Crianças não são um problema

O mundo seria muito diferente se as pessoas parassem de tratar as crianças como um problema. Que todo o discurso que é feito sobre elas, de toda a sociedade, não girasse em torno de uma ideia que não é claramente dita mas sempre muito sutilmente colocada de que elas causam o caos, que são uma perturbação, de que não deveriam estar ali.

Vivemos em uma sociedade que pretensamente “ama” todas as crianças e as protege. É o discurso oficial que está bastante longe da realidade. Crianças são um grupo vulnerável tratado como propriedade privada dos seus tutores, sob fiscalização bastante esparsa do Estado. São vistas como menos que coisas, muitas vezes equiparáveis a animais de estimação. São sistematicamente excluídas socialmente até atingirem uma idade em que possam ter utilidade social, sejam por serem férteis, produtivas, ou consumidoras. São alvo de todo tipo de discurso aberto de ódio sem que haja sequer indignação sobre o tema. E poucos se preocupam de fato do bem estar delas, enquanto grupo, enquanto classe, enquanto seres de direito, que são. Pessoas.

Eu queria que pessoas lembrassem que a infância é um estágio obrigatório para todos. Que sequer faz sentido tratar crianças como seres “inferiores” ou à margem, porque necessariamente todos nós já estivemos nesse lugar, tendo o mesmo tipo de comportamento típico, de ser uma pessoa em desenvolvimento apreendendo o mundo. Então eu gostaria que os adultos não dedicassem tanto tempo para simplesmente domesticar as manifestações naturais dos estágios necessários de crescimento de todas essas tão jovens pessoas. Que não reclamassem tanto de suas necessidades de choro, sono, fome, de sua curiosidade, rebeldia, de sua inocência, sua raiva, sua inconveniência.

Eu queria que crianças com deficiências não fossem invisíveis, não fossem tratadas como seres de segunda categorias que não precisam de deferência, afeto e cuidado porque são encaradas como pessoas sem plenas capacidades para serem exploradas à exaustão pela máquina capitalista, cujos poucos direitos que possuem foram conquistados à duras penas por suas mães, igualmente invisíveis com suas questões.

Queria que todas as crianças tivessem seus direitos respeitados e não só aquelas que interessam à sociedade, as brancas endinheiradas. Que crianças negras tivessem direito de verdade à infância e que não fossem vistas como adultas tão logo cheguem à pré-adolescência, já sendo considerados aptas para morrer na mão do Estado, ou parir.

Queria que homens não violassem, não agredissem, não explorassem corpos infantis. Que assumissem suas crianças e cuidassem delas de verdade. E que todo esse discurso de que crianças são seres “sagrados”, são “anjos”, são “seres inocentes” não fosse uma mera falácia para ficar bem na foto.

Eu queria que todos se mobilizassem para pensar a maternidade compulsória, um debate tão necessário, e não usasse isso como desculpa esfarrapada para destilar discurso de ódio contra crianças.

Parem de tratar crianças como se elas fossem um problema apenas porque somos uma sociedade embrutecida, cruel, dura, incapaz de cultivar valores de empatia, generosidade e solidariedade com quem ainda não é útil ao sistema. Parem de tratar crianças como se elas fossem um estorvo, um fardo, apenas porque ninguém além das mulheres é levado a responsabilizar-se pela criação delas. E isso interrompe a vida das mulheres sim, mas não porque há algum problema com as crianças e sim porque há um problema com toda uma sociedade que isenta-se da formação dos seus próprio cidadãos, que trata crianças como números, como exército de reserva.

Uma sociedade com valores tão deturpados não está preparada para amar crianças de verdade. Para respeitá-las. Para entendê-las. Para querer oferecer o melhor possível para cada uma delas. Para vê-las em toda sua potência, força e beleza. Somos uma sociedade de valores tão individuais e utilitaristas formada por adultos que também tiveram sua infância roubada, e precisamos ser capazes de quebrar esse ciclo sem fim de violências. Em algum momento precisaremos dar um basta. Não são as crianças que são um problema, são os adultos que em algum momento esquecem da criança que já foram. Elas são a potencial solução para esse mundo tão complicado que vivemos e nós somos incapazes de reconhecer e investir nisso.

Pelo direito de criar nossos filhos

Pode não parecer, mas lutamos pelo direito de criar nossos filhos com dignidade. A sociedade é estruturada de forma que cada um de nós seja a engrenagem de uma super-estrutura exploratória que funciona para beneficiar plenamente uma parcela muito específica e diminuta da população, a saber: homens brancos ricos. Logo, se você não é um homem branco rico, certamente está sendo explorado em algum ponto dessa cadeia, seja em função do seu sexo, sua raça, sua classe, ou tudo junto.

Nosso bem-estar enquanto indivíduos e enquanto comunidade não é algo que seja uma finalidade na nossa vida da forma como ela é organizada. Ou seja: na realidade não nascemos para “ser felizes” e sim para manter em funcionamento um sistema que faz homens brancos e ricos felizes e cada vez mais poderosos. As necessidades subjetivas de felicidade e bem-estar que nos são permitidas almejar e alcançar (e que são necessárias até como um mecanismo de regulação social, senão nos revoltaríamos) são insufladas de maneira artificial e calculadas para nos manter pacíficos, iludidos e alimentando uma roda de consumo que garante o lucro de quem nos explora.

Dito e entendido isto, precisamos ser bem honestos na seguinte questão: o sistema não liga para as crianças, que são propriedade das suas famílias até atingirem uma idade em que possam ser utilizadas na estrutura. E neste contexto, as famílias são as unidades funcionais para criar e manter os indivíduos mais ou menos em bom estado para serem usufruídos em sua capacidade produtiva e reprodutiva, e cujo funcionamento gira basicamente em torno da exploração do trabalho de uma mulher.

O sistema capitalista-patriarcal não se importa se crianças estão nascendo em sofrimento, se passam fome, se são agredidas ou abusadas. Ele apenas se encarrega para que nasça o maior número de crianças possível para que sempre exista um exército de reserva em carestia que é usado para continuar gerando riqueza. E isso através de inúmeros mecanismos diferentes como a heterossexualidade compulsória, a maternidade compulsória, o controle dos corpos femininos, a cultura do estupro, a cultura da pedofilia, machismo, racismo, etc.

É por isso que toda mulher cresce aprendendo que a felicidade vem de ter “amor” ou algo que valha, que manifesta-se em casar-se, ter filhos e cuidar de uma casa e de um marido; e que todo homem cresce aprendendo que a felicidade vem de ter “dinheiro”, sucesso e afins, que manifesta-se em trabalhar, trabalhar, trabalhar. Para que, como resultado final, mulheres mantenham-se sempre cumprindo sua função de gestar e cuidar dos filhos e manter um lar que vai dar assistência para que um homem mantenha-se trabalhando para o capital em potência máxima. Todos sendo explorados. É a máquina perfeita. E os discursos em torno disso vão se adaptando, remodelando-se com o tempo, mas todos os rios desaguam no mesmo mar, não se engane. Nós crescemos aprendendo isso, e nós estamos ensinando isso aos nossos filhos — querendo ou não.

Logo, criar TODAS as crianças felizes, saudáveis, protegidas, capazes de construir um mundo melhor não é prioridade de ninguém que detenha o poder. As pesquisas, descobertas científicas, tecnologias e teorias sobre o melhor desenvolvimento de bebês existem para garantir uma melhor criação apenas das crianças que importam: aquelas que se tornarão adultos que comporão as partes mais acima da grande pirâmide de exploração a qual pertencemos. Criar filhos com alguma dignidade é um privilégio reservado a quem pode pagar. E quem pode pagar, historicamente, tem raça e classe muito bem definidos. Em resumo, moradia adequada, segurança alimentar, acesso a informação, tempo, informação, rede de apoio, possibilidade de autoconhecimento, e tudo mais que uma criação decente de crianças demanda, é acessível basicamente pra uma bolha que contém pessoas brancas com dinheiro.

Afinal, para quem estamos falando de humanização do parto, com os sistemas de saúde pública completamente sucateados? Com o SUS sendo destruído? Para quem estamos fazendo campanha de amamentação prolongada se a licença-maternidade é de 120 dias? Para quem estamos pregando “criação com apego” se quase sempre o que a maior parte das famílias consegue fazer pelos filhos é manter o básico da estrutura de sobrevivência, colocar na escola com um beijo de bom dia, colocar na cama com um beijo de boa noite, torcendo pra ter dado tudo certo entre uma coisa e outra?

Como é que a gente fala de alimentação saudável sem falar de segurança alimentar? Sem falar de renda-mínima? Valor da cesta-básica? Agricultura familiar, aumento salário-mínimo? Como é que a gente fala de comer bem com quem passa fome? Como fala de criação sem violência sem discutir saúde mental, adições, pobreza, violência doméstica, cultura da pedofilia, desamparo estatal, ausência de proteção policial e legal?

