As 3 leis do patriarcado para os meninos

O patriarcado é o sistema social que produz a dominação masculina na sociedade. Dessa forma, há 3 leis do patriarcado para os meninos que eles devem aprender para que cresçam e se tornem os homens que garantirão a manutenção dessa estrutura de poder, que sustenta-se através da exploração sexual e reprodutiva de mulheres.

Esses conceitos embora não sejam ditos abertamente, tampouco são ensinados de maneira “sutil”, ao contrário, estão presentes em cada elemento da nossa cultura, nos valores das nossas instituições, nos nossos símbolos, no nosso imaginário social. E por isso é preciso muita atenção tanto para reconhecer quanto para assumir uma postura crítica cada vez que uma dessas três normas são apresentadas aos meninos:

  1. homens têm a supremacia: 
    para onde meninos olham são apresentados a modelos da supremacia, dominação e onipotência masculina. Deus é homem. Assim como os reis, a maioria esmagadora dos líderes mundiais, todas as grandes figuras históricas, cientistas, artistas. Todas as figuras admiráveis por seus feitos e contribuições para a humanidade. Nos filmes, desenhos, os protagonistas são homens. Se não são protagonistas tem mais tempo de tela, mais falas. E quando se olha em volta vê o pai, amigos, parentes, vizinhos, todos homens comuns, sendo sempre em alguma medida servidos por mulheres. E ele nota como, mesmo sendo criança, já possui privilégios de tratamento em relação a meninas, seja no próprio núcleo familiar, seja na escola, ou em outros ambientes. É muito fácil para um menino, principalmente se for branco, com dinheiro, crescer com a noção de que é o centro do universo. O mundo é masculino e são homens que dominam a história, economia, os governos, a produção cultural, a ciência, indústria, mercado, tecnologia, entretenimento. Em toda parte são homens produzindo sobre si e para si e meninos aprendem muito claramente que são os herdeiros da terra. Mas não existe um dominador sem os seus dominados e a segunda lei do patriarcado que meninos aprendem é sobre reconhecer quem serão seus servos.
  2. mulheres são inferiores e existem para servir ao homens: 
    a primeira coisa que meninos aprendem sobre si é que eles não são meninas. E que ser uma menina é a pior coisa que pode acontecer visto que elas são a medida de tudo que é inferior e indesejado na sociedade: se meninos são fortes, meninas são fracas, se meninos são rápidos, meninas são lentas, se meninos são espertos, meninas são tolas, se meninos são inventivos, meninas são fúteis, meninos são legais, meninas são chatas. “Menina”, “mulher”, é sinônimo de imperfeição e motivo de escárnio, e nenhum menino quer “parecer mulherzinha”, “correr como menina”, “chorar como menina”, “andar como menina”. O que meninos aprendem sobre meninas é que elas são o outro, são a negação de si, são o oposto, o fraco. Se meninos aprendem que são superiores, muito rapidamente entendem a quem são superiores: às meninas. Homens não aprendem a amar mulheres. Não aprendem a admirá-las, não conhecem seus feitos, suas grandes obras, suas descobertas. Não se interessam pelo que pensam, pelo que produzem. Ao contrário, aprendem a desprezar mulheres, a sentir “nojo”, e isso tem nome: misoginia. Uma única coisa é mostrada à exaustão sobre mulheres como aquilo que deve ser desejado, ambicionado e conquistado: o corpo feminino, seu sexo. Porque mulheres são desumanizadas e objetificadas. Uma única coisa é ensinada que mulheres tem a oferecer para homens: seus serviços de cuidado do lar e dos filhos, preferencialmente homens, para que ele transmita seu legado. Meninos aprendem que mulheres existem para servi-lo, que o corpo feminino existe para excitá-lo e dar prazer, que o ventre da mulher existe para gerar seus filhos, e que ele tem o direito de tomar uma mulher para si quando quiser. E mais, aprendem que só são homens com H maiúsculo quanto tomam o maior número de mulheres possível para si. Essa é a mensagem que é passada em toda parte, desde a Bíblia, até repaginada em qualquer comédia romântica blockbuster da Netflix. E meninos aprendem então a terceira lei do patriarcado, que é qual a estratégia para manter a dominação sobre mulheres, e sobre tudo mais que quiserem.
  3. a violência é o recurso para transitar no mundo
    meninos aprendem que a violência e a agressividade são características não só aceitas, mas desejáveis e valorizadas, na sua personalidade. São incitados a demonstrar uma pretensa “virilidade” traduzida em um comportamento agressivo, dominante, impaciente, vendido como característica “intrínseca” a “machos”, como sinal de “muita testosterona”. Meninos são estimulados a “não deixar barato”, a “falar grosso”, a gritar para se impor. Toda a nossa cultura vende a ideia de homens “fortes”, “conquistadores”, “heróis”, sempre usando a violência. Intimidar, humilhar, bater e matar pessoas são recursos validados desde sempre como forma de “defesa”. E meninos são massacrados com essa ideia, precisam o tempo inteiro provar sua “virilidade”, “que não choram”, “que não tem frescura”, “que aguentam”, que “não são mulherzinhas”. Meninos que não demonstram força, agressividade, disposição para violência, impiedade, são rejeitados, humilhados, taxados de “afeminados”. Quando não agredidos, “para aprender”. Porque é através da intimidação e do medo, que meninos aprendem que devem buscar o que querem. Para homens ser amado, respeitado é o mesmo que ser temido. E eles esbaldam-se nessa sensação de onipotência que essa sensação de poder confere, e protegem uns aos outros em sua violência, são cúmplices, omissos. Porque são irmanados na profunda desintegração de toda sua sensibilidade e empatia, o preço que pagam para receber os privilégios do patriarcado.

Essas três regras, em conjunto, organizam o comportamento dos homens no mundo. Meninos crescem realizando a soma desse bombardeio incessante de mensagens que dizem o tempo inteiro: “você é especial apenas por ser menino”, “meninas são inferiores”, “você deve ser forte, você deve ser vencedor, você deve dominar o inimigo”, “você não pode aceitar que te desafiem”, “você não deve aceitar não como resposta”. E como resultado concluem que “você é um ser superior às mulheres e portanto pode usar a força e a violência para dominá-las”, ou “você deve sempre ser atendido em todos os seus desejos e nunca deverá ser frustrado, principalmente por uma mulher, não permita que isso aconteça”, ou “é você e os seus desejos que importam e você deve sempre cuidar de si, e não se preocupar com mais nada”, ou “mulheres existem para servi-lo e nada mais”, ou “você é homem e pode fazer o que quiser e nenhuma mulher poderá impedi-lo”.

Homens aprendem que são os donos do mundo, que podem e devem conquistar tudo e que mulheres são seu espólio de guerra.

E portanto, se há um caminho possível na educação de meninos para um mundo menos sexista ela está em começar a combater esses valores que são incrustrados desde o nascimento. A ideia de que são especiais demais apenas por terem um pênis. A ideia de que meninas são seres desimportantes, inferiores, indignos e sulbalternos e toda a misoginia insidiosa que a sociedade injeta na veia, e principalmente o repúdio da violência como linguagem de estar no mundo. Meninos precisam ativamente repudiar e combater a agressividade dos seus pares, abandonarem a ideia de que tudo podem apenas porque querem, porque gritam, porque batem, porque intimidam. Aprender a transitar pela via do diálogo, aprender a lidar com a frustração, com a recusa, com a rejeição, recusar a onipotência oferecida pelo patriarcado.

E minar esses valores passa pela vigilância constante, pelo reconhecimento, nomeação e crítica. O que significa dizer o tempo inteiro ao seu filho “isso que você está vendo parece bom, mas é errado porque está te ensinando que (insira aqui alguma lei do patriarcado). E esse valor tem como resultado um mundo em que meninas e mulheres são exploradas e mortas. E queremos um mundo melhor que esse.” Difícil? É sim. Funcionará? Não sei. Mas é o melhor que temos pra hoje para nossas crianças. Olhar de frente para o problema e continuar lutando.

As 3 leis do patriarcado para as meninas

Há 3 leis do patriarcado para as meninas que elas devem aprender. Toda sua socialização será conduzida em torno dessas máximas implacáveis que conduzirão toda sua experiência de ser mulher. Vejamos então:

  1. homens têm a supremacia e definem quem as mulheres serão
    Primeiro meninas entendem que homens são pessoas e aprendem a perceber-se a partir de tudo aquilo que um homem não é. Então, por exemplo, se o homem é ser o forte, dominante, potente, etc; para mulheres só resta ser o fraco, o dominado, o impotente. Se o masculino é a “luz”, o “dia”, o feminino é a “sombra”, a “noite”. E daí em diante. Não há espaço na sociedade para que mulheres sejam outra coisa que não o oposto complementar dos homens. Há todo um princípio essencializante que opõe homens e mulheres como se suas psiques fossem distintas por natureza, quando na verdade é a socialização que vai moldando a menina na ausência, no silêncio, no não-ser, na domesticação dos seus talentos e capacidades para cultivar apenas os atributos que interessam para construção desse estado de subserviência a que chamamos de feminilidade. Toda menina passa por um completo esmagamento da sua estima e noção de valor pessoal fazendo com que tenha uma total perda de referencial sobre o que ela pode tornar-se, ficando completamente refém de parâmetros completamente definidos por homens. Tudo que é produzido sobre nós, como somos descritas nos livros, retratadas nas produções audiovisuais, pinturas, fotografias, a moda que vestimos, toda nossa autoimagem, nossa função social e nossas possibilidades de estar no mundo são produzidas por homens, por sua interpretação sobre nós e com objetivo de mantê-los dominantes. E por isso mulheres são profundamente dependentes da aprovação masculina sobre si, porque internalizam todo o ódio que a sociedade demonstra para com elas e precisam sempre de um homem, o olhar do “criador”, avaliando, aceitando, e validando sua existência enquanto fêmea. Mulheres sob o patriarcado não tem a oportunidade, enquanto classe, de pensarem-se para fora do binômio que são obrigadas a realizar com homens, pensarem-se fora do olhar, do julgamento e da opressão masculina. Uma mulher que foge dos estereótipos de feminilidade que são impostos é chamada de “homem”, porque eles são o padrão. E mulheres só podem existir de acordo com as regras masculinas e a serviço dos homens. E para sedimentar isso que a toda menina conhece desde sempre a segunda lei do patriarcado.
  2. mulheres são inferiores e existem para servir aos homens
    Na sociedade patriarcal mulheres existem com um único propósito: cuidar e servir aos homens. E esse estado mental de subalternidade é preparado com muito esmero pela socialização feminina. Em primeiro lugar meninas são bombardeadas com a mensagem de que seu principal talento é a capacidade de cuidar. Escutam que são mais cuidadosas, mais atenciosas, mais delicadas. Escutam que tem o “dom” da limpeza e da organização, que são mais asseadas. Que tem o “dom” da maternidade, um “relógio biológico”, uma “missão”. Ela será chamada de “rainha” do lar e acreditará realmente que possui algum dom especial para o cuidado sem se dar conta que isso só é verdade porque ela foi treinada nessas tarefas desde antes que pudesse sentar sem ajuda, já com uma boneca de brinquedo no colo e um conjunto de panelinhas. E ela vai sentir-se culpada se não ocupar esse lugar de responsabilizar-se por tudo e por todos. E será esmagada pela ideia incessante de que a melhor coisa que pode acontecer com ela é ter um marido e ouvirá com muita naturalidade que deverá “cuidar” dele, a ponto de mal se questionar do porquê esse homem não poderá cuidar-se sozinho, já que é adulto. Muito facilmente essa menina entenderá que o lugar dela no mundo é “cuidando” de tudo e de todos, porque ela tem “instinto maternal”, “instinto feminino”, porque é “coisa de mulher”. Que uma mulher só é completa se estiver casada com um homem, cuidado dele, da casa, dos filhos. Essa é a mensagem que ela escuta. Esse é o final de todos os livros, todos os filmes, todas as histórias que ela lerá, e isso será chamado de “final feliz”. E ela será inundada por promessas de que é o amor de um homem que vai finalmente tampar essa enorme carência que a socialização cria nas mulheres e também muito precocemente será instruída sobre como sexualizar-se para atrair a atenção masculina e será levada a acreditar que ser desejada sexualmente é “como homens amam mulheres”. E vai aprender qual é o padrão de beleza definido pelos homens para ela e fará qualquer coisa para atingi-lo. E jovem demais começará a ser assediada (e isso será considerado bom, afinal significa que ela está “tornando-se mulher”) e talvez seja engravidada antes que se dê conta, e mal terá a chance de pensar em qualquer outro destino para si que não esteja a serviço do cuidado não-remunerado da vida de algum homem. E ela não verá nada de errado nisso afinal aprendeu muito bem o que é ser mulher e para que elas servem. E ela verá o que acontece com todas as mulheres que fogem desse destino inexorável, que recusam-se a amar homens, desposá-los, ter filhos, ou que recusam-se a dedicar-se a tarefas domésticas. A terceira lei do patriarcado se encarrega bem desse ensinamento.
  3. se você não seguir as leis patriarcais será punida violentamente
    O primeiro sentimento que meninas aprendem a cultivar e que carregam consigo por toda vida é o medo. Por toda parte, muitas antes que possam realmente lembrar-se, elas tomam contato direta ou indiretamente com a violência masculina. Toda mulher tem uma história de horror pra contar, e essa história invariavelmente vai envolver um homem. A agressividade masculina é naturalizada e celebrada como sinal de virilidade, a ponto de mulheres aceitarem pequenos e grandes abusos como fazendo parte da “natureza” do homem. A violência sexual sempre foi tradicionalmente uma arma de guerra, e é um recado silencioso que homens enviam para mulheres, o tempo inteiro. Vivemos aterrorizadas, inseguras, e aprendemos erroneamente que o perigoso é o que está lá fora, o estranho, e que precisamos de estar sob a tutela de um homem para nos proteger, enquanto a realidade é que os índices de relacionamentos abusivos, violência doméstica, abuso sexual intrafamiliar explodem. Embora nenhuma mulher esteja livre de violência, um recado claro é enviado: a que é atingida é a “desviante”, aquela que estava “procurando”, e por “procurando” é inserido todo e qualquer comportamento que fuja da agenda patriarcal da mulher servil e obediente. E isso é tão cruelmente entranhado na nossa socialização que muitas mulheres vítimas de violência realmente acham que “mereceram”, que “provocaram”, que “fizeram alguma coisa”. Sentem culpa pela violência que sofreram e não só muitas vezes justificam como protegem seus abusadores. Porque o estado mental da mulher sob o patriarcado é o da Síndrome de Estocolmo. A justiça é um sistema criado por homens para servir aos seus interesses e não proteger mulheres e crianças da violência masculina, e nem teria como, porque esta violência endêmica é a estratégica para manter mulheres caladas, amedrontadas, dentro de suas casas recolhidas, temendo rebelar-se, temendo ser mortas, violentadas, perder seus filhos. O medo é a estratégia final pela qual homens controlam mulheres e para isso meninas são aterrorizadas e fragilizadas desde cedo.

Essas três regras, em conjunto, organizam o comportamento das mulheres no mundo. Meninas crescem realizando a soma desse bombardeio incessante de mensagens que foram todas organizadas e mantidas por um sistema controlado por homens. E cujo resultado passa uma mensagem muito clara: “ser mulher é ser a sobra, o resto, tudo aquilo homens não querem ser por ser o “negativo”, por não ser conveniente aos seus interesses de dominação. Homens são pessoas e mulheres são um objeto que dão forma. Você deve existir para servi-los, em qualquer esfera, e principalmente sexualmente. Você deve existir para cuidar da reprodução da vida enquanto eles conquistam o mundo. E se você recusar-se a obedecer, se você recusar-se a seguir as leis patriarcais, você irá pagar muito caro. Talvez com sua própria vida.”

