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Crianças não são um problema

O mundo seria muito diferente se as pessoas parassem de tratar as crianças como um problema. Que todo o discurso que é feito sobre elas, de toda a sociedade, não girasse em torno de uma ideia que não é claramente dita mas sempre muito sutilmente colocada de que elas causam o caos, que são uma perturbação, de que não deveriam estar ali.

Vivemos em uma sociedade que pretensamente “ama” todas as crianças e as protege. É o discurso oficial que está bastante longe da realidade. Crianças são um grupo vulnerável tratado como propriedade privada dos seus tutores, sob fiscalização bastante esparsa do Estado. São vistas como menos que coisas, muitas vezes equiparáveis a animais de estimação. São sistematicamente excluídas socialmente até atingirem uma idade em que possam ter utilidade social, sejam por serem férteis, produtivas, ou consumidoras. São alvo de todo tipo de discurso aberto de ódio sem que haja sequer indignação sobre o tema. E poucos se preocupam de fato do bem estar delas, enquanto grupo, enquanto classe, enquanto seres de direito, que são. Pessoas.

Eu queria que pessoas lembrassem que a infância é um estágio obrigatório para todos. Que sequer faz sentido tratar crianças como seres “inferiores” ou à margem, porque necessariamente todos nós já estivemos nesse lugar, tendo o mesmo tipo de comportamento típico, de ser uma pessoa em desenvolvimento apreendendo o mundo. Então eu gostaria que os adultos não dedicassem tanto tempo para simplesmente domesticar as manifestações naturais dos estágios necessários de crescimento de todas essas tão jovens pessoas. Que não reclamassem tanto de suas necessidades de choro, sono, fome, de sua curiosidade, rebeldia, de sua inocência, sua raiva, sua inconveniência.

Eu queria que crianças com deficiências não fossem invisíveis, não fossem tratadas como seres de segunda categorias que não precisam de deferência, afeto e cuidado porque são encaradas como pessoas sem plenas capacidades para serem exploradas à exaustão pela máquina capitalista, cujos poucos direitos que possuem foram conquistados à duras penas por suas mães, igualmente invisíveis com suas questões.

Queria que todas as crianças tivessem seus direitos respeitados e não só aquelas que interessam à sociedade, as brancas endinheiradas. Que crianças negras tivessem direito de verdade à infância e que não fossem vistas como adultas tão logo cheguem à pré-adolescência, já sendo considerados aptas para morrer na mão do Estado, ou parir.

Queria que homens não violassem, não agredissem, não explorassem corpos infantis. Que assumissem suas crianças e cuidassem delas de verdade. E que todo esse discurso de que crianças são seres “sagrados”, são “anjos”, são “seres inocentes” não fosse uma mera falácia para ficar bem na foto.

Eu queria que todos se mobilizassem para pensar a maternidade compulsória, um debate tão necessário, e não usasse isso como desculpa esfarrapada para destilar discurso de ódio contra crianças.

Parem de tratar crianças como se elas fossem um problema apenas porque somos uma sociedade embrutecida, cruel, dura, incapaz de cultivar valores de empatia, generosidade e solidariedade com quem ainda não é útil ao sistema. Parem de tratar crianças como se elas fossem um estorvo, um fardo, apenas porque ninguém além das mulheres é levado a responsabilizar-se pela criação delas. E isso interrompe a vida das mulheres sim, mas não porque há algum problema com as crianças e sim porque há um problema com toda uma sociedade que isenta-se da formação dos seus próprio cidadãos, que trata crianças como números, como exército de reserva.

Uma sociedade com valores tão deturpados não está preparada para amar crianças de verdade. Para respeitá-las. Para entendê-las. Para querer oferecer o melhor possível para cada uma delas. Para vê-las em toda sua potência, força e beleza. Somos uma sociedade de valores tão individuais e utilitaristas formada por adultos que também tiveram sua infância roubada, e precisamos ser capazes de quebrar esse ciclo sem fim de violências. Em algum momento precisaremos dar um basta. Não são as crianças que são um problema, são os adultos que em algum momento esquecem da criança que já foram. Elas são a potencial solução para esse mundo tão complicado que vivemos e nós somos incapazes de reconhecer e investir nisso.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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