Como é que discute antirracismo com os filhos sem falar de desigualdade social, distribuição de renda, políticas de cotas de alto a baixo, reparação histórica, taxação de grandes fortunas, redistribuição de terra e moradias? Sem falar em genocídio de pessoas pretas e pobres, encarceramento em massa?

Quando a gente toca em todas essas questões superficialmente, ou apenas do ponto de vista individual e subjetivo, sem partir da base, sem tocar na raiz dos problemas, para quem estamos falando afinal ? Quem são as pessoas que conseguem burlar estas questões estruturais básicas e ter acesso aos benefícios de um discurso progressista porque tem dinheiro para pagar por isso? E em que isso resulta senão no reforço da lógica de exploração que rege todas as nossas relações?

E fiz essa longa explanação até aqui para dizer que: não existe proposta sobre uma sociedade melhor, mais justa, que não passe pela necessidade de todos criarem seus filhos com dignidade, respeito e consciência crítica. Todos. E não somente as pessoas que chegaram até aqui carregadas historicamente por um acúmulo de privilégios. E para que todos tenham essas possibilidades, para que famílias não sejam apenas uma máquina de produzir gente a serviço da estrutura capitalista-patriarcal precisamos reivindicar estratégias que confiram condições materiais para as pessoas.

Sem condições materiais mínimas asseguradas: moradia, alimentação, segurança, educação, assistência médica, etc, não dá pra criar crianças com qualidade. Porque para garantir esse básico, temos que abrir mão do principal recurso necessário para realizar essa tarefa que é o nosso tempo. Quando se precisar estar 18 horas por dia dedicado a um trabalho laboral de manutenção da vida não interessa quanta informação nós recebemos, quantos livros lemos, quantos cursos fizemos, quantas teorias revolucionárias de criação nós conhecemos, não conseguiremos aplicar isso. Só vamos acumular a angústia e frustração.

E ocupar todo o nosso tempo também é uma estratégia do capitalismo. Precisamos ser mantidos ocupados e exaustos para que não consigamos sequer refletir sobre nossa situação. Para que a gente não pense sobre que tipo de organização de vida é essa em que estamos inseridos, que vamos sobrevivendo, passando pra frente toda a socialização que aprendemos, no automático, deixando exploração, violência e sofrimento como legado. Nosso tempo é completamente ocupado, roubado de nós para que a gente não tenha tempo nenhum de refletir quem somos, de onde viemos, para onde vamos.

A ninguém interessa uma geração de pessoas despertas, que esteja interessada em criar crianças críticas, conscientes. Que vão se tornar adultos potentes para rebelar-se. Pessoas conscientes são um problema e propor uma criação libertadora, anti-sexista, antirracista, anticapitalista é dos discursos contra-hegemônicos mais revolucionários que podem existir, e cabe a nós, pais, cuidadores, educadores, adultos interessados em plantar sementes para um futuro mais promissor, conquistar o direito fundamental e inalienável de poder criar nossos filhos com dignidade hoje. Já.

E portanto, nós temos o compromisso de ser mais ousados do que temos sido. Ou no mínimo menos ingênuos. ENXERGAR as artimanhas em que somos engendrados, denunciar, opor-se, reivindicar condições mais justas, humanas, Condições materiais. Concretas. Pensar em uma organização social que não se baseie em exploração. Que não dependa de lotes de crianças em sofrimento sendo produzidas a toque de caixa para poder prosperar. Criar uma sociedade melhor para nossos filhos só funciona se essa sociedade for melhor para todos os filhos de todas as pessoas. Porque enquanto uma criança ainda crescer com fome, sendo explorada, sendo abusada em algum lugar significa que ainda falhamos com ela e com o adultos que ela será. Que fatalmente perpetuará esse ciclo de indignidades. E vamos só afundar na ilusão de que estamos fazendo algo e continuaremos a entregar nossos filhos para esse mesmo mundo bosta com um futuro de cartas marcadas que tem cara de passado.

A felicidade de todos nós deveria ser nosso objetivo enquanto sociedade. E pra isso precisamos até entender o que consideramos felicidade. Enquanto nos for negado o direito de pensar por conta própria (roubando nosso tempo, direcionando nossos pensamentos e emoções) vamos seguir patinando. Mas acima de tudo precisamos entender que esse desafio não é dos nossos filhos, não é mais dos nossos pais. É todo nosso, e não podemos fugir. Pelo direito de criar nossos filhos e pelo direito de toda criança ser criada com respeito e dignidade.

A pedofilia é um projeto

A pedofilia é um projeto. Ela é definida como qualquer tipo de envolvimento de cunho sexual de adultos com crianças. Há hoje todo um “repudio” social à prática e aqui entram muitas aspas mesmo porque é preciso que, de uma vez por todas, a gente encare esse tema sob a perspectiva adequada: a pedofilia é uma estratégia masculina para garantir e manter seu poder sobre as mulheres.

E não é tão difícil de perceber isso. Basta saber para onde olhar.

Primeiro, vamos olhar os números, para entender a magnitude do que acontece.

Falando de Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde em 2018 foram registrados mais de 32 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes. De 0 a 9 anos, 75% das vítimas são meninas. De 10 a 19, as vítimas meninas somam 92%. As agressões (e por “agressões” entenda que a maioria é estupro) ocorrem prioritariamente em casa perpetradas pelo pai/padrasto ou um conhecido da família. E sim, os perpetradores são a maioria esmagadora, homens.

É uma média de 3 agressões por hora, o que significa que até você terminar de ler esse texto há uma chance muito grande de uma menina ter sido acossada sexualmente em casa pelo pai ou alguém muito próximo, em algum lugar do Brasil.

;

E isso analisando dados específicos. Quando começamos a cruzar informações fica tudo muito mais nebuloso. Muitos já devem ter ouvido falar da “famosa” estatística de que no Brasil há um caso de estupro notificado a cada 11 minutos (que com a previsão de subnotificação poderia significar um estupro a cada minuto). O que não se falou é que 70% desses casos de estupro são de crianças e adolescentes. Segundo o 13º Anuário de Segurança Pública, com dados de 2018, de cada dez estupros, oito ocorrem contra meninas e mulheres e dois contra meninos e homens.

E isto estamos falando de tragédias domésticas.

Se consideramos os números de exploração sexual infantil então, os dados são alarmantes. Embora seja uma taxa bem difícil de levantar, um estudo de 2002, estimou que à época havia cerca de 10 milhões de crianças em situação de prostituição no mundo. Lembrando sempre que mulheres e meninas são 99% das vítimas de comércio sexual. E são alarmantes principalmente porque pesquisas consistentes quase inexistem, há um apagão de informação, subnotificação, omissão e silêncio. Sabemos por exemplo que crianças são 1/3 das vítimas de tráfico humano no mundo, sendo 70% delas, meninas. De todas as vítimas de tráfico humano mundial, aliás, meninas representam 20%. Com fins de exploração sexual para 59% dos casos. Isso sem falar nos números de pornografia infantil, que são explosivos.

E aqui falando apenas das práticas “ilegais” ou “forçadas”. Porque há as “legalizadas”. O casamento infantil é uma realidade no mundo inteiro e é a forma em que o Estado endossa a tomada de poder sobre corpo de crianças, de maneira absolutamente institucionalizada e naturalizada. Podemos então começar dizendo que no mundo hoje cerca de 21% das mulheres casaram antes de cumprir 18 anos. São 650 milhões de mulheres. E todo ano, 12 milhões de adolescentes menores de 18 anos contraem matrimônio. A idade de consentimento para casamento é uma discussão bastante recente, que muitos países não se interessam em fazer, ou tem legislações que são absolutamente coniventes com o abuso. Como permitir o união com menores após a emancipação feita pelos pais (que como resultado incentiva desde venda de menores até autorização para “salvar a honra” perdida por conta de estupro). E não há tantas diferenças assim com relação a cultura ou nível de desenvolvimento, Estados Unidos e Canadá estão tão mal posicionados no mundo, em termos de proteção a essas adolescentes, quanto o Afeganistão, Nigéria, Tanzânia e outros países da África.

Brasil é o quarto país do mundo em índice de casamento infantil e segundo o Censo 2010, pelo menos 88 mil meninos e meninas com idades de 10 a 14 anos estavam casados. Na faixa etária de 15 a 17 anos, eram 567 mil.

E tudo isso para dizer que a pedofilia seja de forma ilegal (quando há legislação protetiva) ou ilegal (quando amparado pela legislação) é uma atividade amplamente enraizada, disseminada e praticada em toda a nossa sociedade. Que a maioria esmagadora das vítimas são meninas e que a maioria esmagadora dos perpetradores são homens.

E aí cabe então agora entende como isso se estabelece e por quê isso acontece.

Eu já falei um pouco aqui sobre cultura do estupro, sobre como homens e mulheres são socializados para normalizar abuso e violência sexual como ritual de sedução. Mas para esse raciocínio ficar completo é preciso entender que o pensamento pedófilo faz parte da socialização masculina e é o principal traço da nossa cultura. Meninos aprendem a desejam mulheres jovens e aprendem a manter esse desejo mesmo quando adultos. E é bem fácil perceber isso.