E portanto, se há um caminho possível na educação de meninas para um mundo menos sexista ela está em criar medidas eficientes para proteger meninas e mulheres da violência masculina, porque apenas sem tanto medo é possível começar a rebelar-se de fato. Precisamos desde já a ensinar meninas e mulheres a defender-se com eficiência, com técnicas de autodefesa corporal e o que mais for necessário.

Precisamos nos manter atentas para cotidianamente fazer a crítica, junto as nossas meninas, de tantas mensagens de heterossexualidade compulsória, maternidade compulsória, socialização para o cuidado, romantização dos relacionamentos, que empurram mulheres muito precocemente para esse lugar de servidão aos propósitos masculinos.

Precisamos proteger a estima das nossas meninas, tirar a centralidade da sua importância do corpo, da aparência física. Vamos abandonar esse discurso de beleza, que é preciso ser bela, que é preciso “se aceitar” (que nada mais é que uma variação do discurso de que só a beleza importa”. Meninas precisam-se entender-se como seres completos. Como pessoas. Como indivíduos com permissão a parecer-se como quiser, vestir-se como quiser, sem precisar da validação de ninguém sobre sua aparência — como homens fazem.

Precisamos dar as meninas a chance de descobrirem por sim mesmas afinal o que é ser mulher, que não passa por ser bela, usar batom, saia, cabelos dessa ou daquela maneira. Que não passa por ser “feminina”, “doce”, “frágil”, e toda a gama de estereótipos que existem apenas para reforçar esse lugar de subalternidade aos homens.

Meninas precisam da oportunidade de serem pessoas. De serem como quiser e continuarem sendo meninas, mulheres. Livres. Finalmente livres.

Da transgressão indesculpável de declarar-se feminista

Declarar-se feminista é uma transgressão indesculpável. O feminismo, por definição é a luta pela emancipação feminina da dominação masculina. Numa análise mais profunda, podemos sim, inclusive, falar de libertação. De exploração. E de escravização. Masculina.

O agir feminista portanto consiste em praticar o feminismo. Ou seja, lutar pela emancipação feminina. E essa luta se dá em muitos fronts, de muitas pequenas e grandes maneiras. Muitas mulheres tem um fazer feminista ainda que assim não se declarem. Muitas mulheres se declaram feministas mas tem um fazer claramente antifeminista.

E por essa mesma lógica que homens não podem ser feministas. Eles podem, no máximo, tomar consciência dos seus privilégios e tentar abrir mão deles, podem tentar resolver seus próprios problemas de masculinidade, machismo e violência, podem constranger seus iguais, abrir mão da cumplicidade e da omissão. Mas não podem lutar pela libertação feminina porque nessa equação eles estão do lado a ser combatido. São algozes. São o inimigo.

Sim. Homens são os inimigos. Sem aspas. Homens matam, violentam, exploram e escravizam mulheres. Generalização? Todo o sistema que gira o mundo é comandado por homens. Observe todos os grupos que governam todos os países do mundo. Quem está lá? Por quem é formada a maioria? Homens. E não só no executivo. No legislativo, no judiciário. Homens fazem as leis, julgam, prendem, soltam. Homens nas forças policiais e armadas. Homens no comando de todas as empresas, na publicidade, na mídia, na produção artística.

Então talvez “nem todo homem” seja um abusador, agressivo ou estuprador mas entenda, o meu, o seu “cara legal” é no mínimo omisso e cúmplice.

Todo homem, absolutamente todo homem, é inegavelmente, ao menos omisso ou cúmplice em relação a tudo o que mulheres sofrem na nossa sociedade. Porque se assim não fossem, como permitiriam tanta violência contra as mulheres? Como permitiriam que mulheres fossem tratadas como são? Tanta morte, tanta exploração, tanta mágoa. Onde estão os homens “bons”?

Se homens verdadeiramente amam mulheres como pessoas e não como objetos, se são os homens que hoje controlam o mundo, se o feminismo está errado em combater a supremacia masculina, por que toda mulher tem uma história de horror pra contar? Envolvendo um homem.

Onde estão os “homens bons” que não fazem nada a respeito?

É difícil perceber e aceitar isso, eu sei. É muito difícil sim.

Por isso, para além do agir feminista — que muitas mulheres o fazem sem saber — declarar-se feminista é um ato político. É um ato de trazer para a polis, para discussão pública, a guerra contra a misoginia. É deflagrar que há mulheres que sim, sabem o que está acontecendo e estão lutando contra isso.

Acima de tudo, declarar-se feminista é declarar-se antagônica aos homens. É isso é dificílimo em uma sociedade que nos socializa para amá-los acima de todas as coisas e a servi-los sem hesitar. Numa sociedade que nos desumaniza. Declarar-se feminista é um ato de profunda rebeldia. Uma trangressão indesculpável. Que tem um alto preço social. Não á tôa muitas mulheres que lutam por outras mulheres declaram meio constrangidas “eu luto por direitos, mas não sou feminista”, “eu sou feminista, mas não sou radical”, “eu sou feminista, mas sou feminina”.

Porque perceber-se feminista e declarar-se feminista, é berrar aos quatro cantos para que todos os homens ouçam: eu sei que vocês nos odeiam, que vocês odeiam nosso corpo de fêmea, eu sei que vocês nos exploram, eu sei que vocês se omitem, eu sei que vocês não se importam conosco, e eu vou lutar contra vocês.

E como fazer isso nessa sociedade androcêntrica, se nós só nos “tornamos mulheres” quando aceitamos ser acessórios de um homem? Quando aceitamos o cabresto da feminilidade? Então eu entendo sim, todas as mulheres que não conseguem, não podem, não concebem essa perversão cabal: rejeitar homens e colocar mulheres no centro do seu universo.

E isto não tem a ver com odiar homens — mas se quiser pode, porque certamente você tem motivos. Mas tem a ver com uma coisa muito mais profunda e complexa: aceitar que não é possível confiar neles, de maneira nenhuma. Não é sobre amor. É sobre confiança. Mesmo os que você ama profundamente, mesmo os que te amam verdadeiramente, mesmo os nunca te fizeram ou nunca te fariam mal, mesmo o que te gerou, mesmo os que você gerou. Porque aceite. Todo homem, em algum momento da sua vida, já magoou alguma mulher. Já xingou, ou assediou, ou traiu, ou abandonou, ou agrediu, ou estuprou, ou matou. Ou no mínimo se omitiu diante de tantas violências. Os bons homens que você conhece, que você ama. Todos eles. E enquanto todas as mulheres não estiverem livres, nenhuma estará.

Então não importa se os homens que você conhece nunca te feriram. Acredite, ele já feriu alguma mulher. Direta ou indiretamente. Você pode não negar o seu amor mas não seja ingênua oferecendo sua confiança plena.

Se houvesse um único conselho que eu pudesse dar a todas as mulheres do mundo em relação aos homens seria: proteja-se e protejam umas às outras.

Estamos sós. Ou melhor, estamos juntas. Somos nós por nós.

Essa consciência da gravidade da nossa situação é dura e provoca reações distintas, todas compreensíveis. Algumas negam, outras combatem, outras preferem fingir que não sabem. Outras vão pro enfrentamento.

Para aquelas que estão na linha de frente queria dizer: estamos juntas e somos muitas. Muito mais do que você imagina. Muito mais do que você percebe. Persista. Faça o que pode, do jeito que dá. Porque sempre é muito. Precisamos de tudo e todas que estiverem dispostas. “Militância de internet” também é militância sim. E militância importante. Há mulheres que só possuem um celular velho conectado no Facebook na promoção do 3G que podem estar te lendo. Que podem estar, a partir de coisas que você disse, refletindo e tomando atitudes que nunca tomariam se não tivesse tido acesso a informações e a ideias e a uma inspiração que você deu a ela e nem sabe. Inspire outras mulheres a rebelarem-se.

Há mulheres ajudando mulheres por toda parte, de todo jeito. Há muitas pautas, muitas lutas. Muitos fronts.

Proteger. Informar. Capacitar. Fortalecer. Ocupar. Libertar.

Resista. Plante sementes. Essa não é a luta de uma primavera, mas de uma vida inteira. Estações e estações e estações. Uma luta que começou muito antes de nós por mulheres maravilhosas e que continuará muito depois de nós. Colhemos os frutos de sementes plantadas há muito. Devemos continuar semeando.

O trabalho é de formiga. Você já observou as formigas? Já viu tudo que elas são capazes de fazer?

Endureçam vossos corações mulheres!

Maternidade dá trabalho mas não é um emprego

Está aquecido o debate sobre maternidade enquanto um trabalho não remunerado. Há muito feministas denunciam sobre a exploração da mão-de-obra das mulheres para o trabalho reprodutivo e para o trabalho doméstico. Inúmeras pesquisas já demonstram o quanto vale o trabalho invisível que mulheres exercem para a economia global (trilhões), tanto na administração dos seus lares quanto na criação das crianças (incluindo aí o aleitamento). Chegamos finalmente a um momento que esse problema, a exploração de mulheres para manutenção do privilégio masculino, começa a vir a tona de maneira consistente, perceptível, a ponto de movimentar discussões, teses e legislações a respeito.

No entanto, ao finalmente percebermos o problema, me parece que estamos indo num caminho bastante equivocado em relação a uma possível solução.

Quando analisamos a história compreendemos que homens entenderam o quão estratégicas são as mulheres para o funcionamento da vida e rapidamente apressaram-se em dominá-las, explorando sua força reprodutiva. Compreendemos que existe um sistema político extremamente complexo que é estruturado para garantir a perpetuação dos privilégios masculinos. Que papeis sociais são desenhados para serem desempenhados por homens e por mulheres, que são aprendidos durante nossa socialização e constantemente reforçados socialmente. Que esses papéis sociais de sexo reforçam essa estrutura hierárquica, criando meninos para se tornarem homens dominantes e meninas para ocuparem o papel de mães e esposas, subalternizadas. Percebemos que existem inúmeros mecanismos sociais, culturais e institucionais que existem somente para garantir que esta hierarquia seja mantida, e com ela os privilégios masculinos. Que em uma sociedade patriarcal mulheres estão na posição de servas domésticas e sexuais dos homens.

Quando dizemos que mulheres são exploradas, que a atividade doméstica não remunerada é um trabalho, que cuidar de crianças é um trabalho, que a maternidade é um trabalho, estamos fazendo a denúncia do papel que é delegado às mulheres dentro do sistema capitalista-patriarcal. Estamos dizendo: às mulheres é destinado o papel de executar sozinhas essas tarefas, que resultam em produção de riqueza para homens usufruírem. E com esta denúncia queremos também reivindicar: esse papel social precisa ser extinto.

Portanto, a solução para a exploração das mulheres dentro do sistema patriarcal, não é remunerar mulheres. Não é reivindicar salários. Essa provocação é justa no sentido de denunciar o papel que mulheres ocupam mas não tem validade enquanto possibilidade de reestruturação social. Até porque inserir uma lógica de remuneração não extingue a exploração de ninguém, temos aí um sistema chamado capitalismo nos mostrando isso todos os dias.

Quando de fato vamos pelo caminho de exigir “salários” para o trabalho reprodutivo e doméstico nós estamos reforçando esse papel social que é destinado às mulheres dentro do patriarcado. Mulheres são socializadas para realizar essas tarefas gratuitamente como ato de “amor” e muito pouco muda ao trocarmos isso por “dinheiro”. Ainda serão as mulheres realizando esse trabalho. A divisão sexual do trabalho permanece completamente inalterada.

Remunerar mulheres pelo trabalho reprodutivo não discute a lógica da distribuição das tarefas de cuidado. Não tira o peso de serem as mulheres as responsáveis pela execução desses trabalhos e tampouco insere homens para realizarem essas tarefas. Ao contrário é uma solução que beneficia muito mais aos homens porque é a resposta que eles precisam para a reivindicação por divisão igualitária dos trabalhos domésticos.

Ao exigir “salários para o trabalho doméstico”, como uma proposta mais que meramente retórica estamos propondo mercantilizar e precificar o papel social destinado às mulheres, inserido-as numa lógica capitalista neoliberal de mercado. E isso não só não rompe com a lógica de subordinação baseada no sexo, como ainda piora tudo transformando-se também em um problema de luta de classes.

Afinal, para existir um trabalhador remunerado é preciso existir um patrão, não? E para quem mães estarão trabalhando? Para o pai da criança? Para o Estado? E se maternidade é um “trabalho” de fato, os filhos são então um “produto”? E o corpo da mulher? Poderá ser tratada como uma “fábrica”? E os pais? Como entram nessa equação? Se cumprirem sua função na parte de cuidado dos filhos devem também ter um salário? E como fica a relação com o filho? Como fica a relação intrafamiliar sendo operada por uma lógica mercantilista? E como fica a relação entre homens e mulheres quando pedimos medidas que ratificam nosso lugar de eterna cuidadora? Como isso opera para romper a hierarquia estabelecida?

Quando dizemos: “a maternidade é um trabalho, portanto me pague”, estamos concordando e assumindo para nós em definitivo essa função que o patriarcado há tantos milênios se organiza para nos dedicar. Estamos dizendo também que é função das mães assumirem o cuidado integral dos filhos, que é função das mulheres serem mães, estaremos consolidando em definitivo nossa posição subalterna de reprodutoras de pessoas a serviço de um Estado patriarcal e elevando essa relação a outro patamar.

Neste panorama dado de exploração das mulheres o que podemos e devemos fazer é rejeitar e rediscutir para já os papeis sociais baseados em sexo. Devemos rejeitar a ideia de que somos inerentemente cuidadoras. Que nascemos com esse “instinto”, com esse “dom” e discutir nosso papel na reprodução e cuidado de crianças. Excetuando gestar e parir não há nenhuma tarefa que exija ser realizada exclusivamente por uma mulher. Portanto precisamos decidir, enquanto classe: que papel mulheres e homens devem ter na criação de crianças? E qual o papel que Estado deve ter no suporte para a criação de crianças?

Mulheres precisam exigir que homens assumam sua parte nas tarefas de cuidado reprodutivo e doméstico. Devem recusar o papel de cuidadoras exclusivas, de rainhas do lar. Precisamos recuperar nossa autonomia reprodutiva junto ao Estado para que possamos realmente decidir quando, como e de que maneira desejamos ter filhos. Para que a maternidade não seja uma coisa compulsória. Que não sejamos jogadas nesse lugar sem escapatória, mas agora com um salário para calarmos a boca.

Ser mãe dá trabalho, mas maternidade não é um emprego. Precisamos redefinir as tarefas impostas pelo patriarcado para nós mulheres, na nossa maternidade. Que mãe seja apenas o nome dado para a fêmea humana adulta que gesta. E que ser mãe não signifique mais nada além disso. Nada. Que não venha com nenhuma atribuição embutida que não seja previamente entendida, combinada e aceita por aquela mulher, com seus pares, na criação e cuidado daquela criança. E que crianças deixem de ser posse do seu núcleo familiar para serem vistos como seres íntegros, de direitos, amparados por uma politica de Estado voltada para o suporte ao crescimento digno dos seus cidadãos. A maternidade no patriarcado é um trabalho do qual precisamos pedir demissão e não remuneração.

Feminista. Do tipo radical.

Eu sou feminista. E não qualquer feminista. Eu sou do tipo radical. Do tipo que acredita que mulheres são fêmeas humanas adultas e que enquanto uma de nós não for livre, nenhuma será.

Eu sou feminista do tipo que acredita que o pessoal é político e que gênero não é identidade mas uma ferramenta para manter mulheres em situação de submissão. Do tipo que defende o nosso direito à humanidade e recusa qualquer proposta de objetificação e comercialização do nosso sexo. Porque sexo não é um direito. Porque nosso corpo não está à venda. Nossos úteros também não.

