Nenhuma cesárea é uma escolha

Nenhuma cesárea é uma escolha. Mesmo a eletiva. Essa cirurgia que se tornou o padrão de via de nascimento em boa parte do mundo é tradicionalmente empurrada como uma “opção segura”, uma “decisão” entre médico e paciente para o melhor bem estar da mãe e do bebê. E sabemos que não é verdade. Mulheres são sistematicamente desmobilizadas e descoladas do ato de parir, como processo cultural mesmo. Sim, bebês sabem nascer e mulheres sabem parir, mas a verdade é que hoje, mulheres perderam completamente a autonomia sobre o processo de culminância das suas gravidezes e são encurraladas num lugar muito cruel onde são levadas a acreditar que estão realmente no controle. Não estão. Nunca estivemos.

  • o Brasil tem índices epidêmicos de realização de cesárea (No Brasil, este número chega a aproximadamente 56% em sua totalidade, onde a recomendação dá OMS é 15%. Considerando apenas as redes privadas, as cesáreas ultrapassam os 88%). Estes números estão absolutamente correlacionados com a forma como o sistema obstétrico brasileiro funciona. Não é a mulher que exatamente “escolhe” a via de parto que vai ter, sendo antes seduzida, convencida, induzida, coagida ou simplesmente forçada mesmo a este tipo de situação na esperança de garantir um mínimo de segurança física e emocional para si.
  • o Brasil tem índices alarmantes de violência obstétrica, uma em cada quatro mulheres no Brasil sofre violência durante a gestação ou parto, seja física, com a realização desnecessária de procedimentos (como toque doloroso ou episiotomia); seja psicológica (com restrição de movimentos, alimentação, negação do direito ao acompanhante); seja moral, com abuso verbal (“na hora de fazer, não doeu) e humilhações diversas (como sua exposição sem consentimento para um sem-números de residentes médicos, enema, tricotomia).
  • Toda a assistência ao parto no Brasil se utiliza de vários procedimentos completamente desatualizados que são desaconselhados pela OMS. Tanto para parto vaginal quanto para cesárea. E inclusive para as rotinas neonatais (separação precoce da mãe, corte precoce do cordão umbilical, uso de nitrato de prata, etc.)
  • Os hospitais da rede pública que atendem a protocolos de atendimento obstétrico atualizados são raríssimos. Na rede particular, são inexistentes mesmo, visto que a regra, por questões puramente econômicas, é forçar um encaminhamento para a cesárea. Exceto que se pague uma equipe de profissionais humanizados.
  • Uma equipe de parto humanizado hospitalar custa aproximadamente R$ 10.000,00. Um pouco menos ou muitíssimo mais. Depende do número de estrelas dos profissionais.
  • A informação que mulheres recebem sobre parto, fisiologia dos seus corpos, protocolos recomendados, realidade da questão obstétrica é quase nenhuma, equivocada, ou desatualizada. Elas são inundadas, durante a gravidez de desinformação, mitos (dor insuportável, vagina larga, etc) e as terríveis histórias de violência obstétrica que escuta de outras mulheres que a enchem de completo PAVOR da experiência de parto normal pelo SUS. E os médicos que existem na rede privada raramente realizam partos normais e ainda enganam suas pacientes com falsas indicações que fazem a mulher temer pela segurança do bebê.
  • Vivemos em uma cultura cesarista, onde o parto normal é visto como uma coisa selvagem e perigosa. A retratação do parto pela mídia quase sempre é mal acabada. Os partos cesáreos hoje estão sendo capitalizados para a além da questão do nascimento e sendo transformados em lucrativos negócios e para normatizar isso há todo um aparato cultural e midiático que glamouriza a cirurgia.

Portanto, é perfeitamente aceitável dizer que 99,9% das mulheres que fizeram cesárea eletiva, mesmo aquelas que conscientemente optaram por isso, não exatamente “escolheram” passar por essa cirurgia posto que muito certamente estavam em situação de amedrontamento, desinformação, completa falta de acesso a um parto vaginal seguro e sem violência, entre outras situações que configuram coação a optar por uma determinada coisa em detrimento de outra. Não podemos chamar isso de “escolha”, exatamente.

