Educar filhos é sobre escolher batalhas e não deixar feridos

Educar filhos é sobre escolher batalhas e não deixar feridos. A menina devia ter uns 2 ou 3 anos no máximo. Estávamos no meio do saguão da Receita Federal. Ela chorava desconsolada junto ao pai que estava ajoelhado na sua frente e impenetrável exigia que a criança pegasse um objeto que ela tinha atirado para longe num rompante de raiva.

A mãe, ao lado, observava impassível a cena. Decerto havia uma lógica naquilo tudo e talvez uma lógica correta dentro daquilo que aqueles pais acreditavam. Era preciso educar a criança, não importa onde, não importa como, não importa quanto tempo levasse. Ela atirou um objeto em um momento de birra e deveria portanto ajustar seu comportamento imediatamente, apresentando sua compreensão do ato, as mais sinceras desculpas e a correção do destempero. E os pais estavam ali naquela árdua missão. Certo? Todos concordamos?

Bom, sei lá. Às vezes eu acho que mesmo no meio das nossas boas intenções podemos ser projetos de ditadores com nossos filhos. Somos obcecados em mostrar e estabelecer nossa autoridade e sim isso é importante para nos posicionarmos como referência mas tampouco é a única estratégia, ou mesmo a mais acertada. Muitas vezes o que essa possibilidade faz é despertar a megalomania que há em nós. Queremos ser mais que pais. Queremos ser chefes. Comandantes. Que os filhos PRECISAM respeitar. PRECISAM obedecer. Porque somos os PAIS. E isto nos investiu com o poder sagrado sobre a vida dos filhos.

Mas toda essa reflexão me veio também porque a menininha lá chorava desconsoladamente, as vezes estendia os braços pedindo colo… Ela visivelmente já não estava entendendo mais nada, não sabia porque o pai ainda estava ali abaixado com cara de bravo e não a deixava sair. O que ela queria mesmo era um abraço, um picolé, ver Patati Patatá. Era uma menina de no máximo 3 anos, que teve um arroubo emocional.

Adultos fazem isso o tempo todo, gritam, saem batendo portas. É difícil mesmo se controlar às vezes e a maioria passa a vida tentando sem sucesso. Eu não acho que essa sociedade de adultos exaltados de hoje é formada por pessoas que foram crianças “sem limites”. Crianças cujos pais não tentaram controlá-las sob a desculpa de que as estavam ensinando. Ao contrário, a maioria de nós foi adestrada à base de muita violência física, verbal e psicológica, e isso resultou num total de muitos nadas porque crescemos e formamos essa sociedade de pessoas destemperadas, pouco afeitas ao diálogo e que naturalizam agressão.

Enfim, talvez, naquela situação, fosse mais fácil pegar a criança no colo, consolá-la, tentar ensinar outras maneiras de lidar com a raiva. Não estou dizendo também que devemos simplesmente ser permissivos com tudo que os filhos fazem. Mas é preciso escolher as batalhas na maioria das vezes e é preciso manter o foco para não ser engolido pela necessidade de mostrar autoridade a qualquer custo. É possível ensinar de muitas maneiras, acolhendo, dando o exemplo, algumas vezes sendo mais enérgico, mas sem esquecer o que estamos fazendo ali: tentando ensinar a essas pequenas criaturinhas estratégias para sobreviver nessa selva chamada planeta Terra. Ensiná-las a serem empáticas, a conhecerem suas emoções e lidar com elas. No ritmo e no tempo que elas consigam fazer isso. Repito, muita gente chega na vida adulta e ainda não conseguiu fazer metade do que se exige das crianças.

Até por isso, se dê algum desconto também. Porque você pode inclusive nem ser a melhor pessoa para essa tarefa: educar uma criança. Acontece. Pais acham que só porque geraram um filho se graduaram em psicologia, pedagogia, sociologia, pediatria, tudo junto. O conjunto de habilidades e conhecimentos necessários para se criar uma criança não brota por mágica com o nascimento da mesma. A necessidade de preparar-se para a parentalidade é uma realidade, nós simplesmente desconhecemos o funcionamento de bebês, crianças e adolescentes até nos deparamos com a necessidade de lidar com eles (e fazê-los sobreviver).

E estamos longe de saber alguma coisa né? Na maioria das vezes estamos tateando muito mais agarrados em convicções do que em certezas. Reproduzimos aquilo que achamos que deu certo na nossa socialização, que quase sempre é um desastre completo. Não que a gente se dê conta disso também. Vamos levando adiante. Pensamos “eu não matei, não roubei, não fui preso, devo ser uma boa pessoa, obrigada mamãe e papai”. Mas só você sabe o peso emocional que você carrega para se manter de pé todos os dias. A carência que você tem de recursos para lidar com a vida. E é isso. Seguimos reproduzindo a espécie. E sim, você simplesmente pode estar bastante coisa errada por aí, e seus pais podem ter feito bastante coisa errada com você. Culpa sua? Não. Culpa deles? Sim e não, também. Todo mundo está fazendo o seu melhor e os consultórios de terapia consertando os estragos para quem consegue ter acesso a eles.

E tudo isso para dizer que educação sem acolhimento não resolve muita coisa, no fim. E acolhimento não é aceitar tudo, abrir mão de ensinar valores, ética, as regras sociais. Acolhimento é perceber que seu filho está chorando desconsoladamente e naquele momento precisa de um abraço, não de uma bronca. A gente não devia deixar ninguém chorar desconsoladamente em nome de nada. Muito menos aos nossos filhos. Se a gente não tem muita certeza do que está ensinando, se somos todos meio cegos tateando para tentar sobreviver neste mundo, que ao menos seja de mãos dadas. Acolhendo uns aos outros. Que seu filho tenha a lembrança de que você foi a pessoa que o ensinou a ser uma “pessoa de bem”, mas também a pessoa que esteve ao seu lado e o ajudou a ser mais feliz.

E que com filhos a gente está o tempo todo escolhendo as batalhas que vai travar, porque tudo é desgastante. E nem tudo vale a pena, às vezes é só desgaste mesmo. É fácil perder o foco do que se está fazendo e dos motivos pelos quais estamos fazendo algo aos filhos. A gente tenta ensinar muita coisa que nem a gente aprendeu direito. Acho até que a gente consegue ensinar mais quando admite pra si mesmo que sabe muito pouco e que também tem vontade de sentar no chão e espernear junto para ver se alguém se compadece e resolve o seu problema.

Não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”

Acho que uma das partes mais complicadas de se criar filhos hoje em dia é conseguir passar os valores de que não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”. Uma vez me perguntaram se eu deixaria meu filho sair com vestidos, unhas pintadas e coisas que são atribuídas às meninas. Eu fui bastante honesta na resposta: que dependeria. Se ele estivesse indo para algum lugar onde suas roupas fora do padrão de gênero não fossem causar grandes transtornos a ele, deixaria sim. Mas se fosse algum lugar onde ele pudesse ser fortemente rechaçado ou rejeitado, talvez eu não o expusesse, tão jovem (ele tem 3 anos e meio) a uma situação que ele não entenderia, não saberia lidar e ainda poderia magoá-lo profundamente.

E como eu lido com o desejo, muito natural, do meu filho usar coisas ditas “femininas”? Pessoalmente, eu nem ligo. Até porque ele não vê as coisas divididas dessa forma. Roupas são roupas, cores são cores, brinquedos são brinquedos. Com o tempo, inevitavelmente, ele vai ser apresentado a essas classificações arbitrárias e aí teremos um novo desafio que é diminuir o peso disso, para que ele continue se relacionando da maneira menos danosa possível com os estereótipos de gênero.

E por que meu filho não sabe o que são “coisas de meninas” e “coisas de meninos”? Porque até agora ninguém ensinou. Ele chegou até aqui sem ouvir a famigerada frase “isso não é para você”, ou “ isso é de menina”, ou “meninos fazem assim”, e sai por aí feliz na bicicleta cor-de-rosa que herdou da prima sem nenhum trauma ou dor na consciência. Assim como brinca com ela com as bonecas e com os carrinhos e com todos os brinquedos possíveis à disposição.

E aí é importante dizer que sim, é perfeitamente possível atravessar boa parte da primeira infância da educação de um filho sem ter que entrar no mérito do que teoricamente pertence ao mundo das meninas e o que pertence ao mundo dos meninos. Esse tipo de informação e instrução não representa nada além de uma limitação do universo. O que crianças precisam entender é que há coisas que são adequadas e permitidas a ela e outras que não são, que só são adequadas e permitidas quando elas crescerem. E isso já resolve muita coisa. O mundo para elas, na verdade é muito mais dividido em “coisas de crianças” e “coisas de adultos” que qualquer outra coisa. E essa é uma noção muito importante, inclusive para a segurança delas.

E que resolve muita coisa. “posso jogar Resident Evil?”, “não, isso é coisa de adultos”, “posso beber esse vinho?”, “não, você ainda é pequeno”, “posso mexer nessa faca?”, “melhor crescer mais um pouco”. Acredito inclusive que consigo manter essa lógica com adaptações até ele completar 18 anos.

Até porque, há uma infinidade de outras informações mais relevantes que uma criança deve saber desde bebê que não passam por dividir o mundo em azul e rosa. Tipo, o nome das partes do corpo. Inclusive, e principalmente dos genitais. Deve saber que não pode deixar ninguém encostar a não ser quem é o responsável por dar banho nele e higienizar. Deve saber que ele não deve encostar nos genitais de ninguém, mesmo que peçam. Que beijo na boca é coisa de adulto. Que crianças e adultos não ficam sem roupas juntos. Que ele deve pedir permissão para abraçar outras crianças caso queira e que se elas não quiserem, ele não deve insistir. Por exemplo.

E é isso, não se preocupe em antecipar-se, o seu filho vai entender os códigos. É fácil notar que o mundo é binário e ele vai se identificar ou não com um determinado grupo, e aí cabe a você apoiá-lo para que se sinta confortável e consiga expressar sua autenticidade. Porque em algum momento ele vai ser cobrado para que defenda as leis do gênero em que nasceu inserido. E se ele conseguir chegar nesse momento consciente de que essas regras não tem o menor sentido, de que ele não precisa se submeter, vai ter força para, quem sabe, realizar os enfrentamentos necessários para gente combater tanta coisa ruim que os estereótipos de gêneros nos trazem, tanto machismo estrutural. Quem sabe? São sementes que a gente planta, tentativas que nós fazemos.

Eu, como mãe feminista, realmente não tenho nenhuma garantia de que meu filho não vai ser machista. Eu não tenho ilusões de que ele será imune. Mas enquanto eu puder mostrar a ele como o mundo pode ser bem mais fácil, para todos, quando a gente não se submete a este chicote do gênero, vamos lá. É um dia de cada vez. Quem sabe a revolução não será materna?

Como meu filho aprendeu que era um menino

Sempre me perguntam como eu ensino meu filho sobre gênero. Uma boa resposta é a história sobre como meu filho aprendeu que era um menino. É muito fácil constatar que ensinamentos sobre estereótipos de gênero são absolutamente desnecessários para crianças.

Até os 3 anos meu filho não sabia “oficialmente” que era um menino. Nunca tinha surgido uma oportunidade ou a necessidade que eu lhe desse essa informação.

Vamos pensar um pouco: que diferença faz para uma criança, principalmente uma muito jovem, se ela é menino ou menina?

Uma vez, ele tinha cerca de dois anos e estava vendo um desenho aleatório na TV onde tinha um casal de gatos. Os animais eram desenhados de maneira absolutamente igual sendo diferenciados somente por um efusivo batom vermelho e um par de longos cílios (recurso usado para demarcar qual seria a fêmea). Num determinado momento, só a fêmea ficou enquadrada na tela e meu filho disse “olha o gatinho”. Meu primeiro impulso foi corrigir e dizer “é uma gatinha, ela é menina”, mas me contive. O que eu ia dizer para ele ali? Que aquela gata era fêmea porque usava batom? Que era porque tinha cílios compridos e olhos oblíquos para simular sensualidade? É isso que define uma fêmea? Batom nos lábios? Que diabos isso queria dizer? E a ausência de sentido dessa explicação fez com que meu alerta vermelho acendesse para que eu não colocasse meus pés na longa estrada do reforço dos estereótipos de feminilidade e aí eu me calei. Ele tinha 2 anos, em nada, absolutamente nada, a informação que eu ia dar espontaneamente sobre ser um menino ou uma menina, ou mesmo se os amiguinhos com que ele brincava eram meninos ou meninas faria diferença para ele.