Antes, é preciso um parêntese de que esse constructo cultural, como conhecemos hoje, foi reforçado principalmente no último século com advento da TV e demais mídias de comunicação de massa. Tanto como um reflexo do pensamento predominante quanto como uma necessidade de driblar o tabu que passou a ser criado quando finalmente a infância foi reconhecida como uma parte vital do desenvolvimento humano, gerando verdadeiras batalhas para criar barreiras de proteção à infância. E isso tanto é verdade que as legislações que regulam a idade de casamento infantil são absolutamente recentes. Na regra, antes disso, a prática de venda ou troca de meninas em matrimônio (como um produto mesmo) eram um negócio familiar, e não havia absolutamente nenhum constrangimento em desposar meninas mal tivessem atingidas a idade púbere.

Pesquise com que idade sua avó ou bisavó tiveram seu primeiro filho e descubra por si mesma.

Então, alguns desses parâmetros que cito aqui, nos são muito próximos e atuais e refletem um estabelecimento de uma cultura da pedofilia organizada em parâmetros muito mais sofisticados em função das possibilidades tecnológicas e com função de preservar e reinserir a lógica naturalizada de homens acessarem livremente — e sem tabu — os corpos de meninas.

Por exemplo, nós mulheres somos proibidas de envelhecer, já notaram? O homem “maduro” é sábio, charmoso, experiente. Já a mulher entra em completo pânico ao ver o primeiro cabelo branco na têmpora pois sabe que está obsoleta no mercado. Está “velha”. Deixa de ser objeto de desejo, deixa de ser “fodível”, não consegue mais inserir-se nos mesmos espaços (inclusive mercado de trabalho), fica refém — e é cobrada por isso — de um sem número de procedimentos estéticos para “prolongar a juventude”. Porque toda mulher sabe que homens querem estar do lado de mulheres jovens.

E mais, o ideal de beleza que nos é exigido reflete não só a necessidade de manter um ar de “juventude”: o apelo (vendido pelas imagens padrão da mídia, publicidade, e indústria da beleza e moda) é de uma mulher pequena, frágil, de “pele suave”, depilação total, ausência de manchas, rosto corado, magra, sem nenhuma gordura, corada, jovial, sexy mas “angelical”.

Pensem. Quem tem essas características primárias? Quem tem pele lisa e sem manchas, ausência de pêlos, pouca gordura corporal, rosto e lábios corados? Quem tem estatura pequena e frágil? Com quem essa descrição parece?

Se você não sabe eu digo: crianças.

Mulheres adultas têm pêlos, acnes, gordura, cheiros, rugas, estrias, celulites, cicatrizes e tudo mais. Ou deveriam ter. Porque homens ostentam isso tudo sem pressão, a eles é permitido crescer e envelhecer. Mas mulheres são permanentemente pressionadas para manterem um corpo e um rosto adolescente se quiserem ser atraentes. Porque homens só legitimam a beleza pré-pubere. E essa imagem de que tipo de mulheres homens devem desejar é reforçada pela mídia e principalmente pela pornografia.

Jennifer Aniston. 20 anos e mesma cútis com algum botox a mais

Homens são incentivados a “trocar” sua esposa de 40 por “duas de 20”, efetivamente ostentam relacionamentos com mulheres 20, 30, 40, 50 anos mais novas. Muitas delas que começaram a se relacionar quando ainda eram menores de idade. O abuso é romantizado com o papo de que “amor não tem idade” ou a velha história de que “meninas amadurecem primeiro que meninos”, ou que “ela era diferente e mais madura pra idade”.

Toda a nossa mídia está recheada de meninas e adolescentes sendo aliciadas para performar o papel de “ninfetas”, de “lolitas” sedutoras dos pobres homens que não podem ver uma “cabrita”. A rivalidade entre mulheres mais velhas e mais jovens é absurdamente estimulada a ponto de adolescentes serem culpabilizadas pelos assédios que sofrem de homens adultos casados que não respeitam seus relacionamentos. Meninas e jovens que são terrivelmente sexualizadas e estimuladas a buscar reconhecimento e aceitação social a partir do reconhecimento de sua beleza e da aprovação masculina que surge na forma de assédio. Não precisa ir muito longe, uma busca no instagram revela o perfil de diversas crianças e adolescentes absolutamente pornificadas.

Mc Melody, 12 anos

Nossa sociedade acolhe homens abusadores e pedófilos. A lista de homens famosos acusados de envolver-se sexualmente com menores é incalculável. Celebridades que nunca tiveram uma vírgula de sua reputação sendo afetada. E nem terão. Escândalo após escândalo, seguimos anestesiados diante do volume de casos, achando que tanta violência são causadas por “monstros”, simplesmente porque é difícil demais admitir que o que vemos é uma regra e não uma exceção: homens são criados para serem predadores sexuais de meninas.

E não pára por aí, a tentativa de institucionalização da pedofilia é real, consistente e faz avanços. Existem inclusive várias e várias tentativas organizadas de normalizar a pedofilia como uma orientação sexual, todo um ativismo pedófilo, antiquíssimo, que teve seu auge no final da década de 70/80, sofreu algumas derrotas ao longo da décadas de 90/2000 e agora está ressurgindo disseminado pelas redes travestido de “diversidade”. Existem leis como a Alienação Parental que foi toda formulada por uma teoria rejeitada em diversos países e sem nenhuma comprovação científica, criada por uma figura comprovadamente pedófila, que como resultado da aplicação tem mantido crianças em situação de abuso na guarda dos seus perpetradores. Em 2005 no Brasil, ainda vigorava uma lei que permitia que estupradores escapassem da cadeia caso casassem com suas vítimas.

A pedofilia não é uma “doença”, essa é mais uma tentativa de patologizar o comportamento masculino e causar empatia e uma falsa sensação de segurança nas mulheres, dando a impressão que só “alguns” homens são perigosos, que são pessoas “adoecidas”, que “sofrem” e podem “curar-se”. Mas se a pedofilia é uma doença de alguns, alguém me explica todos os números apresentados acima? Me explica como a idade média do primeiro assédio de qualquer mulher é anterior aos 10 anos de idade? Por homens adultos? O hábito de homens serem os iniciadores sexuais de suas filhas é uma prática tão naturalizada em algumas regiões do Norte do Brasil, por exemplo, que surgiu a lenda do “boto” que engravidava meninas pra justifica a alta taxa de gravidezes incestuosas. Essa “doença” é uma pandemia global? Porque nem coronavírus atinge tanta gente.

Apenas observem os homens. Seus hábitos, seus focos de desejo, seus fetiches, o que produzem em termo de cultura, o que pensam e dizem sobre meninas. Homens aprendem a desejar sexualmente essas crianças e adolescentes e alimentam toda uma industria de comercialização de corpos jovens, enquanto forçam mulheres a nunca parecerem velhas demais, enquanto violam meninas e as seduzem chamando de “amor”.

E tudo isso por qual motivo?

Bom, essa resposta é “fácil” e relativamente curta. Para manter o sistema de dominação de homens sobre mulheres ativo e operante.

Existe maneira mais eficiente de dominar uma mulher e tomá-la para si, ao seu serviço, do que capturando-a ainda menina? Do que submetendo-a sexualmente? Engravidando-a e a retirando da vida pública? Onde ela não poderá estudar, trabalhar, ser ativa, disputar espaço, pois estará completamente mergulhada nas tarefas de cuidados de casa e filhos? Sempre dependente economicamente porque não terá como acumular nenhuma riqueza própria, formar nenhum patrimônio?

Pensem na vida das avós de vocês. “50 anos de casamento”. Pergunte-as pelo que elas passaram, o que aturaram, o quanto serviram caladas, a que foram submetidas. Essa realidade não dissipou-se, ela é absolutamente real ainda para muitas e muitas de nós. Hoje, neste momento.

A exploração sexual infantil é um subproduto do casamento infantil porque o mundo patriarcal é um mundo que sempre entregou mulheres para o abate assim que atingissem a puberdade. E ainda entrega, mas agora de diferentes maneiras.

E o objetivo é sempre o mesmo: manter mulheres sob uma lógica de submissão e subalternidade, reproduzindo filhos e mantendo a roda do capitalismo girando. As estratégias se especializam, mas o objetivo do patriarcado não muda.

E é por isso que qualquer coisa que passe por combater práticas de pedofilia precisam levar em conta a engrenagem de como as relações entre homens e mulheres está estruturada. Então não passa apenas por dar “educação sexual”, ou mesmo de criar leis punitivistas, ou legislação protetiva. É preciso implodir a lógica de dominação sexual de homens para meninas e mulheres. Precisamos ver a pedofilia como ela é: uma estratégia de guerra de homens contra mulheres, inserida no coração do patriarcado. Uma maneira de manter mulheres acossadas com suas crianças, eternamente com medo de violência sexual. Crianças e mulheres por mais “educadas” que estejam pra reconhecer os agressores não dão conta de defender-se porque a realidade é que as agressões e as ameças e a violência está por toda parte. Basta olhar.

