Mulheres aprendem que devem sexo. E homens aprendem a cobrar.

Mulheres aprendem que devem sexo e homens aprendem a cobrar. Falamos sobre assédio, estupro e abuso, tentamos buscar maneiras de ensinar nossas meninas a se defender mas muitas vezes ignoramos que vivemos em uma cultura que organiza a relação entre homens e mulheres com base na compulsoriedade sexual onde meninos aprendem que podem – e devem – tomar sexo para si no momento que desejarem e mulheres que negam podem ser coagidas.

Falamos sobre assédio, explicamos, mas falamos sobre consentimento em bases incompletas, fazendo parecer que basta dizer “sim”. Não dizemos que o “sim” não é suficiente se ele for obtido em bases coercitivas, se for para agradar, se for para não ser importunada, se for para obter alguma vantagem.

Não falamos abertamente para mulheres que elas têm direito absoluto de sentir desejo de fazer sexo. Tesão. E que tem direito a não fazer sexo quando não estão com vontade. Que quando fazemos algo sem desejo não é consentimento é concessão. E ceder não é consentir. Cedemos por muitos motivos e homens se especializam em manipular, chantagear, subornar, ameaçar, coagir mulheres até que elas cedam. E não se importam com o real desejo da mulher, apenas querem que elas cedam e então chamam hipocritamente isso de consentimento. E mulheres, sem saber que têm direito a ter vontade, assumem a culpa por envolver-se em uma relação de abusividade nas quais são puramente vítimas.

Falar sobre assédio é falar sobre recusa. Sobre direito a mulheres recusarem qualquer tipo de abordagem, de proposta, de presença masculina se assim desejarem. De não serem coagidas a serem receptivas, simpáticas, amáveis, com quem não estão dispostas a ser. Sobre poderem dizer não e sair de uma interação a qualquer momento, não importando se em algum momento ali elas também quiseram ou desejaram.

Meninas precisam aprender a conhecer os mecanismos da socialização que a deixam expostas a manipulação masculina. Precisam fortalecer-se para fazer valer sua recusa e também para poder participar de interações amorosas e sexuais de maneira saudável, não-hierarquizada. Que possam flertar em paz, sem isso significar um sinal verde para que sejam violadas.

Não é função da mulher cuidar da higiene do companheiro

Um grande desafio que mulheres enfrentam nos seus relacionamentos é entender que não é sua função cuidar da higiene do companheiro. E isso por causa de uma socialização que começa na infância. Meninas aprendem que autocuidado é embelezar-se (para aprovação masculina) e essa lógica ricocheteia e meninos aprendem a repudiar tudo que tem a ver com higiene e autocuidado por ser considerado “coisa de mulher” e consequentemente “frescura”. Uma ameaça ao ideal de virilidade que homens precisam ostentar a todo custo.

Homens também não se preocupam em cuidar de si, é bom dizer, porque crescem com a percepção de que sempre haverá uma mulher ali, monitorando sua saúde e seus hábitos de higiene. Avisando que está na hora de cortar o cabelo, comprando roupas novas, sugerindo cortes de cabelo, comprando produtos de higiene, mandando pro banho, limpando o banheiro que eles sujam. Não amadurecem e não adquirem uma verdadeira autonomia.

E os homens que fazem o básico, saber se cuidar, são tão raros que são considerados “diferentes”, “especiais”. Mulheres sentem-se “afortunadas”, apenas se o companheiro não for um porcalhão completo. E é tanta negação do hábito de autocuidado que homens que são asseados tem sua sexualidade questionada, ou mesmo questionam-se se não são “femininos”, como se gostar de banho, gostar de sentir-se “bonito”, cheiroso, andar limpo, fosse uma prerrogativa de mulheres.

Mulheres precisam compreender que não são responsáveis pela higiene dos seus companheiros, ainda que exista essa expectativa implícita. Seu companheiro é um homem adulto e ter que gerenciar a maneira como ele se limpa para poder ter alguém higienizado ao seu lado é um absurdo que já naturalizamos porque aprendemos que é normal maternar nossos companheiros. São aos filhos que devemos orientação para que aprendam o padrão de higiene e saúde desejado e façam a manutenção disso por sim mesmos a medida que crescem.

Por mais difícil que isso seja, uma pessoa que seja responsável pelo próprio asseio, que tenha autocuidado, preocupação com a própria saúde é o mínimo de onde você deve partir dentre inúmeros outros critérios na hora de escolher alguém com quem compartilhar a vida. Não normalizem a pouca higiene! Não se relacionem com homens que não tem capacidade de manter a própria bunda limpa! Busquem homens adultos, autônomos e autossuficientes de verdade.

As 3 leis do patriarcado para os meninos

O patriarcado é o sistema social que produz a dominação masculina na sociedade. Dessa forma, há 3 leis do patriarcado para os meninos que eles devem aprender para que cresçam e se tornem os homens que garantirão a manutenção dessa estrutura de poder, que sustenta-se através da exploração sexual e reprodutiva de mulheres.

Esses conceitos embora não sejam ditos abertamente, tampouco são ensinados de maneira “sutil”, ao contrário, estão presentes em cada elemento da nossa cultura, nos valores das nossas instituições, nos nossos símbolos, no nosso imaginário social. E por isso é preciso muita atenção tanto para reconhecer quanto para assumir uma postura crítica cada vez que uma dessas três normas são apresentadas aos meninos:

  1. homens têm a supremacia: 
    para onde meninos olham são apresentados a modelos da supremacia, dominação e onipotência masculina. Deus é homem. Assim como os reis, a maioria esmagadora dos líderes mundiais, todas as grandes figuras históricas, cientistas, artistas. Todas as figuras admiráveis por seus feitos e contribuições para a humanidade. Nos filmes, desenhos, os protagonistas são homens. Se não são protagonistas tem mais tempo de tela, mais falas. E quando se olha em volta vê o pai, amigos, parentes, vizinhos, todos homens comuns, sendo sempre em alguma medida servidos por mulheres. E ele nota como, mesmo sendo criança, já possui privilégios de tratamento em relação a meninas, seja no próprio núcleo familiar, seja na escola, ou em outros ambientes. É muito fácil para um menino, principalmente se for branco, com dinheiro, crescer com a noção de que é o centro do universo. O mundo é masculino e são homens que dominam a história, economia, os governos, a produção cultural, a ciência, indústria, mercado, tecnologia, entretenimento. Em toda parte são homens produzindo sobre si e para si e meninos aprendem muito claramente que são os herdeiros da terra. Mas não existe um dominador sem os seus dominados e a segunda lei do patriarcado que meninos aprendem é sobre reconhecer quem serão seus servos.
  2. mulheres são inferiores e existem para servir ao homens: 
    a primeira coisa que meninos aprendem sobre si é que eles não são meninas. E que ser uma menina é a pior coisa que pode acontecer visto que elas são a medida de tudo que é inferior e indesejado na sociedade: se meninos são fortes, meninas são fracas, se meninos são rápidos, meninas são lentas, se meninos são espertos, meninas são tolas, se meninos são inventivos, meninas são fúteis, meninos são legais, meninas são chatas. “Menina”, “mulher”, é sinônimo de imperfeição e motivo de escárnio, e nenhum menino quer “parecer mulherzinha”, “correr como menina”, “chorar como menina”, “andar como menina”. O que meninos aprendem sobre meninas é que elas são o outro, são a negação de si, são o oposto, o fraco. Se meninos aprendem que são superiores, muito rapidamente entendem a quem são superiores: às meninas. Homens não aprendem a amar mulheres. Não aprendem a admirá-las, não conhecem seus feitos, suas grandes obras, suas descobertas. Não se interessam pelo que pensam, pelo que produzem. Ao contrário, aprendem a desprezar mulheres, a sentir “nojo”, e isso tem nome: misoginia. Uma única coisa é mostrada à exaustão sobre mulheres como aquilo que deve ser desejado, ambicionado e conquistado: o corpo feminino, seu sexo. Porque mulheres são desumanizadas e objetificadas. Uma única coisa é ensinada que mulheres tem a oferecer para homens: seus serviços de cuidado do lar e dos filhos, preferencialmente homens, para que ele transmita seu legado. Meninos aprendem que mulheres existem para servi-lo, que o corpo feminino existe para excitá-lo e dar prazer, que o ventre da mulher existe para gerar seus filhos, e que ele tem o direito de tomar uma mulher para si quando quiser. E mais, aprendem que só são homens com H maiúsculo quanto tomam o maior número de mulheres possível para si. Essa é a mensagem que é passada em toda parte, desde a Bíblia, até repaginada em qualquer comédia romântica blockbuster da Netflix. E meninos aprendem então a terceira lei do patriarcado, que é qual a estratégia para manter a dominação sobre mulheres, e sobre tudo mais que quiserem.
  3. a violência é o recurso para transitar no mundo
    meninos aprendem que a violência e a agressividade são características não só aceitas, mas desejáveis e valorizadas, na sua personalidade. São incitados a demonstrar uma pretensa “virilidade” traduzida em um comportamento agressivo, dominante, impaciente, vendido como característica “intrínseca” a “machos”, como sinal de “muita testosterona”. Meninos são estimulados a “não deixar barato”, a “falar grosso”, a gritar para se impor. Toda a nossa cultura vende a ideia de homens “fortes”, “conquistadores”, “heróis”, sempre usando a violência. Intimidar, humilhar, bater e matar pessoas são recursos validados desde sempre como forma de “defesa”. E meninos são massacrados com essa ideia, precisam o tempo inteiro provar sua “virilidade”, “que não choram”, “que não tem frescura”, “que aguentam”, que “não são mulherzinhas”. Meninos que não demonstram força, agressividade, disposição para violência, impiedade, são rejeitados, humilhados, taxados de “afeminados”. Quando não agredidos, “para aprender”. Porque é através da intimidação e do medo, que meninos aprendem que devem buscar o que querem. Para homens ser amado, respeitado é o mesmo que ser temido. E eles esbaldam-se nessa sensação de onipotência que essa sensação de poder confere, e protegem uns aos outros em sua violência, são cúmplices, omissos. Porque são irmanados na profunda desintegração de toda sua sensibilidade e empatia, o preço que pagam para receber os privilégios do patriarcado.

Essas três regras, em conjunto, organizam o comportamento dos homens no mundo. Meninos crescem realizando a soma desse bombardeio incessante de mensagens que dizem o tempo inteiro: “você é especial apenas por ser menino”, “meninas são inferiores”, “você deve ser forte, você deve ser vencedor, você deve dominar o inimigo”, “você não pode aceitar que te desafiem”, “você não deve aceitar não como resposta”. E como resultado concluem que “você é um ser superior às mulheres e portanto pode usar a força e a violência para dominá-las”, ou “você deve sempre ser atendido em todos os seus desejos e nunca deverá ser frustrado, principalmente por uma mulher, não permita que isso aconteça”, ou “é você e os seus desejos que importam e você deve sempre cuidar de si, e não se preocupar com mais nada”, ou “mulheres existem para servi-lo e nada mais”, ou “você é homem e pode fazer o que quiser e nenhuma mulher poderá impedi-lo”.

Homens aprendem que são os donos do mundo, que podem e devem conquistar tudo e que mulheres são seu espólio de guerra.

E portanto, se há um caminho possível na educação de meninos para um mundo menos sexista ela está em começar a combater esses valores que são incrustrados desde o nascimento. A ideia de que são especiais demais apenas por terem um pênis. A ideia de que meninas são seres desimportantes, inferiores, indignos e sulbalternos e toda a misoginia insidiosa que a sociedade injeta na veia, e principalmente o repúdio da violência como linguagem de estar no mundo. Meninos precisam ativamente repudiar e combater a agressividade dos seus pares, abandonarem a ideia de que tudo podem apenas porque querem, porque gritam, porque batem, porque intimidam. Aprender a transitar pela via do diálogo, aprender a lidar com a frustração, com a recusa, com a rejeição, recusar a onipotência oferecida pelo patriarcado.