Já nessa época eu comecei a instruí-lo sobre o próprio corpo, com noções de prevenção de abuso, ensinando o nome de todas as partes corpo, quais deveriam ter mais atenção, ser mais protegidas. Isso aumentou a consciência corporal dele e o um dia, no banho, veio a pergunta inevitável: “mamãe, cadê o seu piupiu?”. “Eu não tenho piupiu, tenho “perereca” (nos meus sonhos engajados eu planejava dizer que mulheres tem “vulva” bla bla bla, mas foi o que saiu). Meu filho fez alguns instantes de silêncio e a questão definidora, que importa, surgiu: “por que?”. “Porque eu sou uma menina. Meninas tem perereca e meninos tem piupiu”. “O papai tem piupiu?”, ele perguntou. “O papai tem piu piu.”, respondi. “O papai tem piupiu, ele é menino. A mamãe tem peleleca (sic), ela é menina!”, ele aferiu.

A partir daí seguiu-se um período entre engraçado e constrangedor porque ele passou um tempo perguntando para pessoas mais próximas se elas tinham “pinto” ou “perereca” e checando a informação sobre ser menino ou menina. E aos poucos ele passou a observar também outros caracteres secundários como presença de barba ou seios.

Isto não significa, tampouco, que eu o estava criando “sem gênero”, ou coisa parecida, isso é impossível. Crianças são bastante perceptivas e muito rapidamente ele percebeu que ele mesmo era um menino, e que o grupo de pessoas que era classificado como “menino”, a qual ele pertencia, tinha códigos próprios de comportamento e vestimenta, assim como o grupo que era classificado como “menina”. Ele aos poucos (para o bem e para o mal) vai percebendo qual é a sua “turma”.

Eu, da minha parte, sempre busquei comprar todo tipo de brinquedos e sempre privilegiei critérios como conforto e qualidade para escolha de suas roupas, por exemplo, mas — obviamente — acabo comprando suas roupas prioritariamente na seção masculina (embora ela vista feliz várias camisetas das primas). Quando a gente se esforça (e realmente demanda muito esforço, muita desconstrução pessoal) para socializar uma criança minimizando os impactos dos estereótipos de gênero, é meio assim.

Na real, a gente entende que não existe nem uma pergunta para qual a resposta seja: “porque você é menino / menina”, assim como nenhuma orientação específica a ser dada . Exceto para questões biológicas específicas. Por exemplo: “por que eu faço xixi sentada?”, “porque você é menina, tem uma vulva, e anatomicamente é mais confortável fazer assim, meninos podem fazer das duas maneiras, em pé e sentado, porque eles têm um pênis que facilita anatomicamente”. É isso. Todo o resto (“meninos não choram”, “meninas não gritam”, “meninos não brincam de boneca”, etc, etc) são estereótipos, completamente ausentes de sentido lógico, que não seja condicionar o comportamento dessas crianças para dominação/submissão.

Meu filho agora está com 6 anos e há coisas que — até agora — ele conseguiu passar em branco. O mundo dele é muito mais dividido em um mundo de crianças e adultos que de meninos e meninas. Cores, por exemplo. As preferidas dele são azul e vermelho, e ele acha rosa uma cor linda. Ele gosta de Pokemon tanto quando da Barbie Sereia (e acha o cabelo delas “lindo”). Tem vários heróis e heroínas. E uma vez eu perguntei “me diz uma coisa que seja uma coisa de menina?”, e ele respondeu: “não tem nada, só a perereca”. Eu ri. Tá eu também chorei. Porque isso é uma vitória pessoal que eu trago — até aqui. Amanhã eu não sei. É uma batalha diária. A vida está aí, socialização não é algo que a gente consiga controlar completamente. Existe o meu menino, e existe o mundo. E o mundo é patriarcal e ardiloso.

Mas nós podemos sim, ensinar a nossas crianças que elas são meninos e meninas, por um detalhe anatômico que não faz a menor diferença pra elas porque são crianças. E podemos sim poupá-las o máximo possível da socialização de gênero, minimizar este impacto enquanto conseguirmos. Deixar pelo menos a infância delas mais leve, mais rica de experiências. Porque o que gênero ensina é sobre opressão, não é sobre liberdade. É sobre meninos serem fortes e meninas serem fracas. Sobre meninos odiarem rosa — e odiarem meninas. É sobre meninas serem princesas lindas, frágeis, à espera de um menino que vai querer casar com elas. Sobre meninos serem agressivos uns com os outros. Gênero ensina sobre quem manda e quem obedece. Ensina hierarquia. E crianças são apenas crianças. Nada disso faz sentido ou faz falta pra elas. Somos nós adultos que, irrefletidamente, fazemos um esforço continuado nessa domesticaçao. Capatazes que somos, do patriarcado. Adultizando crianças, querendo transformá-las em homens e mulheres em miniatura, em hábitos, vestuário, e comportamentos.

Sexo e gênero são coisas bastante distintas que tem — propositadamente — se confundido na mente de todas. Precisamos demarcar essa diferença. Porque nosso sexo não deveria nos condicionar a nada. Não condiciona como somos, o que gostamos, sentimos, queremos. E gênero é uma opressão. É sobre cumprir um papel social baseado no seu sexo. Estereótipos de gênero são uma prisão. Vamos criar nossas crianças livres para serem o que precisarem ser para estarem felizes. É mais simples do que parece, basta tentar.

20 coisas fundamentais para se dizer a meninas

Há coisas fundamentais para se dizer a meninas durante sua socialização que certamente farão muita diferença sobre a maneira como elas irão para um mundo patriarcal que espera delas uma postura de subalternidade e submissão aos homens. Vamos ver?

1. Não existem “coisas de menina” e “coisas de menino”

Você sabia que antigamente azul é que era uma cor de menina? E que o rosa é que era uma cor de menino? Cores são apenas cores. Adultos é que inventam classificações arbitrárias que de repente mudam. Você tem o direito de escolher o que gosta e o que não gosta, entre roupas, brinquedos, o seu jeito de ser. Não é porque você não gosta das “coisas de menina”, ou prefere as tais “coisas de menino” que tem alguma coisa errada. Ao contrário. É perfeitamente normal gostar de tudo um pouco com tantas opções legais que têm por aí. Você pode correr, pular, se sujar, gritar, gargalhar, subir em coisas. Você é rápida, é esperta, e é forte. Você também pode ser uma princesa, ou uma heroína, ou o que a sua imaginação permitir. Ou brincar de casinha e comidinha. E se os meninos quiserem brincar disso com você também, que bacana! Quando todos brincam juntos é sempre muito mais legal. Também não existe “brinquedo de menina” e “brinquedo de menino”. Você pode brincar com bola, videogames, carrinhos e aeronaves. Pode brincar com super-heróis, jogos de tabuleiro, jogos de montar. Ler gibis de ação e aventura. Bonecas, jogos de cozinha, pintura também são super divertidos. Você pode gostar do que quiser, ser como quiser, e está tudo bem. Você é apenas uma menina e deve experimentar o mundo.

2. Crianças não namora

Você não tem namoradinhos. Criança não namoram. Crianças brincam e estudam. Você não precisa se preocupar com seu comportamento ou sua aparência para que alguém “goste de você e queira namorar com você”. Você não precisa ceder se algum amigo seu disser que “quer namorar com você” ou que é seu “namorado. Crianças são amigas umas das outras. Apenas isso. E adultos, de maneira nenhuma “namoram” crianças. Namoro é coisa de adultos. Há pessoas adultas que namoram e pessoas adultas que não namoram, inclusive. Quando você crescer vai gostar de alguém e vai poder namorar, se você quiser. Alguém que também goste de você exatamente como você é, te respeite, te admire e queira estar com você.

3. Ninguém pode tocar o corpo de ninguém sem consentimento

Seu corpo é apenas seu e não deve ser tocado por ninguém sem seu consentimento expresso. Você não precisa receber nem dar abraços ou beijos se não quiser. Se alguém tocar o seu corpo sem pedir sua permissão se afaste e diga “eu não quero que você me toque. Ninguém pode tocar no meu corpo sem a minha permissão”. E conte tudo para um adulto da sua confiança que possa ajudá-la com isso. E não se preocupe se o outro vai ficar “triste”. Fazer algo que você não quer só para agradar também é uma forma de abuso psicológico com você mesma. Nunca diga “sim” quando você não tem certeza absoluta do que deseja. E sempre peça permissão antes de tocar o corpo de alguém, principalmente o de outra menina. Para qualquer coisa. “Posso pegar sua mão?”, “Posso te abraçar?”. Sempre peça. E se a resposta for não: é não. Não insista.

4. Você tem o direito de dizer “não”. Use-o sem moderação.

Recusar é tão ou mais importante quando consentir. Se algo a incomoda ou a deixa desconfortável, diga ‘não’. E se alguém não estiver respeitando o seu ‘não’ se afaste e comunique outros adultos. Você não precisa se preocupar em agradar pessoas. Não precisa concordar ou consentir com algo para preservar os sentimentos de ninguém. Os seus sentimentos e a sua segurança física e emocional devem sempre vir em primeiro lugar. Você não precisa aceitar ou concordar com tudo o que dizem que você deve fazer, ser ou sentir. Principalmente se estas orientações levarem você a situações desagradáveis. Na dúvida, diga não e se proteja.

5. Proteja-se e defenda-se sempre

A primeira coisa que você levar em consideração em qualquer relação que você esteja é a sua própria integridade física e emocional. Se alguém fere seu corpo ou fere seus sentimentos, defenda-se, proteja-se, avise outras pessoas, afaste-se. Não importa se essa pessoa é um amigo, é um professor, é um de seus pais. Não aceite chantagens emocionais. Você é forte, não precisa de um homem protegendo você, e é importante que você saiba a proteger a si mesma. Que aprenda a reconhecer ocasiões mais inseguras, seja capaz de criar um círculo de confiança e estratégias de proteção para si mesma. Que cultive uma desconfiança saudável das pessoas e situações. Afaste-se sempre de pessoas autoritárias, controladoras, ciumentas e abusivas. Sempre. Nada disso é amor. Infelizmente este é um mundo muito perigoso para meninas. É um mundo onde pessoas são atacadas, assediadas, violentadas, apenas por serem mulheres. Você é uma menina forte, inteligente e sempre será amada por ser quem você é. Não aceite ser tratada por menos do que você merece. E você é uma menina fantástica que merece ser tratada com total respeito por todos. Fortaleça seu coração e aprenda a lutar.

6. Nada justifica o uso da violência

Violência é apenas violência. É injustificável. Não sinaliza que alguém é forte e sim que é incapaz de resolver qualquer questão de forma honrada, respeitosa e civilizada. É sinal de fraqueza e não de fortaleza. Se você sentir raiva, o que é normal, pode extravasar por outros mecanismos. Ferir outras pessoas é absolutamente inadmissível. E nunca, em hipótese nenhuma, admita que ninguém cometa nenhum tipo de violência contra você. Nem física, nem verbal, nem psicológica. Mesmo que chamem de amor. Mesmo que peçam desculpa. a dor existe, ela é real e você não precisa suportar nada. Defenda-se. Procure ajuda. Proteja-se sempre.

7. Você é uma criança e não uma “mocinha”

Sabemos que ser criança neste mundo é muito complicado. E que ser menina tem uma carga bastante difícil de lidar. Que os adultos cobram que você aja como um “mocinha” e exigem de você posturas que você nem entende direito o que significa. Que querem que você tenha responsabilidades, que aprenda desde cedo a arrumar, limpar, que você muitas vezes já é obrigada a cuidar de crianças menores. Que você é levada a ter um comportamento de pessoa adulta, inclusive nas roupas e acessórios que te dão. Saiba que isso é errado. Você é uma criança e tem direito a viver sua infância como uma. Tem direito a brincar despreocupadamente sem ter que cuidar de nada nem de ninguém. Tem direito a ter seu corpo de criança protegido. Este é o momento de você aproveitar, experimentando o mundo e descobrindo aos poucos o que você é, sua personalidade, seu temperamento, o que gosta ou não. Você não tem que ser nada agora exceto uma aprendiz atenta, não tem que atender expectativa de ninguém. Você ainda está crescendo, não deixe que cobranças sem sentido roubem sua infância.