Eu sou feminista do tipo que percebe os insidiosos mecanismos da nossa socialização para feminilidade e que tenta, todo dia, desconstruir-se um pouco, porque eu também sou um fruto fresco dessa socialização. Que ama ser mãe mas reconhece que a maternidade é um mecanismo compulsório para nos manter reproduzindo mão de obra e fora do espaço público de disputa de poder. Que tem um relacionamento hetero mas sabe que ele nunca será simétrico, pois por mais o seja da porta pra dentro, da porta pra fora eu sei bem quem a sociedade enxerga como “chefe da família”. Temos muitas contradições a conciliar e erramos o tempo todo. Porque não somos perfeitas. Somos pessoas. E pessoas erram.

Ser feminista não te libera da socialização que você recebeu. É um exercício constante de análise, tomada de consciência, correção de rumos, avanços e retrocessos. O feminismo é uma porta que uma vez aberta, não fecha. E nada melhora. A consciência feminista é libertadora mas também dilacerante.

Eu não odeio homens. Mas eu não confio mais neles. Mesmo nos que amo. Porque a decepção e o desapontamento vindo do entendimento do que essa casta faz com nós, mulheres, é grande demais. Dolorida demais. E sendo amaldiçoada com a heterossexualidade, tento, todo dia, conviver e conciliar também mais essa contradição em mim. Trazer lucidez a essa Síndrome de Estocolmo.

Eu sou mãe de um menino. E o que tento fazer de mais importante é minimizar, dentro do que está no meu alcance, os efeitos perversos da socialização masculina sobre ele. Não tenho ilusões de evitar completamente que ele se torne machista. Me resta rezar todos os dias para que ele seja um homem bom. Um homem que verdadeiramente ame mulheres, reconheça e respeite sua humanidade, dignidade e integridade. E as defenda.

E onde estão os homens bons, hoje? Por que não se levantam e lutam contra os seus pares que nos exploram e nos exterminam? Por que se omitem? Eu sei a resposta: porque todos eles, direta ou indiretamente, se beneficiam da exploração de uma mulher. Da exploração da sua mão de obra doméstica, do seu corpo, do seu trabalho emocional, do status social.

E por isso o feminismo é fundamental. Feminismo não é o que a maioria vê por aí na TV, não são as mulheres de peito de fora, ou enfiando coisas na bunda… isso é o que o patriarcado (bem representado pela mídia) quer que a maioria de nós pensemos. O feminismo é o movimento de luta das mulheres por sua libertação, emancipação e direitos. E enquanto uma mulher não for livre, nenhuma será. E se hoje estamos aqui, falando sobre isso, temos que agradecer à luta das mulheres que nos antecederam.

Há 200 anos nós não tínhamos direito de estudar. Não podíamos votar. Não podíamos trabalhar fora. Não podíamos nos divorciar. Não podíamos fazer nada que não fosse estar em casa completamente à mercê do marido e criação de — incontáveis — filhos. Há pouco mais de 100 anos mulheres negras sequer eram reconhecidas como pessoas humanas.

E se hoje estamos nas ruas, exigindo mais direitos, dignidade e justiça é porque houve muita luta antes de nós. Muito sangue, suor e lágrimas de mulheres maravilhosas que lutaram, lutaram e continuam lutando. Tudo, absolutamente tudo, cada direito, foi a duras penas conquistado. Homens nunca cederam um milimetro.

Isso é feminismo. É uma pergunta simples para identificar: “isso liberta mulheres?”. Se não contribui para libertar, para emancipar, para dar humanidade e dignidade a todas as mulheres, para libertar seus corpos do controle masculino… não é feminismo.

Além da dor da consciência da minha realidade, o feminismo também me trouxe o amor. O amor por mulheres. Um amor diferente que eu ainda não conhecia porque a socialização me ensinou a odiar mulheres. Ensinou-me a odiar a mim mesma. A somente amar e admirar e homens. E de repente olhar para mim, para outras mulheres, admirá-las, acolhê-las, ser acolhida, me acolher… eu não tenho palavras para expressar como isto é grande e poderoso e transformador. Nem para dizer como é grande meu amor por vocês.

E por isso hoje achei importante dizer. Somos muitas.

Eu sou feminista. E do tipo radical. E você?

Eu, meu menino e o mundo

Eu sou uma mulher feminista. E sou mãe de um menino. E esta é uma equação muito difícil de equilibrar. Nasceu de mim, está sob meus cuidados e é o dono do meu coração um potencial “opressor”. Como futuro homem, um dia meu filho será convocado a ocupar seu lugar no mundo, um posto cheio de privilégios. E ele será incentivado a preservar essa posição à base de dominação e agressividade.

Eu morro de medo que meu filho se torne um produto perfeito e acabado do processo de socialização que está dado para ele pelo mundo. Um “macho escroto”, violento, assediador, abusador de mulheres. Incapaz de reconhecer mulheres como pessoas. É engraçado que muitas mães fantasiam o futuro para os seus filhos como eles sendo homens de sucesso, em profissões importantes e empregos invejáveis. Com fama, fortuna e todo o combo que isso traz. Eu só torço todos os dias para que meu menino se torne um homem bom. Digno, com consciência crítica sobre a sociedade em que está inscrito e que seja capaz de refletir, rejeitar e combater os privilégios que terá de mão beijada.

Como uma mulher feminista, eu tento fazer minha parte, eu sei. Tento não reforçar estereótipos, tento cercá-lo de bons exemplos de homens e mulheres, tento desconstruir os escravizantes modelos de masculinidade e feminilidade que nos cercam. E levo meus dias destruindo aos seus olhos esse mundo de promessas que o cerca. Explicando que esse lugar de homem na sociedade tem como preço o sangue de mulheres e crianças.

Mas eu sei também que a socialização dele não depende só de mim. Não tem como eu criá-lo numa bolha. Que além de mim e o meu menino, existe o mundo.

E o mundo é patriarcal e a opressão de mulheres é sua principal engrenagem. Está em toda parte, é como oxigênio. Meu filho vai para a escola, convive com outras pessoas, com outras referências, assiste TV, filmes, desenhos, ouve músicas. Ele vê a vida acontecendo na sua frente e aos poucos ele percebe como esses privilégios que lhe são negados em casa o mundo lhe coloca de bandeja para que ele se sirva. Simplesmente porque ele é homem. Ele percebe como meninos e meninas são tratados de maneira diferente. Ele nota como mulheres e meninas vão sutilmente sendo colocadas a seu serviço.

Ele vai aprendendo como a sociedade o considera mais forte, mais apto, e mais inteligente do que a todas as mulheres porque sim. Vai sendo incentivado a competir com os outros meninos e que as meninas são os troféus. Vai convivendo com outras famílias, formando seu próprio grupo de amigos, sendo cobrado, avaliado, medido, aceito ou rejeitado de acordo com seu grau de “macheza”. Por mais que ele nunca ouça de mim a frase “isso não é coisa de menino”, ele vai percebendo de maneira muito dura o preço que se paga por usar itens rosas, por usar pintura na cara, por querer manter o cabelo comprido. Apenas porque sim, porque ele acha interessante, bonito, e ele nunca soube que era “coisa de menina”, mas vai ser confrontado, vai ser testado, “mãe, o que é coisa de viado?”.

E ele vai sendo empurrado para a um modelo absolutamente distorcido de masculinidade que vai afastá-lo da sua essência mais sensível, empática, cuidadora em troca do posto no topo da cadeia alimentar da opressão. E do outro lado estou eu, neste cabo de guerra. Eu, meu menino, o mundo.

Como preparar meu filho para resistir a um convite tão tentador? Como preparar o meu menino para ir contra os seus iguais? Para contestar o machismo dos seus pares? Estaria eu o condenando ao ostracismo? Como ensinar o meu filho a resistir ao canto da sereia do corporativismo masculino, que vai acolhê-lo, transformá-lo num “brother”? Como ensiná-lo lidar com o inevitável escracho por ir contra a ideologia dominante?

Será que eu consigo explicar pro meu menino que, apesar de tudo que ele vê na mídia, de todas as representações culturais (onde ele aparece como ser humano em destaque sobre a mulher submissa, sempre um objeto), que homens e mulheres são pessoas iguais, de mesmos direitos?

Será que eu posso ensiná-lo a amar e admirar mulheres de maneira tão honesta e verdadeira, reconhecendo sua humanidade e considerando inadmissível tanta dor, crueldade e violência para com elas a ponto de lutar por sua libertação? Que ele combata seus iguais? É preciso que meu menino seja um traidor do patriarcado e isso tem um preço altíssimo a se pagar. Estarei eu pronta para lançá-lo aos leões? Mas existe alguma outra forma digna de estar neste mundo?

É um trabalho hercúleo. Diário. De Davi contra Golias. Um desafio que tenho que estar preparada inclusive para não vencer. De me contentar com pequenas vitórias. Por entender justamente que — apesar do que tentam convencer a todas as mulheres — eu não sou a única pessoa responsável pela sua educação, formação e socialização. E o número de variáveis sob meu controle é infinitamente menor que o número de variáveis que me escapa. E respirar fundo e aceitar que, apesar de toda minha luta, mesmo com mamãe feminista o filho pode crescer machista.

E eu sei, eu sei sim que todo o meu trabalho lança sementes. Que muita coisa frutifica. E que a melhor aposta hoje no horizonte ainda é tentar ajudar a formar homens melhores. E que há toda uma tribo se formando por aí, filhos de mulheres maravilhosas que lutam diariamente para desconstruir a si mesmas e a quem está próximo, buscando ambientes mais arejados para suas crianças. Eu tenho muita esperança sim. E continuo firme. Mas eu confesso que tenho medo. Que eu olho pro meu garotinho e todos os dias torço para que ele se torne um homem bom.

Como lidar com crianças com “inconformidade de gênero”?

Existe um protocolo de comportamento esperado para homens e mulheres que obedece a lógica de manutenção de uma estrutura social que privilegia homens e subalterniza mulheres. 

Este protocolo é baseado no nosso sexo de nascimento, ensinado num intenso processo de domesticação e conformação, e o chamamos de “gênero”. É, resumidamente, o conjunto de regras que determina como meninos e meninas devem se comportar para serem aceitos socialmente como sendo meninos ou meninas.

Crianças que demonstram resistência, interesse, curiosidade ou propensão em questionar estas regras estão em sérias dificuldades. É cada vez mais comum ver pais desesperados porque seus filhos se comportam de maneira diferente do que é esperado para o seu sexo: “meu filho gosta de brincar de bonecas", “minha filha não gosta de usar vestidos”, “meu filho não gosta de brincar com os outros meninos". 

Dessa forma, crianças "dissidentes" estão sendo punidas e levadas de todo jeito a se “encaixar”, seja pelo discurso conservador do “nascemos assim", seja pelo discurso progressista do “nascemos no corpo errado”. Comportamentos que antes eram entendidos apenas como sendo a personalidade se manifestando hoje viraram motivo de preocupação e tomaram um caminho de patologização sob a desculpa de "evitar o sofrimento" (que na verdade é a vergonha dos adultos pela inadequação do comportamento da criança). 

Este texto é, portanto, não só para pais, professores e cuidadores, mas para todos os adultos que sentem-se confusos e tentados a classificar comportamentos infantis a partir de uma ótica de “identidade de gênero”, incorrendo no grave risco de patologizar infâncias, classificar crianças segundo sua própria interpretação do mundo e no anseio de corrigi-las, levar grande sofrimento psíquico.

Começando do começo – o gênero

Gênero, falando a grossíssimo modo, é um conjunto de ‘regras’ que existem para definir e demarcar qual é a expectativa sobre o comportamento de um grupo que nasce com um determinado sexo.

Ou seja, crianças nascem, tem seu sexo identificado e imediatamente começam a ser socializadas para pensar, sentir-se e comportar-se de acordo com as prerrogativas do seu gênero. Ou seja, se nasce do sexo masculino é empurrado para o “clube de formação de homens”, onde aprenderá a ser forte, viril, dominador, agressivo, usar azul, gostar de esportes, carros, etc. Se nasce do sexo feminino, vai para o “clube de formação de mulheres” onde aprenderá a gostar de rosa, ser cuidadora, mãe, esposa, delicada, bela, maternal, brincar de bonecas, etc.

E isso é muito importante de pontuar: crianças são ensinadas. Não existe um comportamento que seja natural e inerente ao fato de se nascer menino ou menina. Tudo o que manifestamos em sociedade são comportamentos aprendidos.

As regras do gênero são formadas puramente por estereótipos.

Estereótipos são “pré-conceitos”, conceitos que antecedem um fato. Por exemplo, quando dizemos que meninas gostam de rosa, ou que meninas são mais delicadas, estamos usando um estereótipo de gênero. Uma expectativa pré-concebida de que o fato de alguém ter nascido menina significa que é delicada, frágil e gosta de rosa.

Os estereótipos de gênero são a base de formação do machismo. Todos os estereótipos que são atribuídos a meninos tem um campo semântico mais valorizado, são mais ligados a ideia de força, virilidade, controle, potência, liberdade, atributos muito importantes na nossa sociedade. Enquanto que os estereótipos de gênero atribuído às meninas falam de fragilidade, delicadeza, vaidade, cuidado, gentileza, obediência… atributos que não só não são valorizados como colocam o grupo em posição de subalternidade e submissão em relação aos homens.

Dessa forma, o “gênero” tem uma função estratégica. Ele ensina como o grupo de pessoas do sexo masculino e do sexo feminino devem se comportar. E como resultado temos um grupo que tem comportamento dominador (homens), que conquistam e detém privilégios em função da dominação do grupo com comportamento subalterno (mulheres). É a fórmula mágica da manutenção do patriarcado.

De uns anos para cá o processo de generificação das crianças foi se tornando cada vez mais intenso. Compare as prateleiras coloridas de uma loja de brinquedos dos anos 90 com uma hoje, 30 anos depois dividida nas cores azul e rosa ou as lojas de roupa infantil. Os comportamentos esperados estão cada vez mais marcados e cada vez mais precoces. O advento do “chá de revelação” fez com que o processo de socialização de gênero comece antes mesmo que o bebê tenha nascido.

E como crianças são pessoas, únicas, com personalidade, podem ser sempre mais ou menos resistentes a essa socialização, que é um aprendizado duríssimo e cruel. Se você nasce uma menina naturalmente mais assertiva, ativa, combativa, vai ser podada. Se você nasce um menino naturalmente sensível, delicado, tímido, vai ser podado. A conformação dentro dos estereótipos de gênero implica em reduzir pelo menos pela metade todo o seu potencial de experimentação do mundo.

Então se uma criança, por sua personalidade, apresenta “sinais trocados”, se uma menina aparenta ser “masculina” (ou seja, tem mais aderência aos estereótipos que são eleitos para os homens), ou se um menino é “feminino” (ou seja, tem mais aderência aos estereótipos que são eleitos para as mulheres), há um curto-circuito no sistema que rapidamente se encarrega de tolir esse comportamento através da censura, do constrangimento, do banimento social e da violência.

Essa intensificação nos padrões de gênero fez com que crianças cujo comportamento não se encaixam, que apresentem “inconformidade de gênero” passassem a ser vistas como tendo uma questão que precisa ser tratada. Um menino que brinca com bonecas ou uma menina que não gosta de vestidos, hoje corre o sério risco de ser “diagnosticado” como sendo uma “criança trans” e entrar numa rota de tratamentos que na via final incluem cirurgias esterilizantes e medicação para uma vida inteira.

E isso vem acontecendo com o endosso e o incentivo da indústria médica e farmacêutica, por motivos de criação de um mercado que já movimenta milhões de dólares.