E minar esses valores passa pela vigilância constante, pelo reconhecimento, nomeação e crítica. O que significa dizer o tempo inteiro ao seu filho “isso que você está vendo parece bom, mas é errado porque está te ensinando que (insira aqui alguma lei do patriarcado). E esse valor tem como resultado um mundo em que meninas e mulheres são exploradas e mortas. E queremos um mundo melhor que esse.” Difícil? É sim. Funcionará? Não sei. Mas é o melhor que temos pra hoje para nossas crianças. Olhar de frente para o problema e continuar lutando.

As 3 leis do patriarcado para as meninas

Há 3 leis do patriarcado para as meninas que elas devem aprender. Toda sua socialização será conduzida em torno dessas máximas implacáveis que conduzirão toda sua experiência de ser mulher. Vejamos então:

  1. homens têm a supremacia e definem quem as mulheres serão
    Primeiro meninas entendem que homens são pessoas e aprendem a perceber-se a partir de tudo aquilo que um homem não é. Então, por exemplo, se o homem é ser o forte, dominante, potente, etc; para mulheres só resta ser o fraco, o dominado, o impotente. Se o masculino é a “luz”, o “dia”, o feminino é a “sombra”, a “noite”. E daí em diante. Não há espaço na sociedade para que mulheres sejam outra coisa que não o oposto complementar dos homens. Há todo um princípio essencializante que opõe homens e mulheres como se suas psiques fossem distintas por natureza, quando na verdade é a socialização que vai moldando a menina na ausência, no silêncio, no não-ser, na domesticação dos seus talentos e capacidades para cultivar apenas os atributos que interessam para construção desse estado de subserviência a que chamamos de feminilidade. Toda menina passa por um completo esmagamento da sua estima e noção de valor pessoal fazendo com que tenha uma total perda de referencial sobre o que ela pode tornar-se, ficando completamente refém de parâmetros completamente definidos por homens. Tudo que é produzido sobre nós, como somos descritas nos livros, retratadas nas produções audiovisuais, pinturas, fotografias, a moda que vestimos, toda nossa autoimagem, nossa função social e nossas possibilidades de estar no mundo são produzidas por homens, por sua interpretação sobre nós e com objetivo de mantê-los dominantes. E por isso mulheres são profundamente dependentes da aprovação masculina sobre si, porque internalizam todo o ódio que a sociedade demonstra para com elas e precisam sempre de um homem, o olhar do “criador”, avaliando, aceitando, e validando sua existência enquanto fêmea. Mulheres sob o patriarcado não tem a oportunidade, enquanto classe, de pensarem-se para fora do binômio que são obrigadas a realizar com homens, pensarem-se fora do olhar, do julgamento e da opressão masculina. Uma mulher que foge dos estereótipos de feminilidade que são impostos é chamada de “homem”, porque eles são o padrão. E mulheres só podem existir de acordo com as regras masculinas e a serviço dos homens. E para sedimentar isso que a toda menina conhece desde sempre a segunda lei do patriarcado.
  2. mulheres são inferiores e existem para servir aos homens
    Na sociedade patriarcal mulheres existem com um único propósito: cuidar e servir aos homens. E esse estado mental de subalternidade é preparado com muito esmero pela socialização feminina. Em primeiro lugar meninas são bombardeadas com a mensagem de que seu principal talento é a capacidade de cuidar. Escutam que são mais cuidadosas, mais atenciosas, mais delicadas. Escutam que tem o “dom” da limpeza e da organização, que são mais asseadas. Que tem o “dom” da maternidade, um “relógio biológico”, uma “missão”. Ela será chamada de “rainha” do lar e acreditará realmente que possui algum dom especial para o cuidado sem se dar conta que isso só é verdade porque ela foi treinada nessas tarefas desde antes que pudesse sentar sem ajuda, já com uma boneca de brinquedo no colo e um conjunto de panelinhas. E ela vai sentir-se culpada se não ocupar esse lugar de responsabilizar-se por tudo e por todos. E será esmagada pela ideia incessante de que a melhor coisa que pode acontecer com ela é ter um marido e ouvirá com muita naturalidade que deverá “cuidar” dele, a ponto de mal se questionar do porquê esse homem não poderá cuidar-se sozinho, já que é adulto. Muito facilmente essa menina entenderá que o lugar dela no mundo é “cuidando” de tudo e de todos, porque ela tem “instinto maternal”, “instinto feminino”, porque é “coisa de mulher”. Que uma mulher só é completa se estiver casada com um homem, cuidado dele, da casa, dos filhos. Essa é a mensagem que ela escuta. Esse é o final de todos os livros, todos os filmes, todas as histórias que ela lerá, e isso será chamado de “final feliz”. E ela será inundada por promessas de que é o amor de um homem que vai finalmente tampar essa enorme carência que a socialização cria nas mulheres e também muito precocemente será instruída sobre como sexualizar-se para atrair a atenção masculina e será levada a acreditar que ser desejada sexualmente é “como homens amam mulheres”. E vai aprender qual é o padrão de beleza definido pelos homens para ela e fará qualquer coisa para atingi-lo. E jovem demais começará a ser assediada (e isso será considerado bom, afinal significa que ela está “tornando-se mulher”) e talvez seja engravidada antes que se dê conta, e mal terá a chance de pensar em qualquer outro destino para si que não esteja a serviço do cuidado não-remunerado da vida de algum homem. E ela não verá nada de errado nisso afinal aprendeu muito bem o que é ser mulher e para que elas servem. E ela verá o que acontece com todas as mulheres que fogem desse destino inexorável, que recusam-se a amar homens, desposá-los, ter filhos, ou que recusam-se a dedicar-se a tarefas domésticas. A terceira lei do patriarcado se encarrega bem desse ensinamento.
  3. se você não seguir as leis patriarcais será punida violentamente
    O primeiro sentimento que meninas aprendem a cultivar e que carregam consigo por toda vida é o medo. Por toda parte, muitas antes que possam realmente lembrar-se, elas tomam contato direta ou indiretamente com a violência masculina. Toda mulher tem uma história de horror pra contar, e essa história invariavelmente vai envolver um homem. A agressividade masculina é naturalizada e celebrada como sinal de virilidade, a ponto de mulheres aceitarem pequenos e grandes abusos como fazendo parte da “natureza” do homem. A violência sexual sempre foi tradicionalmente uma arma de guerra, e é um recado silencioso que homens enviam para mulheres, o tempo inteiro. Vivemos aterrorizadas, inseguras, e aprendemos erroneamente que o perigoso é o que está lá fora, o estranho, e que precisamos de estar sob a tutela de um homem para nos proteger, enquanto a realidade é que os índices de relacionamentos abusivos, violência doméstica, abuso sexual intrafamiliar explodem. Embora nenhuma mulher esteja livre de violência, um recado claro é enviado: a que é atingida é a “desviante”, aquela que estava “procurando”, e por “procurando” é inserido todo e qualquer comportamento que fuja da agenda patriarcal da mulher servil e obediente. E isso é tão cruelmente entranhado na nossa socialização que muitas mulheres vítimas de violência realmente acham que “mereceram”, que “provocaram”, que “fizeram alguma coisa”. Sentem culpa pela violência que sofreram e não só muitas vezes justificam como protegem seus abusadores. Porque o estado mental da mulher sob o patriarcado é o da Síndrome de Estocolmo. A justiça é um sistema criado por homens para servir aos seus interesses e não proteger mulheres e crianças da violência masculina, e nem teria como, porque esta violência endêmica é a estratégica para manter mulheres caladas, amedrontadas, dentro de suas casas recolhidas, temendo rebelar-se, temendo ser mortas, violentadas, perder seus filhos. O medo é a estratégia final pela qual homens controlam mulheres e para isso meninas são aterrorizadas e fragilizadas desde cedo.

Essas três regras, em conjunto, organizam o comportamento das mulheres no mundo. Meninas crescem realizando a soma desse bombardeio incessante de mensagens que foram todas organizadas e mantidas por um sistema controlado por homens. E cujo resultado passa uma mensagem muito clara: “ser mulher é ser a sobra, o resto, tudo aquilo homens não querem ser por ser o “negativo”, por não ser conveniente aos seus interesses de dominação. Homens são pessoas e mulheres são um objeto que dão forma. Você deve existir para servi-los, em qualquer esfera, e principalmente sexualmente. Você deve existir para cuidar da reprodução da vida enquanto eles conquistam o mundo. E se você recusar-se a obedecer, se você recusar-se a seguir as leis patriarcais, você irá pagar muito caro. Talvez com sua própria vida.”

E portanto, se há um caminho possível na educação de meninas para um mundo menos sexista ela está em criar medidas eficientes para proteger meninas e mulheres da violência masculina, porque apenas sem tanto medo é possível começar a rebelar-se de fato. Precisamos desde já a ensinar meninas e mulheres a defender-se com eficiência, com técnicas de autodefesa corporal e o que mais for necessário.

Precisamos nos manter atentas para cotidianamente fazer a crítica, junto as nossas meninas, de tantas mensagens de heterossexualidade compulsória, maternidade compulsória, socialização para o cuidado, romantização dos relacionamentos, que empurram mulheres muito precocemente para esse lugar de servidão aos propósitos masculinos.

Precisamos proteger a estima das nossas meninas, tirar a centralidade da sua importância do corpo, da aparência física. Vamos abandonar esse discurso de beleza, que é preciso ser bela, que é preciso “se aceitar” (que nada mais é que uma variação do discurso de que só a beleza importa”. Meninas precisam-se entender-se como seres completos. Como pessoas. Como indivíduos com permissão a parecer-se como quiser, vestir-se como quiser, sem precisar da validação de ninguém sobre sua aparência — como homens fazem.

Precisamos dar as meninas a chance de descobrirem por sim mesmas afinal o que é ser mulher, que não passa por ser bela, usar batom, saia, cabelos dessa ou daquela maneira. Que não passa por ser “feminina”, “doce”, “frágil”, e toda a gama de estereótipos que existem apenas para reforçar esse lugar de subalternidade aos homens.

Meninas precisam da oportunidade de serem pessoas. De serem como quiser e continuarem sendo meninas, mulheres. Livres. Finalmente livres.

Meu filho precisa de bons amigos

Eu sou feminista, e sou mãe de um menino que hoje tem 8 anos e cresce para meu orgulho e espanto como um produto perfeito das disputas diárias que travo contra o patriarcado na sua socialização.

Ele é um menino doce, sensível, engraçado e com poucos amigos possíveis porque eu o ensinei a repudiar a linguagem da violência nas suas relações. É o que percebo que ele vem tentando fazer. E isso já está cobrando um preço.

Meu filho não se enturma muito com os outros meninos. E também não encontra lugar junto das meninas. Na escola, a esta altura, quase todas as brincadeiras envolvem brigas, disputas e bullying. Ele acha tudo “muito violento” e já sofre suas primeiras punições, sendo ostracizado, ou então abertamente ofendido por seu comportamento um tanto desengajado desses dramas.

“Mamãe, na escola ficam me xingando quando eu não quero brigar”, ele me conta. “E você fica chateado?”, eu pergunto. “Não. Eles são muito violentos.” Ele responde. 

Um lado meu sente orgulho. O outro lado sente a dor de saber que ele está sendo rejeitado, que está sendo provocado, está solitário, precisa encontrar um lugar para si no meio dessa balburdia.

“A vida é uma selva, meu filho”, eu digo. Ele ri. Não sabe que eu estou falando muito sério. 

O meu filho precisa de bons amigos. Acho que é por isso que eu passo os dias dizendo as outras mulheres que é possível socializar crianças com mais amor, menos violência, mais consciência. Eu não sei por quanto tempo ele vai sustentar os valores que vamos ensinando, em nome de não se sentir um outsider. Em nome de participar do pique-pega. Não é justo que eu tenha que entregar a alma e o coração do meu filho a este sistema tão injusto, que vai devorá-lo, que vai consumi-lo e vai cuspir de volta um homem sem alma, que tem a violência e dominação como linguagem de estar no mundo para que ele possa ter alguns amigos.

