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Como proteger nossos filhos da cultura do estupro?

Como proteger nossos filhos da cultura do estupro? Esta é uma pergunta que assombra toda e qualquer pessoa comprometida com a criação dos filhos.

Todo homem é um estuprador em potencial, dizem. Essa frase é incomoda para homens e um choque para muitas mulheres. Principalmente para mães de meninos. Como assim aquele menino tão doce que ela aninha no colo é um potencial estuprador de mulheres? Pois é. Isso não quer dizer que todo homem estupra. Mas quer dizer que qualquer homem poderia estuprar uma mulher. Porque homens estupram. Não tem uma etiqueta na testa com selo de decência para sabermos quais oferecem segurança e quais não oferecem.

Quando pensamos em estupro, pensamos no ato violento, forçado, coercitivo. E então muitos homens respiram aliviados por sentirem-se fora dessa equação. No entanto se pensarmos nas fronteiras embaçadas de consentimento que nos são ensinadas, o número de homens que cometeu alguma violência sexual é infinitamente maior do que imaginamos. Quantos não roubam beijos, acariciam mulheres de maneira inconsentida? Quantos homens não fazem sexo com sua parceira sem estar realmente preocupado se ela está com vontade, ou mesmo se ela também está aproveitando a experiência?

Que mulher nunca transou com o marido ou namorado sem estar com nenhuma vontade, por senso de “obrigação”? Pela ameaça velada de traição “se não transar com você vou ter que transar outra”? Ou porque o “não estou com vontade” foi solenemente ignorado e homens permaneceram insistindo tanto que ela acabou cedendo para ter sossego? A ponto de originar a clássica piada sobre a desculpa da “dor de cabeça” para não transar. Ou a de ficar “escolhendo a cor que vai pintar o teto” enquanto faz sexo. Isso não é engraçado. Isso é muito violento. Mulheres terem que inventar que estão doentes ou indispostas para que seus companheiros desistam de querer um sexo que ela não está com vontade de realizar é cruel demais. Um sexo que muitas vezes aquela mulher não quer fazer simplesmente porque é ruim. É um sexo onde ela não tem nenhum prazer, não é uma experiência que ela aproveite. Que ela finge ter um orgasmo para ver se aquilo acaba de uma vez e ela pode voltar pra ver novela. Um sexo que é visto como um mal necessário a alguma estabilidade e paz na união que ela está, que “não custa nada”.

“É rapidinho”, “depois você vai gostar”, “não custa nada”, eles dizem.

Vejam que perverso:

Homens aprenderam que sexo é para eles, é sobre eles. Que apenas eles têm prazer dessa experiência. Que seu corpo tem “necessidades”. Que é “instinto”. Que ele é um animal sexual cujas gônadas vão explodir se ele não transar. Que ele não pode se conter. Que eles devem conquistar e foder o maior número de mulheres possível porque é isso que prova que ele é macho e viril.

Mulheres aprenderam que sexo é uma coisa “suja”, que boas mulheres sequer gostam de sexo, aprenderam que homens é que devem “fazer a mulher gozar”, como se apenas eles soubessem os segredos sobre o corpo de uma mulher. Mulheres aprenderam que não sentem desejo. Que são frígidas. Que gozar é difícil. Que não devem tocar-se. Que é normal o sexo ser ruim. Que devem fazer sexo com o menor número de homens possível, porque isso é prova que ela tem dignidade moral. E mulheres aprenderam que só são valorizadas se forem dignas. Se forem “direitas”, se forem “puras”. Porque o sexo macula.

O sexo é uma coisa mundana. E o homem é que é do “mundo”. Mulheres são do confinamento do lar, da domesticidade.

Homens aprenderam que mulheres valorosas não devem gostar de sexo. Ou melhor, mulheres podem até gostar depois que conhecerem “o homem certo”. Então homens tem a noção distorcida de que mulheres acham que não gostam de sexo e nunca querem sexo porque ainda ninguém lhes mostrou como sexo é bom. E que por isso recusam. Por isso O recusam. Então ele deve insistir, insistir, insistir, até ela ceder. Porque no final, ela vai gostar.