8. Você deve cuidar de si mesma em primeiro lugar

É importante saber escolher, comprar e cozinhar os próprios alimentos. Cuidar da limpeza da própria roupa. Saber como manter limpa a casa onde vive. É importante saber como cuidar-se. Ninguém tem nenhuma obrigação de fazer isso por você e se um dia você estiver numa relação onde compartilha uma mesma casa essas responsabilidades devem ser divididas, portanto você deve saber executar a sua parte. Mas lembre-se sempre que cuidar de si mesma é sua principal responsabilidade e sua prioridade. Você não tem nenhuma obrigação exclusiva com o cuidado doméstico ou cuidado de outras pessoas. Você não tem responsabilidade de cuidar de ninguém além de sim mesma e qualquer relação de cuidar com a qual você vier a se comprometer pela vida deve ser muito bem ponderada e avaliada para que você esteja doando-se de maneira muito consciente, sem sentimento de culpa ou obrigação envolvido, e principalmente sem ser explorada no processo.

9. Não é a sua aparência que define quem você é

Este é um mundo que faz com que meninas se tornem muito infelizes caso não sejam vistas como “bonitas” e um tremendo esforço sempre será feito para te convencer que ser “bela” é o que há de mais importante sobre você. Só que você não é definida por como se parece. Se uma pessoa se aproximar ou se afastar de você apenas pela maneira como você aparenta e não pela maneira como você é, então ela não serve de verdade para você. Você é uma pessoa inteligente, engraçada, esperta, forte e verdadeiramente especial. E é isso que é o que verdadeiramente importa sobre você. Se alguém não é capaz de ver, valorizar e te desejar pelos motivos certos, então essa pessoa não serve para te amar. E a validação dela não significa nada. Você não existe em função de “embelezar” os ambientes onde esteja. Você não precisa se preocupar em estar o tempo todo sendo vista, analisada e catalogada… Você é uma pessoa completa e não precisa da aprovação de ninguém sobre você. Você é muito mais que algo para ser visto, admirado e elogiado em função da beleza. Você é uma pessoa completa.

10. O universo não gira ao redor do umbigo dos meninos

Muitas vezes você vai ter a impressão que tudo que existe de legal e importante no mundo é sobre e feito para meninos. São eles que estão no centro de todas as coisas que você assiste, escuta, aprende na escola. E sim, por muito tempo e ainda hoje são os meninos que protagonizam tudo mas eles não são o centro do universo. Eles não são o mais importante, meninos são apenas meninos e o mundo não gira em torno deles, por mais que possa parecer. O seu mundo deve girar em torno de você mesma porque ainda é muito difícil ser uma menina na nossa sociedade, e tudo que você vai conhecer vai tentar te convencer que você deve colocar meninos no centro e em primeiro lugar. Que meninos são mais importantes que meninas, que eles são mais fortes, especiais. Nada disso é verdade. Seja você o centro da sua vida.

11. Você não precisa disfarçar seus sentimentos

Expresse seus sentimentos. Todos eles. Principalmente os considerados “ruins”. Você tem o direito de ficar brava. Sentir-se com raiva. Todos têm sentimentos intensos e você não precisa sentir culpa por isso. Você tem o direito de expressar sua indignação. Você pode brigar sim, e falar alto, contestar, protestar. Você não precisa perdoar nada, nem ninguém se ainda não se sentir preparada. Inclusive não precisa perdoar se não quiser. Nem precisa buscar a conciliação o tempo todo. Há momentos, inclusive, em que será justamente esta energia que vai te proteger de relações abusivas. Permita-se enfurecer porque é sua fúria que vai ter proteger.

12. Você não precisa disfarçar sua personalidade

Seja educada. Educação, polidez e gentileza são virtudes importantes para todos os seres humanos conviverem em sociedade. Mas você não precisa ser simpática, ou sorridente, ou delicada, ou doce, ou cordata, ou mesmo amável se você não quiser. Você não existe em função de atender as expectativas das outras pessoas. Você não precisa agradar a todas as pessoas e principalmente você não precisa concordar com tudo que os meninos pensam apenas para parecer atrativa para eles. Você não precisa fingir que está sentindo algo que não sente, que gostou de algo que não gosta, que aceita algo que não concorda. Permita-se ser você.

13. Ame as suas amigas 

Amigas são o bem mais precioso que uma menina pode ter. Elas vão ser suas companheiras, compartilhar alegrias, tristezas, aventuras. Vocês poderão contar umas com as outras e vão viver coisas muito parecidas. Mas fique atenta porque vão de todo modo tentar te convencer que outras meninas e mulheres podem ser rivais. Vão te dizer que meninas são mais invejosas, fofoqueiras, falsas, ou fúteis. Vão criar em você um sentimento de “não ser como as outras”. Não caia nessa armadilha. Meninas são pessoas e são as melhores pessoas que você terá ao seu lado, sempre. São as pessoas que vão salvar sua vida. Não vale a pena competir pela atenção dos meninos, tire-os do centro das suas preocupações. Nenhum menino pode ser tão especial quanto a amizade das suas amigas. Homens chegam e vão embora na vida de mulheres. As amigas estarão lá por você para sempre.

14. Escolha mulheres

Existem mulheres maravilhosas por aí, que pesquisam, produzem, constroem, inventam, criam, cantam, dançam, interpretam, dirigem, coordenam, constroem, empreendem… mulheres estão por toda parte, fazendo de tudo, e se você tiver a chance, sempre escolha mulheres. Compre , assista, leia, contrate o trabalho de outras mulheres. Vote em mulheres, opte por mulheres. Não acredite se te disserem que algo feito por uma mulher é inferior, ou imperfeito. Não entre em competição desnecessária com mulheres. Coopere com elas. Una-se a elas. Privilegiar outras mulheres é fortalecer uma rede que vai fortalecer a você mesma. Metade do mundo é feito de mulheres, o que acontece se começarmos a escolher umas às outras?

15. O casamento pode ser uma armadilha para mulheres

Eu sei que tudo que você vê e tudo que te falam fazem você pensar que o casamento é a melhor coisa que pode acontecer na vida de uma menina e que quando ela se apaixona e se casa finalmente sua vida tem um “final feliz”. Mas na realidade relacionamentos são coisas complicadas, que exigem maturidade de todos os envolvidos para funcionar. E na nossa sociedade, quase sempre, o casamento é uma maneira de prender mulheres na função do cuidado da casa e dos filhos sem muita ajuda dos homens. O casamento também pode afastar uma menina se sonhos muito particulares que ela tenha porque ela será cobrada muito fortemente a dedicar-se integralmente ao “lar”. Então tenha em mente que tipo de vida e que tipo de realizações você deseja para si e como essas coisas vão combinar com uma vida compartilhada com outra pessoa, principalmente se essa pessoa for um homem. E lembre-se, não é se apaixonar, casar e ter filhos que precisa definir o objetivo da sua vida, por mais que queiram te convencer disso. Isso são coisas que acontecem ou não entre várias outras coisas que podem acontecer ou não na vida de uma pessoa. E sequer são as coisas mais importantes. O seu destino não é ser escolhida por alguém, o seu destino é escolher a você mesma e fazer o melhor que conseguir com isso.

16. A maternidade pode ser um fardo

Na nossa sociedade a maternidade pode ser (e quase sempre é) um fardo pesado para a mulher. Ser mãe não é a coisa mais importante da sua vida, não é algo que vá te completar em nada. Você vai ver e ouvir por aí que a maternidade é uma coisa sagrada, e que mães são seres especiais, mas isso é uma mentira. Ser mãe é um trabalho. E um trabalho dificílimo de realizar e que exige uma dedicação intensa e extrema e o envolvimento de várias outras pessoas. Quase não há apoio social nem institucional para as mães e o meninos não recebem a mesma pressão para assumir sua parte na responsabilidade de criar seus filhos deixando a mulher sobrecarregada. Crianças são uma responsabilidade de toda a sociedade e nenhuma mulher consegue dar conta de um filho sozinha sem abrir mão de muita coisa da própria vida. Somente com apoio é possível aproveitar bem a parte boa de ter filhos que é poder ajudar na formação de uma outra pessoa, vê-la crescer e poder curtir o amor que surge entre uma mãe e seu filho que é uma coisa bastante especial.

17. Você pode amar quem você quem quiser

Pode ser que você cresça e goste de meninos, pode ser que você cresça e goste de meninas, pode ser que você goste dos dois. E não tem nenhum problema com isso. Basicamente, de quem você gosta ou deixa de gostar, com quem você se relaciona ou não, é um assunto particular seu. Respeite seus sentimentos e desejos e não os reprima. Ainda vivemos em um mundo que tem dificuldade de aceitar todas as formas de amor. E mais, vivemos em um mundo que quer fazer parecer que meninos e meninas se amarem é a única forma de amor possível, aceitável e “normal” de existir, e isso simplesmente não é verdade. Você é uma pessoa. E pessoas se apaixonam por outras pessoas. Precisamos entender e respeitar isso. Portanto saiba que para nós não importa realmente com quem você vai se relacionar desde que isso resulte numa história bacana que faça você feliz. E lembre-se de levar essa regra com você: com quem as pessoas se relacionam não é um problema seu. Nunca desrespeite ninguém por causa disso e nem permita que outros a sua volta o façam.

18. Conheça seu corpo. E ame-o.

Conheça seu corpo. Cada pedaço dele, completamente. Ame seu rosto, sua pele, o formato do seu corpo. Não queira transformar nada. Se puder trabalhar algo dentro de você, trabalhe a aceitação. Você é ótima do jeito que você é. Sem subterfúgios. Saiba como funciona seu sistema reprodutivo, a maravilhosa máquina de gestar que você carrega. Entenda seu ciclo hormonal. Seus período fértil. Aprenda a conhecer como os hormônios te afetam, seu humor, sua libido. Nós mulheres somos cíclicas. E isso é lindo. Há todo um ciclo perfeito em funcionamento, onde cada etapa te transforma até culminar no momento da sua menstruação. É seu sangue. Seu organismo operando. Não tenha nojo do seu corpo. De nada dele. Aprenda a admirar-se no espelho. Conheça sua vulva, intimamente. Seu clitóris. Não tenha vergonha de explorar você — e apenas você — o que o seu corpo pode lhe proporcionar. 

19. Você merece ser amada

Sim, eu sei que ninguém ensina como se ama uma menina. Porque sempre parece que todos os outros são melhores, mais bonitos, mais importantes, mais valorizados. Que você só recebe atenção quando atende a um determinado tipo de expectativa que exige um preço muito alto para acatar. E que você parece sempre ter sempre que se esforçar para agradar, cuidar, resolver problemas. Isso não tem a ver com você. O mundo infelizmente manda sinais por todo o lado de que mulheres são meros objetos decorativos desimportantes. Meninas sempre são mostradas como fracas, dependentes, o trabalho das mulheres não tem visibilidade. Mas você merece ser amada. E eu não estou falando de desejo. De desejo sexual pelo seu corpo. Estou falando de amor. Amor incondicional. Que é aquele amor que não condiciona. Que te aceita exatamente do jeito que você é. Toda mulher merece ser amada assim e não deve aceitar menos que isso. Não tenha medo de ser inteira, completa, e exigir amor, cuidado, apoio, carinho, compreensão, ao invés de apenas dar. Nunca esqueça disso. Nunca aceite menos que isso.

20. Este ainda não é um mundo bom para as mulheres

Este é um mundo em que meninas ainda não são tratadas tão bem quanto os meninos. Portanto você deve estar sempre atenta para não sofrer injustiças e nem perder direitos. Deve estar vigilante para não sofrer abusos e violências. Há mulheres maravilhosas por aí brigando todo dia para tornar esse mundo um lugar melhor para meninas como você viverem. Mas por enquanto ainda é preciso tomar muito cuidado. Eu sei que o mundo não vai te tratar como você merece. Que vai tentar te obrigar a entrar num padrão de aparência física. De comportamento. Que vai tentar esmagar sua auto-estima, dizer que você não é boa o suficiente, o tempo inteiro. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer de que você é inferior aos meninos, menos especial, inteligente e poderosa que eles e que você deve obedecê-los e admirá-los. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer que as outras meninas são suas inimigas, que você deve combatê-las para agradar outros garotos. Mas eu sei também que você é uma menina única. Que você não é como todo mundo e que sua grande batalha e mostrar ao que você veio. Quem você é de verdade. Sem padrões. Sem manual de instrução a seguir. E eu sei que isso pode ser especialmente difícil porque você terá que lutar. Você nasceu uma menina e terá que lutar o tempo inteiro para ser quem você é. Saiba que você não está sozinha na sua batalha. Há outras meninas por aí, como você, preparadas. Vamos juntas.