Os absurdos critérios médicos para identificar “disforia de gênero”

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) elaborou um documento sobre como lidar com crianças e adolescentes com “inconformidade de gênero” em 2019. O material, intitulado “Recomendações sobre Crianças e Adolescentes com Inconformidade de Gênero”, visa orientar profissionais de saúde e educadores sobre o tema, oferecendo diretrizes para o acompanhamento dessas crianças e adolescentes.

Este documento é um exemplo perfeito de como os estereótipos e a necessidade social de conformação de crianças dominaram o panorama, incluindo o discurso médico. As indicações são uma coleção de orientações equivocadas porque são baseadas em identificar “desvios” a partir do enquadramento da criança em comportamentos esperados de gênero, no melhor estilo se gosta de azul de carrinho é menino, se gosta de boneca é menina. Vamos analisar detalhadamente o que o documento diz.

Como lidar com crianças com "inconformidade de gênero"
fonte )

Disforia de gênero em crianças: critérios diagnósticos segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria


O primeiro critério elencado pela SPB para diagnosticar “disforia de gênero em crianças é:

“incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e o gênero designado de uma pessoa, com duração de pelo menos 6 meses.”

O que se quer dizer com isso: que o primeiro “sintoma” de “disforia de gênero” em uma criança é que por pelo menos 6 meses o seu comportamento geral (gênero experimentado/expresso) seja incongruente (diferente/incompatível) do comportamento socialmente esperado de acordo com seu sexo (gênero designado). Traduzindo em um exemplo: se a criança nasceu com o sexo masculino, espera-se e ela será ensinada a se comportar dentro dos estereótipos para meninos (gênero designado). MAS, se por um acaso, esse menino, por 6 meses, apresentar no seu comportamento coisas que são entendidas socialmente como sendo típicas de meninas (gênero experimentado/expresso), então esse menino tem um SINTOMA de disforia de gênero. Parece absurdo e é, principalmente quando nós vamos ver qual é a lista desses comportamentos “incongruentes, dos quais ele deve apresentar 6 de 8 para ser considerado “disfórico”:

  1. forte desejo de pertencer a outro gênero, ou dizer que seu gênero é outro Quando seu menino diz que é menina, ou sua menina diz que é menino. Esse é um comportamento absolutamente comum em crianças, principalmente as menores, elas fantasiam e experimentam o mundo e podem dizer desde que são de outro sexo, até de que são de outra espécie (meu filho costumava dizer que era um gato). Há também aqui um outro fenômeno que faz com que crianças afirmem ser de outro sexo que é uma confusão sobre si causada pelos adultos que a cercam. Imagine um menino que gosta muito de brincar de bonecas. Ele pega uma boneca e fica ouvindo que isso é coisa de menina. Ele é sensível e chora muito e fica ouvindo que parece uma menininha. E os adultos em pânico com esses comportamentos desviantes reforçam ainda mais a cobrança por “comportamentos de menino” a ponto dessa criança concluir que ele não tem nada a ver com um menino, talvez ele seja mesmo uma menina. Quase sempre essas declarações vinda de crianças tem a ver com um momento de fantasia ou por alguma confusão causada por adultos na percepção da criança sobre si.
  2. Em meninos uma forte atração por vestir roupas femininas. Em meninas uma forte atração por vestir roupas masculinas. Aqui a SBP apresenta como sintoma o fato de meninos interessarem-se por roupas de menina e vice-versa. Esse aspecto é especialmente perverso porque para crianças pequenas roupas não tem significado simbólico e sim lúdico. Então, por exemplo, roupas para meninas são muito mais coloridas, divertidas, engraçadas e atraem muito mais atenção e elogios. É natural despertar o desejo por usá-las, nos meninos. Roupas para meninos são muito mais práticas, confortáveis e protetoras. É natural despertar o desejo por usá-las, nas meninas. Fora que crianças tem interesse natural em experimentar as roupas dos pais, independente do seu sexo. E à medida que crescem crianças vão tendo personalidade, é muito preconceituoso e cruel dizer, por exemplo, que uma menina que gosta de roupas masculinas típicas (leia-se, bermuda, camiseta, calça, tons frios, motivos esportivos) tem um sintoma.
  3. Forte preferência por papéis transgêneros em brincadeira de faz-de contas Aqui a SBP está regulando como uma criança deve fantasiar nas suas brincadeiras. Ou seja, se o seu filho brinca que é uma menina, ou uma princesa, ou a rainha, ou a “mãe”, ou a mulher-maravilha, ou a Elza do Frozen. Ou se sua filha brinca que é um menino, ou um príncipe, um guerreiro, o “pai”, o Super-Man, o Batman, o Ben 10. Não sei o que fazer caso eles brinquem que são um elefante, talvez procurar um veterinário.
  4. Forte preferência por brincadeiras, jogos ou atividades tipicamente usados ou preferidos por outro gênero. Neste item a SBP joga fora o axioma “não existe brincadeira de menino ou de menina” e considera que se um menino brinca de boneca ou se uma menina brinca de carrinhos ela tem um problema.
  5. Forte preferência em brincar com pares de outro gênero. Neste item se torna um problema se a criança prefere brincar com outras do sexo diferente do seu. Ou seja, se seu filho gosta mais de brincar com meninas do que com meninos, aparentemente é um “sintoma”. A mesma coisa se sua filha preferir brincar mais com meninos do que com meninas. Afinidade, personalidade, nada disso importa mais, pelo visto.
  6. Em meninos, forte rejeição de brinquedos, jogos ou atividades tipicamente masculinas e forte evitação de brincadeiras agressivas e competitivas; em meninas, forte rejeição de brinquedos, jogos e atividade tipicamente femininas Isso é tão errado e ao mesmo tempo tão elucidativo. Este item está claramente dizendo que se um menino não é agressivo e competitivo ele pode ter um sintoma e ser uma menina. E que se sua filha, por outro lado, não gosta de brincadeiras delicadas e “tipicamente femininas” (leia-se casinha, boneca, maquiagem) ela pode ser, na verdade, um menino. Depois a gente vê as estatísticas de violência, vê como homens são empurrados para serem essas máquinas de matar e como mulheres fiam impassíveis nessa relação, e não entende como isso acontece.
  7. Desejo intenso de por características sexuais primárias e/ou secundárias, compatíveis com o gênero experimentado. Esse item fala sobre a criança expressar ter uma genitália diferente da que possui (característica sexual primária). Para características sexuais secundárias (seios, pêlos), já estamos falando de púberes. Este aqui é o único item digno de maior observação que é entender: o que está acontecendo com essa criança a ponto dela desenvolver ódio ou aversão específico pela própria genitália? Em tese, para uma criança, sua genitália deveria ser um item com a mesma importância do nariz ou da orelha. Então se uma criança manifesta tanta consciência e desconforto com a própria genitália vale ficar alerta se já que talvez isso seja evidência não de disforia de gênero mas de abuso sexual.

E seguida, temos o item B, que é o segundo pré-requisito para indicar que uma criança tem “disforia de gênero”, segundo a SPB:

A condição está associada a sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, acadêmico o em outras áreas importantes da vida do indivíduo.”

Sobre esse item é importante contextualizar que ele é uma consequência de um estado de coisas muito bem evidenciado pelo item A. Acompanhe comigo.

Imagine os valores e preocupações de adultos que observam um problema no fato da sua criança (e aqui estou listando somente os critérios da SBP): 1. fabular que é de outro sexo, 2. querer vestir roupas diferentes associadas a outro sexo, 3. brincar que é um personagem de outro sexo, 4. gostar de brincar livremente, inclusive de brincadeiras associadas ao outro sexo, 5. gostar de brincar com amigos do sexo diferente do seu, 6. é um menino que não gosta de ser agressivo ou é uma menina ativa.

Imagine essa criança. Cujo comportamento, absolutamente normal e que expressa a sua personalidade, é visto (pelos adultos) como um sintoma, como um problema, como a manifestação de que algo está errado com ela? É óbvio que ela vai estar em sofrimento psíquico.

Porque a criança sente, e muito precocemente, a rejeição, a preocupação dos adultos, a apreensão. Ela sente como o comportamento dos pais muda quando ela tenta corrigir o comportamento. Ela sofre quando ela não consegue manter-se dentro daquilo que os pais esperam. Ela percebe o que é premiado e o que será punido.

Existe sim “sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social” em crianças que apresentam “inconformidade de gênero”, mas não porque há algo errado com elas, e sim com os adultos que estão infernizando sua vida.

Se você entender que “conformidade de gênero” é “conformidade de comportamento esperado socialmente” e “inconformidade de gênero”, é “inconformidade de comportamento esperado socialmente” vai compreender também o tamanho da violência que adultos estão cometendo contra crianças e adolescentes neste momento.

Mas existe “disforia de gênero”?

A disforia corporal é um sentimento de mal estar persistente sobre alguma característica do próprio corpo. É uma condição clínica que pode afetar a qualquer um e que tem diferentes tipos e graus de manifestação. Muitas pessoas que tem anorexia por exemplo sofrem de disforia corporal ou seja, enxergam seus corpos gordos, mesmo estando num estado de extrema magreza.

Hoje a “disforia de gênero” é definida como um sentimento de angústia e inadequação em relação ao próprio corpo sexuado. Chamamos “disforia de gênero” mas é uma disforia corporal.

Crianças que são persistentemente confrontadas em relação aos seus gostos pessoais podem sim desenvolver algum tipo de confusão ou disforia em relação ao seu corpo. Basta pensar como fica a cabeça de uma criança que escuta o tempo inteiro que tudo aquilo que ela gosta não foi feito para ela e sim para quem é do outro sexo, e que o jeito que ela é está errado. Pense por exemplo em um menino que escuta o tempo inteiro: “isso é coisa de menina”, “parece uma menina”, “não pode, é para as meninas”? Não é difícil ele concluir: “se tudo que eu gosto é para meninas e se o meu jeito parece de uma menina então eu sou uma menina”. E dessa conclusão para o desconforto psíquico com o corpo é um passo.

O tratamento para a disforia corporal é terapia, acolhimento, conforto, aceitação do próprio corpo, elevação da estima, autocuidado. No caso da disforia de gênero, principalmente em crianças, o adequado seria terapia familiar, porque em 99,9% das vezes a origem do desconforto da criança está na dificuldade de ser aceita com sua personalidade (que não se encaixa nas expectativas de gênero) pelos seus entes mais próximos.

E aqui uma nota importante: terapia e acolhimento é a indicação para qualquer tipo de disforia corporal. Da mesma forma que não receitamos dietas ou cirurgias plásticas para pessoas disfóricas por causa do seu peso corporal, não se deve fazer afirmação de gênero, tampouco intervenções medicamentosas ou cirúrgicas em que apresenta disforia por causa do seu corpo sexuado.

Ademais, pesquisas indicam que cerca de 90% dos casos de disforia de gênero se resolvem espontaneamente no final da adolescência e todos os protocolos médicos que tratam do tema do gênero em crianças estão sendo revisados apontando para a terapia como tratamento.

Como lidar com crianças com “inconformidade de gênero”?

É impossível para uma criança ser livre e feliz se tiver que cumprir todos os ditames dos estereótipos de gênero. Um menino, por exemplo, que é mais sensível, delicado, avesso a combates, e/ou interessado por “coisas de meninas” vai ser visto como “mulherzinha”, “criança viada”, “gay”, “afeminado”, e será profundamente rechaçado e rejeitado socialmente. Uma menina que é mais ativa, mais agressiva, agitada, assertiva, que goste de esportes, vai ser marginalizada, chamada de “moleca”, vai ser terrivelmente cobrada para que seja uma “mocinha”.

Só que crianças são pessoas e tem personalidade própria. E também são uma esponja e rapidamente percebem que tipo de comportamentos e posturas são desejados para que eles sejam aprovados. Para essas crianças perceber que aquilo que elas são é muito diferente daquilo que esperam que ela seja é muito dolorido. Principalmente se a criança for o tempo todo coberta de críticas, censuras, e declaração de “preocupação”.

Então o que eu queria dizer aqui é: seu filho não é uma menina porque gosta de bonecas, e cor de rosa, e não gosta de socar os amigos, nem sua filha é um menino porque ela não quer se maquiar, ou usar vestidos, ou brincar de casinha. E tampouco tem alguma coisa de errado com eles.

Eu tenho certeza que você consegue entender que brincadeiras, roupas, fantasias, comportamento, não definem se alguém é menino ou menina.

Então, quando uma criança tem uma personalidade que acaba destoando muito da expectativa social sobre ela e começa a receber muitas cobranças para ser de outro jeito, a família deve:

  • ser a primeira a reconhecer que não há nenhum problema com a criança e que é apenas a personalidade dela se manifestando;
  • acolher a dor e confusão dessa criança com eventuais rejeições sociais ao seu jeito de ser;
  • promover um ambiente familiar seguro, de experimentação, liberdade e conforto;
  • explicar o motivo pelo qual ela está sendo rechaçada socialmente (que não é culpa dela mas de um terrível sistema que quer obrigar pessoas a determinados comportamentos e visa crianças);
  • e pensar junto com ela mecanismos para que ela possa estar segura e protegida também nos espaços fora de casa respeitando seu jeito.

A outra opção, a pior delas, é acreditar que o problema está com a cria e não com essa sociedade horrorosa e castradora, que ela nasceu “no corpo errado”, e que você vai “ajudá-la” a se “encaixar”.

Aliás, “encaixar” é uma palavra mágica um tanto irresistível que faz muito pais desesperados tomarem decisões bastante questionáveis sobre suas crianças. Eles não querem que os filhos sofram, sabemos como a sociedade é cruel com quem não se encaixa. É compreensível.

Mas aí cabe pensar o preço que estas crianças estão pagando para se “encaixar” nessa sociedade que está aí, ao invés de confrontarmos e lutarmos e colocarmos abaixo essas regras. Pensar se é nessa sociedade terrível, sexista, racista, elitista, cruel, que queremos que nossos filhos se encaixem. Pensar se não é mais fácil até, simplesmente deixarem nossas crianças se desenvolverem livremente experimentando tudo aquilo que a personalidade deles vai demandando.

E buscando referências, novas maneiras de estar no mundo, que ainda são poucas mas que estão surgindo sim, impulsionando essa possibilidade (veja aqui 5 filmes infantis que nos ajudam a pensar um pouco sobre isso)

Hoje, cada família precisa escolher qual vai ser a filosofia que vai adotar na criação dos seus filhos. Porque claramente vemos discursos que parecem o mesmo mas são claramente contraditórios. Ou acreditamos que estereótipos de gênero são um problema e deixamos as crianças livres para experimentar ser do jeito que quiser, acreditamos que não existe brinquedo de menino e menina, que não existe cor de menino e de menina, e damos a possibilidade de uma infância mais rica e menos reprimida, ou acreditamos definitivamente que nascer de um determinado sexo define seu comportamento o mundo e adotamos esse manual de comportamento de gênero para ser seguido desde o nascimento.

Rejeitar o gênero, transgredir essas regras, definir-se como PESSOA, e não como “homem” ou “mulher”, segundo os parâmetros do patriarcado, é a verdadeira revolução. Todos nós somos, ou deveríamos ser inconformes com o gênero. Porque ele é uma armadilha, uma prisão. Crianças são seres visionários e tem muito a nos ensinar. Deveríamos aprender com elas ao invés de tentar “encaixá-las”.