Eu me recuso a criar um homem escroto para ele ser “aceito”. Eu me esforço todo dia para que meu filho possa ser uma pessoa melhor em um mundo melhor, mas eu também preciso convencer outras pessoas sobre isso. Que vale a pena criar crianças melhores. Para que todas essas crianças que hoje estão sendo criadas de um jeito diferente, por corajosas mulheres que vão tateando, meio aterrorizadas, ensinando-as a ir contra a corrente, possam um dia se encontrar, se reconhecer, saber que não estão sozinhas. Como suas mães, em algum momento também se encontraram, e também souberam. 

Eu não temos realmente certeza que isso vai dar certo. Mas, qual a outra opção? Como conhecer todo o horror que representa crescer numa estrutura patriarcal, como olhar para si e ver tudo que te foi tirado, toda a violência que sofremos, como podemos criar nossos filhos impassíveis depois que a gente aprende a ver o que fizeram de nós? Não é como se eu quisesse provar um ponto, eu apenas tento, todo dia, proteger o meu filho desse trator que se aproxima chamado patriarcado.

E eu sei. Eu sei que não posso te proteger completamente, meu filho. Eu não tenho controle. Eu não posso evitar que você seja atingido por essa correnteza, eu só posso lutar com as armas que eu tenho que é te ensinar a ver os sinais, te ensinar a sobreviver na selva e quem sabe arregimentar companheiros, quem sabe criar uma tribo, a famosa tribo, que é necessária para criar uma criança.

Precisamos ter coragem de ensinar nossos filhos a serem mais conscientes, críticos e firmes no enfrentamento das mazelas desse mundo, mas também precisamos entender que essa não é uma trajetória fácil, que precisamos estar juntos. Que quando caminhamos juntos é mais fácil, faz mais sentido.

Amamentar, no patriarcado, é um ato subversivo

Na amamentação o seio tem função nutricional, ele é uma fábrica de leite que serve para alimentar um bebê, e, no patriarcado, este talvez seja um dos poucos momentos (senão o único) em que uma mulher consegue dar uma função que não seja sexual a esta parte do seu corpo que é extremamente erotizada. Na relação mãe-bebê que envolve a amamentação nenhum homem está sendo sexualmente beneficiado e portanto, amamentar, no patriarcado, é um ato subversivo

E por isso, o ato de amamentar nunca é visto como algo que é: o ato, bastante altruísta, de oferecer a si para alimentar um bebê. Um seio aleatório, desnudo ou insinuado num decote é belo e desejável mas o mesmo seio alimentando uma criança é reprovável, tomado por indecente ou repugnante. Mulheres são rechaçadas, tolhidas, insultadas, coagidas a se esconder enquanto amamentam, são expulsas dos lugares públicos, incitadas a se cobrir como se tivessem realizando algum ato obsceno. 

A amamentação, no quanto, quando e como mulheres podem aleitar seus filhos, quase sempre foi um tema decidido por homens, que controlam e tutelam o corpo da mulher desde os primórdios da humanidade, levando em conta seus interesses econômicos e sexuais. Hoje temos índices bem insuficientes de aleitamento porque a ordem do dia é o enriquecimento da indústria alimentícia que produz leite artificial e mulheres precisam brigar pelo direito de aleitar. 

Homens, em geral, não apoiam suas companheiras na longa e dura jornada que é a amamentação: as deixam abandonadas na tarefa ou pressionam pelo encerramento precoce para ter de volta o objeto do seu prazer. Outros ainda transformam a amamentação da mulher num fetiche.

A amamentação de mulheres tampouco é apoiada pelo Estado, não há informação em quantidade e qualidade suficiente para as mulheres sobre amamentação. Mitos proliferam minando a confiança da mulher na sua capacidade de amamentar. Na maternidade, bebês são afastados da mãe assim que nascem contrariando a orientação de mamar na primeira hora de vida e recebem leite artificial. Os profissionais estão mal preparados e não conseguem orientar adequadamente as puérperas sobre como amamentar. A indústria alimentícia financia um poderoso lobby junto aos profissionais de pediatria para que estes sejam seus porta-vozes e engrossem o discurso do desmame substituindo ou complementando leite materno por leite artificial, ou iniciando uma introdução alimentar precoce.

A licença-maternidade oferecida pelo Estado, de apenas 120 dias, não cobre satisfatoriamente o período de amamentação exclusiva de 180 dias indicado pela OMS. Muitas creches se recusam ou não estão preparadas para manipular o leite materno enviado pela mãe para alimentar seu bebê quando esta retorna ao trabalho. São necessárias campanhas públicas para incentivar e garantir o direito ao aleitamento materno.

Nós sabemos o que é necessário para estabelecer uma amamentação bem-sucedida: tempo, espaço, recursos materiais, informação. O que não entendemos é que nada disso acontece porque não é do interesse de uma sociedade patriarcal que mulheres tenham autonomia sobre seu corpo, que dediquem-se na medida que julgam adequado aos seus filhos. Mulheres são reféns das decisões dos homens sobre seus corpos, e qualquer reivindicação que exija maior autonomia não pode ignorar o fator “patriarcado” da equação”

Como ensinar aos meninos sobre hábitos de higiene?

Este é um pequeno manual de instruções para vida – para meninos  e homens. E porquê uma manual tão básico se torna necessário, para não dizer imprescindível? Acompanhem comigo.

A divisão do trabalho, neste mundo patriarcal, obedece a uma lógica de hierarquia sexual onde todas as tarefas consideradas “produtivas”, “ativas”, são de domínio dos homens, e todas as tarefas da esfera “reprodutiva”, “passiva”, são relegadas às mulheres. Dessa forma, há um número infindável de atividades que são classificadas como sendo “coisas de homem” ou “coisas de mulher”.

Como a sociedade é hierarquizada, homens sendo dominantes e mulheres dominadas, tudo aquilo que está na esfera do “masculino” é importante, valorizado, desejado, ou aceitável, e tudo aquilo que está na esfera do “feminino” é considerado inferior, menor, desimportante, ou um sinalizador de fragilidade.

Uma das funções da mulher na sociedade é ser um objeto que deve ser permanentemente belo e desejado. E mulheres são orientadas, incentivadas e “premiadas” para estarem permanentemente mantendo-se dentro de um determinado padrão. Mulheres sabem que seu corpo é seu principal atributo de valorização e que ele é medido e avaliado em cada pedaço, como carne no açougue. Então o corpo feminino é sempre alvo de intensos “cuidados”, e precisa sempre estar “impecável”: limpo, depilado, macio, cheiroso. E inclusive, como resultado direto disso, temos mulheres que são tão obcecadas com os cuidados do corpo a ponto de achar que coisas absolutamente naturais como seus pelos, são “anti-higiênicos”. Que acham que suas vaginas “cheiram mal”. Que acham que unhas não-manicuradas são sinal de “desleixo”.

Dessa forma, limpeza, higiene, cuidados básicos com o corpo e a pele acabam não sendo tão associados a saúde, e sim a resultados de beleza. E beleza, estar bela, é uma preocupação feminina, e portanto vista como “fútil”, “inferior”. E como pensar em limpeza e cuidados é “coisa de mulher”, do outro lado temos homens que são incentivados a serem completamente relapsos com seu autocuidado ou até constrangidos se demonstram asseio, que é confundida com “vaidade” e portanto “frescura”.

E o resultado prático disso? Homens que tem zero preocupação com cuidados mínimos de higiene corporal e que cultivam com orgulho e como prova de masculinidade a imagem de “porcalhão”. Quando mais tosco e rude, mais “macho” e celebrado entre os pares. Temos homens que mal se preocupam em tomar banho e ostentam por aí cuecas freadas com a maior naturalidade do mundo, ignorando que isso acontece por sua inabilidade (e preconceito) em limpar a própria bunda. Que têm um estado geral de cabelos, dentes, unhas, sempre de discutível a deplorável, além de outros hábitos bastante reprováveis como sempre deixar banheiros imundos por onde passam e a ideia de que tem permissão para urinar em qualquer lugar.

E a sociedade — machista — incentiva, ainda que não abertamente, esses hábitos, deixando bem claro para homens que quanto mais afastado de qualquer característica que possa ser associada com o “feminino”, mais “macho”, mais “viril” ele é.

pequeno manual de instruções para a vida


E essa ideia começa a ser formada desde que eles são meninos, quando são muito menos cobrados para serem asseados ou quando são constrangidos (parece “viadinho”) se demonstram qualquer traço de preocupação com cuidado pessoal que possa ser confundida com “vaidade feminina”, tipo pentear os cabelos.

Dessa forma aqui vão algumas regras que parecem óbvias a serem aplicadas por todos os seres humanos, mas acredite, não o são por boa parte da metade da população nascida com pênis . E que homens podem fazer o seu check-list, e todos podem usar como um guia do que meninos não podem deixar de aprender, para a vida.

Higiene corporal e autocuidado em geral

  • Use um bom produto para o cheiro de suor das axilas.
  • Use algum produto para o suor dos pés.
  • Use um perfume, se gostar.
  • Aplique filtro solar todos os dias pelo menos no rosto.
  • Use filtro labial se julgar necessário.
  • Penteie os cabelos sempre que estiverem despenteados.
  • Escove os dentes pelo menos 3 vezes por dia. Use fio dental e visite o dentista regularmente para cuidar da saúde bucal.
  • Lave o rosto quando estiver com excesso de oleosidade e considere visitar um dermatologista.
  • Limpe as orelhas com regularidade para além do banho.
  • Corte as unhas, das mãos e dos pés.
  • Apare os pelos. Não precisa depilar nem raspar se não quiser e é até melhor que não faça. Pelos são proteção para o corpo. Mas mantenha-os aparados e limpos. Todos eles. Da axila, da virilha, do nariz, da barba.
  • Atente se possui caspa, dermatite seborréica, piolhos, etc para usar os produtos adequados para tratamento.
  • Beba água.
  • Busque dormir um número adequado de horas para um devido descanso diário.
  • Alimente-se de maneira balanceada e de acordo com suas necessidades fisiológicas.
  • Exercite-se minimamente.
  • Tome pelo menos um banho por dia. Do jeito certo.


Tomando banho

  • Tome pelo menos um banho por dia, com bastante sabão, lavando todas as partes do seu corpo. Todas.
  • Se você não sabe o que significa tomar um banho decente, saiba agora: Lave todo o corpo, tórax, abdômen, ombros, braços, pernas, costas, mãos, pés. Use uma esponja, esfregue, para tirar o acúmulo da sujeira.
  • Lave o seu pênis. Todo ele, afaste a pele do prepúcio e higienize com sabão até tirar todo e qualquer resíduo.
  • Lave o seu ânus com sabão até ter certeza que está realmente limpo, sem nenhum resíduo de fezes.
  • Lave o rosto com sabão para tirar o excesso de oleosidade.
  • Lave as orelhas pois elas acumulam cera de ouvido na parte exterior.
  • Lave os cabelos com xampu e um condicionador adequados ao seu tipo de cabelo, e lave-os pelo menos a cada 2 dias.
  • Enxugue-se completamente.
  • Verifique se as roupas não estão muito suadas, com mal cheiro, sujas, antes de vesti-las novamente, caso queira repeti-las.
  • Troque de cuecas todos os dias mesmo que elas aparentem estar limpas.