20 coisas que você deve começar a dizer ao seu menino

Há algumas coisas que você deve começar a dizer ao seu menino durante sua socialização que certamente farão muita diferença sobre a maneira como eles irão para um mundo patriarcal que espera delas uma postura de dominação e violência contra mulheres. Vamos ver?

1. Não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”

Você sabia que antigamente rosa era uma cor de menino e que o azul é que era uma cor de menina? Cores são apenas cores. Adultos é que inventam classificações arbitrárias que de repente mudam. Você tem o direito de escolher o que gosta e o que não gosta, entre roupas, brinquedos, o seu jeito de ser. Não é porque você não gosta das “coisas de menino”, ou prefere as tais “coisas de meninas” que tem alguma coisa errada. Ao contrário. É perfeitamente normal gostar de tudo um pouco com tantas opções legais que têm por aí. Se meninas gostam de bola, gibis, videogames, carrinhos e aeronaves, são boas em jogos de tabuleiro, jogos de montar, por que você não pode se divertir com bonecas, jogos de cozinha, pintura e tudo mais? E brincar de casinha, comidinha ou princesas é super legal sim. Se você pode brincar com tudo, por que brincar só com a metade? Não faz sentido não é mesmo? O bacana é poder todo mundo brincar junto. Meninas podem correr, pular, se sujar. Elas não são mais lentas ou mais frágeis. Excluir meninas das brincadeiras só faz com que não se aproveite toda a diversão possível. Meninos e meninas são crianças e não há diferença nenhuma entre vocês que seja importante.

2. Crianças não namoram

Você não tem” namoradinhas”. Crianças não namoram. Crianças brincam e estudam. E você não precisa se sentir coagido quando disserem que você tem que conquistar as meninas da escola. Adultos podem ser muito inconvenientes. Você não precisa ceder se alguma coleguinha disser que “quer namorar com você” ou que é sua “namorada”. Crianças são amigas umas das outras. Apenas isso. E adultos, de maneira nenhuma “namoram” crianças. Namoro é coisa entre adultos. Há pessoas adultas que namoram e pessoas adultas que não namoram, inclusive. Quando você crescer vai gostar de alguma pessoa e vai poder namorar com ela. Uma pessoa de cada vez. Porque namorar é ter compromisso com o sentimento da outra pessoa e isso deve ser sempre respeitado.

3. Ninguém pode tocar o corpo de ninguém sem consentimento

Seu corpo é apenas seu e não deve ser tocado por ninguém sem seu consentimento expresso. Você não precisa receber nem dar abraços ou beijos se não quiser. Se alguém tocar o seu corpo sem pedir sua permissão se afaste e diga “eu não quero que você me toque. Ninguém pode tocar no meu corpo sem a minha permissão”. E conte tudo para um adulto da sua confiança. E sempre peça permissão antes de tocar o corpo de alguém, principalmente o de outra menina. Para qualquer coisa. “Posso pegar sua mão?”, “Posso te abraçar?”. Sempre peça. E se a resposta for não, é não. Não insista.

4. Quando alguém diz “não”, é não. Sempre.

Quando uma menina diz “não”, ela realmente está querendo dizer “não”. Se ela ficar em silêncio e não disser nada, também considere como um “não”. Se ela disser “talvez”, na dúvida, igualmente será um “não”. Não insista. Sempre garanta que as meninas estejam confortáveis e que estejam consentindo nas suas ações para com elas. É ruim quando não podemos fazer algo que queremos, eu sei. Mas acredite, a frustração passa e você sobreviverá. Meninas não devem nada a você só porque você quer e elas tem o direito de proteger-se. Respeite se elas tiverem medo ou desconfiança. Isso não é sobre você é sobre a experiência de mundo delas. Escute-as, aprenda e respeite se elas forem incapazes de confiar em você. Não é pessoal.

5. Defenda meninas

Meninas não são mais fracas, ou mais frágeis, ou incapazes de proteger-se mas tem um mundo absolutamente violento contra elas. E precisam de apoio porque alguns meninos crescem e tornam-se homens verdadeiros predadores , perseguindo-as, machucando-as de muitas maneiras. Então fique alerta, se você vir alguma menina em dificuldades, seja qual for, ajude-a. Isso vai significar muitas vezes ir contra os seus amigos. Pode significar muitas vezes que você vai estar sozinho contra o seu próprio grupo. Mas significa também que você não estará compactuando com toda a violência que homens comentem contra meninas e mulheres. Defenda meninas pelo motivo certo. Não porque “você é homem” e deve protegê-las porque elas são “frágeis”, mas porque você é uma pessoa que sabe que esse grupo está vulnerável a ataques e precisa de toda ajuda possível.

6. A violência não é um recurso válido

Violência é apenas violência. É injustificável. E não só violência física, mas também a verbal, psicológica. Não sinaliza que você é forte e sim que você é incapaz de resolver qualquer questão de forma honrada, respeitosa e civilizada. É sinal de fraqueza e não de fortaleza. Eu sei que as pessoas ao seu redor estão o tempo inteiro querendo que você se mostre “forte” e “bravo”, e que parecem admirar quem é agressivo e violento, mas isto está profundamente errado. Não devemos nunca admitir que ferir outras pessoas é uma hipótese viável. Violência só traz sofrimento. Se você sentir raiva, o que é normal, pode extravasar por outros mecanismos, mas a sua raiva não te dá o direito de agir violentamente. E agir sem violência não te torna um “covarde”, te torna uma pessoa boa. E também nunca admita que ninguém cometa nenhum tipo de violência contra você. Nem física, nem verbal, nem psicológica. Defenda-se. Procure ajuda. Proteja-se sempre.

7. Você é um menino, não um homem

Sabemos que ser criança neste mundo é muito complicado. E que ser menino tem uma carga bastante difícil de lidar. Que os adultos cobram que você aja como um “homem” e exigem de você posturas que você nem entende direito o que significa. Mas se você se sentir ameaçado ou coagido, seja por qualquer motivo, não guarde segredo. Conte conosco. Nós sempre acreditaremos em você e vamos ter proteger. Nós não queremos que você “aja como um homem”, isto é uma bobagem. Queremos que você seja criança, experimentando o mundo e descobrindo aos poucos o que você é, sua personalidade, seu temperamento, o que gosta ou não. Você não tem que ser nada agora exceto um aprendiz atento, não tem que atender expectativa de ninguém. Você ainda está crescendo, não deixe que esta cobrança sem sentido te defina.

8. Saiba cuidar de si mesmo

É importante saber escolher, comprar e cozinhar os próprios alimentos. Cuidar da limpeza da própria roupa. Saber como manter limpa a casa onde vive. É importante saber como cuidar-se. Ninguém tem nenhuma obrigação de fazer isso por você e se um dia você estiver numa relação de casamento essas responsabilidades devem ser divididas, portanto você deve saber executar a sua parte. Eu sei que você pode se sentir tentado a achar que meninas é que são responsáveis pelas tarefas cotidianas e domésticas, porque é muito do que você vê em toda parte. Mas isso não é correto e nem justo. Talvez você encontre meninas que acreditem que é obrigação delas fazer as coisas por você. Não permita isso, isso é exploração. A verdadeira autonomia tem a ver com você ser capaz de cuidar completamente de si sem transferir essa responsabilidade para ninguém, muito menos para mulher alguma. Responsabilize-se e aprenda a cuidar de si mesmo.

9. Meninas não são definidas por como se parecem

Meninas são inteligente, espertas, engraçadas, amigas, divertidas. Tem todas as qualidades e defeitos que qualquer pessoa tem. Meninas são pessoas. Amigas, companheiras de aventuras. A aparência delas não é importante. Ser bonito ou ser feio não é a principal qualidade de ninguém. E a aparência de uma menina não é um assunto que lhe diga respeito. Assim como as roupas que ela veste. Meninas não existem para serem objetos decorativos do ambiente. Se ela é alta, baixa, gorda, magra, branca, negra, realmente não é da sua conta. Nada disso define quem uma menina é. Eu sei que você será bombardeado com imagens e estímulos que vão te fazer cobiçar meninas de um determinado padrão, e que você vai aprender que o corpo delas é o mais importante a ser desejado. Mas focar nisso fará apenas que você deixe de se concentrar na parte mais importante de qualquer pessoa que é sua personalidade, inteligência, ideias, e a maneira como essa pessoa consegue fazer você se sentir com o jeito que ela tem. Meninas são pessoas e não coisas. Respeite-as sempre como o ser humano completo que elas são.

10. O universo não gira ao redor do seu umbigo

O mundo vai fazer você pensar que está no centro do universo. Tudo o que você lerá, assistirá, ouvirá falar, tem a ver com pessoas como você. Outros meninos. Suas conquistas, suas descobertas. Você verá outros homens em cargos importantes, vivendo aventuras, protagonizando por toda parte. Sim, é muito fácil acreditar que tudo é sobre você, seus sentimentos e suas possibilidades. Mas não é. Mulheres não possuem o mesmo status que os homens porque elas foram proibidas por muito tempo de fazer as mesmas coisas que os homens sempre fizeram. E com muita luta elas buscam ocupar espaços na sociedade em que vivemos. Então entenda que você não é melhor, nem especial, nem mais importante. Você apenas possui uma coisa chamada privilégio, que faz com que você seja tratado de forma melhor por todos simplesmente porque nasceu um menino.

11. Você não precisa disfarçar seus sentimentos

Nós somos responsáveis por lidar com nossas próprias emoções e nosso grande desafio é conseguir nos conhecer para que elas não nos levem a tomar más decisões. Somos pessoas, falhamos, estamos aqui aprendendo uns com os outros a sermos pessoas melhores. Não tenha medo de expor seus sentimentos. Converse, entenda o que é tristeza, alegria, raiva, dor, angústia, medo, aprenda a reconhecer isso dentro de si. Seja autêntico e honesto consigo mesmo. Você não tem que provar nada para ninguém escondendo ou fingindo seus sentimentos. Você não precisa substituir sua dor, sua confusão, tristeza, pela raiva cega apenas porque esse é o único sentimento desejado em meninos. Deixe sua sensibilidade, delicadeza, amabilidade e gentileza transparecerem, não significa que você é nada, apenas que é uma pessoa empática e muito bacana. Fragilidade não é defeito. Sensibilidade também não. Muito pelo contrário. Nos dias de hoje, essas características são fundamentais pra gente viver juntos em sociedade.

12. Você não precisa disfarçar sua personalidade

Seja educado. Educação, polidez e gentileza são virtudes importantes para todos os seres humanos conviverem em sociedade. Mas você não precisa fingir ser mais extrovertido, ou firme, ou ativo, ou viril do que você é. Você não tem que atender as expectativas de ninguém mostrando ser alguém que você não é. Você não precisa “agir como um homem”, afinal o que isso significa? Você é um menino. Uma criança. Uma pessoa em formação. Você não precisa se preocupar com nada além de aprender sobre o mundo, se divertir, brincar, e não tem que provar nada para ninguém. Você é amado exatamente do jeito que é e será amado sempre. Ninguém espera que você seja nada além de uma pessoa feliz que consiga viver na sociedade respeitando suas regras.