Precisamos de um pacto social verdadeiro pela proteção das nossas crianças, que implica no reconhecimento do homem como sujeito perpetrador da violência física e sexual contra mulheres e crianças. E que responsabilize, cobre, exija uma compromisso de todos que dizem repudiar essa realidade patriarcal.

Que homens que dizem se importar e indignam-se com tanta dor causada tenham coragem de rebelar-se, trair o patriarcado que significa trair todos os outros homens que compactuam com esse sistema de opressão. Não basta e não é justo pedir que mulheres deem conta de eternamente defender-se e as suas crias, de entregar suas vidas ao inimigo. Precisamos desmantelar essa máquina, entendendo como ela funciona, sem paliativos e principalmente sem ingenuidade. Porque é a vida de meninas, todas as meninas, que está em risco constante.

“Paternidade consciente” é a que luta contra o patriarcado

Há por aí todo um discurso de renovação da paternidade, vindo de um movimento capitaneado por homens interessados em serem pais “melhores” para os seus filhos. É a “paternidade ativa”, “paternidade consciente”, “paternidade participativa”. E esse é um discurso muito válido e legítimo, mas vale aqui pontuar algumas coisas importantes para que isso possa ser aproveitado de forma realmente revolucionária nas relações parentais, reverberando em mudanças reais na estrutura familiar e consequentemente na educação das crianças, na vida das mulheres e na sociedade. “Paternidade consciente” é a que luta contra o patriarcado.

É muito óbvio que há um lacuna importantíssima de afetividade deixada pelos homens das gerações anteriores na criação dos filhos, muito em virtude da socialização masculina, que retira os homens desse lugar de contato com a sensibilidade e também da função “tradicional” do pai na relação familiar, onde sempre bastou que ele fosse o provedor. Ser “bom pai” era sinônimo de não deixar que a família passasse fome, sendo o homem então completamente desobrigado de estabelecer vínculos amorosos com as crianças, que só eram importantes à medida que simbolizavam o resultado da união com a mãe.

Então, com as recentes discussões sobre “masculinidade”, a via que os homens conseguem alcançar e reivindicar nesse processo é o direito de “sensibilizar-se”, de poderem ser emocionais, de chorar, abraçar, usar um belo cardigã rosa sem que sua virilidade seja questionada. E a “nova paternidade” quase sempre passa por buscar ser acessível, sensível às demandas emocionais da criança e presente. E isso não é ruim em absoluto, muito pelo contrário, é valiosíssimo que homens conscientizem-se da importância de estabelecer vínculos afetivos concretos com seus filhos, mas é valiosíssimo também que se discuta que só isso não é o suficiente e que na verdade isso é só a ponta do iceberg. Falar em “paternidade consciente” significa prioritariamente ter consciência sobre o processo e as demandas impostas pelo patriarcado na organização da nossa sociedade, e atuar ativamente pela sua desconstrução, já que sem isso é impossível para os homens exercer um papel realmente saudável e feliz na configuração parental.

O sistema patriarcal, sob qual todos nós nascemos e somos socializados nos coloca uma relação onde mulheres e crianças necessariamente são subordinadas ao homem, que exerce uma figura de autoridade e controle sobre os membros da família. Onde a mãe tem funções muito específicas, todas ligadas ao trabalho doméstico e reprodutivo (ainda que também seja uma trabalhadora no mercado), e o pai tem a função muito definida de sustentar e “proteger” o lar, que é “seu”, conferindo-lhe inclusive a prerrogativa do uso da força e da agressividade para manter sua influência e domínio. Então qualquer ação que pretenda-se realmente transformadora em relação a paternidade é aquela que propõe-se a romper completamente com essa lógica.

Portanto, não adianta nada você ser um pai bacana, carinhoso, que chega do trabalho e vai brincar com o filhão no sofá, ou é completamente disponível para seus filhos no final de semana para muita “presença” e diversão, se você é completamente alheio a todo o trabalho invisível de manutenção da vida dessa criança. Trabalho esse que é sua mulher (ou alguma mulher, certamente) que está executando. Se você, de alguma forma, permanece explorando a mãe dos seus filhos para mantê-lo lindos, limpos e cheirosos, para você só chegar e brilhar como o paizão legal, desculpa, mas você apenas colocou glitter no mesmo sistema de bosta de sempre, e está oferecendo o mesmo modelo habitual de homem misógino e machista, na versão velada premium, agora com muitos abraços ao invés de gritos.

É preciso presença de verdade. Isso significa envolver-se realmente em todas etapas de desenvolvimento das crianças. E convenhamos, isso não acontece em absoluto. Se você entrar hoje em quaisquer fóruns, cursos, palestras, que falem sobre gestação, parto, amamentação, puerpério, pediatria, alimentação, educação, vestuário, escola … quaisquer temas que sejam relacionados à criação de filhos, muito certamente 95% do público será feminino. Se for nas reuniões de escola, consultas médicas, apresentações escolares, parques, praças, supermercados, lojas de roupa, verá que são mulheres em toda parte cuidando das demandas das crianças. Escrevendo e consumindo informação o tempo inteiro, enquanto homens limitam-se a ser orientados e executar instruções, sentindo-se muito importantes por bancarem o pai esforçado que sabe trocar fralda. Mas onde eles estão se informando sobre tudo que é necessário sobre crianças para dividir essa carga mental com a mãe dos seus filhos? Estando ou não com ela?

Uma boa paternidade não pode limitar-se a ter muito orgulho de si por finalmente dizer “eu te amo” para os filhos. Por ter assumido. Por pagar pensão. Por não espancar. Por dar banho e colocar pra dormir. Eu sei que para homens parece muita coisa, mas por favor, vejam tudo que mulheres fazem, eu sei que vocês podem ser menos medíocres que isso.

Eu quero ver um dia, páginas falando sobre a “paternidade real” de homens reclamando que não têm mais tempo para tomar banho, que não vão ao banheiro sozinhos porque os filhos não os deixam em paz , homens exaustos reclamando de restrição de sono e sendo inquiridos nas entrevistas de RH sobre quem fica com os filhos enquanto trabalham. Quero ver homens remarcando compromissos pra levar o filho ao médico, ir na reunião da escola ou tendo que faltar porque a criança amanheceu com diarreia. Homens trocando informações sobre fralda de pano ou marca de descartáveis mais baratas. Trocando receitas pra tirar mancha de molho do sofá e riscado de canetinha da cortina. Pesquisando sobre aquela mancha esquisita que apareceu na sola do pé da criança. No grupo da escola ajudando a organizar a festinha de fim de ano.

E não um ou dois indivíduos, os alecrins dourados, mas todos os pais. Quero ver a guerra infinita acontecendo nos grupos de criação parental, com homens e mulheres, todos discutindo se devem ou não dar chupeta para as crianças ou se a Peppa Pig é uma má influência. Conversando com os amigos o tempo inteiro sobre as peripécias das crianças. Porque é isso o que acontece com quem realmente está envolvido, cuidando completamente dos seus filhos, de todas as etapas, ainda que dividindo as tarefas. É difícil, cansativo, chato, muitas vezes enlouquecedor, não é “divertido”. Se você se acha um “pai participativo” e não está exausto meu amigo, tem alguma coisa errada porque com certeza alguém está, e deve ser sua companheira ou qualquer outra mulher sendo explorada no caminho.

Para renovar a paternidade é preciso reordenar toda a lógica de organização doméstica com homens assumindo sua parte no trabalho. Não importa se estão empregados ou não. Assumir que ter um emprego é cansativo o suficiente para precisar não fazer mais nada é também admitir que não entende o quanto cuidar de uma casa custa, tanto em termos financeiros quanto laborais. É também admitir que acredita que sua companheira te deve alguma coisa, paga em casa limpa, comida pronta e roupa lavada, em troca do sustento que você oferece. E isso é suco de patriarcado. Um péssimo modelo parental, que mantém a noção de hierarquia de homens sobre mulheres.

E finalmente, para construir essa presença parental realmente transformadora é preciso comprometer-se com a construção de um mundo mais decente que esse. Isso significa não só romper com os privilégios sobre as mulheres por ter nascido homem, como envolver-se ativamente no desmantelamento desse sistema hierárquico, repudiando, constrangendo e exigindo medidas contra abandono parental, violência doméstica, pedofilia, estupro e tudo que envolve a exploração sexual da mulher. Quero ver esses pais defendendo espaços de livre circulação para crianças, creches gratuitas, de qualidade, em quantidade. Homens reivindicando as pautas de humanização do parto defendendo um nascimento digno para seus filhos e o fim da violência obstétrica para suas companheiras.

A “nova paternidade” precisa caminhar além e mais conscientemente rumo a uma sociedade livre de toda exploração, seja de gênero, raça ou classe. Explorações essas que homens invariavelmente colhem vantagens de alguma espécie. “Amor” é muito importante, que bom que homens estão cientes da necessidade de despertar pra isso. Mas agora é preciso mergulhar no cuidado. Até porque dizem por aí que quem ama, cuida. Não é mesmo? Então comecem por aí. Amem, responsabilizem-se e cuidem.