Usando banheiro

  • Aprenda definitivamente como se usa um banheiro. Ao urinar, lave as mãos antes de tocar no seu pênis;
  • Levante a tampa do vaso sanitário ou se você acha que é tão ruim de mira assim, urine sentado. Apenas encontre a melhor maneira para não molhar tudo porque depois é você quem deverá limpar a bagunça que fez.
  • Caso respingue para fora do vaso sanitário, limpe tudo com o papel higiênico.
  • Enxugue o pênis após urinar para tirar os resíduos de urina.
  • Lave as nádegas se for possível após defecar. Se não for possível limpe o ânus e arredores com papel higiênico até o papel sair limpo, o que significa que não resta nenhum resíduo. Não há nenhum problema em tocar o próprio ânus. Isso não afeta sua sexualidade. Há problema em ficar sujo a ponto de manchar a cueca por não ter sido capaz de limpar a própria bunda.
  • Cultive o hábito de observar o que sai de você, isso é um sinal de como vai a saúde. Urina escura e com odor forte por exemplo pode significar que você está bebendo pouca água. Fezes com cores e formatos pouco convencionais também pode significar algum problema de digestão ou indicar que sua alimentação vai mal. Presença de sangue pode significar algum problema mais grave. Aprenda a se observar.
  • Dê descarga.
  • Abaixe a tampa.
  • Lave as mãos.
  • Certifique-se que deixou o ambiente na mesma ordem que o encontrou.
  • Não urine no meio da rua. Não saia colocando seu pênis para fora em ambientes públicos. Isso é crime, é atentado violento ao pudor. Tenha o mínimo de vergonha na cara. Acredite, você é capaz de administrar a vontade até conseguir um banheiro. Mulheres fazem isso o tempo inteiro, você também pode, seu trato urinário não tem nada de especial ou diferente.


Dicas gerais

  • Ninguém está interessado nas suas funções gastro-intestinais. Embora sejam atividades naturais que o corpo executa, não precisam ser anunciados, festejados, nem são motivos de riso ou troça. São eventos absolutamente comuns a todos. Homens e mulheres arrotam e peidam. E como muitas vezes produzem um cheiro desagradável, é desejável — se possível — tentar buscar um lugar discreto e mais afastado para poder peidar e arrotar em paz sem perturbar ninguém com seus sons e odores.
  • A mesma lógica é válida para escarradas. Não cuspa no chão! Se não houver um banheiro, uma lixeira, um bueiro, ou nenhum lugar mais adequado para cuspir, faça num lenço, num guardanapo, ou coisa parecida e jogue fora quando for possível.
  • Não espirre e tampouco tussa nas pessoas! Tente usar a dobra do cotovelo.
  • Não fique tocando sua genitália em público. Se você está com algum incômodo, busque um lugar discreto para resolver. Se você sente coceira, e ela é constante, busque um médico. Ninguém quer ver você coçando e ajeitando o saco o tempo todo. Isso não é viril, não é sexy. Na verdade é bem desagradável e assustador.
  • Sente de pernas fechadas. Isso não é tanto sobre higiene mas sobre percepção corporal. Você não tem ovos de páscoa no lugar de testículos. Ocupe um lugar proporcional às dimensões do seu corpo, sem mais, nem menos.
  • Manter-se limpo e bem cuidado, higiene e asseio não são sinais de falta de “masculinidade”, são sinais de civilidade e auto cuidado. É sua e apenas sua a responsabilidade de cuidar do seu corpo. Não é da sua mãe, não é da sua namorada, não é da sua esposa, não é de nenhuma mulher. Isso é o mínimo que você deve fazer por si mesmo para conviver em sociedade, ser capaz de manter uma aparência limpa e asseada, ser capaz de cultivar hábitos que vão contribuir para a sua saúde. Isso não é falta de masculinidade, isso é auto-cuidado e inteligência emocional.

Ensinem aos seus meninos. Não é óbvio. A sociedade os desestimula e os desencoraja de serem asseados. A sociedade estimula e premia que eles sejam desleixados, como se fosse muito engraçado. Ele vai assistir filmes de homens que arrotam, cospem no chão, peidam em público, e todo mundo ri. Ele vai ser ridicularizado e chamado de “menininha” se demonstrar muito asseio pessoal. Meninos são abandonados muito precocemente na instrução de como cuidar de si mesmo primeiro pela impressão de que eles são autorizados a ter péssima higiene pessoal, segundo porque acreditam que sempre haverá uma mulher (primeiro uma mãe e depois uma esposa) garantindo que eles tenham um mínimo de asseio.

Meninos são perseguidos se demonstram “vaidade” e ainda recebem péssimos exemplos de todo lado, inclusive do próprio pai e outros homens da família. Não seja esse cara. Não seja um exemplo tosco para nenhum menino que o esteja observando. Ensinem meninos a serem asseados e cuidadosos com seu próprio corpo. A observarem e cuidarem da própria saúde. Por eles mesmos. Sem delegar essa responsabilidade. Sem achar que isso é “coisa de mulher” e que alguma mulher deverá estar tomando conta disso para ele por toda a sua vida.

E não permita que sua menina aceite a companhia de homens que não tenham noção de autocuidado e cuidado do ambiente. Que não tenham autonomia. Que ela terá que ficar lembrando ou cobrando coisas básicas como tomar banho, escovar dentes, abaixar a tampa do vaso que ele mesmo urina. E não faça isso pelo seu companheiro também, ele não é uma criança. Isso é maternidade compulsória. É a ideia de que mulheres tem que dar conta de homens como se eles fossem eternos bebês. É a noção de que temos que aceitar qualquer coisa de homens em troca de migalhas de atenção afetiva, passando por cima do nosso próprio

E finalmente, é uma vergonha ter que escrever um texto desses pedindo que homens façam o básico, tenham um mínimo de asseio pessoal, que é algo que renegam por achar que é “coisa de mulher”. Não existe “coisa de homem” e “coisa de mulher”. E isso vale para tantas coisas que muitas vezes nem observamos. Vejam a que tipo de coisas a misoginia (ódio às mulheres) da nossa sociedade nos leva. Podemos ser melhores que isso.

Toda mulher é socializada para ser capataz do patriarcado.

Toda mulher é socializada para ser capataz do patriarcado. E eu penso nessas mulheres, que nos criaram, nossas mães. Sua mãe. Minha mãe. Elas nos contaram sobre suas dores? O que há por trás de uma criação muitas vezes frustrante para nós, filhas, e agora também mães, que vamos aos trancos tentando superar?

Eu quero falar de mulher para mulher.

De mãe para mãe.

Sobre a mãe que tivemos para a mãe que nos tornamos. Sobre ser filha no meio disso tudo. Dessa relação tão difícil e delicada. Mãe, filha. Duas mulheres. Criadas para servir num mundo dominado por homens. Ensinadas a competir, mesmo entre si. Mulheres a quem é dado o chicote da criação dos filhos e a missão de perpetuar a socialização masculina para dominação e a socialização feminina para submissão.

Toda mulher é educada para ser o capataz do patriarcado. Para reproduzir a educação machista que lhe foi ensinada. Infligir as mesmas privações e sofrimentos que recebeu sem a menor consciência do que sofreu e do que está fazendo sofrer. Para naturalizar a própria dominação, sendo esvaziada de si.

Mãe. Filha.

Duas cegas tateando num mundo de violência, que subjuga, subestima, humilha, persegue, abusa, sequestra, estupra, mutila, espanca, extermina mulheres. O tempo todo.

Será que somos capazes mesmo de entender o caminho que nossa mãe percorreu até nós? Será que ela foi assediada? Humilhada? Viveu relacionamentos abusivos? Será que ela desejou nos ter? Teve ajuda para nos criar? O que ela teve que suportar para ir em frente?

Será que nossa mãe se sentiu desesperada ao nos ter colo, sem saber o que fazer? Será que teve a quem recorrer? Será que notou o quão grande é o peso da maternidade nas costas? Quanto medo ela sentiu ao ver que éramos meninas? Meninas que poderíamos sofrer coisas que talvez ela tenha sofrido. Por ser mulher.

Será que ela descontou na nossa relação de mãe-filha todas as dores que também sofreu? Será que conseguiram nos amar incondicionalmente? Como? Se ninguém nos ensinou como se ama uma mulher?

O quanto nossas mães nos feriram tentando nos proteger? Das dores do mundo. Das próprias dores.

Será que se arrependem? Lamentam a vida que poderiam ter tido, sem nunca ser capaz de confessar, e se consomem de culpa? Culpa sempre. A culpa que castiga a todas nós, desde o mito do pecado original. Eternas Evas condenadas a sentir todas as dores do parto, expulsas do paraíso.

Em que uma vida de machismo, sofrimento, abandono, abusividade e solidão pode transformar cada mulher? Em que está nos transformando? O que fez com nossas mães? Quanta dor?

A dor de ser mulher em um mundo que odeia mulheres.

A dor de ser mãe em um mundo que desampara mães.

O quanto dói a solidão no coração de cada mulher e hoje nossas mães nos olham nos olhos, de mulher para mulher, e ainda vêem a mesma criança que fomos, e sentem a falta daquela menina que não está mais lá. Fazendo companhia. Lado a lado. Em disputa. Lambendo cicatrizes.

Como proceder essa reparação, se nós mesmas, filhas, agora mães, mulheres, acumulamos nossas próprias feridas de guerra? É tanto peso, acumulado de geração, para geração, para geração.

Toda mulher é socializada para ser capataz do patriarcado. E a mãe é a figura primeira que vai iniciar o nosso treinamento social para a subalternidade ou dominância. Porque ela também foi treinada. Ela também aprendeu a servir o patriarca e ela também aprendeu que seu valor enquanto mulher só é dado se ela cumprir bem seu papel de esposa e mãe. E como mãe ela é o todo o tempo vigiada e instruída a doutrinar seus filhos para cumprirem a risca os papeis na hierarquia social que são destinados de acordo com o sexo que nascerem.

São as mães que tem a missão de preparar mulheres para serem mães e esposas. Que vão fiscalizar se você está se tornando “direita”, que vão reprimir qualquer coisa que esteja fora do que manda o manual patriarcal de comportamento feminino. Que vai repudiar qualquer coisa que não seja belo, recatado e do lar. Não há conciliação possível.

A mãe sabe que será punida se permitir que seus filhos repudiem o protocolo. A mãe sabe que será julgada e que a culpa será dela. Essa mulher aprendeu isso e ensinará isso. A misoginia que ela internaliza nos seus é a mesma que aprendeu das suas ancestrais. E romper com essa logica passa pelo entendimento do terrível lugar que a maternidade reserva para toda mulher. E com o rompimento com essa lógica nefasta.

Não existe possibilidade de uma relação de afetividade saudável entre mães e filhos, e principalmente entre mães e filhas, sob um regime de maternidade compulsória.

“Fecha estas pernas, menina”. Nossas mães disseram. Porque o mundo devora mulheres. Porque elas não puderam nos proteger. Não puderam proteger a si mesmas. E seguimos tentando perdoá-las, nos perdoar, nos amar e vencer esse desamparo. Permanecer vivas no meio desse massacre.

“Fecha estas pernas, menina”. Ainda é o que teremos que dizer para nossas filhas.

Será que hoje, nós, mulheres adultas, também mães, feministas, conseguimos separar nossas dores de filhas marcadas por uma criação machista e castradora da nossa solidariedade com a mulher que a vida fez nossas mães tornarem-se?

E nossas filhas? Será que um dia nos perdoarão?

Que mulheres possam quebrar essa roda. Que tenham força, apoio e incentivo de outras mulheres, porque não é fácil. A mãe é vigiada. A mãe é punida. A mãe existe da maneira que é dado na nossa sociedade para cumprir esse papel. A mãe também foi filha. A mãe é uma mulher marcada pela misoginia. A mãe marca.

Nós. Mães. Filhas. Mulheres.
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A mãe transgressora é revolucionária.

Da transgressão indesculpável de declarar-se feminista

Declarar-se feminista é uma transgressão indesculpável. O feminismo, por definição é a luta pela emancipação feminina da dominação masculina. Numa análise mais profunda, podemos sim, inclusive, falar de libertação. De exploração. E de escravização. Masculina.

O agir feminista portanto consiste em praticar o feminismo. Ou seja, lutar pela emancipação feminina. E essa luta se dá em muitos fronts, de muitas pequenas e grandes maneiras. Muitas mulheres tem um fazer feminista ainda que assim não se declarem. Muitas mulheres se declaram feministas mas tem um fazer claramente antifeminista.

E por essa mesma lógica que homens não podem ser feministas. Eles podem, no máximo, tomar consciência dos seus privilégios e tentar abrir mão deles, podem tentar resolver seus próprios problemas de masculinidade, machismo e violência, podem constranger seus iguais, abrir mão da cumplicidade e da omissão. Mas não podem lutar pela libertação feminina porque nessa equação eles estão do lado a ser combatido. São algozes. São o inimigo.