13. Saiba escolher seus amigos

Este é um mundo especialmente difícil para um menino viver em grupo. Os outros garotos vão impor regras de comportamento bastante equivocadas para que você seja aceito entre eles. Eles podem pedir que você maltrate outras pessoas, especialmente meninas. Vão incentivar você a provar sua “macheza” demonstrando uma abordagem profundamente abusiva para com o corpo e o espaço delas. Eles vão incitar você a humilhar e até agredir outros meninos que não se mostrarem tão “machos”. Vão querer que você demonstre “força” sendo agressivo com os outros e vão premiar esse comportamento fazendo você se sentir muito querido e admirado. Este é um preço que não vale a pena pagar, acredite. Saiba escolher amigos que prezem pelos mesmos valores que você e não tenha medo de afastar-se daqueles que comportam-se com agressividade e violência. Existe sim o que é o certo e o que é o errado. E maltratar pessoas certamente é uma coisa errada, por mais que isso seja exaltado em certos grupos. E não tenha medo de confrontar comportamentos dos seus amigos que você sabe que são inadequados. Afinal, de que lado você quer estar? Que tipo de garoto você quer ser?

14. Priorize mulheres

Existem mulheres por aí, que pesquisam produzem, constroem, inventam, criam, cantam, interpretam, escrevem. Eu sei que você está completamente acostumado a só ver homens por toda parte como protagonistas a ponto de acreditar que o mundo somente foi realizado por eles. Eu sei que tudo que você aprende sobre meninas é que elas são inferiores a você, mas isso é não é a verdade. A história é contada pelos vencedores e todo o legado das mulheres foi usurpado. Suas conquistas e descobertas foram apropriadas ou simplesmente escondidas. Muito do mundo que conhecemos foi realizado também graças a muitas mulheres que nos antecederam tendo o triplo de dificuldade que qualquer homem porque tiveram que enfrentar muita resistência. Portanto seja um aliado, priorize mulheres. Compre, assista , leia, contrate o trabalho de outras mulheres. Não acredite se te disserem que algo feito por uma mulher é inferior, ou imperfeito. Não boicote, desvalorize ou subestime o trabalho de mulheres. Coopere com elas.

15. Tenha responsabilidade emocional

Você vai ser estimulado a se relacionar com o maior número de pessoas que conseguir e ao mesmo tempo, como se isso provasse que você é uma pessoa muito poderosa. E a pressão pode ser tão forte que você se sentirá frustrado e rejeitado caso não consiga concretizar esse tipo de comportamento. Não caia no erro de assumir o papel de caçador e tratar os outros como se fossem uma caça. Permita-se viver boas histórias. Histórias que você gostaria de recordar com carinho no futuro. Relacionamentos são coisas complicadas que exigem dedicação, comprometimento e honestidade. Não tenha medo de ser verdadeiro e expor seus sentimentos. Seja honesto sempre. Aprenda a lidar com o fato de que algumas pessoas vão querer estar com você e outras simplesmente não vão querer, e tudo bem por isso. Ninguém te deve nada. Não te devem carinho, atenção, afeto. Não te devem cuidado. Não são sua propriedade. Ninguém tem obrigação de gostar de você ou de estar com você. E você deve respeitar e aceitar isso. E deve também respeitar o sentimento de quem se afeiçoar a você, não usando isso a seu favor. O nome disso é responsabilidade emocional.

16. A paternidade é um compromisso intransferível

Criar uma criança para este mundo é uma das coisas mais importantes que uma pessoa pode fazer. Embora você possa ter a percepção que cuidar de bebês é um assunto de mulheres, esta é uma tarefa também de homens. E se um dia você quiser viver a experiência de ter um filho saiba que esse é um compromisso irrevogável e intrasferível, da qual não podemos fugir. Ser pai é para sempre e um filho é uma coisa muito séria, é um ser vulnerável que estará contando com sua presença, apoio, cuidado e amor. E essa experiência pode ser incrível sim porque é realmente uma grande responsabilidade criar pessoas para este mundo.

17. Você pode amar quem você quiser

Pode ser que você cresça e goste de meninas, pode ser que você cresça e goste de meninos, pode ser que você goste dos dois. E não tem nenhum problema com isso. Basicamente, de quem você gosta ou deixa de gostar, com quem você se relaciona ou não, é um assunto particular seu. Respeite seus sentimentos e desejos e não os reprima. Ainda vivemos em um mundo que tem dificuldade de aceitar todas as formas de amor. E mais, vivemos em um mundo que quer fazer parecer que meninos e meninas se amarem é a única forma de amor possível, aceitável e “normal” de existir, e isso simplesmente não é verdade. Você é uma pessoa. E pessoas se apaixonam por outras pessoas. Precisamos entender e respeitar isso. Portanto saiba que para nós não importa realmente com quem você vai se relacionar desde que isso resulte numa história bacana que faça você feliz. E lembre-se de levar essa regra com você: com quem as pessoas se relacionam não é um problema seu. Nunca desrespeite ninguém por causa disso e nem permita que outros a sua volta o façam.

18. Entenda como os corpos funcionam

Conheça seu corpo. Cada pedaço dele, completamente. Aprenda como ele funciona. Aprenda onde dói, onde formiga, onde faz cócegas, onde relaxa, onde é muito bom. E aprenda sobre o corpo das meninas. O que há de igual e o que há de diferente. Saiba que meninas quando crescem possuem tantos pelos quanto você e que isso é tão natural nelas quanto é em você. Meninas tem cheiros, fluidos, gases, como você. Mais semelhanças que diferenças. Aliás, conheça a fundo as diferenças. Saiba como funciona seu sistema reprodutivo, e como funciona o sistema reprodutivo delas. Saiba que meninas são cíclicas, menstruam, entenda como e porquê isso acontece e como isso é fantástico. E saiba que acima de tudo que o corpo, qualquer corpo, não te pertence, é inviolável e merece absoluto respeito. Você vai sempre ser ensinado que o sexo é uma parte muito importante da sua vida e que você deve se preocupar com isso talvez mais do que você gostaria. Respeite a si mesmo, seu tempo, seus processos

19. Aprenda a amar mulheres

Eu sei, ninguém te ensinou como se ama meninas. Em toda parte você só escuta que elas são chatas, inferiores, frágeis. Que são fúteis, burras, só se interessam por coisas superficiais. O que você vê na televisão é que elas só servem para decorar o ambiente sendo belas. Que elas não servem para ser admiradas como pessoas, mas sim como um objeto bonito. Que elas se dividem entre as que vão te amar e servir e as que vão te rejeitar e fazer sofrer. Que elas devem cuidar de você não importa o que você faça. Eu sei que é difícil amar essa imagem que te vendem de como as meninas são. Você aprende que mulher é um xingamento não é? Te chamam de “menininha” quando querem te diminuir. Só que nada disso é verdade. Meninas são pessoas. E pessoas maravilhosas, inteligentes, cheias de particularidades fascinantes. E você deve amá-las incondicionalmente. Não por sua beleza, ou por desejo ao seu corpo, ou por ser cuidado, ou para ter alguém para te servir. Mas por elas serem… pessoas. Como você. Cheias de particularidades. Defeitos e qualidades. Pessoas que serão suas amigas, companheiras de trabalho, de diversão, e de aventuras. Te ensinar a odiar mulheres é um projeto que você deve recusar. Desconfie de qualquer proposta que coloca mulheres numa posição inferior.

20. Este ainda não é um mundo bom para as mulheres

Este é um mundo em que meninas ainda não são tratadas tão bem quanto os meninos são tratados. Portanto você deve estar sempre atento para não cometer injustiças e nem retirar direitos das meninas. Deve estar vigilante para não cometer abusos e violências. Há mulheres maravilhosas por aí brigando todo dia para tornar esse mundo um lugar melhor para meninas viverem. Não colabore para uma cultura que as obriga a cumprir um padrão de aparência física e comportamento só para agradar você e não seja mais um a tentar esmagar a autoestima delas, fazendo-as pensar que não são boas o suficiente. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer de que você é superior às meninas, mais especial, inteligente e poderoso. E que meninas devem obedecê-lo, admirá-lo e servi-lo. Que você verá meninas competindo pela sua atenção e isso vai fazer você se sentir único. Mas resista aos seus privilégios da maneira que puder porque são eles que tornam o mundo um lugar muito perigoso para meninas. Muitos meninos crescem e se tornam homens que perseguem, assassinam, violam, e fazem muito mal para as mulheres. Você não precisa se tornar parte desse problema. Você é um menino bom. Você pode se tornar um homem bom.

Do risco de se perder dos filhos quando a adolescência chega

Há sempre o risco de se perder dos filhos quando a adolescência chega. Este é um período extremamente delicado para toda a família. Para o adolescente, que está passando por uma série transformações físicas, emocionais e sociais, para os pais que têm aprender como desenvolver um relacionamento com uma pessoa completamente diferente daquela criança que estavam acostumados a lidar.

Fatalmente nessa fase, é comum acontecer algum afastamento entre pais e filhos. Os jovens se isolam porque querem autonomia, querem se desgarrar do sentimento de dependência dos pais e projetar uma imagem de auto-suficiência. Ou sentem-se incompreendidos. Ou simplesmente querem ficar consigo mesmos. Ou tudo isso junto.

Os pais, que estavam acostumados com uma criança que minimamente obedecia suas ordens, muitas vezes não sabem lidar com os surtos de independência e autonomia da cria. De repente se deparam com um mini adulto, cheio de vontades, questionando, rejeitando suas intervenções e arrumando problemas. Uma criaturinha que antes se conhecia como a palma mão e que de repente não quer mais ninguém por perto, se isola, fica voltado para coisas que você não conhece ou não se interessa.

Ou então a criança vai se tornando um adolescente “exemplar”, “que não dá trabalho”, simplesmente porque não apresenta demandas, se vira sozinho e “é responsável”, e os pais acreditam que não há necessidade de zelar por eles porque eles “estão bem”. E ainda, simplesmente os pais não se interessam mais tanto pela pessoa adulta que o filho vai se tornando. Que não é mais uma criança fofa e graciosa que os idolatrava cegamente. E dão sua participação na educação do jovem meio que por concluída.

É compreensível que haja também um certo alívio por finalmente ver terminada fase de maior dependência funcional e ser possível algum descanso para os pais, já que minimamente aquela pessoa que dependia de você para tudo, agora se banha, come sozinha, e veste-se sem ajuda. E aí na correria da sobrevivência, muitas vezes é difícil abrir mão da aparente calmaria para ficar investigando como está a performance do filho no planeta adolescência.

É muito difícil sim.

Por outro lado você tem o adolescente. Que até pouquíssimo tempo mal limpava a bunda sozinho. Está crescendo, o corpo está mudando. Talvez fisicamente já esteja quase tão desenvolvido como um adulto. E isto o confunde. O mundo (inclusive os pais) muitas vezes o cobra como se fosse um adulto, mas o restringe como se fosse uma criança. Isto o angustia. A mídia não ajuda. Essa criança acha que cresceu, que sabe muito. Mas ela se sente terrivelmente só e perdida. É um ser híbrido. Que não recebe mais o mesmo carinho, atenção e ponderação que recebia quando era criança. Mas também não recebe o mesmo status, deferência e consideração dos adultos.

Este ser intermediário, chamado adolescente, é um poço de medos e alegrias. Começa a conquistar o mundo sem ainda ter tantas responsabilidades. E tem o mundo lá fora. Esperando tanto dele. Tem as outras pessoas e suas expectativas. Tem os padrões toscos de feminilidade e masculinidade. Um adolescente é o retrato do medo da rejeição. É um bicho trocando de casca, absolutamente frágil. Ele não sabe ainda o que está se tornando. Está vulnerável, tem medo de não ser querido. Medo de decepcionar pais. Medo de não ser aceito pelos amigos. Medo de não estar se tornando um novo bicho bom e belo, com uma carapaça forte o bastante para seguir sobrevivendo.

Seu filho adolescente precisa de você. Talvez tanto ou mais do que quando era um bebê indefeso. Ele precisa saber que ainda é amado mesmo mudando. Que será amado não importa o que ele se torne.

É tão fácil se perder dos nossos filhos quando eles são adolescentes. Eles fogem dos pais e se refugiam longe. É tão fácil não estabelecer diálogo, não criar intimidade, não participar do seu mundo. Ver o tempo passar e de repente ter um adulto completamente desconhecido ali morando na mesma casa. Que sequer consegue ser seu amigo. Que sequer consegue sentir-se pertencendo àquele núcleo familiar.

As experiências que temos na adolescência são tão determinantes para a nossa vida. Tão indicativas sobre nossos vícios e virtudes. As influências que recebemos são tão decisivas. O professor que nos encanta e faz com que apaixonemos pelo curso que vamos fazer na faculdade. A primeira paixão. Os amigos que fazemos ou não conseguimos estabelecer.