Não existe “empoderamento” individual. Empoderamento significa “dar poder a”. E mulheres não tem poder pra nada. Muito menos quando se tornam mães. Se uma mulher conseguiu ter o “parto dos sonhos”, ela não teve “empoderamento,” teve sorte ou dinheiro ou os dois. Um conjunto de fatores programados ou aleatórios que oportunizou conseguir acesso a boa informação, de ter rede de apoio, de ter acesso a um hospital público humanizado com vagas, ou capacidade para pagar uma equipe seja lá com que recursos, seja crédito para conseguir um empréstimo, amigos e parentes que ajudaram, patrimônio para vender. Não importa.

E alguém esteve lá, junto, segurando as pontas para que ela parisse sossegada e feliz. Uma doula. Um acompanhante que pode ter brigado com meia dúzia para prevenir abusos. Porque quando o trabalho de parto chega… não há mais nada que uma mulher possa fazer exceto torcer para tudo dar certo… e parir. Ela não precisa de “empoderamento” nenhum. Precisa de condições ambientais que a favoreçam. Parir via vaginal é um processo fisiológico básico de fêmeas.

A falácia do empoderamento

É até injusto jogar a falácia do “empoderamento” para cima de mulheres gestantes. Pedir que estas mulheres, neste momento tão fragilizante de suas vidas saiam enfrentando sozinhas médicos, companheiro, família, sistema obstétrico. Que façam dívidas e empenhem dinheiro que não possuem em nome de um parto vaginal decente que deveria ser protocolo padrão do sistema de saúde para o qual pagam onerosos impostos.

E não é minha intenção aqui, por outro lado, minimizar os esforços de desconstrução interna e as lutas que certamente todas essas mulheres travaram para conseguirem ter os seus partos humanizados. Não estou dizendo que não é muito difícil, que não é necessária muita fibra e coragem e enfrentamentos, e talvez seja este mesmo o ponto.

É preciso reconhecer que ter um parto vaginal respeitoso no Brasil, não se trata de apenas de “querer, lutar e conseguir”. Que não é porque algumas mulheres conseguiram que isso é realmente acessível para a maioria das mulheres. Olhemos os números, as estatísticas. O “parto dos sonhos” quase sempre se deve a uma conjuntura de fatores, alguns deles muito privilegiados, que não estão disponíveis para a avassaladora maioria das mulheres brasileiras. Não estão. É uma possibilidade que milhares de mulheres não tiveram, não têm e não terão, por mais que queiram. É preciso reconhecer isso.

E nesse contexto, é preciso respeitar a vivência das mulheres que fizeram cesárea eletiva porque em última instância, dado a realidade obstétrica brasileira, a chance dessa mulher ter passado por alguma violência nesse processo de “escolha” é altíssima. É quase absoluta. Mesmo que ela não saiba disso, ou pior ainda se ela souber disso. Inúmeros estudos demonstram que mulheres iniciam suas gestações desejando uma via de parto vaginal e que simplesmente vão “mudando de ideia”, durante o processo. O que acontece? É realmente vontade de fazer uma “cirurgia”? Ou é medo, desinformação, ou impossibilidade? Essas mulheres tiveram que escolher entre uma “cirurgia” e violência obstétrica. Dizer que elas não se “empoderaram” o bastante é uma piada cruel.

Mulheres que fazem cesárea eletiva são vítimas de um sistema que não conseguiram vencer. Que nem entenderam direito que tinham que lutar, na verdade. Quase toda mulher desconhece os desafios que tem pela frente para ter um parto respeitoso, até engravidar pela primeira vez. E diversas dessas mulheres se frustram e se culpam quando entendem que não vivenciaram a experiência mais adequada para o nascimento de seu filho. São mulheres que não possuíram apoio, não possuíram informação, não possuíram dinheiro, não possuíram amparo médico, não possuíram forças para comprar essa briga sozinhas. São mulheres que preferiram acreditar que estavam escolhendo. E que defendem isso com unhas e dentes porque é o que resta. Mulheres que estão apenas conformadas com a possibilidade da cesárea, tentando se convencer de que estão fazendo o “melhor para o seu filho”; que morrem de medo de um parto vaginal porque tem informações completamente equivocadas; que sofreram violência obstétrica, e SONHAM com uma cesárea por acreditar que serão melhor tratadas; mulheres que se culpam intimamente por não ter “lutado” pelo tão aclamado parto vaginal.