Sim. Homens são os inimigos. Sem aspas. Homens matam, violentam, exploram e escravizam mulheres. Generalização? Todo o sistema que gira o mundo é comandado por homens. Observe todos os grupos que governam todos os países do mundo. Quem está lá? Por quem é formada a maioria? Homens. E não só no executivo. No legislativo, no judiciário. Homens fazem as leis, julgam, prendem, soltam. Homens nas forças policiais e armadas. Homens no comando de todas as empresas, na publicidade, na mídia, na produção artística.

Então talvez “nem todo homem” seja um abusador, agressivo ou estuprador mas entenda, o meu, o seu “cara legal” é no mínimo omisso e cúmplice.

Todo homem, absolutamente todo homem, é inegavelmente, ao menos omisso ou cúmplice em relação a tudo o que mulheres sofrem na nossa sociedade. Porque se assim não fossem, como permitiriam tanta violência contra as mulheres? Como permitiriam que mulheres fossem tratadas como são? Tanta morte, tanta exploração, tanta mágoa. Onde estão os homens “bons”?

Se homens verdadeiramente amam mulheres como pessoas e não como objetos, se são os homens que hoje controlam o mundo, se o feminismo está errado em combater a supremacia masculina, por que toda mulher tem uma história de horror pra contar? Envolvendo um homem.

Onde estão os “homens bons” que não fazem nada a respeito?

É difícil perceber e aceitar isso, eu sei. É muito difícil sim.

Por isso, para além do agir feminista — que muitas mulheres o fazem sem saber — declarar-se feminista é um ato político. É um ato de trazer para a polis, para discussão pública, a guerra contra a misoginia. É deflagrar que há mulheres que sim, sabem o que está acontecendo e estão lutando contra isso.

Acima de tudo, declarar-se feminista é declarar-se antagônica aos homens. É isso é dificílimo em uma sociedade que nos socializa para amá-los acima de todas as coisas e a servi-los sem hesitar. Numa sociedade que nos desumaniza. Declarar-se feminista é um ato de profunda rebeldia. Uma trangressão indesculpável. Que tem um alto preço social. Não á tôa muitas mulheres que lutam por outras mulheres declaram meio constrangidas “eu luto por direitos, mas não sou feminista”, “eu sou feminista, mas não sou radical”, “eu sou feminista, mas sou feminina”.

Porque perceber-se feminista e declarar-se feminista, é berrar aos quatro cantos para que todos os homens ouçam: eu sei que vocês nos odeiam, que vocês odeiam nosso corpo de fêmea, eu sei que vocês nos exploram, eu sei que vocês se omitem, eu sei que vocês não se importam conosco, e eu vou lutar contra vocês.

E como fazer isso nessa sociedade androcêntrica, se nós só nos “tornamos mulheres” quando aceitamos ser acessórios de um homem? Quando aceitamos o cabresto da feminilidade? Então eu entendo sim, todas as mulheres que não conseguem, não podem, não concebem essa perversão cabal: rejeitar homens e colocar mulheres no centro do seu universo.

E isto não tem a ver com odiar homens — mas se quiser pode, porque certamente você tem motivos. Mas tem a ver com uma coisa muito mais profunda e complexa: aceitar que não é possível confiar neles, de maneira nenhuma. Não é sobre amor. É sobre confiança. Mesmo os que você ama profundamente, mesmo os que te amam verdadeiramente, mesmo os nunca te fizeram ou nunca te fariam mal, mesmo o que te gerou, mesmo os que você gerou. Porque aceite. Todo homem, em algum momento da sua vida, já magoou alguma mulher. Já xingou, ou assediou, ou traiu, ou abandonou, ou agrediu, ou estuprou, ou matou. Ou no mínimo se omitiu diante de tantas violências. Os bons homens que você conhece, que você ama. Todos eles. E enquanto todas as mulheres não estiverem livres, nenhuma estará.

Então não importa se os homens que você conhece nunca te feriram. Acredite, ele já feriu alguma mulher. Direta ou indiretamente. Você pode não negar o seu amor mas não seja ingênua oferecendo sua confiança plena.

Se houvesse um único conselho que eu pudesse dar a todas as mulheres do mundo em relação aos homens seria: proteja-se e protejam umas às outras.

Estamos sós. Ou melhor, estamos juntas. Somos nós por nós.

Essa consciência da gravidade da nossa situação é dura e provoca reações distintas, todas compreensíveis. Algumas negam, outras combatem, outras preferem fingir que não sabem. Outras vão pro enfrentamento.

Para aquelas que estão na linha de frente queria dizer: estamos juntas e somos muitas. Muito mais do que você imagina. Muito mais do que você percebe. Persista. Faça o que pode, do jeito que dá. Porque sempre é muito. Precisamos de tudo e todas que estiverem dispostas. “Militância de internet” também é militância sim. E militância importante. Há mulheres que só possuem um celular velho conectado no Facebook na promoção do 3G que podem estar te lendo. Que podem estar, a partir de coisas que você disse, refletindo e tomando atitudes que nunca tomariam se não tivesse tido acesso a informações e a ideias e a uma inspiração que você deu a ela e nem sabe. Inspire outras mulheres a rebelarem-se.

Há mulheres ajudando mulheres por toda parte, de todo jeito. Há muitas pautas, muitas lutas. Muitos fronts.

Proteger. Informar. Capacitar. Fortalecer. Ocupar. Libertar.

Resista. Plante sementes. Essa não é a luta de uma primavera, mas de uma vida inteira. Estações e estações e estações. Uma luta que começou muito antes de nós por mulheres maravilhosas e que continuará muito depois de nós. Colhemos os frutos de sementes plantadas há muito. Devemos continuar semeando.

O trabalho é de formiga. Você já observou as formigas? Já viu tudo que elas são capazes de fazer?

Endureçam vossos corações mulheres!

Precisamos de um pacto contra a violência na criação de meninos

Precisamos de um pacto contra a violência na criação de meninos, criar filhos sob a sombra do patriarcado é uma tarefa brutal. Porque a lógica do patriarcado é a lógica da dominação masculina sobre tudo e todos, e isto tem um preço. Subtraímos a humanidade dos nossos meninos para que eles se tornem homens que possam perpetuar a estrutura de hierarquia que temos estabelecida.

Eu sempre me pergunto onde estão os homens bons na sociedade em que vivemos. Mulheres são dominadas, humilhadas e massacradas das formas mais vis e homens são os responsáveis por isso, seja agindo ativamente ou por completa omissão. Por que compactuam? Como não se indignam? Por que não se rebelam contra seus pares?

Eu olho para o meu filho, ele é um menino tão doce e amoroso. E eu vejo todas as mensagens que ele recebe, todo dia, o dia inteiro, dos desenhos animados, jogos de vídeo game, brincadeiras, filmes. Todas as imagens e narrativas onde um homem — ainda que por “bons motivos” — age sempre em uma escalada de violência e agressividade e no final é celebrado como herói. Eu sei, eu entendo que pode parecer meio entediante ver o Batman e o Coringa sentados conversando sobre suas dissidências ou assistir o Super Man conduzindo uma investigação policial e prendendo o Lex Luthor em flagrante sem precisar atirar nem um raio laser com os olhos, mas será que não estamos condicionados demais e condicionando nossos meninos a celebrar apenas a agressividade como método para lidar com conflitos?

Sim, nossos meninos. Isso não é um problema de garotas, que são as vítimas aqui. Meninas crescem assistindo Ursinhos Carinhosos resolverem as coisas com um arco-íris que sai de suas barrigas. Temos aliás uma questão contrária que é a ode à passividade e submissão. Meninos aprendem a ser extremamente agressivos e dominantes, meninas aprendem a ser extremamente dóceis e passivas.

Aprendem. Isso é o importante a se ressaltar. Passividade e agressividade não são características intrínsecas do sexo biológico. Isso são traços de temperamento que estão mais ou menos presentes em todas as pessoas e que vão sendo socialmente moldados, sendo reprimidos ou estimulados.

Se você tem filhos meninos faça esse exercício por uma semana: atente para todas as mensagens que esta criança recebe celebrando a violência como uma coisa boa. Observe como nas histórias para meninos quase tudo se resolve envolvendo uma briga, uma luta, uma competição, uma disputa. Como nos jogos essa dinâmica é levada ao extremo. Como na vida os meninos são tempo inteiro cobrados para serem fortes, corajosos, não levar desaforo para casa. Como uma aventura só é uma aventura se necessariamente houver um enfrentamento que envolve destruir alguém ou alguma coisa.

Nossos meninos são privados de afetividade à medida que crescem. Beijos, abraços, carinhos, consolo, conforto. Gradualmente vão perdendo acesso a tudo isso em nome de se “tornarem homens”. Se tornar homem na nossa sociedade é trocar a capacidade de amar pelo poder. É desalmar-se para ser capaz de dominar. É desejar-se super-humano, dotado de poderes, especial e admirado por todos. Porque ele é forte. E ser forte na nossa sociedade necessariamente significa saber ser violento.

Qual o preço que estamos pagando, enquanto sociedade, pela privação de afetividade e doutrinação da agressividade que submetemos nossos meninos na sua socialização de homens dominantes sob o patriarcado?

Vocês já notaram que mais praticamente a totalidade dos perpertradores de tiroteios em massa é homem? Que mais de 90% dos estupradores e abusadores sexuais é homem? A maioria dos serial killers? Vocês nunca se perguntaram por quê? Nunca se perguntaram porque para homens é tão naturalizado o ato de matar?

Homens não nascem assim. Meninos não nascem assim. A sociedade patriarcal faz isso com eles porque é pelo uso da violência que se mantém a dominação. E todos pagamos um preço demasiadamente alto.

Um pacto pela não violência é também um acordo de armisticio da guerra que homens travam, homens brancos dominando a todos (inclusive outros homens negros), contra as mulheres. É um cessar fogo que vai permitir que finalmente haja paz e equidade nas relações. Um acordo em que todos ganham porque ninguém aguenta mais tanto sangue derramado.

E é possivel realizar essa recusa se compactuarmos todos, os adultos de hoje, com valores melhores para as nossas crianças. Se aceitamos rever nosso sistema de crenças. Se reconhecermos que este modelo faliu, que estamos matando, que mesmo para homens em dominância, a despeito de todos os privilégios que isto traz há um preço sendo pago que pode ser alto demais. Podemos começar lentamente uma correção de rumos.

Não se nasce homem. Torna-se. e homens também podem tomar consciência do que foram tornados, abrir mão dos privilégios e se juntar nesse pacto pelos nossos meninos. para que possamos, aos poucos, sermos tornados homens e mulheres que recusam a violência e a hierarquia.

Nota: recomendo a todos para ontem:

The Mask You Live In

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Maternidade dá trabalho mas não é um emprego

Está aquecido o debate sobre maternidade enquanto um trabalho não remunerado. Há muito feministas denunciam sobre a exploração da mão-de-obra das mulheres para o trabalho reprodutivo e para o trabalho doméstico. Inúmeras pesquisas já demonstram o quanto vale o trabalho invisível que mulheres exercem para a economia global (trilhões), tanto na administração dos seus lares quanto na criação das crianças (incluindo aí o aleitamento). Chegamos finalmente a um momento que esse problema, a exploração de mulheres para manutenção do privilégio masculino, começa a vir a tona de maneira consistente, perceptível, a ponto de movimentar discussões, teses e legislações a respeito.

No entanto, ao finalmente percebermos o problema, me parece que estamos indo num caminho bastante equivocado em relação a uma possível solução.

Quando analisamos a história compreendemos que homens entenderam o quão estratégicas são as mulheres para o funcionamento da vida e rapidamente apressaram-se em dominá-las, explorando sua força reprodutiva. Compreendemos que existe um sistema político extremamente complexo que é estruturado para garantir a perpetuação dos privilégios masculinos. Que papeis sociais são desenhados para serem desempenhados por homens e por mulheres, que são aprendidos durante nossa socialização e constantemente reforçados socialmente. Que esses papéis sociais de sexo reforçam essa estrutura hierárquica, criando meninos para se tornarem homens dominantes e meninas para ocuparem o papel de mães e esposas, subalternizadas. Percebemos que existem inúmeros mecanismos sociais, culturais e institucionais que existem somente para garantir que esta hierarquia seja mantida, e com ela os privilégios masculinos. Que em uma sociedade patriarcal mulheres estão na posição de servas domésticas e sexuais dos homens.