Quanto medo, insegurança, depressão, baixa-estima, vícios, se instalam justamente nessa época da vida?

Quantos relacionamentos abusivos, assédios?

Quantos suicídios? Distúrbios alimentares?

Adolescentes não são mais crianças. Seus corpos estão mudando, eles têm desejos, capacidade de performar de maneira autônoma para cuidar de suas necessidades básicas pessoais. Tampouco adolescentes são adultos. Eles não tem experiências, parâmetros, conhecimento, amadurecimento emocional. E estes jovens estão absurdamente sozinhos. Desorientados. Desassistidos. Buscando respostas no Google para suas dúvidas e temores.

Há um certo vácuo geracional criado pela rápida disseminação das tecnologias de comunicação nos últimos anos. Os pais de adolescentes de hoje são ainda bastante analógicos e podem não ter uma noção clara dos desafios enfrentados pelos filhos que são bem diferentes dos desafios que eles enfrentaram. É um mundo nudes, exposição de intimidades, bullying virtual, hackeamento. Um mundo em que a rede de amigos é virtual e é na casa de centenas de pessoas. Em que com um clique um mundo de informação instrumentaliza esse adolescente sobre o tema que ele tiver interesse. Para o bem e para o mal. Possibilidades ilimitadas.

Os pais precisam estar próximos mais do que nunca. E vigilantes também. Atentos. Participativos. Ajudando esse jovem a transitar no mundo fortalecendo seus valores. Esse é um momento da educação parental em que todos os valores recebidos vão ser testados e reforçados ou renegados. É um momento em pais em filhos podem se aproximar e estabelecer uma relação de parceria definitiva ou se afastar. E não falo de se tornar “amigo” do seu filho adolescente, e sim de manter-se firme numa relação de carinho, aceitação e orientação, que permita que esse jovem saiba, acredite e aceite que os pais estão lá por ele.

Não se afaste do seu filho só porque ele cresceu, ou já que ele cresceu. Esteja lá por ele. Ele precisa muitíssimo de você, acredite. Talvez, mais do que nunca. Não se perca dele. Mantenha-o aconchegado, acolhido, protegido pela certeza de que você o ama e o aceita.

Por mais difícil que seja.

A paternidade é facultativa

Vivemos em uma sociedade onde a paternidade é facultativa e a maternidade é compulsória. Mulheres aprendem que a maternidade é um destino, uma função que devem cumprir para serem completas. Desde o seu nascimento recebem todo um treinamento que a encaminham para a culminância da sua vida que, segundo lhe dizem, acontece quando ela engravida e se torna mãe.

Homens, por outro lado, aprendem muito claramente que paternidade é uma atividade facultativa, que podem ou não exercer sem muitos constrangimentos sociais. O menino nasce e desde já tudo a sua volta gira em torno de ensiná-lo sobre transitar no mundo agressivamente, exercendo dominância e recolhendo recompensas na forma de dinheiro e sexo. Ele recebe carros, bolas, bonecos de guerreiros, soldados, super-heróis. Ele assiste por toda a parte homens em combate. E fantasia matar inimigos e ser o herói.

Se o treinamento da menina é para a vida doméstica e o cuidado (do lar, de si mesma, dos menores, dos pais); o treinamento do menino é para enfrentar o inimigo (o ladrão, o vilão, o alienígena, o monstro). A mídia, as propagandas, desenhos, filmes, livros, situam sempre o homem na posição de homem conquistador, resolvedor dos problemas, em que tudo gira a sua volta. Ele cresce com a superestimada noção de que o universo existe esperando por ele para salvar o dia.

Qual é a função do homem na sociedade? O que ensinamos a esses meninos? Que eles devem ter sucesso, dinheiro, mulheres, aventuras, e aproveitar a vida enquanto podem. Que o mundo está a disposição deles e devem se divertir. Devem ser fortes, viris, conquistadores. Machos. Provedores. Gostar de coisas de “homem”. Carros, esportes, sexo, drogas e diversão. Que mulheres existem para limpar o que eles sujam, cozinhar para que eles comem, servi-los , cuidá-los e fazer muito sexo com eles. Porque é sua função enquanto mulheres.

Que parte da educação de um menino o orienta sobre a importância da família? Do cuidado? De se respeitar mulheres? De valorizar o amor não-sexual? Um relacionamento? A família? Que parte da educação de um menino orienta sobre sua responsabilidade com seus futuros filhos? Nenhuma.

Crianças fazem suas primeiras brincadeiras imitando o que elas vêem no seu cotidiano. Se um menino demonstra interesse em brincar de imitar aquilo que vê sua mãe fazer (limpar, cuidar, cozinhar), o que acontece? é imediatamente reprimido e orientado que “aquilo não é brincadeira de homem”. Se ousar brincar com uma boneca, alimentá-la, vesti-la, banhá-la, penteá-la, fazê-la dormir, pode até ser castigado. Quantas famílias compram para seus meninos conjuntos de panelinha, vassoura, boneca, para que eles exercitem e naturalizem no seu repertório sua parte nos cuidados com a casa onde vive e com as outras pessoas do ambiente? Quantos meninos convivem em um ambiente ondem vêem os homens atuando ativamente com o cuidado dele, da casa e de todos a sua volta? Quantos conseguem crescer em um ambiente onde não assistem o trabalho doméstico de mulheres sendo explorado? Ou um ambiente sem violência?

Limpar o que suja, cozinhar a própria comida, ser capaz de dar conta da organização do ambiente onde vive, ter auto-cuidado, cuidado com o outro, não são habilidades femininas. São pré-requisitos básicos para uma sobrevivência autônoma na vida adulta. Exaltamos tanto uma criação que valorize a independência, mas no caso dos meninos alimentamos uma cultura que os torna co-dependentes a vida inteira de alguém que vai lhe garantir a estrutura mínima para sua sobrevivência, como comida, organização e limpeza pessoal.

No entanto, meninos são, quase sempre, completamente impossibilitados, desde a infância de treinar habilidades de cuidado doméstico, cuidado com si mesmo e com o próximo. São ensinados que CUIDADO é uma tarefa de mulheres. Crescem sem desenvolver nenhuma noção de responsabilidade com nada, principalmente com crianças que exigem dedicação absoluta. E se tornam homens que primeiro são dependentes da mãe para que lhes frite um ovo, passando essa tarefa para uma esposa, ou então para uma trabalhadora doméstica.

E meninos não aprendem como encaixar as responsabilidades que ter uma família significa dentro das ambições que são cultivadas no seu mundo. A família é um dilema, uma armadilha. É o ponto de ruptura entre uma vida de direitos, aventura, esbórnia e diversão das suas fantasias e uma vida de deveres, tédio, previsibilidade. E muitos crescem e se casam como quem vai para a execução na guilhotina. É o “game over”.

A família para o homem é um símbolo de “status” , uma prova de que agora se tornou um “homem responsável”, que “tomou juízo”, “tomou jeito”. É uma prova de amadurecimento que ele oferece à sociedade. A mulher é tida como sua propriedade, como uma aquisição que vai cuidar dele e da casa. E os filhos são os acessórios necessários para provar sua virilidade e fertilidade. E só são importantes na medida que representam o vínculo com a mulher. Porque o homem aprende que os filhos são dela, e um desejo e uma necessidade da mulher. E que a única relação que eles precisam desenvolver com os filhos é o de provedor, a única responsabilidade que devem ter em relação a filhos é a de pagar pensão. E sentem-se muito orgulhosos de si mesmos quando pagam, porque mesmo isso já é uma exceção.

Quantas e quantas crianças não crescem sofrendo inúmeras violências e abusos por parte do seu pai? Vendo sua mãe apanhar cotidianamente? Para quantas famílias o homem é a figura a ser temida, “respeitada”, acatada? É a figura que é suportada apenas em função dele ser aquele que coloca comida dentro de casa. Olhem os índices de violência doméstica, de abuso sexual intra familiar. São assustadores. Quem são os perpetradores? Homens. Que fazem da sua mulher e filhos seus escravos particulares, exercendo sobre eles toda sorte de agressões. Olhem os números.

A paternidade é uma mentira. Fingimos todos que homens estão ali fazendo parte afetivamente daquela família, mas quase sempre ele é o elemento autoritário, abusivo e desagregador. Aquele que tem permissão para entrar e sair do acordo a hora que quiser. Nenhum homem é constrangido por não registrar seus filhos, por não contribuir para o seu sustento, por abandoná-los emocionalmente. Quantos e quantos homens que após separar-se e formar uma nova família simplesmente esquecem a existência dos filhos crescidos?

A função do pai na sociedade patriarcal não é o de cuidador dos seus filhos. O que é esperado do homem é o papel de macho-alfa conquistador. E esse lugar da paternidade só existe socialmente se for exercida nesses moldes. É isso sim que lhes é cobrado todo dia, incessantemente. Que homens sejam MACHOS, todo o tempo e qualquer desvio dessa norma, qualquer performance que ele execute que se aproxime vagamente de uma ideia de feminilidade ou qualquer tarefa que execute que esteja no espectro que é designado a uma mulher será criticado, punido, execrado. E é nesses moldes que a paternidade é exercida e é por isso que aos homens é facultado o direito de cuidar ou não dos seus filhos, de estar ou não presente. Por isso a eles é facultado o direito de abandonar, de sair para o mundo em aventuras, fazendo mais filhos, abusando, conquistando. Ou de ficarem e serem donos de uma família, onde podem fazer o que bem entender.

Esse pai sorridente, presente, de propaganda de margarina é uma exceção total, completa e absoluta sob o patriarcado. Eleger e vender esse modelo como padrão só serve para jogar para debaixo do tapete a verdadeira função do pai, e nos impede de discutir, nos defender, e rechaçar e convocar a transformação desse modelo.

O principal desafio da paternidade hoje é um desafio anterior que é o de romper com o padrão de masculinidade a que todo homem é submetido. Porque sem rever o que é o papel do homem na sociedade, sem quebrar o pacto com os estereótipos de gênero e com a hierarquia sexual, não há pai cuidador possível. É preciso ressignificar completamente a posição do homem no núcleo familiar a começar pelas razões com que as famílias são formadas e isso passa por ter coragem de rasgar a cômoda cartilha do papel social que diz quais as funções deveriam ser do homem ou da mulher. As regras dessa cartilha que, implícita e explicitamente exigem que o homem reine tiranicamente no lar e explore o trabalho de uma mulher.

Se um homem quer ser um bom pai, deve começar parando de explorar sua mulher. Assumindo que foi educado para ter privilégios e romper com isso. Assumindo que é o modelo de homem que seus filhos estão observando e vão reproduzir e/ou inconscientemente buscar. Envolvendo-se de verdade na ética do cuidado. Com si, com seu espaço, com o outro. Responsabilizando-se. E devem romper com a violência, romper com a agressividade como modo de estar no mundo e se relacionar com mulheres, crianças e demais populações vulneráveis.

E sim, sabemos que homens não são socializados para isso e que acham que o mundo está nas suas mãos. Mas homens também são seres pensantes, dotados de capacidade crítica e perfeitamente capazes de buscar a desconstrução desse conjunto de instruções em que é socializado. E esse papel que se cumpre sem refletir também tem um preço. E as mulheres, estão cobrando. E não vão parar de cobrar.

Dos limites do tal limite

Precisamos falar dos limites do tal limite pelo qual adultos são tão obcecados em impor. Para crianças especialmente. “Tem que ter educação”, “tem que obedecer”, “tem que saber que lidar com o não”.

Crianças têm que atender expectativas que nem mesmo adultos conseguem corresponder.

Eu quero muito conhecer onde estão essas pessoas que sabem ouvir “não” com tanta resiliência. Que respeitam os limites. Todos. Os impostos pela sociedade, pelo Estado, pelo próprio corpo. Que suportam suas perdas com resignação, sem fazer birra. Mesmo que a birra não seja mais espernear no chão aos prantos.

Quero conhecer essas adultos que não gritam, não choram, não praguejam, não resmungam, não batem telefone nem porta na cara de ninguém, não xingam, não fazem textão no Facebook, não se exaltam de maneira nenhuma porque estão putos da vida com alguma coisa. Porque estão frustrados.