Criar crianças antirracistas é garantir que vidas negras importam

Criar crianças antirracistas é garantir que vidas negras importam. E para ensinar crianças sobre antirracismo é preciso contar-lhes histórias. Contar sobre como, ao longo de toda a trajetória da nossa civilização, grupos de pessoas — quase sempre brancas — sistematicamente invadiram outros territórios e dominaram os povos ali nativos, os assassinaram, e espoliaram.

Precisamos contar como esses grupos foram acumulando riquezas saqueadas e aumentando seu poder de invasão e domínio, sempre privilegiando seus iguais. Uma prática ancestral, imemorial, e definidora quando falamos da formação do que conhecemos como Brasil.

Precisamos explicar aos nossos filhos como fomos invadidos por um povo de homens brancos ricos, que chegaram e exterminaram milhares e milhares de pessoas que aqui viviam suas vidas. Sobre como eles perseguiram e escravizaram os habitantes que sobreviveram, e aqui se instalaram e começaram a apropriar-se de tudo, com fúria, à custa de muito sangue derramado. Precisamos explicar como esse lugar se tornou refúgio de uma monarquia acossada que veio para cá fugida e quis transformar essa terra no seu albergue particular. Como fizemos parte e aperfeiçoamos o tráfico sistemático de pessoas negras trazidas do continente africano para trabalho escravo, pessoas que eram vendidas como coisas, como objetos na banca do camelô da praça e vilipendiadas.

Temos que contar as nossas crianças como durante séculos, milhares e milhares e milhares de seres humanos foram tratados como coisas, comercializados, explorados até a última gota de suor e como, em algum momento, esse modelo de economia esgotou-se e eles foram “libertos”. E explicar a farsa da abolição da escravatura e deixar que crianças entendam como, há pouco mais de 100 anos, uma incalculável população de pessoas negras, homens, mulheres, crianças, foram jogadas na rua. Sem casa, sem comida, sem emprego, sem patrimônio, sem estudo. Para permanecerem, a partir daí, eternamente coagidas economicamente por pessoas brancas, oprimidas por uma estrutura criadas para mantê-las eternamente em posição de subalternidade racial, em subempregos, sempre vistas como seres sem distinção ou dignidade.

E precisamos dizer também como todas as mulheres indígenas e escravizadas foram sistematicamente estupradas, como foram abusadas por seus senhores, que nossa nação “feliz e miscigenada” é fruto da dor e da violência sexual sofrida pelas nossas ancestrais.

Não basta “falar sobre racismo” para crianças ou “reconhecer o seu privilégio branco” sem explicar os motivos pelos quais o racismo existe. Sem explicar a estrutura que é sustentada pela segregação racial que existe para manter pessoas brancas em situação de vantagem econômica, social, financeira e em posição de manter sua hierarquia sobre pessoas negras, para que elas continuem servindo, continuem fazendo o trabalho pesado, subutilizado, que os brancos não querem realizar.

É preciso apontar que pessoas negras hoje, como resultado de tudo que pessoas brancas fizeram, compõem a maioria das pessoas pobres, periféricas, menos escolarizadas, imersas em situação de violência, exploração, marginalidade, violência sexual, abandono parental. Que sofrem exclusão institucional, são a maioria da massa carcerária, a maioria da massa evadida das escolas, a maioria da massa que está subempregada. Que jovens negros são executados compulsoriamente pela polícia. Que estão à margem dos sistemas de justiça. Que elas apenas passaram a ser vistas como “pessoas”, há pouco mais de 100 anos, tendo que correr atrás de tudo que lhe foi roubado, herança, história, cultura, patrimônio, ancestralidade. Que muitas dessas pessoas não sabem nem definir quem foram seus tataravós porque eles foram retirados à força do seu lugar de origem, separados da sua família e jogados em uma senzala. Que isso tudo acontece porque pessoas negras foram raptadas, traficadas, foram assassinadas, foram escravizadas, por anos e anos. Tudo isso feito por pessoas brancas.

Então não adianta falar sobre racismo para crianças se você também não fala em privilégio e principalmente se você não fala em reparação. Se você acredita em meritocracia. Se você fala de tudo o que acontece com a população negra como se isso não fosse um problema que, mesmo que você, indivíduo, não tenha causado diretamente, hoje se beneficia. Se você conhece seus ancestrais, se sua família tem um patrimônio, se você tem herança a receber, é porque seus antepassados brancos, em algum lugar, estiveram escravizando uma pessoa negra. E hoje você colhe os frutos dessa exploração. Você acumula para si os resultados de anos de sangue negro derramado.

E sim, é preciso que as crianças brancas que estão aí hoje entendam isso. Que mais que entender-se com sendo detentores de inúmeros privilégios, que mais que serem capazes de não reproduzir preconceitos raciais, elas sejam capazes de recuar. Educar crianças para combater o racismo é mais que mostrar que pessoas negras existem, mostrando fotos de revista ou programas de TV, é sobre alertá-las que é preciso tirar o joelho do pescoço das pessoas negras. Porque nascemos com esse joelho posto, lhes tirando o ar.

Ensinar crianças sobre democracia racial é sobre a compreensão de toda a violência que pessoas brancas impuseram e impõem à pessoas negras. É sobre reconhecimento de todo o privilégio que advém dessa violência estrutural. E é sobre reparação. Sobre apoiar e lutar sobre essa reparação. Sobre recuar nos seus direitos adquiridos à custa do sangue dessas pessoas para permitir que pessoas negras acessem os espaços dos quais foram historicamente alijados, sobre eleger pessoas negras para ocupar espaços de poder, sobre consumir de pessoas negras, sobre defender pessoas negras da violência estatal.

Você vai ser capaz de tirar o seu filho do banco protegido do carro e caminhar com ele pelas ruas onde a população negra se atropela pedindo comida? Ou vai mostrar pessoas negras pela janela? Você vai ser capaz de abrir mão de colocar o seu filho nas “melhores escolas” e nos “melhores ambientes”, com “pessoas da classe dele”, para que ele possa “vencer na vida”, em nome dele frequentar lugares mais democráticos, plurais? Você vai ser capaz de manter seu filho em universidades particulares que você pode pagar em nome de abrir espaço na disputa das melhores escolas públicas? Você vai ser capaz de abrir espaço nos concursos públicos? Vai abrir mão de explorar a mão de obra doméstica de pessoas negras? Vai deixar seu filho brincando com as pessoas da “comunidade”? Se você não atravessa sua prática com essa compreensão de como cada pessoa negra chegou até aqui dentro desse sistema e não consegue dar passagem, não adianta nada usar camiseta com frases bonitas e hashtags.

Se você no fundo olha pra todo menino negro maltrapilho como um potencial trombadinha, se você olha para toda menina negra como uma serviçal, se você é incapaz de reconhecer beleza e potência neles. Se você mesma os rejeita, acusa e pune na primeira oportunidade. Enquanto pessoas brancas que estão dispostas a repensar seus privilégios não assumirem esse nível de consciência sobre as origens e desdobramentos dessa questão, vamos apenas ficar em articulações momentâneas que passam em poucos dias dando lugar apenas a novas ondas de indignação quando uma outra pessoa branca comete uma nova atrocidade.

Antirracismo é uma prática diária. É uma vigilância constância sobre o pensamento colonialista com que cada pessoa branca é socializada no sentido de manter todos os privilégios rapinados por seus ancestrais com violência e morte. É a recusa de privilégios travestidos de direitos.É retirar esses privilégios dos próprios filhos em detrimento de um sistema justo. Escancarar as vísceras desse sistema e assumir a responsabilidade por como chegamos até aqui. É assumir para si, definitivamente, o compromisso de que vidas negras importam.

Coisas que meninas devem saber para sobreviver em um mundo de predadores sexuais

Há uma série de coisas que meninas devem saber para sobreviver em um mundo de predadores sexuais. Orientar mulheres e meninas para lidar com assédio é mais complexo do que parece porque pouco refletimos sobre como somos socializadas para o jogo amoroso, e sobre como aprendemos a nos colocar sempre em posição de vulnerabilidade no momento da aproximação amorosa, principalmente nas relações heterossexuais. Temos muita dificuldade de perceber como é embaçado esse limite que aprendemos a traçar em relação ao abuso masculino sobre nós, que recai muitas vezes desde a mais tenra infância. Nós mulheres somos criadas com mensagens muito contraditórias sobre como agir e o que devemos aceitar, principalmente sobre homens e relacionamentos.

