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Nossas palavras não mudarão a realidade

Estamos em um momento terrível e palavras não mudarão nossa realidade, precisamos articular ações que concretizem essas palavras de ordem. Na data desse texto, agosto de 2021, vivemos uma pandemia, empobrecimento e mais um milhão de incontáveis desgraças nesse apocalipse a conta-gotas e um fato em particular sensibilizou quase todas as mulheres que tenho notícias. Estamos presenciando o retorno do Talebã ao governo do Afeganistão, um grupo paramilitar fundamentalista islâmico que caracteriza-se por impor um regime de governo totalitário marcado pela violência e por leis absolutamente restritivas para mulheres. São inúmeras as possibilidades de impedimentos, desde trabalhar e estudar até a andar na rua desacompanhada de um homem ou ter sua voz ouvida em um espaço público. No Talibã, mulheres devem ser invisíveis. Isso tudo movido a castigos físicos, violência sexual e casamentos forçados. Milhares de mulheres naquele território estão em pânico, nesse exato momento, sem saber dos seus destinos. Vendo toda sua vida e todos os seus planos sendo jogados pela janela.

Basta uma crise política para que os direitos das mulheres sejam os primeiros a serem confiscados. No Afeganistão mulheres já tiveram muitos direitos e inclusive por algum tempo tiveram um tipo de vida muito semelhante ao nosso, mulher ocidental. Não que nós estejamos em ampla e larga “vantagem”, aqui mesmo no Brasil vemos como o fundamentalismo religioso também prega que mulheres não devem estudar ou trabalhar, como devem se vestir, se portar, e nossos parcos direitos de autonomia reprodutiva estão sendo paulatinamente caçados. E se não ficarmos atentas e combativas corremos sim o sério risco de perdê-los. Porque direitos das mulheres conquistados sob um estado patriarcal estão em constante risco. Basta uma crise. Uma pequena ou grande crise e seremos o grupo que será rifado.

Afinal, qual é o grupo que está sendo mais prejudicado nessa pandemia? Mulheres, óbvio. Expulsas do mercado de trabalho, precarizadas, pauperizadas, largadas a própria sorte com os filhos em casa, vulnerabilizadas, agredidas. Um show de horrores. Lá e cá.

Por outro lado nunca estivemos tão ativos nas redes e isso me faz pensar sobre como nossas lutas são facilmente capturadas pra uma disputa narrativa que mais desmobiliza que qualquer outra coisa. Eu fico pensando sobre como fomos engolidas por um debate pós-moderno que quer vencer tudo no textão e na hashtag. Sobre como gastamos tempo e energia com debates um tanto inuteis que — por levar toda nossa energia — nos dá a sensação de que estamos nos movimentando. É tão bonito esse mundo proclamado (e profetizado pela Xuxa), em que tudo pode ser e basta acreditar que tudo será. Antes fosse. Antes toda essa verborragia passasse no teste da realidade. Eu juro mesmo que tudo que eu queria agora era que todas aqueles mulheres no Afeganistão pudessem autoidentificar-se como homens, pegar em armas e praticar um pouco da violência “intramasculina” explodindo uma meia dúzia de cabeças por lá. Que elas sentissem que não são mulheres. Que elas sentissem que não se identificam com a cisnormatividade blablabla de poderem ter um mão amputada caso pintem a unha e que elas pudessem mudar a realidade delas apenas autodeterminando que pensando bem não são mulheres.

Só faltaria combinar com os Talibãs.

É óbvio que essa baboseira queer não se sustenta na realidade, o que não parece tão óbvio é sobre como estamos completamente entorpecidos e apartados dessa mesma realidade. Ou melhor, como construímos um ambiente virtual que é hoje é uma espécie de “realidade” que vai preencheendo dias, vazios, perspectivas. Que vai tampando buracos emocionais e funcionando como rota de fuga de uma vida que parece cada vez impossível de ser resolvida. Nas redes conseguimos trazer paz e equidade com hashtag, acabamos com o sexismo mudando a grafia das palavras, podemos até confundir vogal temática com pronome, não tem problema nem ser burro, ninguém liga. É sim um lugar de mais liberdade onde, se você procurar bem, acha uma bolha quentinha cheia de pessoas que vão concordar com você e ajudar a falar mal do amiguinho. Dá paz, eu entendo.

Porque a vida, pulsando lá fora, não tem fluidez nenhuma. É o país de Bolsonaro, é o país onde voltamos pro mapa da fome, onde continuamos a morrer feitos moscas por causa de uma pandemia que ninguém sabe ainda quando vai acabar, é um mundo infestado de imbecis negacionistas que esqueceram o básico da geografia, da biologia e de tudo quanto noção básica de ciência que deveríamos ter aprendido na primeira infância. É o mundo onde há a situação das mulheres afegãs, das haitianas, de nós, latino-americanas, e tantas outras realidades igualmente massacrantes para mulheres a ponto de nem saber enumerar. É um mundo insuportável que estupra mulheres e crianças por minuto, que vende bebês na deep web pra pedófilos, onde meia dúzia de bilionários tem dinheiro suficiente para comprar nações inteiras e salvar milhões da miséria mas preferem investir dando uma voltinha no espaço num foguete fálico ridículo. É um mundo que está derretendo e congelando simultaneamente porque nós conseguimos ignorar os problemas climáticos por tempo bastante a ponto de já não podermos fazer mais nada exceto arregalar os olhos com as consequências. Um mundo onde a gente não tem nem mais lágrimas pra chorar afinal o que são 5 pessoas mortas pisoteadas num aeroporto quando já perdemos mais de 3000 pessoas por dia só por aqui?

Eu entendo o apelo sedutor do discurso pós-moderno, que não te exige inteligência, coerência e te dá poder a partir de uma das poucas coisas que você pode tentar controlar: o seu discurso. Que diz que você pode se empoderar mana, é sobre isso, vai planeta. É o que tem pra hoje para lidar com essa maldita impotência diante de um mundo que se esfacela. Vamos correr para dentro da bolha, pra quem pode, pra quem consegue. E a esta altura eu já nem sei se condeno essa pulsão de loucura generalizada. É luta ou fuga, e luta já sabemos que não está rolando. Mas palavras não mudam a realidade, ações mudam. A materialidade está lá, inalterada, dando na nossa cara quando olhamos para ela. Você não destrói monstros que te ameaçam dizendo que eles são nuvens de algodão doce, você reúne um exército e corta a cabeça dele fora. E essa tentativa pueril de não olhar esse monstro da desigualdade de sexo, raça e classe nos olhos vai cobrar seu preço para nós. Já está cobrando.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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