Me digam por favor a localização desse sagrado lugar onde vivem esses seres humanos controlados. Esse lugar onde ninguém discute, ninguém briga, ninguém se agride, ninguém se excede, ninguém estoura limite do cartão de crédito nem do cheque especial comprando baboseiras para compensar o próprio vazio. Ninguém se embriaga. Ninguém se dopa. Ninguém se empanturra de comida. Ninguém perde o sono. Ninguém perde a calma. Porque queriam algo de suas vidas ou para suas vidas e não conseguiram.

Convoquem, por favor, estes fantásticos adultos que sabem conviver tão bem com limites para uma demonstração. Um TEDx. Onde estão? Na internet? Estes que estão se digladiando, se expondo? Metendo o dedo uns na cara dos outros? Julgando a tudo e a todos?

Vamos, aliás, dar o Prêmio Paradoxo para aqueles que propõem ensinar limites excedendo justamente todo o limite possível que é espancando uma outra pessoa! Verdadeiros baluartes do controle emocional.

Quando você se engalfinha trocando insultos com outro adulto, onde estão os limites? Quando você expõe outras pessoas e as joga na berlinda do escrutínio público, onde estão os limites? Quando você entra numa guerra de ego com outro adulto usando uma criança como desculpa, onde estão os limites? Cadê os limites de quem chama crianças de mimadas, ranhentas, peido? Cadê os limites de quem ameaça jogar uma criança pela janela?

Somos ainda uma geração de pessoas que apanhou dos pais. Estamos tateando recursos para lidar com crianças que não seja através de castigo, violência, repressão. E somos a sociedade violenta que somos. É só olhar pela janela pra percebermos como a educação cheia dos tais limites que recebemos não vem dando muito certo. As pessoas, em sua maioria, estão todas angustiadas, deprimidas, confusas, infelizes, buscando compensações das mais diversas justamente para o fato de não saberem lidar com aquilo que tem e principalmente com o que não tem.

Não queremos “dar limites” para crianças, queremos justiçamento. Queremos ver crianças apanhando, sendo “corrigidas”, sendo tolhidas, sendo retiradas do caminho. Queremos mini-adultos, apáticos, submissos. Queremos passar adiante sem refletir essa educação para obediência cega, sem reflexão, porque queremos que as crianças não “incomodem”. Não deem trabalho. Não sejam crianças.

Tentamos a qualquer custo colocar crianças numa linha que nenhum adulto segue de verdade. Essas mesmas pessoas que lidam com sua própria frustração a base de excessos de todos os tipos, não consegue gerenciar a frustração de uma criança e orientá-la. Uma geração que acha que sabe ouvir não, mas não sabe. Sabe ditar regras. Porque no fundo todos querem se sentir muitíssimo importantes e são as crianças, que não podem se defender, as vítimas ideais dessa síndrome de pequeno poder.

Se todo o limite que essas pessoas estão clamando para as crianças existisse de verdade viveríamos em outra sociedade. Sem violência. Sem corrupção. Sem agressividade. Sem desigualdade social. Porque tudo isso, todas essas mazelas que nos massacram estão ligadas diretamente com o ato de RESPEITAR LIMITES. E são os adultos os responsáveis por esse caos.

Então, por favor, vamos ser menos hipócritas, e deixar as crianças em paz.

Crianças são pessoas

Você já parou para pensar que crianças são pessoas? Sei que essa pergunta parece meio despropositada mas nós costumamos pensar, agir e tratar crianças como se fossem uma categoria a parte, uma outra espécie situada mais ou menos entre humanos e animais. Não tão racionais quanto humanos, não tão irracionais quanto animais. E talvez muito mais próximo dos animais que dos humanos.

Não tratamos crianças como pessoas. Inclusive existe amplamente disseminada a ideia de “treinar” um bebê nas suas diversas habilidades (dormir, comer, usar o banheiro), usando técnicas que partem do mesmo princípio do adestramento de cães. Além de “ensinar” disciplina através de castigo e violência. Dessa última, inclusive, cães talvez escapem com mais facilidade.

Não lembramos de como éramos no início da vida. O que pensávamos exatamente, o que sentíamos. Tudo é muito nebuloso na memória. Então crianças são um território desconhecido cujas ações costumam ser interpretadas com a mesma régua usada para lidar com pessoas adultas. E isto é uma ótica completamente equivocada pois lhes atribuímos intenções que são incapazes de ter. Crianças não manipulam, desafiam, provocam, pelo menos não no sentido clássico que estamos acostumados a lidar. Elas estão o tempo todo fazendo experiências, testando o mundo, as pessoas, a realidade a sua volta.

Crianças são seres em formação que estão apreendendo e aprendendo o mundo.

Mais importante que uma criação com apego, cuja cartilha vai se tornando cada vez mais difícil de seguir, é preciso praticar uma criação com empatia. Com um olhar de empatia, um olhar que tenta os compreender sentimentos e emoções, e procura experimentar de forma objetiva e racional o que sente o outro indivíduo, conseguimos mudar completamente a forma de nos relacionar com os nossos filhos, e com qualquer criança. Mas para isso é necessário que primeiro se trate a criança como o que ela é: um indivíduo.

Assim, num exercício, perceba por exemplo que um recém-nascido é uma PESSOA que acaba de chegar num lugar absolutamente estranho. Ele passou várias semanas dentro da mãe, num universo aquático, cheio de sons, sabores, luzes. Era como um peixe que vivia no grande oceano chamado útero. Aquele era o mundo dele. Ele ouvia vozes, coração batendo, vísceras trabalhando. E de repente ele está em outro lugar, completamente diferente. Ele está em outro meio físico, não aquático, agora ele respira ar, precisa engolir alimento. Antes tudo funcionava automaticamente, imediatamente, organicamente. Agora, quando ele sente fome, frio, calor, dor, medo, ele não consegue fazer nada. Exceto gritar.

É como se hoje você estivesse sentado tranquilo e confortável no seu sofá e em seguida fosse transportado para um planeta alienígena selvagem, onde todos voassem e suas capacidades físicas não lhe trouxessem nenhuma possibilidade de adaptação imediata e você não soubesse como sobreviver e nem como se comunicar. Você também gritaria um bocado, acredite.

Um bebê não chora muito porque quer manipular alguém. Ou porque é mimado. Ou porque é mandão. Um bebê chora assim porque o mundo realmente é coisa demais de uma vez só. Se imagine nesse lugar. Tenha empatia. Ele quer se sentir seguro. Quer um ponto de referência. Ele não tem a menor idéia do que aconteceu com ele. Você sabe que ele nasceu. Ele não. O que pra você é um nascimento para o bebê é uma espécie de morte: morte do mundo seguro onde ele vivia para um mundo novo, hostil, e que ele está aprendendo a conhecer. Isto é aterrorizante, convenhamos.

E isso não se esgota apenas enquanto bebê. A criança vai se desenvolvendo muito rápido, descobrindo o mundo e se descobrindo. Imagina o que é de repente aprender a comer comida, mastigar, andar, falar. Nos 3 primeiros anos da vida de um bebê as mudanças são tão brutais, aceleradas, desnorteadoras. Se até os pais têm dificuldade de lidar com isso, imagina para a pessoa que está vivendo. Não dá pra exigir que ela tenha as mesmas habilidades, as mesmas capacidades, a mesma maturidade para lidar com as coisas que os adultos, teoricamente, deveriam ter. Elas são seres agitados, curiosos, imaginativos. Imagina como você se sentiria se nesse mesmo planeta alienígena que eu usei como exemplo, você estivesse aprendendo finalmente a voar? Você ficaria sentado quietinho em um canto, ou você iria querer explorar os ares? Conhecer as nuvens?

Crianças não são uma outra categorias de seres humanos que por estarem sob tutela e cuidado de adultos são hierarquicamente inferiores e devem se submeter a tudo. Eu sugiro inclusive um exercício interessante: de que se pensem em crianças como um “adulto” em habilitação. Que ainda está se desenvolvendo, aprendendo a usar todas as suas potencialidades, físicas, emocionais, laborais, para transitar pelo mundo. Assim como muitos adultos em reabilitação. E aí eu deixo a pergunta: você bateria em um adulto em reabilitação? O deixaria chorando, gritando, para “aprender” algo? Você forçaria um adulto em reabilitação a adquirir independência a todo custo, mesmo que ele não estivesse preparado? Você declararia repulsa a presença desse adulto em lugares públicos? Você diria “odeio adultos em reabilitação?”.

Esse adultismo que é a tônica da nossa sociedade nos torna prepotentes e um tanto cruéis. Todo mundo já foi criança. E um dia seremos idosos. Um outro jeito de ser criança de novo, caminhando mais uma vez para a fragilidade física. É um ciclo que todo ser humano passa, e é necessário um tanto de ajuda mútua para fazer essa travessia. Sobretudo, essa tal de empatia que tanto falamos. De pessoa para pessoas.

O amor em tempos de cólica

Quando um bebê nasce começa o primeiro grande teste de qualquer relacionamento amoroso. Começa o amor em tempos de cólica. Filhos trazem muitas coisas para a relação e também retiram muitas coisas. É ilusão acreditar que nada vai mudar. A expectativa fantasiosa da família margarina cultivada durante a gestação muitas vezes dá lugar a profundas crises profundamente calcadas na maneira como homens e mulheres são socializados para lidar com família, filhos e relacionamento.

Homens aprendem que tudo na relação é sobre eles e que a mulher existe para gravitar em torno de suas necessidades. Mulheres aprendem que devem satisfazer a todas as necessidades masculinas sob pena de serem rejeitadas, caso não façam. Aprendem que devem ser mães devotadas, entregues, cuidadoras. Aprendem que devem administrar todos os detalhes do funcionamento do lar com excelência, caso contrário não serão consideradas boas.

Para o homem, a família é como se fosse um símbolo de status. Algo que eles “possuem” e que demonstra para a sociedade que já são “homens”, são responsáveis. O homem aprende que precisa cuidar da família da porta pra fora. Cuidar da imagem, da reputação, da respeitabilidade, da segurança, do sustento. E que é função da mulher cuidar da família da porta pra dentro, do gerenciamento do lar, do cuidado de todos.

Como resultado disso, muitos relacionamentos começam a trincar com a chegada de crianças, porque o homens e mulheres recusam-se — ou não conseguem — entregar-se à profunda transformação pessoal que esse evento familiar exige. Homens por um lado ressentem-se porque percebem que não estão mais no centro das atenções da companheira, porque são cobrados de tarefas que nunca entenderam como suas, porque sentem-se abandonados, porque recusam a responsabilidade, porque não conseguem lidar com o fato de que a vida mudou, de que a diversão transformou-se, de que será mais exigido por um longo tempo. Mulheres ressentem-se porque sentem-se rejeitadas, sobrecarregadas, coagidas, solitárias e profundamente infelizes, além de frustradas no seu imaginário de como seria o casal brincando de boneca com o filho.

E é claro que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco e mulheres são o lado mais vulnerável. Com a chegada do bebê, são cobradas pesadamente para manter uma performance que é impossível de ser cumprida. Não só pelo companheiro mas por toda a sociedade. Chega a ser cruel. Já no puerpério as mensagens são de que a “normalidade” deve ser instaurada o quanto antes pelo “bem do casal”. E por normalidade entenda-se o corpo de “antes”, o sexo de “antes”, a atenção e leveza de “antes”. São ameaçadas. “Se você não transar com seu marido ele vai procurar outra”, “se você não emagrecer ele vai procurar outra”, “se você deixar a casa essa bagunça ele vai procurar outra”. São pressionadas a escolher entre as demandas da criança e as demandas do companheiro que vê o filho como um rival da atenção da mulher que antes era exclusiva dele. Sentem que estão cuidando sozinha do bebê (e quase sempre estão mesmo), além de administrar de todo o resto e estão sempre cansadas demais.

E o bebê, muitas vezes, é atropelado nesse processo para que a “normalidade” seja restaurada. E aí ele precisa o mais rápido possível dormir a noite toda, preferencialmente no próprio quarto “para preservar a intimidade do casal”. A mãe é cobrada para tornar o filho “independente” o quanto antes, para não “sobrecarregar” os pais. Desmame, desfralde. Tudo feito o quanto antes, de qualquer jeito, de forma a transformar aquele bebê num mini adulto que não vai ser mais um empecilho para os pais viverem como antes dele ter nascido. Crianças não podem chorar, não podem gritar, não podem brincar, não podem atrapalhar.