Mulheres aprenderam que não devem demonstrar que querem sexo, mesmo que queiram muito. Porque mulheres que cedem na primeira tentativa já sabem que sexo é bom. Portanto já tiveram sexo com outro homem. Já gostam. Não são mais “puras”, já não tem mais tanta moral e dignidade. Perderam o “valor”. Porque o “valor” de uma mulher está exatamente localizado entre suas pernas na nossa sociedade. Não à toa mulheres são, por séculos, coagidas e punidas por não manterem suas “virgindades”. Não à toa, até hoje, um hímen intacto faz fortuna em leilões.

Dessa forma, quanto mais rápido mulheres cedem, mais isso indica que elas tiveram muitos parceiros, porque talvez ela goste muito mesmo dessa coisa de sexo e vá transar com qualquer um. E mulheres não podem transar com quem quiserem, porque vai que ela engravida, como saber quem é o pai? Como garantir que o homem que está espalhando sua semente está criando um herdeiro que é seu?

Então mulheres aprenderam que devem sempre dizer não, numa tentativa de “valorizar-se” e que deve deixar o homem “conquistá-la”, que nada mais é do que tentar persuadi-la a ter sexo com ele, e quem sabe nesse meio tempo descobrir que ela é uma mulher digna o bastante para ele querer ter uma família com ela. Se a fórmula funcionar bem e ela conseguir sustentar esse jogo por tempo o suficiente, homens podem inclusive casar com ela no recurso último de finalmente transarem. E assim mulheres obtém o que elas aprenderam que é importante — e que não é sexo — mas “ter um lar e um marido”.

Portanto a boa mulher sempre nega sexo, o bom homem sempre insiste apesar do não. A vontade da mulher que gera um consentimento verdadeiro é relegado a segundo plano. A recusa da mulher é sempre desconsiderada porque faz parte do jogo da conquista. Mulheres não tem direito real de dizer não às investidas sexuais masculinas.

Essa lógica tem um nome. É cultura do estupro.

E como isso opera, na prática? Antigamente, essa ideia desdobrava-se simplesmente com homens capturando mulheres e estuprando-as abertamente, para satisfazer seus “instintos primitivos”. Ou comprando-as dos seus pais em casamento quando queriam aliar a necessidade de sexo com a obrigação social de constituir família, deixar herdeiros e outros arranjos de ordem puramente comercial.

Modernamente o homem não compra mais a mulher em casamento, cultiva-se a ideia de “amor romântico” mas permanece a lógica comercial nas relações de que ele deve conquistá-la através de exibicionismo financeiro, seja porque mulheres são fúteis e gostam mesmo “é de dinheiro”. Seja porque mulheres aprendem que um “homem bom” é aquele que demonstra solvência financeira para prover uma família. Então a lógica da negociação sexual que não passa pela violência direta ou velada pula direto para a estratégia de compra. Presentes, jantares, jóias, viagens.

Antes da violência pura e simples, tenta-se comprar o consentimento com o nome de “conquista”.

Pense em todos os contos de fada que você já leu. Quem é o príncipe? O homem rico que dá a mulher uma vida de “princesa”. E o que é ter uma vida de “princesa”? Uma vida de luxo, riqueza e ostentação. O príncipe é desobrigado de ser um cara minimamente decente. O príncipe da Branca de Neve dá o primeiro beijo nela quando ela está desacordada (!!!), o príncipe da Bela e a Fera… é uma fera, literalmente. O príncipe da Cinderela dá uma festa pra escolher um mulher como se fosse fazer compras no supermercado. Nem nome esses personagens tem. Nem muito bonitos eles precisam ser também (a Fera que o diga), mas o que todos eles têm em comum? São estupidamente ricos.

Pense em todos os filmes românticos que você já viu. Nos livros que você já leu. O homem ideal, ideal mesmo, é sempre rico e bem sucedido, ou pelo menos muito promissor. Ele não precisa ser bonito necessariamente. E ela sempre é estonteantemente bela. A ideia de “romance” e “conquista” começa a acontecer quando o homem começa a dar coisas ou levar a mulher para fazer coisas (jantares, festas, etc). Já é pré-estabelecido no ritual da paquera que homens pagam a conta ao passo que mulheres devem comparecer estupidamente bonitas para agradar e alimentar o desejo masculino. Ele paga o motel já que ela… fez sexo?