Quando dizemos que mulheres são exploradas, que a atividade doméstica não remunerada é um trabalho, que cuidar de crianças é um trabalho, que a maternidade é um trabalho, estamos fazendo a denúncia do papel que é delegado às mulheres dentro do sistema capitalista-patriarcal. Estamos dizendo: às mulheres é destinado o papel de executar sozinhas essas tarefas, que resultam em produção de riqueza para homens usufruírem. E com esta denúncia queremos também reivindicar: esse papel social precisa ser extinto.

Portanto, a solução para a exploração das mulheres dentro do sistema patriarcal, não é remunerar mulheres. Não é reivindicar salários. Essa provocação é justa no sentido de denunciar o papel que mulheres ocupam mas não tem validade enquanto possibilidade de reestruturação social. Até porque inserir uma lógica de remuneração não extingue a exploração de ninguém, temos aí um sistema chamado capitalismo nos mostrando isso todos os dias.

Quando de fato vamos pelo caminho de exigir “salários” para o trabalho reprodutivo e doméstico nós estamos reforçando esse papel social que é destinado às mulheres dentro do patriarcado. Mulheres são socializadas para realizar essas tarefas gratuitamente como ato de “amor” e muito pouco muda ao trocarmos isso por “dinheiro”. Ainda serão as mulheres realizando esse trabalho. A divisão sexual do trabalho permanece completamente inalterada.

Remunerar mulheres pelo trabalho reprodutivo não discute a lógica da distribuição das tarefas de cuidado. Não tira o peso de serem as mulheres as responsáveis pela execução desses trabalhos e tampouco insere homens para realizarem essas tarefas. Ao contrário é uma solução que beneficia muito mais aos homens porque é a resposta que eles precisam para a reivindicação por divisão igualitária dos trabalhos domésticos.

Ao exigir “salários para o trabalho doméstico”, como uma proposta mais que meramente retórica estamos propondo mercantilizar e precificar o papel social destinado às mulheres, inserido-as numa lógica capitalista neoliberal de mercado. E isso não só não rompe com a lógica de subordinação baseada no sexo, como ainda piora tudo transformando-se também em um problema de luta de classes.

Afinal, para existir um trabalhador remunerado é preciso existir um patrão, não? E para quem mães estarão trabalhando? Para o pai da criança? Para o Estado? E se maternidade é um “trabalho” de fato, os filhos são então um “produto”? E o corpo da mulher? Poderá ser tratada como uma “fábrica”? E os pais? Como entram nessa equação? Se cumprirem sua função na parte de cuidado dos filhos devem também ter um salário? E como fica a relação com o filho? Como fica a relação intrafamiliar sendo operada por uma lógica mercantilista? E como fica a relação entre homens e mulheres quando pedimos medidas que ratificam nosso lugar de eterna cuidadora? Como isso opera para romper a hierarquia estabelecida?

Quando dizemos: “a maternidade é um trabalho, portanto me pague”, estamos concordando e assumindo para nós em definitivo essa função que o patriarcado há tantos milênios se organiza para nos dedicar. Estamos dizendo também que é função das mães assumirem o cuidado integral dos filhos, que é função das mulheres serem mães, estaremos consolidando em definitivo nossa posição subalterna de reprodutoras de pessoas a serviço de um Estado patriarcal e elevando essa relação a outro patamar.

Neste panorama dado de exploração das mulheres o que podemos e devemos fazer é rejeitar e rediscutir para já os papeis sociais baseados em sexo. Devemos rejeitar a ideia de que somos inerentemente cuidadoras. Que nascemos com esse “instinto”, com esse “dom” e discutir nosso papel na reprodução e cuidado de crianças. Excetuando gestar e parir não há nenhuma tarefa que exija ser realizada exclusivamente por uma mulher. Portanto precisamos decidir, enquanto classe: que papel mulheres e homens devem ter na criação de crianças? E qual o papel que Estado deve ter no suporte para a criação de crianças?

Mulheres precisam exigir que homens assumam sua parte nas tarefas de cuidado reprodutivo e doméstico. Devem recusar o papel de cuidadoras exclusivas, de rainhas do lar. Precisamos recuperar nossa autonomia reprodutiva junto ao Estado para que possamos realmente decidir quando, como e de que maneira desejamos ter filhos. Para que a maternidade não seja uma coisa compulsória. Que não sejamos jogadas nesse lugar sem escapatória, mas agora com um salário para calarmos a boca.

Ser mãe dá trabalho, mas maternidade não é um emprego. Precisamos redefinir as tarefas impostas pelo patriarcado para nós mulheres, na nossa maternidade. Que mãe seja apenas o nome dado para a fêmea humana adulta que gesta. E que ser mãe não signifique mais nada além disso. Nada. Que não venha com nenhuma atribuição embutida que não seja previamente entendida, combinada e aceita por aquela mulher, com seus pares, na criação e cuidado daquela criança. E que crianças deixem de ser posse do seu núcleo familiar para serem vistos como seres íntegros, de direitos, amparados por uma politica de Estado voltada para o suporte ao crescimento digno dos seus cidadãos. A maternidade no patriarcado é um trabalho do qual precisamos pedir demissão e não remuneração.

Feminista. Do tipo radical.

Eu sou feminista. E não qualquer feminista. Eu sou do tipo radical. Do tipo que acredita que mulheres são fêmeas humanas adultas e que enquanto uma de nós não for livre, nenhuma será.

Eu sou feminista do tipo que acredita que o pessoal é político e que gênero não é identidade mas uma ferramenta para manter mulheres em situação de submissão. Do tipo que defende o nosso direito à humanidade e recusa qualquer proposta de objetificação e comercialização do nosso sexo. Porque sexo não é um direito. Porque nosso corpo não está à venda. Nossos úteros também não.

Eu sou feminista do tipo que percebe os insidiosos mecanismos da nossa socialização para feminilidade e que tenta, todo dia, desconstruir-se um pouco, porque eu também sou um fruto fresco dessa socialização. Que ama ser mãe mas reconhece que a maternidade é um mecanismo compulsório para nos manter reproduzindo mão de obra e fora do espaço público de disputa de poder. Que tem um relacionamento hetero mas sabe que ele nunca será simétrico, pois por mais o seja da porta pra dentro, da porta pra fora eu sei bem quem a sociedade enxerga como “chefe da família”. Temos muitas contradições a conciliar e erramos o tempo todo. Porque não somos perfeitas. Somos pessoas. E pessoas erram.

Ser feminista não te libera da socialização que você recebeu. É um exercício constante de análise, tomada de consciência, correção de rumos, avanços e retrocessos. O feminismo é uma porta que uma vez aberta, não fecha. E nada melhora. A consciência feminista é libertadora mas também dilacerante.

Eu não odeio homens. Mas eu não confio mais neles. Mesmo nos que amo. Porque a decepção e o desapontamento vindo do entendimento do que essa casta faz com nós, mulheres, é grande demais. Dolorida demais. E sendo amaldiçoada com a heterossexualidade, tento, todo dia, conviver e conciliar também mais essa contradição em mim. Trazer lucidez a essa Síndrome de Estocolmo.

Eu sou mãe de um menino. E o que tento fazer de mais importante é minimizar, dentro do que está no meu alcance, os efeitos perversos da socialização masculina sobre ele. Não tenho ilusões de evitar completamente que ele se torne machista. Me resta rezar todos os dias para que ele seja um homem bom. Um homem que verdadeiramente ame mulheres, reconheça e respeite sua humanidade, dignidade e integridade. E as defenda.

E onde estão os homens bons, hoje? Por que não se levantam e lutam contra os seus pares que nos exploram e nos exterminam? Por que se omitem? Eu sei a resposta: porque todos eles, direta ou indiretamente, se beneficiam da exploração de uma mulher. Da exploração da sua mão de obra doméstica, do seu corpo, do seu trabalho emocional, do status social.

E por isso o feminismo é fundamental. Feminismo não é o que a maioria vê por aí na TV, não são as mulheres de peito de fora, ou enfiando coisas na bunda… isso é o que o patriarcado (bem representado pela mídia) quer que a maioria de nós pensemos. O feminismo é o movimento de luta das mulheres por sua libertação, emancipação e direitos. E enquanto uma mulher não for livre, nenhuma será. E se hoje estamos aqui, falando sobre isso, temos que agradecer à luta das mulheres que nos antecederam.

Há 200 anos nós não tínhamos direito de estudar. Não podíamos votar. Não podíamos trabalhar fora. Não podíamos nos divorciar. Não podíamos fazer nada que não fosse estar em casa completamente à mercê do marido e criação de — incontáveis — filhos. Há pouco mais de 100 anos mulheres negras sequer eram reconhecidas como pessoas humanas.

E se hoje estamos nas ruas, exigindo mais direitos, dignidade e justiça é porque houve muita luta antes de nós. Muito sangue, suor e lágrimas de mulheres maravilhosas que lutaram, lutaram e continuam lutando. Tudo, absolutamente tudo, cada direito, foi a duras penas conquistado. Homens nunca cederam um milimetro.

Isso é feminismo. É uma pergunta simples para identificar: “isso liberta mulheres?”. Se não contribui para libertar, para emancipar, para dar humanidade e dignidade a todas as mulheres, para libertar seus corpos do controle masculino… não é feminismo.

Além da dor da consciência da minha realidade, o feminismo também me trouxe o amor. O amor por mulheres. Um amor diferente que eu ainda não conhecia porque a socialização me ensinou a odiar mulheres. Ensinou-me a odiar a mim mesma. A somente amar e admirar e homens. E de repente olhar para mim, para outras mulheres, admirá-las, acolhê-las, ser acolhida, me acolher… eu não tenho palavras para expressar como isto é grande e poderoso e transformador. Nem para dizer como é grande meu amor por vocês.

E por isso hoje achei importante dizer. Somos muitas.

Eu sou feminista. E do tipo radical. E você?

Eu, meu menino e o mundo

Eu sou uma mulher feminista. E sou mãe de um menino. E esta é uma equação muito difícil de equilibrar. Nasceu de mim, está sob meus cuidados e é o dono do meu coração um potencial “opressor”. Como futuro homem, um dia meu filho será convocado a ocupar seu lugar no mundo, um posto cheio de privilégios. E ele será incentivado a preservar essa posição à base de dominação e agressividade.

Eu morro de medo que meu filho se torne um produto perfeito e acabado do processo de socialização que está dado para ele pelo mundo. Um “macho escroto”, violento, assediador, abusador de mulheres. Incapaz de reconhecer mulheres como pessoas. É engraçado que muitas mães fantasiam o futuro para os seus filhos como eles sendo homens de sucesso, em profissões importantes e empregos invejáveis. Com fama, fortuna e todo o combo que isso traz. Eu só torço todos os dias para que meu menino se torne um homem bom. Digno, com consciência crítica sobre a sociedade em que está inscrito e que seja capaz de refletir, rejeitar e combater os privilégios que terá de mão beijada.

Como uma mulher feminista, eu tento fazer minha parte, eu sei. Tento não reforçar estereótipos, tento cercá-lo de bons exemplos de homens e mulheres, tento desconstruir os escravizantes modelos de masculinidade e feminilidade que nos cercam. E levo meus dias destruindo aos seus olhos esse mundo de promessas que o cerca. Explicando que esse lugar de homem na sociedade tem como preço o sangue de mulheres e crianças.

Mas eu sei também que a socialização dele não depende só de mim. Não tem como eu criá-lo numa bolha. Que além de mim e o meu menino, existe o mundo.