Nossas palavras não mudarão a realidade

Estamos em um momento terrível e palavras não mudarão nossa realidade, precisamos articular ações que concretizem essas palavras de ordem. Na data desse texto, agosto de 2021, vivemos uma pandemia, empobrecimento e mais um milhão de incontáveis desgraças nesse apocalipse a conta-gotas e um fato em particular sensibilizou quase todas as mulheres que tenho notícias. Estamos presenciando o retorno do Talebã ao governo do Afeganistão, um grupo paramilitar fundamentalista islâmico que caracteriza-se por impor um regime de governo totalitário marcado pela violência e por leis absolutamente restritivas para mulheres. São inúmeras as possibilidades de impedimentos, desde trabalhar e estudar até a andar na rua desacompanhada de um homem ou ter sua voz ouvida em um espaço público. No Talibã, mulheres devem ser invisíveis. Isso tudo movido a castigos físicos, violência sexual e casamentos forçados. Milhares de mulheres naquele território estão em pânico, nesse exato momento, sem saber dos seus destinos. Vendo toda sua vida e todos os seus planos sendo jogados pela janela.

Basta uma crise política para que os direitos das mulheres sejam os primeiros a serem confiscados. No Afeganistão mulheres já tiveram muitos direitos e inclusive por algum tempo tiveram um tipo de vida muito semelhante ao nosso, mulher ocidental. Não que nós estejamos em ampla e larga “vantagem”, aqui mesmo no Brasil vemos como o fundamentalismo religioso também prega que mulheres não devem estudar ou trabalhar, como devem se vestir, se portar, e nossos parcos direitos de autonomia reprodutiva estão sendo paulatinamente caçados. E se não ficarmos atentas e combativas corremos sim o sério risco de perdê-los. Porque direitos das mulheres conquistados sob um estado patriarcal estão em constante risco. Basta uma crise. Uma pequena ou grande crise e seremos o grupo que será rifado.

Afinal, qual é o grupo que está sendo mais prejudicado nessa pandemia? Mulheres, óbvio. Expulsas do mercado de trabalho, precarizadas, pauperizadas, largadas a própria sorte com os filhos em casa, vulnerabilizadas, agredidas. Um show de horrores. Lá e cá.

Por outro lado nunca estivemos tão ativos nas redes e isso me faz pensar sobre como nossas lutas são facilmente capturadas pra uma disputa narrativa que mais desmobiliza que qualquer outra coisa. Eu fico pensando sobre como fomos engolidas por um debate pós-moderno que quer vencer tudo no textão e na hashtag. Sobre como gastamos tempo e energia com debates um tanto inuteis que — por levar toda nossa energia — nos dá a sensação de que estamos nos movimentando. É tão bonito esse mundo proclamado (e profetizado pela Xuxa), em que tudo pode ser e basta acreditar que tudo será. Antes fosse. Antes toda essa verborragia passasse no teste da realidade. Eu juro mesmo que tudo que eu queria agora era que todas aqueles mulheres no Afeganistão pudessem autoidentificar-se como homens, pegar em armas e praticar um pouco da violência “intramasculina” explodindo uma meia dúzia de cabeças por lá. Que elas sentissem que não são mulheres. Que elas sentissem que não se identificam com a cisnormatividade blablabla de poderem ter um mão amputada caso pintem a unha e que elas pudessem mudar a realidade delas apenas autodeterminando que pensando bem não são mulheres.

Só faltaria combinar com os Talibãs.

É óbvio que essa baboseira queer não se sustenta na realidade, o que não parece tão óbvio é sobre como estamos completamente entorpecidos e apartados dessa mesma realidade. Ou melhor, como construímos um ambiente virtual que é hoje é uma espécie de “realidade” que vai preencheendo dias, vazios, perspectivas. Que vai tampando buracos emocionais e funcionando como rota de fuga de uma vida que parece cada vez impossível de ser resolvida. Nas redes conseguimos trazer paz e equidade com hashtag, acabamos com o sexismo mudando a grafia das palavras, podemos até confundir vogal temática com pronome, não tem problema nem ser burro, ninguém liga. É sim um lugar de mais liberdade onde, se você procurar bem, acha uma bolha quentinha cheia de pessoas que vão concordar com você e ajudar a falar mal do amiguinho. Dá paz, eu entendo.

Porque a vida, pulsando lá fora, não tem fluidez nenhuma. É o país de Bolsonaro, é o país onde voltamos pro mapa da fome, onde continuamos a morrer feitos moscas por causa de uma pandemia que ninguém sabe ainda quando vai acabar, é um mundo infestado de imbecis negacionistas que esqueceram o básico da geografia, da biologia e de tudo quanto noção básica de ciência que deveríamos ter aprendido na primeira infância. É o mundo onde há a situação das mulheres afegãs, das haitianas, de nós, latino-americanas, e tantas outras realidades igualmente massacrantes para mulheres a ponto de nem saber enumerar. É um mundo insuportável que estupra mulheres e crianças por minuto, que vende bebês na deep web pra pedófilos, onde meia dúzia de bilionários tem dinheiro suficiente para comprar nações inteiras e salvar milhões da miséria mas preferem investir dando uma voltinha no espaço num foguete fálico ridículo. É um mundo que está derretendo e congelando simultaneamente porque nós conseguimos ignorar os problemas climáticos por tempo bastante a ponto de já não podermos fazer mais nada exceto arregalar os olhos com as consequências. Um mundo onde a gente não tem nem mais lágrimas pra chorar afinal o que são 5 pessoas mortas pisoteadas num aeroporto quando já perdemos mais de 3000 pessoas por dia só por aqui?

Eu entendo o apelo sedutor do discurso pós-moderno, que não te exige inteligência, coerência e te dá poder a partir de uma das poucas coisas que você pode tentar controlar: o seu discurso. Que diz que você pode se empoderar mana, é sobre isso, vai planeta. É o que tem pra hoje para lidar com essa maldita impotência diante de um mundo que se esfacela. Vamos correr para dentro da bolha, pra quem pode, pra quem consegue. E a esta altura eu já nem sei se condeno essa pulsão de loucura generalizada. É luta ou fuga, e luta já sabemos que não está rolando. Mas palavras não mudam a realidade, ações mudam. A materialidade está lá, inalterada, dando na nossa cara quando olhamos para ela. Você não destrói monstros que te ameaçam dizendo que eles são nuvens de algodão doce, você reúne um exército e corta a cabeça dele fora. E essa tentativa pueril de não olhar esse monstro da desigualdade de sexo, raça e classe nos olhos vai cobrar seu preço para nós. Já está cobrando.

É possível educar crianças para repudiar a homofobia?

Será que é realmente possível educar crianças que cresçam para não só não praticar como para repudiar a homofobia? Eu acredito que a resposta é talvez, e apenas talvez, por mais progressistas que sejamos, porque para ensinar como não discriminar pessoas homossexuais precisamos repensar todo o conceito de heterossexualidade.

Em primeiro lugar, precisamos entender um pouco dos motivos pelos quais ser homossexual é considerado um problema tão grande na sociedade que vivemos hoje. Sim, porque o comportamento homossexual não é novo, nem novidade, nem incomum, nem nos humanos e nem em inúmeras outras espécies. Inclusive existem estudos antropológicos que remontam práticas rituais homossexuais já há cerca de 10.000 anos, ou seja, pessoas transam com outras pessoas desde sempre, a despeito de serem ou não do mesmo sexo.

E quando tudo isso começou a mudar sistematicamente? Com o fortalecimento de instituições como o casamento e a família nuclear que surgiram para garantir a manutenção da heterossexualidade compulsória.

É o que é a heterossexualidade compulsória?

É um regime político organizado para garantir o controle da sexualidade de mulheres, de forma que elas estejam sempre subordinadas sexual e afetivamente a homens, ligadas a uma família nuclear e comprometidas com o cuidado do ambiente doméstico, da manutenção da vida de um homem, com a reprodução e cuidado de crianças. E dizemos que é um regime compulsório porque essa é a única forma de relacionacionamento afetivo-sexual que é permitida aos indivíduos, tendo mecanismos punitivos desde sutis (preconceito velado), até bem contundentes (a morte) para os que não seguem. Vivemos sim em uma sociedade em que não apenas é proibido não ter um comportamento heterossexual como todas as instituições sociais se organizam para garantir a heterossexualização dos seus indivíduos.

E como isso acontece? Desde boa parte das religiões que tem cláusulas bem específicas sobre o tema, passando pelos modelos de conduta ensinados na família, escola, etc (que reforçam a ideia da formação de uma família nuclear, com pai, mãe e filhinhos, como o ápice do acontecimento de uma vida), passando pelas instâncias legais que não reconhecem uniões homoafetivas (e isto está mudando bem aos poucos com muita luta dos grupos interessados), até o principal propagador: a cultura de massa, que nos bombardeia incessantemente com a romantização das relações heteroafetivas.

Ou seja, a despeito de como se constitui a atratividade afetiva e sexual (pergunta para a qual não existe uma resposta definida), ter homens e mulheres unidos e reproduzindo a espécie, com a fêmea em situação de subordinação (que é uma situação dada pela maneira como o casamento se organiza) é uma estratégia basilar do patriarcado e do capitalismo. Não é interessante que mulheres (e aí também homens, consequentemente) sejam livres para de repente decidirem que NÃO querem formar um tipo de organização social (a família-nuclear) que é a peça-chave para a manutenção desse sistema que nos oprime.

Entender a compulsoriedade da heterossexualidade é fundamental para compreendermos o fenômeno da discriminação sexual. Pessoas que decidem fazer sexo com outras do mesmo sexo, de forma não-procriativa, estão transgredindo não só as leis de “Deus”, mas principalmente as leis de regulação da mão de obra para a sustentação do capitalismo e as leis de manutenção da hierarquização sexual entre homens e mulheres. Isso não é sobre “heteronormatividade”, é muito maior que isso. É, repito, um regime político, uma agenda para garantir a imobilidade das castas sexuais.

E aí você pode se perguntar: mas se o patriarcado está aí há 6000 anos porque tão recentemente é que podemos dizer que existe uma organização tão complexa para garantir a heterossexualização das pessoas? Simples, porque antes mulheres não tinham direito a dar nenhuma opinião sobre o destino dos seus corpos. Elas eram vendidas, negociadas pela família, trocadas entre tribos, dadas de presente, como meros objetos comerciais. Mulheres e homens não precisavam ser convencidos a nada quando se tratava de reproduzir a espécie, isso era um negócio, uma solução para ter mãos para lavoura. Até o advento da disseminação das ideias eclesiais, sexo não andava junto com a ideia de casamento, ou amor, ou nada que valha. Quando a prática de vender mulheres em casamento foi abolida (e ainda é uma prática muito comum em muitas partes do mundo, não se enganem), e mulheres começaram a ter alguma autonomia sobre quem seriam seus parceiros, ganharam no colo uma bomba chamada romantização dos relacionamentos heterossexuais, toda a sociedade se reordenou para que a essência de como as uniões se organizavam não mudasse tanto assim, para que sequer pensássemos nisso, em outras formas de estar, de amar, de desejar. Para que mulheres sequer cogitassem a ideia de não unirem-se nunca mais a homens, por exemplo. Continuamos a celebrar os mesmos rituais medievais, mas agora chamando de “escolha”.

Eu acredito firmemente que a maneira mais fácil de educar crianças sobre relacionamentos é buscando fugir o máximo possível dessas noções heterossexualizantes, que estão presentes em tudo que ensinamos, o tempo inteiro, na nossa linguagem, nossa cultura, nos nossos modelos. Dizemos que a vaca é a “mulher do boi” (por que ela não pode ser a irmã? por que não dizemos que ela é a versão fêmea daquela espécie?), dizemos que dois irmãos que são um menino e uma menina são um “casal”, dizemos que crianças namoram, e isso pra citar alguns poucos exemplos que passaram agora na minha cabeça.

Temos que nos observar ao máximo para evitar essa visão do mundo pautada pela divisão sexual. Até porque crianças não têm uma noção erótica. Elas vêem o mundo dividido muito mais entre adultos e crianças do que entre homens e mulheres. Somos nós, ADULTOS, que nos esforçamos o tempo inteiro em doutrinar essa organização mental pautada no sexo.

Eu também não gosto muito do discurso da “aceitação”, porque — a depender de como é feito — isso indiretamente ainda reforça a ideia de que existe um comportamento normativo, padrão, e um “desviante”. “Aceitar”, “incluir”, pressupõe uma concessão. Uma ideia de que aquele outro ali está fazendo algo que não deveria, não poderia, não é natural, está “fora”. E esse entendimento (para crianças) reforça uma ideia de “falta de naturalidade” em comportamentos homossexuais, de que a heterossexualidade é o “certo” mas temos que ser bacanudos e “inclusivos”, quando na real é que ninguém tem nada a ver com a vida sexual de ninguém e pessoas não têm que ser organizadas, ou aferidas, ou validadas, de acordo ou por causa da sua sexualidade.

Diga a seu filho que adultos namoram e crianças não namoram. É isso que ela precisa saber sobre o tema. Quando a criança vir dois homens se beijando, verá adultos namorando. Quando vir duas mulheres se beijando, verá adultos namorando. Quando ela vir um homem beijando uma mulher, verá adultos namorando. Quando ela vir um casal de homens ou mulheres com um filho, verá dois adultos que resolveram criar uma criança. Dois pais, duas mães. Sequer há muito o que ser “explicado” sobre isso. É a vida dos adultos. Fim de papo. Não há o que “aceitar”, não há nada “diferente” nisso. Precisamos parar de projetar nossos constrangimentos e nosso preconceito para o mundo das crianças.

Se há algo a ser “explicado” para crianças sobre esse tema é que vivemos em uma sociedade que valoriza e condiciona um comportamento heterossexual. E isso nos leva a um comportamento de estranhamento, reativo e muitas vezes agressivo a tudo que foge a essa domesticação. O que crianças precisam entender não sobre o que é que a “homossexualidade” e sim sobre o que é realmente a heterossexualidade, sobre o que ela representa, sobre como ela nos é imposta, a que ela se destina. Que pessoas não são “naturalmente” uma coisa ou outra. Elas são pessoas, humanas, complexas, e têm o direito de crescer fazendo valer seus desejos e afetos sem ter que prestar contas a ninguém.

Em uma sociedade que prestasse, onde pessoas fossem verdadeiramente livres, todos saberiam que comportamento sexual de alguém é um tema de foro íntimo e de competência dela e que ninguém tem que se meter nisso. E que isso não define ninguém. Que classificar, discriminar, perseguir, segregar, estigmatizar pessoas com base no seu comportamento sexual só faz sentido em uma sociedade patriarcal, que precisa controlar corpos e sexualidades. Que só funciona porque realiza esse controle.

Então, considerando todas as poderosas engrenagens da heterossexualidade compulsória eu não tenho ilusões que seja possível criar crianças 100% descontruídas, seres de luz, porque a própria lógica de “desconstrução” que temos já está contaminada, porque o capitalismo já colocou as patas nessa pauta (e está se dando MUITO bem), enfim, são muitos poréns. Mas eu acredito sim que é possível explicar a nossas crianças e adolescentes como e porquê as coisas são como são. E acho que é possível esse esforço de contrabalancear essa educação que é toda baseada na divisão sexual da sociedade e consequentemente na dominação e na subalternidade de homens e mulheres respectivamente. Vale a pena pelo menos esse esforço dirigido.

Quanto ao meu filho eu espero apenas que ele faça sexo protegido, consciente e consentido. E que curta muito, e se divirta, porque sexo é uma coisa bastante boa, convenhamos. O resto, realmente, não é da minha conta.

Lugar de mulher é onde o patriarcado quiser

Acreditamos na máxima “lugar de mulher é onde ela quiser”, mas basta uma crise para o patriarcado nos colocar de joelhos cumprindo aquilo que somos destinadas dentro desse sistema de opressão.