E precisamos levar esses fatores em consideração para poder lutar por um sistema que respeite e atende de verdade mulheres gestantes, não podemos localizar todo o problema na culminância do processo sem levar em conta todo o trajeto que vai minando as mulheres e pior, manipulando-as para que elas defendam práticas que são comprovadamente mais prejudiciais a ela e ao bebê. E isso vai desde mitos de “alargamento vaginal” que faz com que mulheres tenham medo de parir para não se tornar menos desejadas ao parceiros, até o desencorajamento sobre a experiência da dor. Mulheres precisam de informação e apoio desde antes de engravidarem para que possam compor a luta por um sistema acolhedor de verdade para as demandas da gestação e do parto.

Tem coisas bacanas acontecendo, de verdade. Discussões sérias de práticas obstétricas, profissionais empenhados, espaços de acolhidamobilização em função de projetos do Estado, mudança cultural rolando. São conquistas do movimento de humanização que precisamos retirar da bolha, desmercantilizar. Um parto seguro não pode ser um privilégio econômico.

De um corpo que é só seu

Nenhuma mulher tem um corpo que é só seu. Quando nascemos mulher a demarcação do nosso corpo como um objeto de beleza e apreciação (não admiração) é uma coisa completamente naturalizada. A partir do momento em que o médico informa nosso sexo feminino aos nossos pais, todo um arsenal começa a ser providenciado para que nos apresentemos à sociedade sempre bela e recatada. “Sexy sem ser vulgar”.

Quando somos recém-nascidas, nossas orelhas são perfuradas, a despeito da dor, do desconforto, da nossa incapacidade de expressar consentimento, porque precisamos rapidamente informar ao mundo que somos meninas.

Nos anos seguintes os demais marcadores estéticos vão se apresentando um a um: como devem parecer nossos cabelos (graciosos, bem penteados, com acessórios, “domados”), como devemos estar vestidas (tons pastéis, tecidos flutuantes, vestidos, saias, “como uma princesa”), como devemos nos comportar (sem correr, sem gritar, pernas fechadas “como uma mocinha”).

Pré-púbere, o corpo feminino já está “pronto” para ser rifado e impiedosamente é empurrado a se apresentar como “feito”, sexualizado. A sensualidade precoce é glamourizada, cobiçada (“novinha”, “ninfeta”, “Lolita”). E as adolescentes sofrem, adoecem, se mutilam, se suicidam, caso não se encaixem no padrão imposto de como devem se parecer: “bonita”. Essa característica que toda menina aprende que é a principal qualidade de uma mulher, o seu grande atributo e atrativo. O principal (e muitas vezes único) elogio que uma mulher recebe na vida.

Ser “bonita”. Que quer dizer, na verdade, ser um objeto sexualmente atrativo para outros homens.

Por toda a vida, a mulher aprende que o próprio corpo não lhe pertence. Que ele existe para atender expectativas das outras pessoas. Da sociedade. Dos homens. E ela paga, literalmente, um preço alto por essa aceitação social. Para se adequar ao que é considerado correto sobre como uma mulher deve parecer. Todas ou quase todas as intervenções que são feitas rotineiramente no corpo feminino envolvem algum nível de dor, desconforto, privação, custo financeiro, tempo: manicure, pedicure, tratamento facial, tratamento corporal, maquiagem, depilação, tratamentos capilares, tinturas, dietas, preenchimentos diversos, enchimentos, implantes. Um cardápio diversificado de cirurgias plásticas estéticas: na face, seios, barriga, pernas, nádegas, mãos, pés, vagina. Nenhuma parte do corpo feminino está livre de policiamento.