E o mundo é patriarcal e a opressão de mulheres é sua principal engrenagem. Está em toda parte, é como oxigênio. Meu filho vai para a escola, convive com outras pessoas, com outras referências, assiste TV, filmes, desenhos, ouve músicas. Ele vê a vida acontecendo na sua frente e aos poucos ele percebe como esses privilégios que lhe são negados em casa o mundo lhe coloca de bandeja para que ele se sirva. Simplesmente porque ele é homem. Ele percebe como meninos e meninas são tratados de maneira diferente. Ele nota como mulheres e meninas vão sutilmente sendo colocadas a seu serviço.

Ele vai aprendendo como a sociedade o considera mais forte, mais apto, e mais inteligente do que a todas as mulheres porque sim. Vai sendo incentivado a competir com os outros meninos e que as meninas são os troféus. Vai convivendo com outras famílias, formando seu próprio grupo de amigos, sendo cobrado, avaliado, medido, aceito ou rejeitado de acordo com seu grau de “macheza”. Por mais que ele nunca ouça de mim a frase “isso não é coisa de menino”, ele vai percebendo de maneira muito dura o preço que se paga por usar itens rosas, por usar pintura na cara, por querer manter o cabelo comprido. Apenas porque sim, porque ele acha interessante, bonito, e ele nunca soube que era “coisa de menina”, mas vai ser confrontado, vai ser testado, “mãe, o que é coisa de viado?”.

E ele vai sendo empurrado para a um modelo absolutamente distorcido de masculinidade que vai afastá-lo da sua essência mais sensível, empática, cuidadora em troca do posto no topo da cadeia alimentar da opressão. E do outro lado estou eu, neste cabo de guerra. Eu, meu menino, o mundo.

Como preparar meu filho para resistir a um convite tão tentador? Como preparar o meu menino para ir contra os seus iguais? Para contestar o machismo dos seus pares? Estaria eu o condenando ao ostracismo? Como ensinar o meu filho a resistir ao canto da sereia do corporativismo masculino, que vai acolhê-lo, transformá-lo num “brother”? Como ensiná-lo lidar com o inevitável escracho por ir contra a ideologia dominante?

Será que eu consigo explicar pro meu menino que, apesar de tudo que ele vê na mídia, de todas as representações culturais (onde ele aparece como ser humano em destaque sobre a mulher submissa, sempre um objeto), que homens e mulheres são pessoas iguais, de mesmos direitos?

Será que eu posso ensiná-lo a amar e admirar mulheres de maneira tão honesta e verdadeira, reconhecendo sua humanidade e considerando inadmissível tanta dor, crueldade e violência para com elas a ponto de lutar por sua libertação? Que ele combata seus iguais? É preciso que meu menino seja um traidor do patriarcado e isso tem um preço altíssimo a se pagar. Estarei eu pronta para lançá-lo aos leões? Mas existe alguma outra forma digna de estar neste mundo?

É um trabalho hercúleo. Diário. De Davi contra Golias. Um desafio que tenho que estar preparada inclusive para não vencer. De me contentar com pequenas vitórias. Por entender justamente que — apesar do que tentam convencer a todas as mulheres — eu não sou a única pessoa responsável pela sua educação, formação e socialização. E o número de variáveis sob meu controle é infinitamente menor que o número de variáveis que me escapa. E respirar fundo e aceitar que, apesar de toda minha luta, mesmo com mamãe feminista o filho pode crescer machista.

E eu sei, eu sei sim que todo o meu trabalho lança sementes. Que muita coisa frutifica. E que a melhor aposta hoje no horizonte ainda é tentar ajudar a formar homens melhores. E que há toda uma tribo se formando por aí, filhos de mulheres maravilhosas que lutam diariamente para desconstruir a si mesmas e a quem está próximo, buscando ambientes mais arejados para suas crianças. Eu tenho muita esperança sim. E continuo firme. Mas eu confesso que tenho medo. Que eu olho pro meu garotinho e todos os dias torço para que ele se torne um homem bom.

Como a educação machista tritura crianças

Nossa sociedade prega uma educação machista que tritura crianças. Já reparou que quando queremos que alguém seja forte, decidido, corajoso nós dizemos: “seja homem!” e quando queremos insinuar que alguém é fraco, frágil, medroso, vulnerável, dizemos “é uma mulherzinha!”? Que a mulher sempre é representada como uma vítima, como objeto de disputa ou conquista, alguém que precisa ser salva, alguém que causa problemas, enquanto o homem chega e resolve tudo (normalmente com bastante violência?). Que “mulher no volante, perigo constante”, “só podia ser mulher”, “lugar de mulher é em casa com os filhos”, “mulher não nasceu para comandar”, “mulher fala demais”, “mulheres são invejosas”, “mulheres são muito fofoqueiras”, “mulher demora demais para se arrumar”, “mulher é tudo fresca”, “mulheres são vaidosas”, “mulher tem que se cuidar”, “mulher tem que cuidar da casa”, “a responsabilidade com os filhos é da mulher”, “mulher não tem cabeça para essas coisas”, “homem não gosta de mulher inteligente”, “homem não gosta de mulher independente”, “mulher provoca”?

E o homem? “Homem é assim mesmo”

Isso são estereótipos de gênero reforçando a ideia de que mulheres são seres inferiores aos homens.

E o cruel disso tudo? Já dissemos. Estereótipos são expectativas, não expressam a verdade de um indivíduo. Todas as características que citamos na verdade podem ser de qualquer pessoa, não escolhem em que sexo biológico vão se manifestar. “Delicadeza”, por exemplo, é um atributo. Que mulheres podem ter. Ou não. E homens também. E tudo bem.

A grande questão é que tudo isso está tão intrinsecamente arraigado na nossa cultura e nos é ensinado a todo momento e há tanto tempo que passamos a acreditar que é de fato REAL. Passamos a acreditar que as pessoas de fato SÃO os seus estereótipos de gênero.

A maioria das mulheres hoje, quando engravida, é estimulada a esperar saber o sexo da criança para comprar todo o enxoval de acordo com uma determinada cor que é usada como um marcador para o sexo biológico do bebê.

E por que é tão importante saber se o bebê é menino ou menina e informar isso para a sociedade? Porque ferimos nossas bebês, furando suas orelhas, pendurando acessórios na sua cabeça, para que não se corra nenhum risco do seu sexo ser confundido? Por que as pessoas ao invés de perguntar o nome da criança primeiro, costumam perguntar seu sexo? Que diferença faz para adultos a genitália de um bebê?

menino ou menina? Como saber sem dar um colorido né?

E eu respondo: é importante saber o sexo daquela criança para que desde cedo já fique muito claro para a sociedade qual o clube (feminino ou masculino) a que ela pertence. E para que ela seja tratada, educada e instruída de acordo com as regras do seu estereótipo de gênero. E que ache que aquilo tudo é natural, nasceu com ela.

Você nunca reparou como o tratamento do bebê muda, a partir do momento em que você informa qual o sexo? (“ que princesinha LINDA!”, “que garotão FORTE!”)

E esse “treinamento” é bastante limitador e cruel. Meninos e meninas vão ser ensinados a se sentirem, serem e se comportarem de acordo com as expectativas do seu gênero, desde bebê, de forma sutil ou bem direta.

Fábrica de heróis

Meninos vão ser inseridos na cultura dos “heróis”, dos “campeões”, dos “guerreiros” (que já trazem embutidos os valores de força, coragem, ousadia, rapidez, e agressividade e violência). Verão a si mesmos representados como protagonistas em tudo, filmes, novelas, desenhos e terão uma noção distorcida da própria importância. Sempre como o personagem principal, o mais importante, o herói que salva o dia, aquele de quem todos precisam e a quem todos servem.

Brincarão com coisas que trabalham sua criatividade, suas habilidades racionais, espaciais, lógica. Serão estimulados a correr livremente e praticar esportes, com o desenvolvimento de sua potência física valorizada. Serão treinados para ter uma vida profissional e estimulados a quererem profissões desafiadoras, de status, carreiras de sucesso.

Não aprenderão que devem ter responsabilidades de auto-cuidado, cuidar dos filhos ou da própria casa, porque percebem que não precisam se preocupar com essas coisas já que sempre tem uma mulher fazendo isso por eles. Seja a mãe, seja uma irmã, seja a companheira, seja uma trabalhadora doméstica.

Qualquer contato com o universo de brincadeiras das meninas será duramente repreendido e aprenderão a rir e a debochar das meninas, porque serão tratados como mais espertos, mais fortes, mais inteligentes, mais rápidos, mais “legais”. E que meninas são o seu oposto, logo tolas e chatas. Serão incentivados a punir os amigos que demonstrarem estarem “saindo da linha”das regras da masculinidade xingando de “mulherzinha”, “mariquinhas”, “viadinho”. E os espancando se for preciso para “virarem homens”.

A agressividade desde muito cedo será naturalizada e valorizada. Serão estimulados a brigar e a bater uns nos outros. Brincarão de lutar. E de matar. A competir e a sempre vencer. A não “deixar por isso mesmo”. E serão duramente repreendidos se não se demonstrarem másculos, viris, agressivos. Se não partirem para a “porrada”.

Serão estimulados a hipervalorizar o sexo, e sua maior responsabilidade social será sempre mostrar que é “macho”. Carregarão o peso da virilidade nas costas, de conquistar sempre o maior número possível de mulheres, estarem sempre à caça. Nunca negarem sexo, mesmo que não estejam com vontade. Buscar sempre exibir uma mulher bonita, como um troféu. Que mulheres dizem “não” querendo dizer “sim” e como eles possuem um “instinto animal” que não conseguem conter, isso justifica ultrapassar qualquer limite.

Serão coibidos de mostrar os próprios sentimentos, a nunca parecerem que se importam de verdade, porque sentimentos pertencem ao universo feminino. E aprenderão que tudo que é desse mundo é inferior e fragilizante. Entenderão que sua única preocupação é desbravar o mundo e que tudo lhe pertence. Inclusive as outras mulheres, de quem crescem tão distantes, tão separados, que têm dificuldade de enxergar como pessoas. Pensarão que mulheres são seres de outro planeta (mulheres são de “Vênus”, homens são de “Marte”), são um objeto, e que só os outros homens os entendem e são verdadeiramente dignos da sua amizade e companheirismo.

que divertida essa brincadeira de atirar nas pessoas, não? Por que será que os atiradores em série são sempre homens?

Triturador de donzelas em perigo

Meninas vão ser embebidas na cultura das “princesas” (um título que já traz embutido diversas das características que são empurradas para as mulheres como beleza, docilidade, vulnerabilidade, fragilidade, delicadeza, etc etc); Serão treinadas para serem vaidosas, prendadas, domésticas, mães, cuidadoras, através dos brinquedos que são destinados a elas (bonecas, pelúcias, conjuntos de cozinha, e tudo que é parafernália de beleza).

Verão a si mesmas sempre representadas como coadjuvantes, donzelas em perigo, princesas à espera de um príncipe. Nunca se verão em cargos importantes, ganhando prêmios, vivendo aventuras, realizando grandes descobertas. E se acostumarão com a ideia de ocupar um lugar secundário na sociedade. De se ver como um acessório.

Perceberão como em toda parte mulheres sempre estão sendo elogiadas apenas pelo seu corpo e sua aparência. E receberão mensagens confusas sobre estar sempre disponível sexualmente e ao mesmo tempo “se valorizarem”. Serão vigiadas para que não engordem e duramente censurada caso comam muito. Aprenderão a odiar o próprio corpo que nunca será suficientemente belo. A se acharem sujas. “Bonita” é o principal elogio que ouvirão e crescerão com a percepção (reforçada pela mídia) que este é o único atributo de poder que possuem.

Serão estimuladas a dançar, cantar, sensualizar, participar de concursos de beleza. Brincarão com brinquedos que simulam cuidados com o lar, com os filhos e serão responsabilizadas precocemente para realizar atividades domésticas, para “ir aprendendo”. Cuidarão dos irmãos. Serão desestimuladas a realizarem atividades esportivas, ativas, “brutas”, ou qualquer coisa que fira sua imagem “feminina” de objeto de decoração. Serão subestimadas se decidirem se aventurar pelo mundo das ciências exatas. Ridicularizadas e afrontadas se demonstrarem apreço por itens do universo masculino.