Eu já falei que é preciso pelo menos 4 pessoas para dar conta saudavelmente de todas as demandas da criação de filhos: duas pessoas em revezamento tomando conta das necessidades básicas da criança (que inclui não deixá-la sozinha, por exemplo); uma pessoa para ganhar o sustento; uma pessoa para cuidar das questões de limpeza, alimentação, roupa e cuidados gerais de manutenção do ambiente. Esse cenário não se produz, obviamente, nem em condições normais da vida, mas ainda assim, mulheres sempre conseguiram desdobrar-se e equilibrar-se terceirizando tarefas e contando com parceiros como a escola e a família.

Com a pandemia, todos estes artifícios externos para conseguir dar conta das responsabilidades que são jogadas sobre os ombros da mulheres foram retirados e o cenário — previsível e trágico — é de terra arrasada, afinal quem cuida das crianças enquanto os pais trabalham se não há mais cuidadores terceirizados? A resposta é tão fácil e automática, que chega a ser cruel: as mulheres. Não importa se elas também precisam trabalhar para se sustentar. Não importa se elas estudam, se elas produzem. Lugar de mulher é em casa e elas são as primeiras a irem pro sacrifício.

Mulheres hoje são as principais afetadas pela pandemia, estão sendo expulsas dos postos de trabalho, estão sobrecarregadas de tarefas domésticas, são as principais responsáveis pelos cuidado das crianças, dos doentes. Estão em cativeiros com seus companheiros sendo violadas, abusadas, agredidas, mortas. Enquanto isso, homens estão sendo plenamente atendidos em suas necessidades, roubando nossos postos de trabalho porque não são responsabilizados pelo cuidado de nada e ainda aumentando sua produtividade.

E todos se perguntam — e se espantam — sobre como isso pode estar acontecendo.

Eu respondo

No patriarcado existe uma coisa chamada divisão sexual do trabalho, que é a maneira como as tarefas do trabalho são divididas na sociedade levando em conta o sexo dos indivíduos. É a divisão sexual do trabalho que separa as atividades em “trabalho de homem”e “trabalho de mulher” e que também hierarquiza fazendo com que o tal “trabalho de homem” valha mais, sejam melhor remuneradas e tenha mais status. É pela divisão sexual do trabalho que homens são destinados ao mundo externo, à esfera produtiva e mulheres são relegadas ao mundo doméstico, à esfera reprodutiva. E isso acontece desde sempre, em diferentes sociedades, a ponto de podermos afirmar com razoável segurança que existem dessa forma desde o início do patriarcado, o que cobre quase tudo que conhecemos.

É muitíssimo importante que entendamos isso. Isso é o puro suco do patriarcado cuja exploração sobre mulheres se estrutura sobre a divisão sexual do trabalho, a maternidade compulsória e a heterossexualidade compulsória. Esse é o tripé estrutural consolidado para manter toda e qualquer mulher em posição de subalternidade, cuidando dos serviços domésticos, das crianças, dos adoecidos, dos idosos, dos homens.

A despeito de todas as “conquistas” que tenhamos conseguido, a despeito de leis e mudanças de costumes, percebemos como esse tripé segue inabalável quando em momentos de crise como esse mulheres são atiradas de volta ao “seu lugar”: cuidando da casa, dos filhos, do companheiro, dos vulneráveis. Veja como esta pandemia trouxe um retrocesso de mais de dez anos em participação no mercado de trabalho para mulheres no Brasil e na América Latina. Como somos a parcela mais empobrecida e mais explorada. Como os numeros de feminicídio e violência doméstica explodiram pelo mundo (assim como os de divórcio).

É para isso que existimos no patriarcado e só sairemos desse lugar rompendo essa lógica e destruindo os mecanismos que o sustentam. Não acreditem na falácia de que: “lugar de mulher é onde ela quiser”, que “mulheres já estão em pé de igualdade com homens”, que “mulheres já podem fazer tudo”. Isso é uma mentira mil vezes contada para nos manter no mesmo lugar de subalternidade mas com um sentimento (falso) de liberdade. Quando a crise bate, nós não temos todo esse direito de “escolha” que imaginamos ter e nossa agência é muito limitada porque não existe nenhum olhar para nossas demandas, somos descartadas enquanto sujeitos de direitos, com necessidades. Sobramos nós e as crianças.

A pandemia escancarou a realidade nua e crua de todas as mulheres. Está aí, inegável, sendo vivida em maior ou menor grau por todas nós. Que consigamos enxergar de uma vez por todas o lugar que a sociedade nos reserva e romper com isso. Lutar contra isso. Nomear os nossos inimigos e combatê-los, senão não importa quantas conquistas e “avanços” sejam pretensamente conseguidos, nós mulheres nunca abandonaremos esse lugar de servilidade e subalternidade. Nossas necessidades nunca serão consideradas. Nunca seremos pessoas. Com direitos. Livres.

O medo não nos paralisará

Não há o que dizer hoje para amparar tanta dor e angústia que nos atravessam irmãs. O medo paira no ar, mas não nos paralisará. É a noite escura. Não sabemos do futuro. Não há palavras para nos consolar e não podemos sequer nos furtar um abraço. Eu gostaria de poder dizer a cada uma de vocês, mulheres, que vamos resistir e tudo vai passar. E vai, sim, eu sei. Mas também sei que quando tudo fica difícil demais no mundo, é sobre nós, sobre nossos ombros, que recaem todas as chagas.

Estamos com medo.

Mulheres, o que posso dizer? O medo nunca nos abandona. Ele é nosso companheiro fiel desde que nascemos, desde nossa primeira lufada de ar. É nosso companheiro mais antigo, a primeira fera que aprendemos a domar. A sombra que nos acompanha noite e dia, sempre à espreita. Sempre nos mantendo vigilantes. Onde fazemos morada. Nós conhecemos o medo desde sempre e sabemos o que fazer.

E sim, está tudo muito mais difícil. Estamos adoecendo, empobrecendo, perdendo nossos amores, nossos pais e também nossos filhos. Estamos passando fome, vendendo nossos corpos de diferentes maneiras para nos sustentar. Estamos nos submetendo a todo tipo de violência. Confinadas. Sequestradas. Reféns de um poder patriarcal que não se importa com nada e muito menos com mulheres.

Mas eu acredito, ainda acredito, que não há força maior e mais revolucionária, e potente, que a de mulheres quando finalmente se unem na mesma direção. Eu acredito na força que só mulheres, criadas para resistir desde sempre a todo tipo de abuso apenas por serem fêmeas sob o patriarcado, desenvolveram. Tiveram que desenvolver.

Toda mulher é uma sobrevivente e não é agora que seremos paradas.

Que nossas semelhanças nos unam, mais do que nossas diferenças nos separam. Esqueçam os “feminismos”, nós somos uma única voz, lutando por questões pungentes, de vida e morte. Lutando por comida, por abrigo, por dignidade. Lutando para defender nossas crianças. Lutando umas pelas outras. Mulheres por mulheres. Sempre. Precisamos agora ser um único corpo, compacto, indevassável, um corpo de mulher, que faz as pazes com seu sangue e resiste. E vai pra luta defender a si e os seus.

Hoje, 8 de março de 2021 é um dia de lutas. E mais que nunca brigamos para sobreviver. Lutamos contra a fome, contra a exploração, contra a violência, lutamos contra o poder patriarcal materializado de forma pura diante de nós. Olhem e vejam. Encarem a batalha que descortina-se diante de nós sem subterfúgios. Vamos sair dessa fase de negaçao. A guerra agora é sobre resistir, sobre sobreviver, sobre não perecer de fome, adoecimento, totalitarismo. É sobre permanecer caminhando até sair do outro lado desse longo caminho escuro e interminável e assistir ao sol nascer.

Cuidem-se. Protejam-se. Protejam os seus. Não tenham ilusões que cairá alguma migalha dessa mesa para mulheres e crianças. Está tudo bem se você está com medo. Quem não está com medo não está entendendo nada sobre o que está acontecendo. Lembre-se que o mundo nunca nos paralisou. E não vai nos paralisar. Vamos juntas.

Representatividade sem revolução é uma armadilha

Em algum momento de um passado não muito distante nós começamos a perceber como vivemos uma sociedade estratificada por sexo, classe e raça. Em algum lugar desse passado nós conseguimos nomear o inimigo e ensaiar estratégias. Que só o desmantelamento das estruturas opressoras poderiam reordenar nossa sociedade em nome de um modelo que ainda não temos claro qual seja, mas que certamente não passa pelo genocídio e exploração sistemática de mulheres, pobres, negros.

E então, o contragolpe.

Ele sempre vem.

Inúmeras armadilhas narrativas foram plantadas e agora florescem em solo forte. E já estamos colhendo seus frutos, nos estilhaçando por dentro. Qualquer ensaio de uma coesão em nome de lutar contra um poder hegêmonico desfez-se em teses identitárias e subjetivas que parecem muito bonitas mas só causam dissenso, brigas e disputas e mais disputas inúteis que não levam a lugar nenhum.

Dividir pra conquistar. Esse, visivelmente, é o lema.

Tudo começou com essa ideia imbecil de que somos “múltiplos”, “plurais”, “diferentes”, dissolvendo completamente a possibilidade de nos vermos enquanto classe. Classe sexual, classe racial, classe proletária. Nós somos múltiplos no explorar das nossas subjetividades mas na vivência material? Somos muito mais iguais do que pensamos, há muito mais o que nos une do que o que nos separa.

Entre numa sala com 100 pessoas. Misturados ali, homens, mulheres, pessoas brancas, pessoas negras e pardas, pessoas ricas, pessoas pobres. Pergunte como cada um se sente. Pergunte sobre o que cada um pensa. Pergunte sobre o que cada um percebe. Você ouvirá 100 respostas distintas.

Agora pergunte sobre as vivências.

Quem já sofreu violência sexual. Quem já sofreu assédio. Quem já sofreu violência obstétrica. Quem já se prostituiu para poder comer. Quem já sofreu violência doméstica.

Pergunte quem já foi perseguido em uma loja. Quem tem medo da polícia porque é alvo. Quem já perdeu um amigo para violência policial. Quem já foi humilhado por sua cor. Quem já foi preterido. Quem já foi agredido.

Pergunte quem já sentiu fome. Quem já teve medo de não ter onde morar. Quem já precisou da caridade de terceiros para coisas como roupas para vestir. Quem nunca teve acesso a coisas simples como livros.

Você verá grupos distintos e muito bem demarcados. Unidos pela sua experiência material, de vida. Que só aconteceram por causa do seu sexo, da sua classe social, da sua cor.

A subjetividade nos separa, mas a materialidade nos une. Nos divide claramente entre quem manda e quem obedece. Quem oprime e quem é oprimido.

E estamos perdendo isso de vista e atacando uns aos outros.

Nesse cenário, não há armadilha maior que a ideia de “representatividade”, tal como é apresentada, com literalmente a inclusão feita de cima pra baixo de representantes de minorias (mulheres, negros, pobres) de maneira puramente simbólica. Como embaixadores de uma falsa ideia de sociedade democrática.

E isso é especialmente problemático porque não podemos perder de vista que não há interesse — e nunca haverá — que minorias tradicionalmente oprimidas e marginalizadas realmente acessem espaços de poder. E permitir a presença simbólica de alguns indivíduos em determinados lugares é uma estratégia de pacificação e cooptação de pautas para o seu esvaziamento. É uma concessão, não é uma conquista real da reivindicação dos movimentos, porque essa inclusão não acontece nas instâncias decisórias, mas nas esferas de estimulação do consumo. Garotos-propaganda sempre, diretores e presidentes, nunca. O discurso da “representatividade” é esvaziado e repaginado como uma genial estratégia de ampliação de mercado.

Sabe para quem a “representatividade” importa? Para a Natura que adquiriu a Avon e a receita da marca cresceu 19,3% em reais na América Latina, impulsionada especialmente pelas vendas no Brasil, e avançou 22,5% na operação internacional, que reúne 50 mercados na Europa, Ásia, África e Oriente Médio e está de olho no mercado de beleza para negros e pardos que apesar de comportem 57% do total de habitantes do país, representam apenas 5,9% das vendas no mercado nacional.

E você pode questionar-se: mas qual é o problema? Pessoas pobres, pretas e pardas tem direito de ser vistas como consumidoras, não? Claro que tem, o problema não é esse. O problema é que antes de ser consumidor, essa população precisa ser vista como GENTE. Como cidadãos de direitos. E nesse momento, a representatividade que grita é essa aqui: 38% da população mais empobrecida do Brasil é composto por mulheres pretas ou pardas, 35% por homens pretos ou pardos, perfazendo 73% das pessoas em condição de pobreza. O que está sendo feito por essas pessoas? Não é curioso que no momento que o discurso da tal da representatividade esteja mais em voga, os números mostrem que na vida a população negra e parda nunca esteve tão empobrecida e vulnerável?

Representatividade sem revolução é uma armadilha
a representatividade que importa

A “representatividade”, hoje, virou um produto que compramos para nos sentirmos menos humilhados por toda a exploração que sofremos. Para nos sentirmos “vistos”, “acolhidos”, “percebidos”. Não há interesse das elites em representatividade de verdade. Estratégias sérias, programáticas, para diminuir a enome desigualdade social e consequentemente garantir uma representatividade real, quantitativa, qualificada, não só nunca foram realmente aceitas como foram sistematicamente boicotadas. A política de inclusão de cotas raciais nas Universidades, por exemplo, existe há mais de 15 anos, uma política séria, efetiva, para garantir acesso às cadeiras de educação superior para populações marginalizadas e excluídas e sempre foi atacada. Programas de renda mínima como Bolsa Família? Sucateados.

Olhem bem para a cara das famílias mais ricas do mundo:

Representatividade sem revolução é uma armadilha
as famílias mais ricas do mundo: brancas, do norte global

Lá de cima da pirâmide, homens brancos cada vez mais ricos e poderosos refastelam-se. Nada os afeta. Nunca estiveram tão protegidos, tão blindados, tão tranquilos. E isso porque aqui, no rés do chão, ao invés de organizamos a revolução que vai pôr abaixo essa estrutura que nos esmaga, estamos brigando, batendo boca e disputando migalhas, achando muito bacana sermos “representados”. Sabe o que a representatividade é na prática? um mimo dos opressores. Um petisco que jogam da mesa para apaziguar os ânimos quando sentem que ideias subversivas demais estão a correr. Onde estão as mulheres pretas e pardas, onde estão as mães, sendo consideradas DE VERDADE nessa equação? Olhem para a REALIDADE. Na hora do vamos ver, mães são chutadas dos espaços políticos, pessoas negras são escorraçadasse não dobram sua retórica.

Nenhuma introdução de ideais contra-hegemônicos, nenhum movimento que realmente desafie o status quo, será bem recebido ou terá espaço para florescer sem uma forte resistência ou tentativas sistemáticas de descaracterização e enfraquecimento. Lutamos contra duas estruturas muito bem articuladas e poderosas — o patriacardo e o capitalismo. E essa super-estrutura também é fluida e muito eficiente em abarcar as dissidências e transformá-las em acessórios colaboracionistas disfarçados.

A representatividade que precisamos precisa ser reflexo de reparação histórica e social. Precisa ser o resultado de um processo revolucionário que desmonte a lógica de exploração a qual todos estamos submetidos. Precisa vir através do desmantelamento das estruturas e instituições que corroboram para nos manter nesse estágio de exército de reserva, marionetes do sistema. E esse processo só pode se dar através de construção coletiva, pelo reconhecimento do que nos une, pelo reconhecimento de quem nos ataca, pela nomeação de quem nos oprime.

Representatividade sem revolução é uma armadilha. O que precisamos é da ocupação natural dos espaços que vem depois da revolução de uma sociedade que nos mantém cativos.