Aprendemos que nossa aparência é a coisa mais importante sobre nós mesmas e que precisamos de validação constante a ponto de dedicarmos todo nosso tempo em função de estar “bem”, que para mulheres é igual a estar bonita. Competimos umas com as outras por essa aprovação e interpretamos qualquer discordância como uma questão de “recalque” ou “inveja” da nossa “beleza”. Somos altamente críticas em relação a nós e as outras mulheres. E em algum nível todas ansiamos pela aprovação masculina na forma de olhares, curtidas, cumprimentos e elogios. Não percebemos como isso é usado para nos manipular, como isso nos gera insegurança e como abre caminho para que qualquer homem em qualquer lugar se ache no direito de opinar nosso corpo, controlar a maneira como nós devemos nos parecer, e nos humilhar.

Aprendemos a mensagem contraditória de que precisamos ser “recatadas”, “castas”, “difíceis”, ao mesmo tempo que somos incentivadas o tempo inteiro para, desde muito jovens, nos mostrarmos sedutoras. Roupas, maquiagens, danças, caras, bocas e trejeitos, são ensinados às meninas para que elas já se posicionem socialmente como sexualizáveis. Nossa cultura é pedófila e não esconde isso. Para homens, relacionamento com mulheres é sobre ter sexo, a maior quantidade possível. Para mulheres, relacionamento com homens é sobre amor, casamento e filhos.

E assim, meninos aprendem que devem “caçar” meninas, e meninas aprendem que devem sorrir para o caçador e se oferecer em sacrifício. Dessa forma, como criar nossas meninas para que se defendam? Como ensiná-las a diferenciar uma relação potencialmente saudável de uma abusiva, se nós mesmas temos essa dificuldade e vivemos caindo em armadilhas? O que devemos ensiná-las para que possam traçar limites entre interesse genuíno e assédio?

1. Padrões de beleza são reais e inatingíveis e existem para controlar meninas e mulheres

Mostre para sua filha que os padrões de beleza que ela vê nas revistas, na TV, e agora na internet são completamente artificiais. Que mulheres só tem aquela aparência graças a muita maquiagem, muita edição de imagem e filtro. E que ter aquela aparência glamorosa faz parte da profissão delas e que portanto há toda uma equipe que trabalha direta ou indiretamente pela manutenção daquele tipo de visual. Que essas mulheres são vitrines ambulantes subsidiadas por uma indústria cuja função é estimular outras a consumirem enlouquecidamente todo tipo de produto de beleza. Que vendem uma ideia inalcançável de como mulheres devem se parecer justamente com o objetivo de mantê-las sempre angustiadas e insatisfeitas com a própria imagem, pagando qualquer preço para se tornarem como o padrão.

Explique que especialmente meninas como ela, que não entendem muito bem como é a engrenagem do consumo que move o mundo, podem ser especialmente suscetíveis a este tipo de apelo. Porque parece que só mulheres que se parecem de uma determinada forma são amadas, queridas, admiradas e desejadas. Tem suas fotos curtidas, comentários elogiosos. Meninas “feias” ou foram do “padrão” são punidas, ofendidas, rejeitadas. A sociedade é cruel e isso tem uma função: fazer uma pressão enorme na cabeça de meninas, para que se tornem mulheres inseguras e infelizes, que odeiam o próprio corpo. Que odeiam a si mesmas. E mulheres inseguras ficam vulneráveis, frágeis, suscetíveis e isso é um prato cheio para abusos. Destruir a auto-estima de uma menina é o primeiro passo para dominar a mulher que ela vai ser tornar.

E tem um segredo que é preciso saber: no final do dia, quando o trabalho acaba, mesmo as musas mais belas, longe das câmeras, são como nós. Mulheres comuns. Que também não se acham boas o suficiente. Que também não se acham bonitas o bastante.

E quem se beneficia enquanto meninas e mulheres desenvolvem depressão, anorexia, bulimia, ansiedade, gastam toda sua energia, tempo e dinheiro (muito dinheiro)? A quem serve manter mulheres sempre com a auto-estima arrasada, pensando em diversos momento do seu dia sobre como não são boas o bastante? Belas o suficiente? Aos homens. Homens que dominam todo um mercado, que lucram com isso. Homens, que mantém mulheres ocupadas em obter sua aprovação a todo custo e usam isso a seu favor para dominá-las, julgá-las, classificá-las, escolhê-las como em um leilão, como se mulheres não fossem pessoas.

Ensine a sua menina que o que ela tem de mais precioso a proteger nesse momento é o amor por si mesma, completa. Que o que ela tem de mais importante a aprender é a amar-se e amar outras mulheres. E eu sei que essa é uma tarefa muito difícil porque implica uma desconstrução que está muito arraigada. Recusar o troféu de mais bela pelo qual fomos ensinadas a morrer, pelo qual adoecemos e gastamos nosso tempo e dinheiro. Mas precisamos começar a quebrar esse paradigma essencial porque só quando mulheres deixarem de ser definidas pela sua aparência deixarão de ser tratadas como coisas. Abandonaremos finalmente a condição de objeto para nos tornarmos pessoas.

2. Atratividade física não é o elemento mais importante sobre uma pessoa e é o motivo errado para começar um relacionamento

Insista com sua filha para desconstruir a ideia de que a beleza é o elemento mais importante que alguém possui. Incentive-a a olhar e a se aproximar de outras pessoas para além da aparência física e a não permitir que ela seja abordada baseada unicamente neste parâmetro. Explique a ela que se o único fator pelo qual alguém a busca é por sua beleza, a atratividade do seu corpo, a sua sensualidade ou a sua presumida disponibilidade sexual, ela está sendo subestimada e não valorizada e merece alguém melhor, porque ela é uma pessoa completa, que é muito mais que um rosto ou um corpo atraente.

Ensine a sua filha que em um bom relacionamento as pessoas devem se enxergar e interagir por completo. Que para além de carícias e sexo, um casal conversa, se diverte, compartilha coisas da vida, se respeita, e se apoia. Que eles são amigos. E que portanto a personalidade, o caráter, os valores, da pessoa com quem ela vai se envolver é muito mais crucial que a aparência, e que da mesma forma ela deve esperar despertar interesse pelos mesmos indicadores, buscando compatibilidade. Que se ela não pode esperar se tornar uma boa amiga da pessoa que a busca romantica ou mesmo sexualmente então está fadada a entrar em uma situação pautada por hierarquia e controle, porque ela será tratada como um objeto que alguém possui. E ela deve esperar, ao invés disso, alguém com quem seja capaz de constituir uma relação genuína de afeto, respeito, cumplicidade e parceria. Não importa se é um encontro de duas horas ou um namoro de meses. Ela deve esperar consideração e respeito sempre. Que se sexo está se tornando mais importante que a integridade e saúde física e mental das pessoas envolvidas então tem algum coisa muito, mas muito errada.

3. Atração sexual é uma coisa normal e saudável e não tem a ver apenas com atratividade física

Converse com sua filha sobre paquera. Explique a ela que na idade adequada é normal que pessoas sintam-se atraídas umas pelas outras, queiram estar juntas, queiram fazer sexo. Que infelizmente, na nossa sociedade hoje, somos orientados a mover esse nosso interesse por paradigmas puramente estéticos, ou de status. Homens são guiados para buscar a mulher “gostosa”, mulheres são guiadas a buscar um “príncipe” que é, antes de tudo, “lindo”. Mas que aparência física não é definidora de atração sexual ou interesse romântico e a maneira como nos guiamos nossos afetos é condicionamento puro.

Nosso olhar, nosso querer, é formatado para admirar determinados padrões, e todos eles tem agenda, foram feitos para nos colocar num determinado lugar, cumprindo uma determinada função na lógica de uma sociedade que é patriarcal, capitalista e racista. Aprendemos, por exemplo, que mulheres “bonitas” são as brancas, magras, de traços claros europeizados, aprendemos que mulheres morenas e de corpo mais voluptuoso são as “gostosas”, as “sensuais”, que mulheres de traços latinos são “calientes”. Essas imagens existem para atender a um chamado racista, que vende uma imagem higienizada e angelical de pessoas brancas que são destinadas a perpetuação do núcleo familiar tradicional, de controle e de manutenção de patrimônio dentro de um dado grupo racial e uma imagem sexualizada de pessoas racializadas, que são desumanizadas e tidas como destinadas ao sexo e ao fetiche. Isso faz por exemplo, que qualquer pessoa que não tenha traços físicos eurocêntricos seja considerada “feia” ou “exótica”, faz com que meninas negras sejam invariavelmente preteridas e cultivem pela vida uma imensa dificuldade em ter parceiros e formar relacionamentos e que meninas brancas sejam entendidas como “esposa ideal”.

Outro bom exemplo é o das meninas que aprendem desde sempre a direcionar sua atenção sexual e afetiva para homens mais velhos. Esse incentivo inclusive é familiar que as orienta a buscar “um homem e não um moleque”, “um bom homem trabalhador que vai cuidar dela”. Como resultado, desde muito jovens, não sentem atração por pessoas da sua idade, que estão vivendo as mesmas experiências, e viram presas fáceis de abusadores. Mal entrando na adolescência, meninas já são consideradas “carne fresca no mercado” e são aliciada por homens muito mais velhos. E são incentivadas a ficarem lisonjeadas com esse assédio e aceitar esse abuso como reafirmação da sua feminilidade. A menina ouvirá que é “especial”, que “não é como as outras garotas”, que “é muito madura para sua idade”, que “é muito desenvolvida”, “já é uma mulher”, “já sabe o que quer”, e todo tipo de coisas. E isso tudo serão mentiras contadas para acessar seu corpo sexualmente, manipular e controlar.