Aprendemos a ser “sensuais”, “sedutoras”. A manter a chama do desejo e a imaginação masculina sempre ligada nessa voltagem da caçada. Por que homens não aprendem que precisam ser sensuais? Por que não existem signos de sensualidade para homens? Porque o homem não precisa se preocupar com o desejo feminino de maneira nenhuma. Não é importante.

Mulheres casam e ficam reféns dos seus maridos caso não tenham autonomia financeira. Porque o trabalho doméstico e de cuidado com os filhos não é visto como trabalho e a mulher muitas vezes está presa em casa sem nenhuma possibilidade de gerar a própria renda e homens lhes cobram sexo como se elas lhe devessem um favor. Que ela faz porque “ele coloca tudo dentro de casa”. Como se comer a comida que ele compra e que ela cozinha todos os dias precisasse ser paga. E sexo paga. E homens cobram. Muitos homens não querem que mulheres trabalhem ou tenham sua própria renda porque mantém essa lógica de dominação nos seus lares. Querem sua escrava sexual particular.

Normalizou-se uma lógica de coerção financeira para a negociação sexual onde como sempre a vontade da mulher em fazer sexo é secundária. Ela é um corpo sendo negociado. Sexo é deslocado do lugar de uma coisa que é feita por duas pessoas que se desejam e querem obter prazer daquilo, para ser um “serviço” que mulheres podem prestar aos homens.

“Mulheres são interesseiras” eles aprendem, “só querem o seu dinheiro”. “Homens só pensam em sexo”, elas aprendem, “fazem qualquer coisa por isso”. “Por que não? Não custa nada.”

A prostituição não é um trabalho mas talvez seja realmente uma das práticas mais antigas do mundo porque mulheres sempre foram mais vulneráveis financeiramente e são coagidas de inúmeras formas a fazer sexo com homens desde tempos imemoriais. Já que a vontade dela, a necessidade dela, o desejo dela, o orgasmo dela, o querer dela, é desprezível, e desprezado. A prostituta ocupa o lugar de fornecer o sexo com o menor esforço possível antes de se apelar para o uso da violência física.

E no desdobramento mais violento homens simplesmente tomam mulheres à força. Porque “no fundo ela quer”, ela está “fazendo cu doce”. Homens aproveitam-se de mulheres bêbadas, homens dopam mulheres, homens aproveitam-se de mulheres dormindo, mulheres inconsciente, mulheres em coma. E saem rindo e pensando “tenho certeza que ela está gostando”.

Estupro é sobre poder porque homens nesse momento expressam toda sua misoginia e todo seu ódio e sentem prazer na subjugação do corpo feminino e no seu sofrimento explícito. Mas estupro é também sobre sexo porque homens aprendem que o consentimento feminino não é importante e que ele pode obter sexo de qualquer mulher, a qualquer momento, usando qualquer recurso, caso queira. Muitos homens sequer se dão conta de que aquilo que estão fazendo com aquela mulher é estupro, “porque ela não gritou”.

Isso é tão extremo que muitos homens que não conseguem obter sexo passam a odiar tanto mulheres que se declaram celibatários voluntários. Também conhecidos como Incels. E se reúnem online para planejar, noite e dia, o massacre de mulheres que acreditam que nunca fariam sexo com eles espontaneamente. E depois saem metralhando escolas e cinemas.

Na pornografia você vê mulheres sofrendo violências terríveis que são mostradas como sendo um ato sexual. São penetradas violentamente, são espancadas, são humilhadas, são xingadas. E as atrizes, apesar da dor física, emocional e psicológica que estão sentindo estão ali coagidas e sendo pagas para fingir que gostam. Homens aprendem que mesmo com violência, elas gostam.

Pornografia é estupro filmado. É como meninos e meninas aprendem que sexo se parece.

Cultura do estupro.