Os mitos que romantizam a maternidade

São muitos os mitos que romantizam a maternidade. A romantização constrói uma narrativa sobre algo, escondendo seus aspectos opressivos, e idealizando e hiperdimensionando aspectos positivos. Esta é uma estratégia muito astuta dentro das estruturas de opressão para criar amarras psicológicas que garantem que as pessoas submetam-se a determinados papeis sociais e naturalizem situações onde são imensamente prejudicadas, sem dar-se conta disso. Para mulheres, a romantização da maternidade é fundamental para garantir a compulsoriedade dessa tarefa. A despeito dos dispositivos mais diretos e objetivos (como a dificuldade de garantir a contracepção ou a impossibilidade de interromper a gravidez), são esses gatilhos psíquicos que são construídos durante toda nossa socialização que garantem que quase toda mulher necessariamente acabe se tornando mãe em algum momento da sua vida, ou que sintam-se compelidas a maternar animais, plantas, seus companheiros, ou qualquer outra coisa que apareça no caminho.

Aprendemos sobre a maternidade e sobre o que é ser mãe de muitíssimas maneiras. Recebemos instruções diretas e também observamos o mundo. Vemos nossa própria mãe e a de outras pessoas, e também representações culturais, artísticas e midiáticas: teatro, livros, músicas, filmes, novelas, séries, matérias jornalísticas, e etc. É a nossa cultura — machista, a serviço dos valores do patriarcado — que oferecem todo um referencial com o qual vamos organizando mentalmente todo um aparato simbólico sobre o que significa ser mãe. Sobre o que a sociedade espera de nós nesse lugar. Como devemos agir, pensar, sentir e nos comportar. Somos moldadas para a maternagem atravessadas por mitos românticos que funcionam tanto como uma isca para este lugar, quanto uma medida de controle do comportamento da mulher que materna.

Os mitos que existem sobre a maternidade são a armadilha que nos atraem, nos mantém presas e condicionadas e que embaçam nossa reflexão crítica sobre nosso verdadeiro papel no patriarcado. Por isso é muito importante conhecê-los, para reconhecê-los e principalmente, combatê-los:

  • a mãe sagrada: 
    O sagrado é algo conectado diretamente a uma força superior, imaculada. O sagrado é venerado, infalível e existe para servir a humanidade e ao mesmo tempo ser adorado. Desde mitos antigos, com o arquétipo da “deusa mãe”, cristalizando com Maria, mãe de Jesus, aprendemos que ser mãe é um ser “divino”, “sagrado”, “puro”. Envolvemos o tema da maternidade em uma aura mística, onde a grávida é a mulher “escolhida” e filhos são uma bênção “dos céus”, uma missão sagrada que mulheres devem aceitar custe o custar, estejam prontas ou não, queiram ou não. Uma missão cuja recusa é tida como heresia. A ideia da mãe sagrada vai ancorada na de que a maternidade é um “sacro ofício”, que a dor, o sofrimento, o sacrifício, fazem parte do ato de criar crianças e que nenhuma mulher deve reclamar ou rebelar-se, mas sim resignar-se, e mais sentir-se agraciada afinal “filhos são um presente divino”. A ideia de que a maternidade é um lugar de divindade, e que toda mãe deve ser “adorada”, “reverenciada”, como uma Deusa, também abre espaço para muito abuso de poder onde mulheres incorporam esse mito e comportam-se com total onipotência perante seus filhos exigindo amor e respeito porque sim.
  • a mãe especial:
    esse é um mito muito ancorado no da sacralidade da maternidade. Vende-se a ideia de que mães são seres “especiais”. Isso cria uma falsa sensação de status na maternidade e mascara toda a opressão dessa condição, a ponto de mulheres que não são mães afirmarem que há “privilégios de tratamento” para as que são, antagonizando esses dois grupos. Mulheres deixam de se enxergar como iguais, pressionadas pelo patriarcado para o exercício da maternidade, para verem-se como rivais, onde mães se tornam as “preferidas”, as “paparicadas”, por terem cumprido o seu destino como mulher. Essa promessa é especialmente potente porque a estima das meninas é desde muito sendo esmagada e todas as outras possibilidades de existência e potencialidades vão sendo minadas. Meninas muito precocemente vão entendendo que seus talentos não servem ao mundo, a não ser que estejam a serviço da sedução de um homem ou da criação de filhos. Esse discurso da “mulher especial”, então, torna a maternidade um lugar desejado para muitas mulheres, um lugar onde elas entendem que finalmente terão atenção, reconhecimento social, terão algo que é uma criação sua (sim, um bebê). E é um choque para muitas quando, ao terem filhos, percebem que caíram em uma armadilha, e que se tornaram-se completamente invisíveis.
  • a mãe guerreira/heroína:
    a função do mito da mãe guerreira ou mãe heroína é romantizar o sofrimento e o abandono materno. É uma estratégia eficiente que faz com que mulheres assumam esse arquétipo diante de dados desafios da criação dos filhos, trazendo para si toda a responsabilidade de resolvê-los, e que faz com que a sociedade também “lave as mãos” diante de suas dificuldades, já que toda mãe “é guerreira”. É um prêmio de consolação emocional, uma espécie de “biscoito” psíquico que jogamos para mulheres manterem-se firmes enquanto sofrem todo tipo de horror e aniquilação na tarefa de criarem de seus filhos. Via de regra a mãe “guerreira” foi abandonada por todos e teve que fazer os maiores sacrifícios e abrir mão completamente da própria vida. E muitas vezes esse “elogio” vem dos próprios filhos como forma de gratidão e reconhecimento para a mãe pelo tremendo esforço que aquela mulher fez para criá-los. Mas de fato, quase sempre, por trás de uma mãe “guerreira”. de uma “mãe heroína” o que existe mesmo é miséria, violência, abandono do Estado, e muita exploração.
  • a mãe dotada naturalmente:
    esse é um mito muito presente e muito nocivo: a ideia de que é natural para mulheres cuidar do outro. Que mulheres “levam jeito”, que mulheres tem um “dom”, um “instinto” maternal e de cuidado. Isso não é verdade em absoluto e traz como único resultado uma idealização absurda sobre o tipo de mãe que mulheres devem se tornar. Mães que não erram, que estão sempre ali à disposição dos filhos, mães que amam naturalmente tudo que tem a ver com suas crias e com a maternidade. Essa ideia de que pode haver algum elemento inerente às mulheres para o cuidar de filhos é injusta e profundamente misógina. Injusta porque sequer considera homens nessa equação colocando todo o peso e expectativa nas costas das mulheres e misógina porque enxerga mulheres necessariamente sob uma ótica de serviço e dedicação às necessidades do outros. E esse mito também é a desculpa perfeita para homens fugirem da responsabilidade do cuidado, e para meninas serem socializadas com muito mais afinco nessa direção enquanto não é feito nenhum investimento no ensinamento dos meninos. Mulheres muito facilmente assumem todo tipo de tarefa de cuidado e sentem-se desestimuladas a cobrar ou ensinar ou delegar essas mesmas tarefas aos homens porque “eles não levam jeito pra isso”.
  • a mãe que ama incondicionalmente:
    um dos mitos mais perniciosos que ronda a maternidade é sobre o amor. Tanto o que mães sentem pelos filhos quanto o que filhos sentem pelas mães. Na maternidade, este sentimento é imposto como absolutamente necessário, verdadeiro e inequívoco, que surge sem reservas e de maneira intensa. Para as mulheres é uma espécie de “salário”, a “compensação” por todo o trabalho que ela realiza sozinha, tanto o amor que ela sentirá pelo filho (“você nunca sentirá nada igual”), quando o amor que ela aprende que filhos deverão sentir por ela (“ninguém nunca vai te amar tanto”). E essa lenda que atravessa a relação parental traz também uma visão romântica do amor. Das mães espera-se um amor abnegado, aquele que tudo doa e nada espera, o amor carinhoso e dedicado, sempre a serviço da necessidades dos filhos. Dos filhos o reconhecimento devotado de todos os sacrifícios que a maternidade impôs àquela mulher e a gratidão eterna. Como resultado existe uma série de distorções de relacionamento entre mães e filhos, onde mulheres agarram-se aos filhos e ao seu sentimento por eles como a única coisa importante e que justifica suas vidas, e cobram afeto e gratidão dos seus filhos apenas porque sim, mesmo que sua relação e sua criação seja permeada por equívocos e violências. Do outro lado há filhos romantizando as possibilidades afetivas de suas mães, querendo delas total dedicação e serviço, desumanizando essas mulheres, tirando delas o direito ao erro, muitas vezes patologizando como “narcisista” comportamentos que distem do ideal de “mãe amorosa e dedicada”. E sempre há culpa, muita culpa. Mães que sentem que não amam seu filho o bastante, ou que sentem que não tem o seu trabalho reconhecido. Filhos culpados por não sentirem todo o amor e gratidão que são cobrados o tempo inteiro.
  • a mãe perfeita:
    esse mito constrói a narrativa de que mães são perfeitas e não tem direito ao erro, ao equívoco, à dúvida, no exercício da sua maternagem. E é uma excelente e uma das principais ferramentas de controle do comportamento das mulheres porque, na expectativa de corresponder a esse ideal de perfeição, mulheres aceitam muito facilmente todas dificuldades, o abandono, a dor, a solidão, o desamparo e a exploração do seu trabalho por parte do homens. Elas envergonham-se de sentir as dificuldades de maternar, acham que o problema é com elas, que não são boas o suficiente, e tem muito constrangimento em reclamar e contar suas dores e medos. E ai não conversam sobre o que realmente acontece, não conseguem sair do personagem de mãe infalível. Porque admitir que está dificil demais é lidar com o fato de que não correspondem ao ideal de mãe perfeita, sagrada, que a tudo se doa sem reclamar. Que não são capazes de serem gratas pela benção que é ter um filho. E mulheres que ousam verbalizar para si que não se sentem “abençoadas”, que a experiência da maternidade para elas tem sido na verdade um problema, são escrachadas socialmente, punidas, e invariavelmente sentem-se culpadas.

Os mitos maternos agem assim. Romantizam. Criam a imagem de que a maternidade é um lugar especial, de júbilo, plenitude e amor. Cria um cenário tão idílico que torna-se atraente para mulheres, enquanto elas crescem sendo desprovidas de todas as outras possibilidades de estar no mundo, enquanto elas são massacradas pela ideia de que possuem um “dom” natural para maternar, que possuem um “relógio biológico”, que não possuem nenhum talento, ou utilidade, ou que não há nada mais importante que possam fazer que não seja tornar-se mãe. E uma vez lá, mães, estas mulheres se vêem completamente perdidas e ficam reféns desses mitos e de toda essa romantização porque tentam a todo custo fazer a lenda acontecer, e a sociedade, que opera essa narrativa para garantir que mulheres permaneçam desejosas e “sonhando” com a maternidade, reforça e reforça o discurso e pune as mães que ousam romper o pacto com a mitologia e falar sobre a realidade de de exploração laboral que é a maternidade. E isso opera tão consistentemente que até o tal discurso da “maternidade real” já está sendo romantizado.

Homens sabem muito bem o que significa ser pai. Tanto que adiam ao máximo esse momento (quando pretendem assumir) ou simplesmente fogem. Onde está a romantização da paternidade?

5 tipos de exemplos que adultos devem dar às crianças

A socialização de crianças ocorre a partir do dizemos para elas mas principalmente a partir daquilo que ela vê, os modelos de comportamento que ela apreende do mundo. Crianças aprendem o que ensinamos e, principalmente, apreendem o mundo a partir daquilo que elas vêem dos seus adultos de referência. Vamos para o mundo imitando esses adultos e com a maturidade é que vamos tendo possibilidade emocional e bagagem crítica para reorganizar esses comportamentos na vida. Por isso os tipos de exemplos que adultos devem dar às crianças podem ser determinantes no futuro:

  1. homens realizando trabalho doméstico
    não adianta apenas dar panelinhas para os meninos ou subtraí-las das meninas, crianças precisam ver homens e mulheres realizando todos os tipos de trabalho doméstico nos ambientes que ela frequenta, a ponto dela não ser capaz de fazer nenhuma associação de atividades a um sexo pois vê todos fazendo de tudo: lavando, passando, cozinhando, limpando, cuidando dos outros. E idealmente, ela precisa ver isso dentro da própria casa, ver todos os adultos ali conversando e realizando a divisão das tarefas da maneira mais justa possível para todos, e inclusive incluindo a criança nas pequenas tarefas.
  2. mulheres divertindo-se
    Traga na mente a imagem de mulheres da infância? Quantas estavam à toa, rindo, fazendo nada, apenas curtindo um pouco a vida? Possivelmente pouquíssimas, porque mulheres não aprendem que têm direito a isso quando chegam na vida adulta. Homens cultivam seus hobbies, tem seus esportes, carteado, videogame, encontro com os amigos no bar, e toda uma série de coisas que ocupa esse lugar de lazer e entretenimento. Para mulheres resta o trabalho doméstico, o trabalho invisível que nunca termina, e quando sobra tempo, uma novela ou série. E convenientemente mulheres ainda aprendem que “lazer” é embelezar-se, então gastam o seu pouco tempo livre dedicadas a rituais de beleza que são tudo, menos divertidos. Então faça um favor as suas crianças e divirta-se. Deixa a louça na pia e senta pra jogar videogame também, saia com suas amigas ou receba-as em casa e passe a tarde gargalhando com elas. Cultive também seus hobbies, escute suas músicas, cante alto, dance pela sala. Deixe as crianças saberem que mulheres são pessoas que existem para além do serviço, da utilidade pública e do embelezamento de ambientes.
  3. homens emocionando-se e falando sobre sentimentos
    Quase tudo que crianças veem sobre homens é com eles envolvidos em conflitos. Homens gritando, com raiva, socando coisas, resolvendo tudo no tapa e no tiro. Homens demonstrando força, brutalidade. Crianças precisam saber que homens possuem sentimentos e que emocionar-se, ter empatia, ter sensibilidade, gentileza, fragilidade não é uma prerrogativa feminina. Que os homens da vida da criança chorem junto com ela assistindo desenho animado, usem roupas coloridas, não tenham medo de dizer que erraram, pedir desculpas, dizer que não sabem, que estão com medo. Que crianças possam conhecer homens que sejam humanizados, despreocupados do compromisso de serem dominantes, desvinculados do compromisso de serem heróis, guerreiros, príncipes. Homens rebelados com o pacto de dureza que o patriarcado exige de todos eles. E que haja cada vez mais retratos desses homens (e meninos) nas narrativas midiáticas para além da caricatura das comédias românticas.
  4. mulheres reais, despreocupadas em serem belas
    Crianças precisam tomar contato com mulheres reais. Mulheres que têm pêlos, marcas, cicatrizes, seios flácidos, celulites, cabelos desgrenhados, rugas. Precisam ver mulheres despreocupadas com roupa, maquiagem, comendo e bebendo com prazer, sem contar calorias compulsivamente. Crianças precisam ver mulheres parando de autodepreciar ou supervalorizar a própria aparência e a de outras mulheres, falando coisas do tipo “nossa, como fulana engordou”, ou “meu cabelo está horrível”. Precisam ver mulheres elogiando-se sem ser pela forma física, aparência ou roupas. E parar de ver mulheres gastando horas do dia em rituais de roupa, unha, cabelo, depilação, maquiagem, para somente depois disso as ouvirem dizer que “estão ótimas”. E parar de ver concursos de beleza e mídias onde mulheres e meninas tem uma aparência absolutamente irreal e falsificada. Parar de ganhar bonecas que já chegam magras, loiras e maquiadas. Meninos e meninas precisam ter contato o tempo inteiro com mulheres reais, validando outras mulheres reais e levando suas vidas sem angústia de estar “bela”.
  5. adultos repudiando violência
    esse é o mais difícil e o mais importante. Crianças precisam testemunhar homens e mulheres repudiando a violência. E isso implica ver homens não sendo violentos com mulheres nem crianças. Isso implica mulheres não sendo violentas com seus filhos. Isso implica rever toda a nossa produção cultural que exalta a força e a violência como maneira de transitar no mundo. Crianças precisam, no mínimo, de um ambiente onde haja um esforço contínuo pelo estabelecimento de acordos, de conversas, de estratégias para resolver problemas que não envolvam gritos, agressões verbais, chantagem emocional, ameaças, agressões físicas. De um ambiente formados por adultos que abandonem o punitivismo como forma de relacionamento e aprendizado. Crianças precisam conviver com isso, e casa, na escola, na maior parte de ambientes possível. Precisam ver adultos conscientes e críticos, empenhados em combater todos os males que uma sociedade tão agressiva, violenta e voltada para a dominação dos mais vulneráveis nos causa. E como adultos, esse é o nosso principal desafio. Combater a dominância, a hierarquia e a violência que nos rege e mostrar a todas as nossas crianças que é possível vivem em comunidade sem tanto sofrimento.

