (por que ela não pode ser a irmã? por que não dizemos que ela é a versão fêmea daquela espécie?), dizemos que dois irmãos que são um menino e uma menina são um “casal”, dizemos que crianças namoram, e isso pra citar alguns poucos exemplos que passaram agora na minha cabeça.

Temos que nos observar ao máximo para evitar essa visão do mundo pautada pela divisão sexual. Até porque crianças não têm uma noção erótica. Elas vêem o mundo dividido muito mais entre adultos e crianças do que entre homens e mulheres. Somos nós, ADULTOS, que nos esforçamos o tempo inteiro em doutrinar essa organização mental pautada no sexo.

Eu também não gosto muito do discurso da “aceitação”, porque — a depender de como é feito — isso indiretamente ainda reforça a ideia de que existe um comportamento normativo, padrão, e um “desviante”. “Aceitar”, “incluir”, pressupõe uma concessão. Uma ideia de que aquele outro ali está fazendo algo que não deveria, não poderia, não é natural, está “fora”. E esse entendimento (para crianças) reforça uma ideia de “falta de naturalidade” em comportamentos homossexuais, de que a heterossexualidade é o “certo” mas temos que ser bacanudos e “inclusivos”, quando na real é que ninguém tem nada a ver com a vida sexual de ninguém e pessoas não têm que ser organizadas, ou aferidas, ou validadas, de acordo ou por causa da sua sexualidade.

Diga a seu filho que adultos namoram e crianças não namoram. É isso que ela precisa saber sobre o tema. Quando a criança vir dois homens se beijando, verá adultos namorando. Quando vir duas mulheres se beijando, verá adultos namorando. Quando ela vir um homem beijando uma mulher, verá adultos namorando. Quando ela vir um casal de homens ou mulheres com um filho, verá dois adultos que resolveram criar uma criança. Dois pais, duas mães. Sequer há muito o que ser “explicado” sobre isso. É a vida dos adultos. Fim de papo. Não há o que “aceitar”, não há nada “diferente” nisso. Precisamos parar de projetar nossos constrangimentos e nosso preconceito para o mundo das crianças.

Se há algo a ser “explicado” para crianças sobre esse tema é que vivemos em uma sociedade que valoriza e condiciona um comportamento heterossexual. E isso nos leva a um comportamento de estranhamento, reativo e muitas vezes agressivo a tudo que foge a essa domesticação. O que crianças precisam entender não sobre o que é que a “homossexualidade” e sim sobre o que é realmente a heterossexualidade, sobre o que ela representa, sobre como ela nos é imposta, a que ela se destina. Que pessoas não são “naturalmente” uma coisa ou outra. Elas são pessoas, humanas, complexas, e têm o direito de crescer fazendo valer seus desejos e afetos sem ter que prestar contas a ninguém.

Em uma sociedade que prestasse, onde pessoas fossem verdadeiramente livres, todos saberiam que comportamento sexual de alguém é um tema de foro íntimo e de competência dela e que ninguém tem que se meter nisso. E que isso não define ninguém. Que classificar, discriminar, perseguir, segregar, estigmatizar pessoas com base no seu comportamento sexual só faz sentido em uma sociedade patriarcal, que precisa controlar corpos e sexualidades. Que só funciona porque realiza esse controle.

Então, considerando todas as poderosas engrenagens da heterossexualidade compulsória eu não tenho ilusões que seja possível criar crianças 100% descontruídas, seres de luz, porque a própria lógica de “desconstrução” que temos já está contaminada, porque o capitalismo já colocou as patas nessa pauta (e está se dando MUITO bem), enfim, são muitos poréns. Mas eu acredito sim que é possível explicar a nossas crianças e adolescentes como e porquê as coisas são como são. E acho que é possível esse esforço de contrabalancear essa educação que é toda baseada na divisão sexual da sociedade e consequentemente na dominação e na subalternidade de homens e mulheres respectivamente. Vale a pena pelo menos esse esforço dirigido.

Quanto ao meu filho eu espero apenas que ele faça sexo protegido, consciente e consentido. E que curta muito, e se divirta, porque sexo é uma coisa bastante boa, convenhamos. O resto, realmente, não é da minha conta.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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