E o homem, nesse processo, vai de coação em coação, rejeição em rejeição, chantagem emocional em chantagem emocional, manipulando a mulher para que ela atenda a todas as suas necessidades. E que não o cobre para assumir sua responsabilidade no cuidado dos filhos e da casa onde reside. E ameaça partir quando é confrontado. Fica agressivo. Ameaça tirar os filhos. Ameaça financeiramente. E se ele quiser cumprir o que sugere, ele pode. E talvez ele vá.

O homem — diferente da mulher — tem a opção de abdicar da paternidade, e ele abdica. Ele age como se aquela criança não existisse, caso queira. Abandona o projeto e parte para outro, como se nunca tivesse tido um filho. Sem nenhuma culpa.

Você conhecerá um lado importante do seu parceiro ao ter um filho com ele. É nesse momento que o “na saúde e da doença, na alegria e na tristeza” vai ser posto à prova: seu corpo não será mais o mesmo que ele está acostumado a desejar, sua disponibilidade sexual não será mais a mesma, sua libido, sua liberdade de ir e vir. A intimidade do casal será sequestrada. A privacidade praticamente extinguida. E o cansaço será a tônica dos dias. Aquele casal que existia antes simplesmente não terá mais espaço pra existir e será convocado a romper com sua socialização.

Entenda, quando você tem filhos a matemática da vida pára de funcionar. Você não consegue mais dar conta de “tudo”, “tirar de letra”. Quando mulheres são as únicas que se responsabilizam e se ocupam da organização doméstica, dos filhos, do relacionamento, de si mesma, ela se vêem forçadas a estar constantemente fazendo escolhas muito cruéis. Dar atenção ao filho ou ao companheiro? Cuidar da casa ou de si mesma? E o trabalho? E o descanso? E o lazer. Essa conta só fecha se for compartilhada. Ela precisa ser dividida com a outra parte interessada que é o parceiro. E se ele não assumir essa responsabilidade, que é dele, mulheres ficam completamente reféns no relacionamento e forçadas ou a aceitar uma situação de completa exploração do seu trabalho ou a romper e lidar com as consequências, já que quase sempre homens dão um jeito de punir mulheres que o rejeitam.

E mulheres-mães também sentem falta de como era suas vidas antes dos filhos. De poder namorar tranquilamente. De se sentirem desejáveis. De fazerem sexo sem pressa. De não estarem sempre sujas, cheirando a leite, cocô, vômito, comida. De não estarem sempre com um bebê nos braços. Mulheres-mãe sentem saudade de andar de mãos dadas. De beijar na boca, sem testemunhas. De tomar um longo banho, se arrumar, sair para ir a um cinema, ao bar. Paquerar. De dormir 8 horas por dia, estudar, dedicar-se ao trabalho sem pressão nem interrupções. De ter a atenção de alguém toda pra si. Essas necessidades não são exclusividades masculinas.

Se os homens se envolvessem na criação dos filhos com a mesma medida que as mulheres, no mínimo compartilhariam do mesmo cansaço, dos mesmos dilemas, das mesmas dificuldades. E cada momento de intimidade reconquistada, seria um prêmio para o casal. Cada instante de privacidade seria degustado entre risos e suspiros. Para além da oportunidade de desenvolver o mesmo vínculo emocional que mães compartilham com seus filhos, quase sempre formados ali na convivência do cuidado. Se tornarem pais, de verdade.

Quando você tem filhos vai poder entender a força do seu relacionamento. Porque manter- se juntos, manter uma unidade para criar crianças, administrar a vida, não é sobre amor. É sobre vontade e capacidade de trabalhar em equipe. Sobre entender que os dois estão ali num projeto de longuíssimo prazo, transformador para ambos. Individualmente e como casal. E isso é avassalador. De muitas maneiras. O casal pode se afastar definitivamente ou pode se unir mais do que nunca em torno dos desafios.

O “segredo” talvez seja entender que alguns primeiros anos serão mais difíceis, mas que aquilo vai passar. E que nunca mais será como antes mas que isso não quer dizer que será ruim, ao contrário pode até ser muito melhor. E afinal, não tem uma história aí que era pra ser até que a morte os separe? Por que não é possível vivenciar juntos todas as dores e delícias do cuidado das crianças e suportar por um tempo as impossibilidades que filhos pequenos trazem para um casal? Quando os dois estão verdadeiramente envolvidos na tarefa da criação dos filhos o “romance” ressignifica. Basta apenas que haja maturidade para ajustarem expectativas e para que possam agir como companheiros de um jornada que nem sempre é fácil mas não precisa ser sofrida. E que se entenda que relacionamentos acabam, mas os filhos são para sempre, então acertar essa relação e essa divisão de cuidado é algo fundamental e que vai estar sempre presente.

Essa vida não foi feita pra dar certo

Uma escola no Rio Grande do Sul promoveu uma festa para seus alunos adolescentes com o tema “E se nada der certo”. Mergulhados na proposta, os jovens compareceram fantasiados de profissionais da área operacional e serviços, como faxineiro, atendente, mecânico, e outros, comprovando que realmente essa vida não foi feita pra dar certo.

vida nao foi feita para dar certo

A tônica da crítica em torno desse acontecimento, girou, acertadamente, sobre como esta situação é um reflexo da mentalidade elitista da nossa sociedade que divide as pessoas (e suas vidas) de acordo com os símbolos de status que conseguem adquirir pra si, tendo como divisor de águas sua entrada no ensino superior, em cursos de primeiro escalão preferencialmente (a saber, direito, medicina, engenharias).

No entanto, seria injusto dizer que este pensamento é somente das elites. Toda a nossa sociedade, todas as classes sociais, equacionam sucesso a partir das variáveis: “estudos” →profissão → bom emprego → dinheiro = vida dando certo. Não é, portanto, uma questão pura e simples de ter dinheiro. Isso é sobre fazer um determinado percurso que necessariamente passa pelo ensino superior, pela cultura do diploma, pelo menosprezo pelo saber não escolarizado.

Também seria hipocrisia apontar dedos aos jovens classe-média da festa e também à escola, sem fazer uma própria mea-culpa. Eles não estão reproduzindo nenhum valor que não seja de toda nossa sociedade, que divide o mundo entre primeira e segunda classe. E ninguém quer ser cidadão de segunda classe. Poucos são os que estão agarrados aos estudos por puro amor ao saber. Diploma é ferramenta de ascensão social e é símbolo de status. E educamos nossos filhos para “entrar em uma boa universidade e ter um futuro”. Aqueles que podem o fazem. Os que não podem, o sonham. Mas todos querem.

E então o que eu gostaria de refletir aqui é: que modelo de vida estamos ensinando para os nossos filhos? O que acontece com eles quando eles atingem esse lugar, que ensinamos que é o ápice do sucesso e estabilidade e eles ainda se encontram infelizes, frustrados, deprimidos? Nós, pessoas cuidadoras, temos realmente esse direito, ou devemos ter esse dever, de passar para frente uma fórmula de felicidade que mal funciona para nós mesmos?

A vida não está dando certo. Não precisa muito esforço para entender, é só ligar a televisão. É só conversar abertamente com as pessoas. Sem performance. De coração aberto. Trabalhamos demais. Adquirimos coisas que não sabemos muito bem para que serve. Não conseguimos realizar muitas conexões emocionais profundas. Estamos isolados. Politicamente decepcionados, frustrados, deprimidos. Sentimos medo. Estamos cansados. Desamparados.

A vida não é como nossos pais disseram que seria. Não é como a televisão mostra. Quando olhamos pela janela, não vemos esse mundo que está na TV. Será que estamos preparando nossos filhos para viver nesse mundo que existe de fato? O que acontece com a pessoa cuja vida “não deu certo”? E com aquela que rejeita essa fórmula, simplesmente porque tudo que ela quer é ser atendente da loja da esquina e ir andando pro trabalho para ter mais tempo pra fazer qualquer outra coisa que não trabalhar? Porque o que ela gosta mesmo é de passar as tarde jogando videogame?

Somos doutrinados para admirar e valorizar uma vida voltada para o trabalho. E isso é uma manobra muito bem posta simplesmente para que continuemos produzindo e produzindo e produzindo. Até que um dia percebemos que todas as horas da nossa vida foram doadas para gerar riqueza para pessoas desconhecidas, que nos exploram e em nada valorizam. E não conhecemos direito as pessoas que moram na nossa casa porque não temos tempo para conversar com elas. E as vidas são tão diferentes e tão parecidas!

Sim, nós vivemos como nossos pais em certa medida. Mas plantamos a semente de expectativas que pouco tem solo para florescer e criamos filhos que se tornam adultos frustrados quando descobrem que são pessoas comuns, limitadas, falhas. E que vivem uma vida “medíocre”, como todas as outras pessoas do mundo. E não ensinamos a lidar com o fato de que tudo bem por isso. As pessoas não são especiais, embora secretamente todos acreditem nisso. E passem a vida buscando ser reconhecidas por isso.

E criamos, e fomos criados, para morrer tentando. Tentando ser o melhor ‘alguma coisa’. Isso está nos destruindo. E olhamos para nossa vida, que pode ser boa, mas enxergamos fracasso. E desviamos o olhar das pequenas grandes coisas cotidianas que adoçam o coração e fazem valer a pena prosseguir.

E essa não é uma apologia ao fim do trabalho. Esse é um chamado para a reflexão que a nossa sociedade deu muito errado. Não é esse tipo de vida e esse tipo de valores que vão trazer alguma felicidade para nós, nem individual, nem coletivamente.

Esta vida, como esta posta na nossa sociedade, não foi feita pra dar certo.

Porque se ela der certo, as pessoas parar de consumir tanto. Porque consumir é uma maneira de se compensar por todo o sacrifício que é feito para viver essa vida que é vendida na TV. Olhem pela janelas dos seus carros. Olhem pela janela do ônibus. É lá onde a vida está. Como é possível dizer as nossas crianças que se elas tiverem um profissão, um emprego, e “estabilidade”, a vida dela “deu certo”? Você realmente acredita nisso? Aposta nisso? Você que se preocupa tanto em “preparar” o seu filho, e o matricula em mil cursos para aprender habilidades técnicas (inglês, informática, idiomas), o está preparando para viver que tipo de vida exatamente? Onde estão essas pessoas felizes, satisfeitas, produtivas, transformadoras?

Colocamos nossos filhos boa parte da vida em escolas onde parte do conteúdo se perde por completa desvinculação com a vida cotidiana. Obrigamos adolescentes que mal aprenderam a ajeitar o absorvente na calcinha e a fazer a própria barba a decidirem por uma profissão que vão exercer pelo resto das suas vidas. Vendemos para estas meninas e meninos a ideia de que existe um único modelo de vida que funciona. E punimos com a “decepção paterna” caso eles rejeitem esse modelo. Se não estudam o que gostaríamos, se não trabalham com o que admiramos, se não querem fazer sexo com quem aprovaríamos.

O que estamos fazendo com nossos filhos? Temos realmente completa certeza de que este caminho é o que vai torná-los felizes? É isso que deveríamos esperar para eles, não? Queremos nossos filhos felizes, ou queremos que “suas vidas deem certo”?

Os modelos precisam ser questionados. Precisam ser discutidos. Precisamos entender que tipo de instrumentalização uma pessoa precisa de fato para enfrentar o cotidiano e sobreviver. Para transitar nessa sociedade de maneira transformadora, propositiva. Precisamos rever nossa escala de valores onde estar com quem se ama se torna menos importante que “ter sucesso”. Onde receber o reconhecimento de desconhecidos mobiliza mais o nosso empenho que o afeto dos nossos filhos. Onde reproduzimos um comportamento e ensinamos valores que nos transforma em pessoas individualistas, egoístas, solitárias. Onde nos separamos, nos desunimos, nos violentamos.

Precisamos parar de tentar fazer essa vida dar certo. Isso não vai acontecer. Vamos repensar o que é de fato importante e tentar construir um modelo em que fazer a vida dar certo não precise ser um objetivo. Uma sociedade em que não existam pessoas divididas em vidas que deram certo e vidas que deram errado.