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Está tudo bem se você não ama o seu pai

Olha, está tudo bem se você não ama o seu pai. Não sinta culpa por isso. Você não está só nesse sentimento, na verdade boa parte de nós tem sentimentos confusos sobre essa relação, mas se sente coagido demais pela sociedade para ter coragem de confessar.

Nós vivemos no país do abandono paterno, temos mais de 5 milhões de pessoas que sequer o registro do pai possui na certidão de nascimento. Isso fora aqueles que se dignaram a registrar mas não seguraram nem um minuto dessa onda e simplesmente se foram, deixando o filho nos braços de uma mãe perdida, solitária, e um tanto desesperada.

Nós vivemos em um país de índices assustadores de violência doméstica. Uma sociedade machista, autoritária, punitivista. Onde a necessidade de “disciplina” é sinônimo de parentalidade bem sucedida. Onde a “obediência” é obtida através da violência e do medo. Uma cultura que odeia mulheres e crianças e que quer submetê-las a todo custo.

Nós vivemos em uma cultura sexista onde está tudo bem se o pai cumprir o papel de provedor e nada mais. “Colocar comida em casa” é o bastante. Não importa se o pai é ausente, se não participa de verdade da vida dos filhos. Não importa se o pai não é carinhoso ou empático. Se é distante. Se o pai permanece e alimenta, se o pai “não bate”, já é o suficiente para ser um herói.

Nós vivemos em uma cultura onde homens não lidam com os próprios sentimentos e aprendem a lidar com a pressão através da fuga e da violência. E eles fogem. De alguma maneira fogem. Para o álcool, para todo tipo de outras drogas que ofereçam algum alívio temporário. Se retiram da realidade deixando quase sempre uma família ferida, assustada, exaurida, ao redor.

Então está tudo bem se você não ama seu pai como você acha que deveria. Se você não o ama. Está tudo bem inclusive se você não gosta dele em absoluto. Tudo que cerca a paternidade é moldado muito mais para ferir do que para curar. Por mais que haja uma idealização em torno da figura do “pai”, cuidador e protetor, a realidade é que homens são criados em um caldo de masculinidade que torna quase impossível que eles exerçam essa função de cuidado e proteção como se esperaria.

Então, está tudo bem se às vezes você sente uma inveja surda daqueles que tiveram uma figura presente, positiva, carinhosa. Dos amigos que tinham alguém sentado na primeira fila da cadeira, na apresentação do dia dos pais da escola. Dos que tinham um nome no seu registro de nascimento. Que não tinham que responder perguntas sobre onde está o seu pai. Que não sentiram vontade de inventar histórias. Que não enganavam a si mesmos dizendo que aquele pai não estava ali porque não podia e não porque não queria.

Está tudo bem admitir que ainda que você tenha sentimentos confusos, esse pai fez falta. Porque faz falta sim. Não que sua mãe não tenha feito o melhor que pôde, dentro das possibilidades dela. Não que sua mãe tenha sido perfeita. Mas ela não é uma heroína. Ela é apenas uma mulher cansada que teria tido uma vida muito mais simples e muito mais feliz, e você também teria tido uma vida muito mais simples e muito mais feliz, se a pessoa que também te gerou cumprisse a parte dela na responsabilidade que é gerar uma criança para este mundo.

Está tudo bem se você se sente triste, frustrada, desamparada. Se você sempre sonhou em ter um pai. Um pai melhor. Se você acredita que as coisas seriam muito melhores se ele fosse diferente. Exceto que ele não é. E lidar com isso dói sim. Não reprima, nem se envergonhe da sua dor.

Está tudo bem também se você não consegue amar como gostaria o pai que estava lá. Se você sente raiva das atitudes dele. Da sua violência, do seu descaso. Está tudo bem se você se revolta e se rebela e às vezes preferia não ter nascido. Se a presença dele na sua família causa tantos transtornos e tanto sofrimento que você preferia que ele tivesse partido. Que ele tivesse te abandonado ao invés de te criar em meio a tanta brutalidade. Está tudo bem cada vez que você o odiou por vê-lo espancar sua mãe. Por vê-lo espancar você ou aos seus irmãos. Está tudo bem se você o odiou por ele sempre estar bêbado, ou drogado. Por nunca ajudar de fato e ainda sobrecarregar a todos.

Está tudo bem se você tem raiva dele por tê-lo visto explorando domesticamente sua mãe, tratando-a mal, desrespeitando, traindo. Está tudo bem se só hoje você entende que sua mãe esteve trancada em um relacionamento abusivo com esse homem, que se beneficiou a vida inteira enquanto ela definhava. Não há como separar o homem, o marido, o pai. Isso é balela. São sentimentos conflitantes, e nada disso é sobre você.

Está tudo bem se você odeia seu pai porque ele abusou de você. Porque ele te estuprou. Você não tem que perdoá-lo. Você não precisa perdoar seu abusador a não ser que isso vá trazer algum benefício psicológico para você mesma.

Você não precisa amar o seu pai se ele te feriu a vida inteira. Se ele feriu as pessoas que você amava. Se ele não estava lá por você. Amor é um vínculo que se constrói. E construir vínculo de amor com os filhos é responsabilidade dos pais. Nada disso é culpa sua.

Homens nascem e são socializados da pior maneira possível. São socializados para a dominância e para a violência. Mas também são inseridos em um mundo de privilégios. Um mundo em que a paternidade é facultativa para eles. Eles não são punidos se não exercê-la. Portanto eles podem e devem ser responsabilizados pelos seus atos. Eles, diferente da maioria das mulheres, têm escolha e tem autonomia para escolher entre ficar ou partir, cuidar ou não dos filhos, ser ou não um bom pai. Então eles precisam ser cobrados e precisam ser responsabilizados pelas ações e pelas escolhas que fazem.

Você não precisa se punir e se culpar porque a sociedade quer obrigar você a amar um homem, a qualquer custo. Porque a sociedade quer que você respeite o “pai”, quando esse pai nunca esteve lá por você. Culpa é a sensação de que estamos quebrando alguma norma. A sociedade empurra essa norma para nós. É a lei do patriarcado. Homens devem ser venerados acima de tudo, façam o que for. Sem consequências.

Saiba. Esta norma está errada.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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