Somos doutrinadas para agir assim, achar normal, achar que é “porque gostamos”, “porque queremos”. Estar “bem”, na verdade é estar “bela”. E não suportamos a ideia de não sermos bonitas o bastante. Nossa estima é construída em torno disso. Para delírio do mercado. Que tudo vende para alimentar essa necessidade construída. Vivemos o eterno dilema entre a repulsa por sermos objetificadas e a necessidade de sermos queridas. Sendo que não há aceitação possível para uma mulher em uma sociedade machista como a nossa que não passe pela objetificação de seu corpo.

E o que acontece quando a mulher engravida? Quando esse corpo, que a sua vida inteira não lhe pertenceu de fato, se transforma radicalmente e sua principal função, pelo menos temporariamente, muda? O que acontece com a mulher quando deixa de ser prioritariamente um objeto de consumo sexual para ser um corpo que gesta outro?

Note que apesar da função do corpo feminino mudar com uma gestação, a tutela não cessa. Só se reconfigura. Toda a sociedade se encarrega de vigiá-la para que se cumpra as regras implícitas que estão muito bem demarcadas para a maternidade. O que vestir, o que comer, como se sentir, como se comportar, o que comprar. Já está tudo pré-definido, assim como os limites até onde ir: o quanto engordar, como não adquirir estrias, ou manchas. E esse corpo que gesta também não é só da mulher. Ele é um binômio mãe-bebê. Indissociável. Um duplo.

Mas então finalmente o bebê nasce. E o corpo é devolvido à mulher. Irreconhecível, transformado. Que nunca mais será como foi. Um híbrido que não tem mais a função da gestação e tampouco um corpo que atende ao padrão de objeto sensual.

O corpo depois dos filhos é outro. Que pode ter diástase. Barriga. Estrias, flacidez, manchas. Que pode ter cicatrizes. Seios diferentes. Que ostenta as marcas da batalha da gravidez.

A sociedade rejeita e repele esse corpo novo. O que vemos nas revistas, sites, televisão, são mulheres que parecem as mesmas de antes de engravidarem. Como se nunca tivessem parido. A pressão para recuperar o corpo “perdido” é absurda e as mulheres vivem um verdadeiro luto por conta da “perda” desse corpo. E são estimuladas a terem asco de si mesmas após o parto ao invés de ficarem maravilhadas com sua própria biologia e o que ela é capaz de realizar.

Mas esse tal corpo “perdido” que era destinado a ser apreciado e sexualmente desejável pertencia de fato à mulher? A quem se destina tantos rituais de feminilidade e beleza? Para agradar a quem? Para o olhos de quem? Precisamos mesmo disso?

E se nesse caminho entre uma coisa e outra, em meio a barriga flácida, as marcas, as olheiras, os seios inchados. E se nesse momento em que não se tem mais tanto tempo para se ocupar dos rituais de feminilidade, talvez (e repito, apenas talvez) haja uma janela de oportunidade para repensar a relação com o próprio corpo? De se reapropriar de si mesma? Nem que seja por esse instante? Não é pouca coisa, numa vida inteira de objetificação.

O corpo do pós-parto é um corpo transgressor que grita aos quatro cantos que aquela mulher gestou uma vida. É um corpo que deveria ser orgulhoso e não envergonhado. Reapropriado, onde cada marca, cada dobra tem uma memória que é só sua. Metamorfoseado.

Mulher, esse corpo é teu. Orgulhe-se dele. É um corpo que fez outro ser humano das suas próprias células. Que acomodou no ventre um bebê em crescimento pleno de si, o alimentou, o aconchegou e o pariu. Não percebe como isso é fantástico? Como não amar esse corpo? Como não achar isso belo?

Não vamos seguir deixando que os homens nos validem segundo seus desejos. Nós não somos meros objetos de apreciação estética. De desejo sexual. Nossos corpos tem valor para além dos padrões de beleza. Sim, é muito difícil romper com isso. Mas podemos tentar fazer isso por nós mesmas. Nos emancipar da validação masculina é tomar nosso corpo de volta.