Meninas aprendem que podem somente sentir-se atraídas por pessoas do sexo oposto, que isso é uma norma imutável, que é o “normal”, o “esperado”, o “certo”, e que qualquer coisa fora disso é a maior transgressão que ela pode cometer porque está recusando seu destino de fêmea, encontrar um macho, ser escolhida, casar e procriar. Não tutele os afetos da sua menina. Deixe que ela saiba que tem o direito de experimentar e descobrir o que realmente lhe interessa viver em termos de relacionamentos e sexualidade. Diga a ela que não existe “normal” e muito menos “anormal”. Que a organização dos relacionamentos na nossa sociedade é heterocentrada pois tem a função de manter os corpos das pessoas sob controle num modelo familiar margarina que não existe na realidade. Que o objetivo final é manter mulheres sob completa exploração do seu trabalho reprodutivo.

Manter a ilusão de uma sociedade eminentemente heterossexual é fundamental para manter a lógica capitalista que precisa de casais se reproduzindo e criando trabalhadores para serem explorados. É fundamental para a lógica patriarcal onde homens mantém a dominação sobre mulheres sobretudo sob o manto do “amor” e do cuidado da família. Permita que sua filha tenha liberdade nos seus afetos. Explique a ela a lógica por trás do pensamento lesbofóbico (e homofóbico) que é de impedir que pessoas possam decidir livremente como organizar suas vidas e escolher suas parcerias.

Então, diga a ela pra não se render a primeira faísca de paixão que cruzar seu coração, porque paixão não é sentença, não existe amor eterno, isso passa, nossos afetos são condicionados para nos empurrarem para grandes armadilhas e se ela mantiver a cabeça no lugar por tempo suficiente vai ter a chance de encontrar alguém para uma história que vai valer a pena ter vivido. Alguém da idade dela, que pensa parecido, tem os mesmos valores, e que mesmo que tudo acabe, poderá ser uma pessoa amiga pra uma vida inteira.

E que sim, é muito difícil se sentir “feia”, “gorda”, “estranha”, “inadequada”, “diferente”, mas que vale muito pena estar com alguém para quem isso não faz diferença, ou que na verdade nem é uma questão, porque não é para esse lugar que essa pessoa está olhando. Ela está olhando pra você e vendo o que você é: uma pessoa. E está amando isso e tendo atração sexual por isso, não só por seu corpo, mas por seu sorriso, suas ideias, o que você é na vida, de verdade. Diga a ela que nada diferente disso vale a pena ser vivido. Ela é uma pessoa, e deve ser amada e querida por isso e apenas isso. E ela pode amar pessoas de volta. Repita isso mil vezes para ela, até entrar fundo, até ela não ter dúvidas. E diga a ela que você sente muito que as coisas sejam assim e que você sente muito também por ter que orientá-la a travar uma batalha tão difícil e vital: requerer a própria humanidade nessa sociedade tão cruel.

4. O flerte surge da admiração mútua, o assédio surge da objetificação do outro

Quem admira o outro não quer o outro para si. Quem admira observa o outro com atenção, se inspira, cuida, respeita. Entendemos o valor daquilo que admiramos por este ser como é, não queremos modificá-lo, ou submetê-lo a nossa vontade. Desejar, por outro lado, significa querer ter algo para si, tomar posse e costumamos desejar coisas. Objetos. Mulheres não são admiradas na nossa sociedade, são objetos de desejo. Aprendemos a apreciar isso, a entender que ser tomada e possuída, que pertencer a alguém é um sinal de amor, e isso é uma armadilha que resulta em violência e em morte.

Por outro lado homens não aprendem a amar mulheres. Não aprendem a vê-las como ser humanos íntegros, dotados de qualidades e defeitos e dignos de respeito e admiração. Aprendem a vê-las como corpos sexuais que lhes devem diversão e prazer. Pergunte a um homem sobre mulheres que ele admira. Pergunte-lhe quem são, quais seus nomes. Peça para citar apenas 3. Dificilmente algum conseguirá cumprir esse desafio. Agora pergunte-lhes sobre mulheres que eles desejam, que eles gostariam de ter (isso mesmo, ter), e a lista será imensa. Homens aprendem que mulheres são coisas que eles adquirem, que passa a ser uma coisa sua, uma propriedade privada da qual ele pode dispor como bem entende.

Ensine sua filha a perceber a diferença entre a abordagem de alguém que a admira como pessoa e alguém que a deseja como um objeto. Essa é a diferença importante entre flerte e assédio. O flerte, a interação em que vamos demonstrando interesse pelo outro e conhecendo-o, é um recurso legítimo de aproximação entre duas pessoas que queiram relacionar-se. O assédio é um mecanismo onde necessariamente um impõe seu desejo sobre o outro, intimida, coage, manipula, chantageia, suborna, compra, o seu corpo, sua presença, seu sexo. É sobre poder, não sobre enamorar-se. É sobre homens que se acham no direito de tomar mulheres, desde legislando sobre sua aparência através de insultos como nas cantadas de rua (“me dá seu telefone, gostosa!”. Sobre a recusa do “não” e a insistência absoluta, que faz mulheres confundirem desrespeito com apaixonamento. É sobre subestimar a vontade do outro e querer domá-lo de qualquer forma. É sobre achar que toda mulher tem um preço, que é possível comprar consentimento. Que mulheres não sabem o que querem, ou o que estão fazendo “jogo duro”. É a “sedução” a qualquer custo. É sobre intimidação, perseguição, violência. Estupro. É sobre manipulação, chantagem emocional. É sempre mesma lógica: não há respeito pela vontade do outro porque o outro não tem vontade, não é uma pessoa, é algo a ser obtido.

Incentive sua filha a repudiar qualquer tipo de assédio, em qualquer lugar que seja. Incentive sua filha a rejeitar pessoas que avaliem corpo dela como se ela fosse um animal pronto para o abate. A afastar-se de pessoas que ignoram suas recusas. Que acreditam que insistência é prova de afeto. Explique que um homem que quer conquistá-la a qualquer custo não a ama, ele apenas sentiu-se desafiado na sua virilidade pela recusa e quer domar sua vontade. Nada de bom pode sair daí, não somos objetos á disposição para apreciação do desejo alheio.

Explique para sua menina que consentimento não tem a ver com dizer “sim”, porque muitas e muitas vezes dizemos “sim” sem estar com vontade. E aceitar algo sem vontade não é consentimento, é concessão. E, em um mundo patriarcal, inúmeros são os mecanismos que homens utilizam para dobrar nossa vontade: manipulação, chantagem emocional, coação, suborno, compra, ameaças, violência.

Consentimento não se negocia. Consentimento sem vontade é concessão e ela nunca deve fazer concessões sobre seu corpo, sobre seu sexo, sobre nada que arrisque sua integridade física, emocional e financeira. Homens irão em busca disso, vão desafiá-la, vão tentar dobrar sua vontade a qualquer custo sempre, porque eles não admitem a recusa de uma mulher. Entenda que isso acontece, e prepare-se para enfrentar. Todo o modelo de relacionamento entre homens é mulheres é formatado a partir da subalternidade e submissão feminina. Somos compulsoriamente levadas a aceitar e a dizer “sim” sobre tudo que tem a ver ou que vem de homens. E que a grande disputa é ter o direito de recusá-los. Recusar aceitar os seus gracejos, suas indiscrições, o seu julgamento sobre nossa aparência. Poder recusar sua presença, recusar sorrir para eles e agradá-los o tempo inteiro sem acusações ou retaliações.

5. O mundo ainda não é seguro para crianças e mulheres

Ensine sua criança a como agir para se defender ao perceber os primeiros sinais de assédio. Desde bebê . Explique o corpo é dela, que ninguém deve tocá-lo a não ser ela. Que nenhum adulto deve, e vá dando autonomia corporal a ela, o quanto antes for possível, de forma que apenas ela precise tocar em si mesma, mesmo para higienização. Mostre claramente quais partes podem e não podem ser tocadas. Nomeie-as com todos os nomes conhecidos, para que ela possa reconhecê-los em qualquer parte que ouvir. Fale sobre que tipo de carinhos são e quais não são permitidos. E não faça carinhos como beijinhos na boca que podem até ser toleráveis numa relação parental mas que podem deixar a criança confusa e abrir uma janela de oportunidade para abusadores. Divida o mundo das suas crias entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças e mostre sempre o que é e o que não é adequado para cada um desses universos assim como que tipo de interações são desejadas entre adultos (ou adolescentes) e crianças.