Serão orientadas a ficarem quietinhas, caladas, de perna fechada, sem gritar, correr, protestar, porque “são meninas boazinhas”. Serão censuradas sempre que manifestarem desagrado, sempre que forem mais incisivas, que falarem aberta e objetivamente sobre seus desejos. Serão exploradas emocionalmente, chamadas de loucas.

Ouvirão desde o nascimento que o seu destino é “conseguir um namorado”. Que é a maternidade onde uma mulher se completa. Que felicidade está na manutenção de uma família e não de uma carreira. Que homem não gosta de mulher que não se cuida, não gosta de mulher inteligente, não gosta de mulher independente. Que outras mulheres são falsas e querem roubar seu homem de todo jeito. E apesar disso, também aprenderão a nunca confiar completamente no homem porque ele tem uma “natureza animal” irrefreável.

brincando de ser bela, recatada e do lar no inferno rosa

Essas são as instruções que todos nós recebemos e que nós, adultos, ensinamos para as crianças. Reforçamos e reforçamos e reforçamos estereótipos de gênero e prendemos as crianças nessa armadilha que as obriga a performar um personagem que muitas vezes está longe de fazer parte da essência dela, da personalidade dela.

Ou você, mulher, realmente se identifica com todas as características que são atribuídas ao sexo feminino? Elas fazem parte da sua personalidade só porque você nasceu com uma vagina? E você, homem? Você realmente nasceu assim?

Como é que se vai conhecer de verdade a personalidade do bebê se ele já nasce com tantas expectativas sobre como ele deve ser, se comportar, agir, só por causa do sexo biológico dele? E se todo esse treinamento de gênero que se está oferecendo não tiver nada a ver com ele? E se a menina odiar bonecas e adorar carrinhos? E se o menino adorar bonecas e odiar lutar?

Crianças são pessoas em desenvolvimento.

Crianças estão sofrendo por causa dos estereótipos de gênero. Por causa do seu machismo. Meninas e meninos estão sendo privados de um despertar pleno, de terem contato com o desenvolvimento de todas as suas habilidades porque só são estimulados pela metade.

Nossas crianças estão no meio de uma guerra de estereótipos e estão sofrendo. Tendo que atender desde cedo expectativas muito duras de comportamento. E isso é especialmente mais grave e cruel com nossas meninas, que são criadas para serem a parte mais fraca e são as maiores vítimas dessa cultura machista que violenta, abusa e mata mulheres.

Romper com os estereótipos é difícil mas não é uma tarefa impossível. É um enfrentamento que começa com o entendimento de como a engrenagem funciona e com o desmantelamento da sua lógica interna.

Vamos ser livres.

Nenhuma cesárea é uma escolha

Nenhuma cesárea é uma escolha. Mesmo a eletiva. Essa cirurgia que se tornou o padrão de via de nascimento em boa parte do mundo é tradicionalmente empurrada como uma “opção segura”, uma “decisão” entre médico e paciente para o melhor bem estar da mãe e do bebê. E sabemos que não é verdade. Mulheres são sistematicamente desmobilizadas e descoladas do ato de parir, como processo cultural mesmo. Sim, bebês sabem nascer e mulheres sabem parir, mas a verdade é que hoje, mulheres perderam completamente a autonomia sobre o processo de culminância das suas gravidezes e são encurraladas num lugar muito cruel onde são levadas a acreditar que estão realmente no controle. Não estão. Nunca estivemos.

  • o Brasil tem índices epidêmicos de realização de cesárea (No Brasil, este número chega a aproximadamente 56% em sua totalidade, onde a recomendação dá OMS é 15%. Considerando apenas as redes privadas, as cesáreas ultrapassam os 88%). Estes números estão absolutamente correlacionados com a forma como o sistema obstétrico brasileiro funciona. Não é a mulher que exatamente “escolhe” a via de parto que vai ter, sendo antes seduzida, convencida, induzida, coagida ou simplesmente forçada mesmo a este tipo de situação na esperança de garantir um mínimo de segurança física e emocional para si.
  • o Brasil tem índices alarmantes de violência obstétrica, uma em cada quatro mulheres no Brasil sofre violência durante a gestação ou parto, seja física, com a realização desnecessária de procedimentos (como toque doloroso ou episiotomia); seja psicológica (com restrição de movimentos, alimentação, negação do direito ao acompanhante); seja moral, com abuso verbal (“na hora de fazer, não doeu) e humilhações diversas (como sua exposição sem consentimento para um sem-números de residentes médicos, enema, tricotomia).
  • Toda a assistência ao parto no Brasil se utiliza de vários procedimentos completamente desatualizados que são desaconselhados pela OMS. Tanto para parto vaginal quanto para cesárea. E inclusive para as rotinas neonatais (separação precoce da mãe, corte precoce do cordão umbilical, uso de nitrato de prata, etc.)
  • Os hospitais da rede pública que atendem a protocolos de atendimento obstétrico atualizados são raríssimos. Na rede particular, são inexistentes mesmo, visto que a regra, por questões puramente econômicas, é forçar um encaminhamento para a cesárea. Exceto que se pague uma equipe de profissionais humanizados.
  • Uma equipe de parto humanizado hospitalar custa aproximadamente R$ 10.000,00. Um pouco menos ou muitíssimo mais. Depende do número de estrelas dos profissionais.
  • A informação que mulheres recebem sobre parto, fisiologia dos seus corpos, protocolos recomendados, realidade da questão obstétrica é quase nenhuma, equivocada, ou desatualizada. Elas são inundadas, durante a gravidez de desinformação, mitos (dor insuportável, vagina larga, etc) e as terríveis histórias de violência obstétrica que escuta de outras mulheres que a enchem de completo PAVOR da experiência de parto normal pelo SUS. E os médicos que existem na rede privada raramente realizam partos normais e ainda enganam suas pacientes com falsas indicações que fazem a mulher temer pela segurança do bebê.
  • Vivemos em uma cultura cesarista, onde o parto normal é visto como uma coisa selvagem e perigosa. A retratação do parto pela mídia quase sempre é mal acabada. Os partos cesáreos hoje estão sendo capitalizados para a além da questão do nascimento e sendo transformados em lucrativos negócios e para normatizar isso há todo um aparato cultural e midiático que glamouriza a cirurgia.

Portanto, é perfeitamente aceitável dizer que 99,9% das mulheres que fizeram cesárea eletiva, mesmo aquelas que conscientemente optaram por isso, não exatamente “escolheram” passar por essa cirurgia posto que muito certamente estavam em situação de amedrontamento, desinformação, completa falta de acesso a um parto vaginal seguro e sem violência, entre outras situações que configuram coação a optar por uma determinada coisa em detrimento de outra. Não podemos chamar isso de “escolha”, exatamente.

Não existe “empoderamento” individual. Empoderamento significa “dar poder a”. E mulheres não tem poder pra nada. Muito menos quando se tornam mães. Se uma mulher conseguiu ter o “parto dos sonhos”, ela não teve “empoderamento,” teve sorte ou dinheiro ou os dois. Um conjunto de fatores programados ou aleatórios que oportunizou conseguir acesso a boa informação, de ter rede de apoio, de ter acesso a um hospital público humanizado com vagas, ou capacidade para pagar uma equipe seja lá com que recursos, seja crédito para conseguir um empréstimo, amigos e parentes que ajudaram, patrimônio para vender. Não importa.

E alguém esteve lá, junto, segurando as pontas para que ela parisse sossegada e feliz. Uma doula. Um acompanhante que pode ter brigado com meia dúzia para prevenir abusos. Porque quando o trabalho de parto chega… não há mais nada que uma mulher possa fazer exceto torcer para tudo dar certo… e parir. Ela não precisa de “empoderamento” nenhum. Precisa de condições ambientais que a favoreçam. Parir via vaginal é um processo fisiológico básico de fêmeas.

A falácia do empoderamento

É até injusto jogar a falácia do “empoderamento” para cima de mulheres gestantes. Pedir que estas mulheres, neste momento tão fragilizante de suas vidas saiam enfrentando sozinhas médicos, companheiro, família, sistema obstétrico. Que façam dívidas e empenhem dinheiro que não possuem em nome de um parto vaginal decente que deveria ser protocolo padrão do sistema de saúde para o qual pagam onerosos impostos.

E não é minha intenção aqui, por outro lado, minimizar os esforços de desconstrução interna e as lutas que certamente todas essas mulheres travaram para conseguirem ter os seus partos humanizados. Não estou dizendo que não é muito difícil, que não é necessária muita fibra e coragem e enfrentamentos, e talvez seja este mesmo o ponto.

É preciso reconhecer que ter um parto vaginal respeitoso no Brasil, não se trata de apenas de “querer, lutar e conseguir”. Que não é porque algumas mulheres conseguiram que isso é realmente acessível para a maioria das mulheres. Olhemos os números, as estatísticas. O “parto dos sonhos” quase sempre se deve a uma conjuntura de fatores, alguns deles muito privilegiados, que não estão disponíveis para a avassaladora maioria das mulheres brasileiras. Não estão. É uma possibilidade que milhares de mulheres não tiveram, não têm e não terão, por mais que queiram. É preciso reconhecer isso.

E nesse contexto, é preciso respeitar a vivência das mulheres que fizeram cesárea eletiva porque em última instância, dado a realidade obstétrica brasileira, a chance dessa mulher ter passado por alguma violência nesse processo de “escolha” é altíssima. É quase absoluta. Mesmo que ela não saiba disso, ou pior ainda se ela souber disso. Inúmeros estudos demonstram que mulheres iniciam suas gestações desejando uma via de parto vaginal e que simplesmente vão “mudando de ideia”, durante o processo. O que acontece? É realmente vontade de fazer uma “cirurgia”? Ou é medo, desinformação, ou impossibilidade? Essas mulheres tiveram que escolher entre uma “cirurgia” e violência obstétrica. Dizer que elas não se “empoderaram” o bastante é uma piada cruel.

Mulheres que fazem cesárea eletiva são vítimas de um sistema que não conseguiram vencer. Que nem entenderam direito que tinham que lutar, na verdade. Quase toda mulher desconhece os desafios que tem pela frente para ter um parto respeitoso, até engravidar pela primeira vez. E diversas dessas mulheres se frustram e se culpam quando entendem que não vivenciaram a experiência mais adequada para o nascimento de seu filho. São mulheres que não possuíram apoio, não possuíram informação, não possuíram dinheiro, não possuíram amparo médico, não possuíram forças para comprar essa briga sozinhas. São mulheres que preferiram acreditar que estavam escolhendo. E que defendem isso com unhas e dentes porque é o que resta. Mulheres que estão apenas conformadas com a possibilidade da cesárea, tentando se convencer de que estão fazendo o “melhor para o seu filho”; que morrem de medo de um parto vaginal porque tem informações completamente equivocadas; que sofreram violência obstétrica, e SONHAM com uma cesárea por acreditar que serão melhor tratadas; mulheres que se culpam intimamente por não ter “lutado” pelo tão aclamado parto vaginal.

E precisamos levar esses fatores em consideração para poder lutar por um sistema que respeite e atende de verdade mulheres gestantes, não podemos localizar todo o problema na culminância do processo sem levar em conta todo o trajeto que vai minando as mulheres e pior, manipulando-as para que elas defendam práticas que são comprovadamente mais prejudiciais a ela e ao bebê. E isso vai desde mitos de “alargamento vaginal” que faz com que mulheres tenham medo de parir para não se tornar menos desejadas ao parceiros, até o desencorajamento sobre a experiência da dor. Mulheres precisam de informação e apoio desde antes de engravidarem para que possam compor a luta por um sistema acolhedor de verdade para as demandas da gestação e do parto.

Tem coisas bacanas acontecendo, de verdade. Discussões sérias de práticas obstétricas, profissionais empenhados, espaços de acolhidamobilização em função de projetos do Estado, mudança cultural rolando. São conquistas do movimento de humanização que precisamos retirar da bolha, desmercantilizar. Um parto seguro não pode ser um privilégio econômico.