Todo homem é um estuprador em potencial. É no que a sociedade transforma os nossos meninos. É a mensagem que é passada para eles o tempo inteiro. Que o consentimento, que a vontade feminina, não é importante. Que eles devem obter sexo custe o que custar, porque é isso que homens fazem.

Ensinem suas meninas a dizerem sim quando quiserem dizer sim, a conhecerem o próprio corpo, o próprio desejo, permitir que sejam seres sexuados e que possam relacionar-se de maneira saudável com isso. Que elas não entrem nesses jogos perversos e desnecessários de conquista. Ensine a ela que se tudo o que um menino quer dela é obter sexo, ela fará se estiver com desejo, com vontade honesta. Que ela fará porque quer obter prazer da experiência. Sempre, não apenas às vezes. Não apenas em um evento mágico e aleatório. Mulheres podem e devem ter orgasmos em 100% dos seus intercursos sexuais assim como homens conseguem. E que elas possam fazer sexo ou ter qualquer contato físico, seja um beijo, seja um aperto de mão, no exato momento em que tiverem vontade. Seja na primeira vez que se conheceram, seja no décimo encontro. E que se aquele rapaz que ela está saindo não puder esperar e respeitar isso, então ele simplesmente não vale a pena.

Diga a sua menina para dizer não quando quiser dizer não. Que consentimento não se compra. Que custa sim. Que um beijo sem vontade custa. Que receber toques no seu corpo quando não se está com desejo custa. Que transar sem estar excitada de verdade custa muito. Que ela é o corpo dela. Que ela não deve desassociar-se. Afastar a mente do corpo de tal forma que ele possa ser usado por um homem como se fosse uma casca vazia. Diga a sua menina que ela não tem preço e que ela é uma pessoa.

Diga a seu menino que ele é uma pessoa inteira e que a vida não gira em torno das proezas que o pênis dele realiza. Que ele não é apenas um ser sexuado e que seu valor não pode ser medido em função do número de mulheres que ele transou. Porque sexo é uma coisa íntima, privada, e não é dá conta de ninguém. Não é um troféu que ele deve ostentar. Mulheres não são troféus. Sexo não é olimpíada onde ele ganha medalhas pelo número de coitos obtidos. Ele não precisa provar nada para ninguém. Que o peso da virilidade é pesado demais. Vamos tentar desassociar essa ideia da competitividade sexual entre os homens que querem provar sua macheza a todo custo.

Diga ao seu menino que ele deve acatar o não quando ouvir o não. Que consentimento não se compra. Que o sexo é algo que deve servir para satisfação de todos os envolvidos. Que se a pessoa que estiver com ele não tiver dado o consentimento expresso da vontade e do desejo dela em estar envolvida no ato, ele está cometendo uma violência. Que o universo não gira em torno do desejo dele. Que nenhum desejo é soberano à custa da violência sobre o outro.

Vamos desmistificar a ideia da “conquista”. Esse conceito parece romântico mas embute uma noção extremamente perigosa. Para todo conquistador existe um conquistado. E esta é uma relação de dominação, de subjugação do outro. Vamos ensinar as nossas crianças que sexo é fruto do desejo surgido através do feliz encontro entre duas pessoas. É decorrência de sentimentos que naturalmente surgem quando sentimos atração, temos compatibilidade e vamos nos relacionando com o outro. Que sexo não é o objetivo final do relacionamento entre um homem e um mulher, mas sim uma relação de afeto, companheirismo e amizade. Onde esse casal faz sexo um com o outro porque se deseja e porque é bom. E onde o sexo não é uma obrigação e sua falta não será o fim, porque uma relação contém inúmeros outros elementos igualmente ou muito mais importantes.

Vamos ensinar homens a verdadeiramente amar mulheres. Querê-las como amigas, companheiras, parceiras. Querer unirem-se a elas porque as admiram, e não porque elas são um corpo a mais para que eles consumam sexualmente. Só assim vamos conseguir algum avanço nesta sociedade onde sim, todo homem é um estuprador em potencial, vivemos imersos em uma cultura do estupro, então precisamos conversar sobre sexo com nossas crianças, mas precisamos deslocar toda a lógica que rege a maneira como nos relacionamos com o tema. Precisamos conversar sobre amor.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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