Dessa forma, há algumas coisas que crianças precisam começar a VER acontecendo por aí, não esporadicamente, mas o tempo todo, na sua casa, na casa dos parentes e amigos, nas histórias que lê, que assiste. São mensagens simples mas poderosas que vão mostrando outras possibilidades, que ajudam a quebrar a lógica da exploração patriarcal e da hierarquia entre homens e mulheres, que é afinal contra o que lutamos.

A pedofilia é um projeto

A pedofilia é um projeto. Ela é definida como qualquer tipo de envolvimento de cunho sexual de adultos com crianças. Há hoje todo um “repudio” social à prática e aqui entram muitas aspas mesmo porque é preciso que, de uma vez por todas, a gente encare esse tema sob a perspectiva adequada: a pedofilia é uma estratégia masculina para garantir e manter seu poder sobre as mulheres.

E não é tão difícil de perceber isso. Basta saber para onde olhar.

Primeiro, vamos olhar os números, para entender a magnitude do que acontece.

Falando de Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde em 2018 foram registrados mais de 32 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes. De 0 a 9 anos, 75% das vítimas são meninas. De 10 a 19, as vítimas meninas somam 92%. As agressões (e por “agressões” entenda que a maioria é estupro) ocorrem prioritariamente em casa perpetradas pelo pai/padrasto ou um conhecido da família. E sim, os perpetradores são a maioria esmagadora, homens.

É uma média de 3 agressões por hora, o que significa que até você terminar de ler esse texto há uma chance muito grande de uma menina ter sido acossada sexualmente em casa pelo pai ou alguém muito próximo, em algum lugar do Brasil.

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E isso analisando dados específicos. Quando começamos a cruzar informações fica tudo muito mais nebuloso. Muitos já devem ter ouvido falar da “famosa” estatística de que no Brasil há um caso de estupro notificado a cada 11 minutos (que com a previsão de subnotificação poderia significar um estupro a cada minuto). O que não se falou é que 70% desses casos de estupro são de crianças e adolescentes. Segundo o 13º Anuário de Segurança Pública, com dados de 2018, de cada dez estupros, oito ocorrem contra meninas e mulheres e dois contra meninos e homens.

E isto estamos falando de tragédias domésticas.

Se consideramos os números de exploração sexual infantil então, os dados são alarmantes. Embora seja uma taxa bem difícil de levantar, um estudo de 2002, estimou que à época havia cerca de 10 milhões de crianças em situação de prostituição no mundo. Lembrando sempre que mulheres e meninas são 99% das vítimas de comércio sexual. E são alarmantes principalmente porque pesquisas consistentes quase inexistem, há um apagão de informação, subnotificação, omissão e silêncio. Sabemos por exemplo que crianças são 1/3 das vítimas de tráfico humano no mundo, sendo 70% delas, meninas. De todas as vítimas de tráfico humano mundial, aliás, meninas representam 20%. Com fins de exploração sexual para 59% dos casos. Isso sem falar nos números de pornografia infantil, que são explosivos.

E aqui falando apenas das práticas “ilegais” ou “forçadas”. Porque há as “legalizadas”. O casamento infantil é uma realidade no mundo inteiro e é a forma em que o Estado endossa a tomada de poder sobre corpo de crianças, de maneira absolutamente institucionalizada e naturalizada. Podemos então começar dizendo que no mundo hoje cerca de 21% das mulheres casaram antes de cumprir 18 anos. São 650 milhões de mulheres. E todo ano, 12 milhões de adolescentes menores de 18 anos contraem matrimônio. A idade de consentimento para casamento é uma discussão bastante recente, que muitos países não se interessam em fazer, ou tem legislações que são absolutamente coniventes com o abuso. Como permitir o união com menores após a emancipação feita pelos pais (que como resultado incentiva desde venda de menores até autorização para “salvar a honra” perdida por conta de estupro). E não há tantas diferenças assim com relação a cultura ou nível de desenvolvimento, Estados Unidos e Canadá estão tão mal posicionados no mundo, em termos de proteção a essas adolescentes, quanto o Afeganistão, Nigéria, Tanzânia e outros países da África.

Brasil é o quarto país do mundo em índice de casamento infantil e segundo o Censo 2010, pelo menos 88 mil meninos e meninas com idades de 10 a 14 anos estavam casados. Na faixa etária de 15 a 17 anos, eram 567 mil.

E tudo isso para dizer que a pedofilia seja de forma ilegal (quando há legislação protetiva) ou ilegal (quando amparado pela legislação) é uma atividade amplamente enraizada, disseminada e praticada em toda a nossa sociedade. Que a maioria esmagadora das vítimas são meninas e que a maioria esmagadora dos perpetradores são homens.

E aí cabe então agora entende como isso se estabelece e por quê isso acontece.

Eu já falei um pouco aqui sobre cultura do estupro, sobre como homens e mulheres são socializados para normalizar abuso e violência sexual como ritual de sedução. Mas para esse raciocínio ficar completo é preciso entender que o pensamento pedófilo faz parte da socialização masculina e é o principal traço da nossa cultura. Meninos aprendem a desejam mulheres jovens e aprendem a manter esse desejo mesmo quando adultos. E é bem fácil perceber isso.

Antes, é preciso um parêntese de que esse constructo cultural, como conhecemos hoje, foi reforçado principalmente no último século com advento da TV e demais mídias de comunicação de massa. Tanto como um reflexo do pensamento predominante quanto como uma necessidade de driblar o tabu que passou a ser criado quando finalmente a infância foi reconhecida como uma parte vital do desenvolvimento humano, gerando verdadeiras batalhas para criar barreiras de proteção à infância. E isso tanto é verdade que as legislações que regulam a idade de casamento infantil são absolutamente recentes. Na regra, antes disso, a prática de venda ou troca de meninas em matrimônio (como um produto mesmo) eram um negócio familiar, e não havia absolutamente nenhum constrangimento em desposar meninas mal tivessem atingidas a idade púbere.

Pesquise com que idade sua avó ou bisavó tiveram seu primeiro filho e descubra por si mesma.

Então, alguns desses parâmetros que cito aqui, nos são muito próximos e atuais e refletem um estabelecimento de uma cultura da pedofilia organizada em parâmetros muito mais sofisticados em função das possibilidades tecnológicas e com função de preservar e reinserir a lógica naturalizada de homens acessarem livremente — e sem tabu — os corpos de meninas.

Por exemplo, nós mulheres somos proibidas de envelhecer, já notaram? O homem “maduro” é sábio, charmoso, experiente. Já a mulher entra em completo pânico ao ver o primeiro cabelo branco na têmpora pois sabe que está obsoleta no mercado. Está “velha”. Deixa de ser objeto de desejo, deixa de ser “fodível”, não consegue mais inserir-se nos mesmos espaços (inclusive mercado de trabalho), fica refém — e é cobrada por isso — de um sem número de procedimentos estéticos para “prolongar a juventude”. Porque toda mulher sabe que homens querem estar do lado de mulheres jovens.

E mais, o ideal de beleza que nos é exigido reflete não só a necessidade de manter um ar de “juventude”: o apelo (vendido pelas imagens padrão da mídia, publicidade, e indústria da beleza e moda) é de uma mulher pequena, frágil, de “pele suave”, depilação total, ausência de manchas, rosto corado, magra, sem nenhuma gordura, corada, jovial, sexy mas “angelical”.

Pensem. Quem tem essas características primárias? Quem tem pele lisa e sem manchas, ausência de pêlos, pouca gordura corporal, rosto e lábios corados? Quem tem estatura pequena e frágil? Com quem essa descrição parece?

Se você não sabe eu digo: crianças.

Mulheres adultas têm pêlos, acnes, gordura, cheiros, rugas, estrias, celulites, cicatrizes e tudo mais. Ou deveriam ter. Porque homens ostentam isso tudo sem pressão, a eles é permitido crescer e envelhecer. Mas mulheres são permanentemente pressionadas para manterem um corpo e um rosto adolescente se quiserem ser atraentes. Porque homens só legitimam a beleza pré-pubere. E essa imagem de que tipo de mulheres homens devem desejar é reforçada pela mídia e principalmente pela pornografia.

Jennifer Aniston. 20 anos e mesma cútis com algum botox a mais

Homens são incentivados a “trocar” sua esposa de 40 por “duas de 20”, efetivamente ostentam relacionamentos com mulheres 20, 30, 40, 50 anos mais novas. Muitas delas que começaram a se relacionar quando ainda eram menores de idade. O abuso é romantizado com o papo de que “amor não tem idade” ou a velha história de que “meninas amadurecem primeiro que meninos”, ou que “ela era diferente e mais madura pra idade”.

Toda a nossa mídia está recheada de meninas e adolescentes sendo aliciadas para performar o papel de “ninfetas”, de “lolitas” sedutoras dos pobres homens que não podem ver uma “cabrita”. A rivalidade entre mulheres mais velhas e mais jovens é absurdamente estimulada a ponto de adolescentes serem culpabilizadas pelos assédios que sofrem de homens adultos casados que não respeitam seus relacionamentos. Meninas e jovens que são terrivelmente sexualizadas e estimuladas a buscar reconhecimento e aceitação social a partir do reconhecimento de sua beleza e da aprovação masculina que surge na forma de assédio. Não precisa ir muito longe, uma busca no instagram revela o perfil de diversas crianças e adolescentes absolutamente pornificadas.

Mc Melody, 12 anos

Nossa sociedade acolhe homens abusadores e pedófilos. A lista de homens famosos acusados de envolver-se sexualmente com menores é incalculável. Celebridades que nunca tiveram uma vírgula de sua reputação sendo afetada. E nem terão. Escândalo após escândalo, seguimos anestesiados diante do volume de casos, achando que tanta violência são causadas por “monstros”, simplesmente porque é difícil demais admitir que o que vemos é uma regra e não uma exceção: homens são criados para serem predadores sexuais de meninas.

E não pára por aí, a tentativa de institucionalização da pedofilia é real, consistente e faz avanços. Existem inclusive várias e várias tentativas organizadas de normalizar a pedofilia como uma orientação sexual, todo um ativismo pedófilo, antiquíssimo, que teve seu auge no final da década de 70/80, sofreu algumas derrotas ao longo da décadas de 90/2000 e agora está ressurgindo disseminado pelas redes travestido de “diversidade”. Existem leis como a Alienação Parental que foi toda formulada por uma teoria rejeitada em diversos países e sem nenhuma comprovação científica, criada por uma figura comprovadamente pedófila, que como resultado da aplicação tem mantido crianças em situação de abuso na guarda dos seus perpetradores. Em 2005 no Brasil, ainda vigorava uma lei que permitia que estupradores escapassem da cadeia caso casassem com suas vítimas.

A pedofilia não é uma “doença”, essa é mais uma tentativa de patologizar o comportamento masculino e causar empatia e uma falsa sensação de segurança nas mulheres, dando a impressão que só “alguns” homens são perigosos, que são pessoas “adoecidas”, que “sofrem” e podem “curar-se”. Mas se a pedofilia é uma doença de alguns, alguém me explica todos os números apresentados acima? Me explica como a idade média do primeiro assédio de qualquer mulher é anterior aos 10 anos de idade? Por homens adultos? O hábito de homens serem os iniciadores sexuais de suas filhas é uma prática tão naturalizada em algumas regiões do Norte do Brasil, por exemplo, que surgiu a lenda do “boto” que engravidava meninas pra justifica a alta taxa de gravidezes incestuosas. Essa “doença” é uma pandemia global? Porque nem coronavírus atinge tanta gente.

Apenas observem os homens. Seus hábitos, seus focos de desejo, seus fetiches, o que produzem em termo de cultura, o que pensam e dizem sobre meninas. Homens aprendem a desejar sexualmente essas crianças e adolescentes e alimentam toda uma industria de comercialização de corpos jovens, enquanto forçam mulheres a nunca parecerem velhas demais, enquanto violam meninas e as seduzem chamando de “amor”.

E tudo isso por qual motivo?

Bom, essa resposta é “fácil” e relativamente curta. Para manter o sistema de dominação de homens sobre mulheres ativo e operante.

Existe maneira mais eficiente de dominar uma mulher e tomá-la para si, ao seu serviço, do que capturando-a ainda menina? Do que submetendo-a sexualmente? Engravidando-a e a retirando da vida pública? Onde ela não poderá estudar, trabalhar, ser ativa, disputar espaço, pois estará completamente mergulhada nas tarefas de cuidados de casa e filhos? Sempre dependente economicamente porque não terá como acumular nenhuma riqueza própria, formar nenhum patrimônio?

Pensem na vida das avós de vocês. “50 anos de casamento”. Pergunte-as pelo que elas passaram, o que aturaram, o quanto serviram caladas, a que foram submetidas. Essa realidade não dissipou-se, ela é absolutamente real ainda para muitas e muitas de nós. Hoje, neste momento.

A exploração sexual infantil é um subproduto do casamento infantil porque o mundo patriarcal é um mundo que sempre entregou mulheres para o abate assim que atingissem a puberdade. E ainda entrega, mas agora de diferentes maneiras.

E o objetivo é sempre o mesmo: manter mulheres sob uma lógica de submissão e subalternidade, reproduzindo filhos e mantendo a roda do capitalismo girando. As estratégias se especializam, mas o objetivo do patriarcado não muda.

E é por isso que qualquer coisa que passe por combater práticas de pedofilia precisam levar em conta a engrenagem de como as relações entre homens e mulheres está estruturada. Então não passa apenas por dar “educação sexual”, ou mesmo de criar leis punitivistas, ou legislação protetiva. É preciso implodir a lógica de dominação sexual de homens para meninas e mulheres. Precisamos ver a pedofilia como ela é: uma estratégia de guerra de homens contra mulheres, inserida no coração do patriarcado. Uma maneira de manter mulheres acossadas com suas crianças, eternamente com medo de violência sexual. Crianças e mulheres por mais “educadas” que estejam pra reconhecer os agressores não dão conta de defender-se porque a realidade é que as agressões e as ameças e a violência está por toda parte. Basta olhar.

Precisamos de um pacto social verdadeiro pela proteção das nossas crianças, que implica no reconhecimento do homem como sujeito perpetrador da violência física e sexual contra mulheres e crianças. E que responsabilize, cobre, exija uma compromisso de todos que dizem repudiar essa realidade patriarcal.

Que homens que dizem se importar e indignam-se com tanta dor causada tenham coragem de rebelar-se, trair o patriarcado que significa trair todos os outros homens que compactuam com esse sistema de opressão. Não basta e não é justo pedir que mulheres deem conta de eternamente defender-se e as suas crias, de entregar suas vidas ao inimigo. Precisamos desmantelar essa máquina, entendendo como ela funciona, sem paliativos e principalmente sem ingenuidade. Porque é a vida de meninas, todas as meninas, que está em risco constante.