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Os mitos que romantizam a maternidade

São muitos os mitos que romantizam a maternidade. A romantização constrói uma narrativa sobre algo, escondendo seus aspectos opressivos, e idealizando e hiperdimensionando aspectos positivos. Esta é uma estratégia muito astuta dentro das estruturas de opressão para criar amarras psicológicas que garantem que as pessoas submetam-se a determinados papeis sociais e naturalizem situações onde são imensamente prejudicadas, sem dar-se conta disso. Para mulheres, a romantização da maternidade é fundamental para garantir a compulsoriedade dessa tarefa. A despeito dos dispositivos mais diretos e objetivos (como a dificuldade de garantir a contracepção ou a impossibilidade de interromper a gravidez), são esses gatilhos psíquicos que são construídos durante toda nossa socialização que garantem que quase toda mulher necessariamente acabe se tornando mãe em algum momento da sua vida, ou que sintam-se compelidas a maternar animais, plantas, seus companheiros, ou qualquer outra coisa que apareça no caminho.

Aprendemos sobre a maternidade e sobre o que é ser mãe de muitíssimas maneiras. Recebemos instruções diretas e também observamos o mundo. Vemos nossa própria mãe e a de outras pessoas, e também representações culturais, artísticas e midiáticas: teatro, livros, músicas, filmes, novelas, séries, matérias jornalísticas, e etc. É a nossa cultura — machista, a serviço dos valores do patriarcado — que oferecem todo um referencial com o qual vamos organizando mentalmente todo um aparato simbólico sobre o que significa ser mãe. Sobre o que a sociedade espera de nós nesse lugar. Como devemos agir, pensar, sentir e nos comportar. Somos moldadas para a maternagem atravessadas por mitos românticos que funcionam tanto como uma isca para este lugar, quanto uma medida de controle do comportamento da mulher que materna.

Os mitos que existem sobre a maternidade são a armadilha que nos atraem, nos mantém presas e condicionadas e que embaçam nossa reflexão crítica sobre nosso verdadeiro papel no patriarcado. Por isso é muito importante conhecê-los, para reconhecê-los e principalmente, combatê-los:

  • a mãe sagrada: 
    O sagrado é algo conectado diretamente a uma força superior, imaculada. O sagrado é venerado, infalível e existe para servir a humanidade e ao mesmo tempo ser adorado. Desde mitos antigos, com o arquétipo da “deusa mãe”, cristalizando com Maria, mãe de Jesus, aprendemos que ser mãe é um ser “divino”, “sagrado”, “puro”. Envolvemos o tema da maternidade em uma aura mística, onde a grávida é a mulher “escolhida” e filhos são uma bênção “dos céus”, uma missão sagrada que mulheres devem aceitar custe o custar, estejam prontas ou não, queiram ou não. Uma missão cuja recusa é tida como heresia. A ideia da mãe sagrada vai ancorada na de que a maternidade é um “sacro ofício”, que a dor, o sofrimento, o sacrifício, fazem parte do ato de criar crianças e que nenhuma mulher deve reclamar ou rebelar-se, mas sim resignar-se, e mais sentir-se agraciada afinal “filhos são um presente divino”. A ideia de que a maternidade é um lugar de divindade, e que toda mãe deve ser “adorada”, “reverenciada”, como uma Deusa, também abre espaço para muito abuso de poder onde mulheres incorporam esse mito e comportam-se com total onipotência perante seus filhos exigindo amor e respeito porque sim.
  • a mãe especial:
    esse é um mito muito ancorado no da sacralidade da maternidade. Vende-se a ideia de que mães são seres “especiais”. Isso cria uma falsa sensação de status na maternidade e mascara toda a opressão dessa condição, a ponto de mulheres que não são mães afirmarem que há “privilégios de tratamento” para as que são, antagonizando esses dois grupos. Mulheres deixam de se enxergar como iguais, pressionadas pelo patriarcado para o exercício da maternidade, para verem-se como rivais, onde mães se tornam as “preferidas”, as “paparicadas”, por terem cumprido o seu destino como mulher. Essa promessa é especialmente potente porque a estima das meninas é desde muito sendo esmagada e todas as outras possibilidades de existência e potencialidades vão sendo minadas. Meninas muito precocemente vão entendendo que seus talentos não servem ao mundo, a não ser que estejam a serviço da sedução de um homem ou da criação de filhos. Esse discurso da “mulher especial”, então, torna a maternidade um lugar desejado para muitas mulheres, um lugar onde elas entendem que finalmente terão atenção, reconhecimento social, terão algo que é uma criação sua (sim, um bebê). E é um choque para muitas quando, ao terem filhos, percebem que caíram em uma armadilha, e que se tornaram-se completamente invisíveis.
  • a mãe guerreira/heroína:
    a função do mito da mãe guerreira ou mãe heroína é romantizar o sofrimento e o abandono materno. É uma estratégia eficiente que faz com que mulheres assumam esse arquétipo diante de dados desafios da criação dos filhos, trazendo para si toda a responsabilidade de resolvê-los, e que faz com que a sociedade também “lave as mãos” diante de suas dificuldades, já que toda mãe “é guerreira”. É um prêmio de consolação emocional, uma espécie de “biscoito” psíquico que jogamos para mulheres manterem-se firmes enquanto sofrem todo tipo de horror e aniquilação na tarefa de criarem de seus filhos. Via de regra a mãe “guerreira” foi abandonada por todos e teve que fazer os maiores sacrifícios e abrir mão completamente da própria vida. E muitas vezes esse “elogio” vem dos próprios filhos como forma de gratidão e reconhecimento para a mãe pelo tremendo esforço que aquela mulher fez para criá-los. Mas de fato, quase sempre, por trás de uma mãe “guerreira”. de uma “mãe heroína” o que existe mesmo é miséria, violência, abandono do Estado, e muita exploração.
  • a mãe dotada naturalmente:
    esse é um mito muito presente e muito nocivo: a ideia de que é natural para mulheres cuidar do outro. Que mulheres “levam jeito”, que mulheres tem um “dom”, um “instinto” maternal e de cuidado. Isso não é verdade em absoluto e traz como único resultado uma idealização absurda sobre o tipo de mãe que mulheres devem se tornar. Mães que não erram, que estão sempre ali à disposição dos filhos, mães que amam naturalmente tudo que tem a ver com suas crias e com a maternidade. Essa ideia de que pode haver algum elemento inerente às mulheres para o cuidar de filhos é injusta e profundamente misógina. Injusta porque sequer considera homens nessa equação colocando todo o peso e expectativa nas costas das mulheres e misógina porque enxerga mulheres necessariamente sob uma ótica de serviço e dedicação às necessidades do outros. E esse mito também é a desculpa perfeita para homens fugirem da responsabilidade do cuidado, e para meninas serem socializadas com muito mais afinco nessa direção enquanto não é feito nenhum investimento no ensinamento dos meninos. Mulheres muito facilmente assumem todo tipo de tarefa de cuidado e sentem-se desestimuladas a cobrar ou ensinar ou delegar essas mesmas tarefas aos homens porque “eles não levam jeito pra isso”.
  • a mãe que ama incondicionalmente:
    um dos mitos mais perniciosos que ronda a maternidade é sobre o amor. Tanto o que mães sentem pelos filhos quanto o que filhos sentem pelas mães. Na maternidade, este sentimento é imposto como absolutamente necessário, verdadeiro e inequívoco, que surge sem reservas e de maneira intensa. Para as mulheres é uma espécie de “salário”, a “compensação” por todo o trabalho que ela realiza sozinha, tanto o amor que ela sentirá pelo filho (“você nunca sentirá nada igual”), quando o amor que ela aprende que filhos deverão sentir por ela (“ninguém nunca vai te amar tanto”). E essa lenda que atravessa a relação parental traz também uma visão romântica do amor. Das mães espera-se um amor abnegado, aquele que tudo doa e nada espera, o amor carinhoso e dedicado, sempre a serviço da necessidades dos filhos. Dos filhos o reconhecimento devotado de todos os sacrifícios que a maternidade impôs àquela mulher e a gratidão eterna. Como resultado existe uma série de distorções de relacionamento entre mães e filhos, onde mulheres agarram-se aos filhos e ao seu sentimento por eles como a única coisa importante e que justifica suas vidas, e cobram afeto e gratidão dos seus filhos apenas porque sim, mesmo que sua relação e sua criação seja permeada por equívocos e violências. Do outro lado há filhos romantizando as possibilidades afetivas de suas mães, querendo delas total dedicação e serviço, desumanizando essas mulheres, tirando delas o direito ao erro, muitas vezes patologizando como “narcisista” comportamentos que distem do ideal de “mãe amorosa e dedicada”. E sempre há culpa, muita culpa. Mães que sentem que não amam seu filho o bastante, ou que sentem que não tem o seu trabalho reconhecido. Filhos culpados por não sentirem todo o amor e gratidão que são cobrados o tempo inteiro.
  • a mãe perfeita:
    esse mito constrói a narrativa de que mães são perfeitas e não tem direito ao erro, ao equívoco, à dúvida, no exercício da sua maternagem. E é uma excelente e uma das principais ferramentas de controle do comportamento das mulheres porque, na expectativa de corresponder a esse ideal de perfeição, mulheres aceitam muito facilmente todas dificuldades, o abandono, a dor, a solidão, o desamparo e a exploração do seu trabalho por parte do homens. Elas envergonham-se de sentir as dificuldades de maternar, acham que o problema é com elas, que não são boas o suficiente, e tem muito constrangimento em reclamar e contar suas dores e medos. E ai não conversam sobre o que realmente acontece, não conseguem sair do personagem de mãe infalível. Porque admitir que está dificil demais é lidar com o fato de que não correspondem ao ideal de mãe perfeita, sagrada, que a tudo se doa sem reclamar. Que não são capazes de serem gratas pela benção que é ter um filho. E mulheres que ousam verbalizar para si que não se sentem “abençoadas”, que a experiência da maternidade para elas tem sido na verdade um problema, são escrachadas socialmente, punidas, e invariavelmente sentem-se culpadas.

Os mitos maternos agem assim. Romantizam. Criam a imagem de que a maternidade é um lugar especial, de júbilo, plenitude e amor. Cria um cenário tão idílico que torna-se atraente para mulheres, enquanto elas crescem sendo desprovidas de todas as outras possibilidades de estar no mundo, enquanto elas são massacradas pela ideia de que possuem um “dom” natural para maternar, que possuem um “relógio biológico”, que não possuem nenhum talento, ou utilidade, ou que não há nada mais importante que possam fazer que não seja tornar-se mãe. E uma vez lá, mães, estas mulheres se vêem completamente perdidas e ficam reféns desses mitos e de toda essa romantização porque tentam a todo custo fazer a lenda acontecer, e a sociedade, que opera essa narrativa para garantir que mulheres permaneçam desejosas e “sonhando” com a maternidade, reforça e reforça o discurso e pune as mães que ousam romper o pacto com a mitologia e falar sobre a realidade de de exploração laboral que é a maternidade. E isso opera tão consistentemente que até o tal discurso da “maternidade real” já está sendo romantizado.

Homens sabem muito bem o que significa ser pai. Tanto que adiam ao máximo esse momento (quando pretendem assumir) ou simplesmente fogem. Onde está a romantização da paternidade?

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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