Assim que possível, explique para sua criança que predadores existem. Fale claramente sobre o tema, sobre o que eles fazem, como eles se aproximam, o que eles dizem. E ensine-as que qualquer um pode ser o abusador, inclusive alguém que ela ama e confia. Alguém de quem ela nunca desconfiaria. Ensine-a se relacionar criticamente com os adultos, explicando que eles não são perfeitos, nem sempre são modelos e que podem ser potencialmente perigosos e violentos para crianças.

Crie uma relação de confiança com seus filhos. Essa é a parte mais difícil porque prescinde em abrir mão do autoritarismo fácil, da educação pela violência e pelo medo. Implica em criar um canal constante de diálogo e principalmente escuta, de deixá-los seguros, sabedores que serão ouvidos, que acreditarão neles, que serão defendidos. Implica em tratar crianças como pessoas. Muitas e muitas mulheres passaram por situações horríveis porque sentiram medo de contar aos seus pais o que estava acontecendo. Porque foram desacreditadas. Porque foram manipuladas a pensar que ninguém acreditaria na palavra dela contra a palavra de um adulto, que ela seria punida, que ela também era cúmplice da situação, e ela não tinha um vínculo de confiança forte o bastante com os pais para saber que eles a apoiaram a qualquer custo.

Explique que infelizmente há cuidados que ela deverá tomar apenas por ser menina, como evitar andar sozinha, beber em demasiado sem alguém de confiança que possa protegê-la caso fique desorientada, evitar estar sozinha com homens de modo geral, e mais um monte de pequenas e grandes medidas que tornam a vida de uma mulher um verdadeiro inferno. E que nada disso é nossa culpa, é culpa dos homens, nós vivemos sim em uma sociedade que nos transforma em presas, sofremos terrorismo sexual e não podemos esquecer isso, nem ser ingênuas, nem achar que é exagero. As estatísticas estão aí mostrando a realidade. Então muitas vezes vai ser o seu medo que vai te proteger.

Oriente-a também sobre mecanismos institucionais para buscar ajuda, explique ela sempre pode ligar para o Disque 100, que ela pode levar a questão para a escola, que ela sempre tem a opção de buscar apoio em instâncias responsáveis e que nunca, de maneira nenhuma, deve tentar lidar sozinha com a situação.

E finalmente diga para sua menina que você estará lá por ela. E esteja. Que acreditará nela. E acredite. Que ela não deve se calar diante de abusos. E ajude a amplificar sua voz. Que ela deve procurar ajuda ao menor sinal de importunamento, seja direto ou sutil, e denunciar se estiver sendo importunada. E ampare-a. Que ela deve se proteger sempre. E proteja-a. E proteja-se. E diga a ela que ela não está sozinha nessa. Ela não está. Há muitas outras mulheres por aí, lutando para pavimentar uma estrada mais larga e iluminada para que todas as meninas possam caminhar. Juntas.

Vamos problematizar o Papai Noel?

O Natal está chegando. Será que vamos problematizar o Papai Noel? Algumas mães entram em crise existencial se perguntando se devem ou não deixar seus filhos acreditarem no bom velhinho, também conhecido como Papai Noel. O argumento — muito justo — é de que esta é uma tradição inventada para turbinar o consumo, que é uma mentira que contamos para as crianças, que isso pode aumentar aí o número de horas na terapia dos pequenos rebentos, entre outras questões filosóficas, políticas e sociais.

Veja bem, gostaria aqui de fazer uma observação sobre esta questão, até porque eu mesma, muito antes de ter filhos obviamente, imaginei que não ia deixar meu filho acreditar nesse velho capitalista que dá presentes para as crianças de posses enquanto milhares morrem de fome. Porém, tomei um saboroso tabefe da realidade que gostaria de compartilhar aqui.

Em primeiro lugar é importante ressaltar que nós mães — via de regra — não temos tanto poder assim para decidir no que nossos filhos vão ou não acreditar. Lá para os 3 anos de idade eles mergulham num mundo de fantasias do qual muitos não saem nem quando chegam na vida adulta. Então conforme-se, seu filho vai acreditar em coisas, muitas das quais você não terá controle. Monstros, heróis, zumbis… ele vai ter amigos imaginários, e não adianta você perder tempo tentando explicar para ele porque dinossauros são reais e dragões não.

Depois, as fantasias infantis hoje são turbinadas pelo convívio social, escola e principalmente a mídia. Então, a menos que você crie seu filho dentro de uma gaiola, ele vai ouvir falar desse tal de Papai Noel, vai ver desenho, comercial, os parentes vão falar, amigos da escola, vão perguntar a ele na rua se ele já escreveu a tal cartinha, mesmo que escrever cartas nem seja um hábito da geração dele. De um jeito ou de outro, ele vai saber que esse velho faz contrabando de brinquedos, e ele vai querer a parte dele em geleca, goste você ou não. Então, mesmo que você se faça de desentendida e nunca alimente essa ideia no seu filho, isso será construído no imaginário dele de alguma forma.

Aí é escolha sua se quer ou não desmontar isso, e em nome de quê. E vale pensar, qual custo vai ter pro seu filho, uma criança, ser o floquinho de neve especial que confronta todos os amigos e gera silêncio constrangedor ao dizer a frase “minha mãe disse que Papai Noel não existe, é ela que compra meus brinquedos”, e talvez ver os coleguinhas começarem a chorar, é claro. Aliás, qual o custo para o seu filho em ser o elemento que vai semear a dúvida e a discórdia entre todos os amiguinhos que vão perguntar o que ele ganhou de Natal e mostrar o que encontraram debaixo dentro do sapatinho que deixaram na janela.

Seu filho é uma criança. E o Papai Noel já é um mito moderno que está profundamente enraizado na nossa sociedade com todos os seus defeitos e qualidades. O argumento de que ele é uma “mentira” pouco se sustenta porque metade das coisas que crianças usualmente acreditam são “mentiras”, ou eufemismos, ou verdades editadas/suavizadas/adaptadas. E o que não for elas complementam com a própria imaginação. Acreditar no Papai Noel, da Fada do Dente, no Coelhinho da Páscoa (ou no Batman, Hulk e Elza do Frozen) não vai tornar o mundo dela pior ou melhor. Apenas vai mantê-la integrada na mitologia infantil do seu tempo.

Agora, a mitologia do Papai Noel é algo livre de problematizações? De jeito nenhum. Ele é o mito moderno dessa sociedade capitalista e consumista, mas é o que tem pra hoje. Todas as sociedades, em todos os tempos, construíram seus mitos e nenhum era lá grande coisa também. Mas existe um maneira mais “saudável” de trabalhar esse mito com as crianças e atravessar o Natal? Existe sim, quer ver?

  • evitar associar a ideia de que o presente é uma recompensa por “bom comportamento”: Crianças não tem que ser obedientes ou estudiosas ou seja lá o que for porque querem ganhar presentes e sim porque ser obediente e estudioso são virtudes importantes de serem cultivadas que são um recompensa em si e trazem benefícios de longo prazo. Você pode dizer para o seu filho por exemplo escrever uma carta (ou mandar um email, um whatsapp, sei lá) contando pro Papai Noel como foi o ano, o que ele mais gostou de fazer, o que ele espera para o ano que vem e agradecendo pelas coisas boas que ele viveu.
papai noel
Coitado do bom velhinho, gente.
  • você não precisa dizer ao seu filho que os brinquedos que o Papai Noel distribui são feitos por mágica e surgem do nada, fazendo parece que ele pode pedir qualquer coisa e colocando você em uma enrascada financeira. Você pode dizer que o Papai Noel é um fabricante e que você paga pelo brinquedo que ele vai produzir e entregar, portanto o presente tem que estar dentro das suas possibilidades. E vale aí explicar que esse é o motivo pelo qual algumas crianças não conseguem receber presentes: porque seus pais não têm condição de pagar. Não está nem muito longe da verdade e ainda dá uma pitada de consciência social que não faz mal a ninguém.
  • não obrigue seu filho a tirar aquelas fotos com o Papai Noel caso ele deteste ou tenha muito medo. Deixe que seja uma coisa espontânea porque ele realmente gosta do velho barbudo. E faça com que ele tire a foto de pé ao lado, ou no seu colo, nunca no do Papai Noel. Sério, não deixe seu filho sentar no colo de estranhos nem que seja para uma foto de 5 segundos.
problematizar o papai noel
Não faça isso com seus filhos, sério mesmo.
  • explique o sentido de presentar, o sentido do Natal, tanto do ponto de vista religioso quanto laico, mesmo que você não tenha nenhuma religião e esteja pouco se lixando para a data. O seu filho é um ser social, é importante que ele entenda o que acontece na sociedade na qual ele está sendo criado.
  • Aproveite a oportunidade para não repetir a pior tradição de Natal de todas: mulheres se matando de cozinhar enquanto homens coçam o saco e tomam cerveja. Essa é uma péssima mensagem sobre divisão do trabalho doméstico e papel social que as crianças recebem todo fim de ano. Coloca todo mundo pra fazer tudo. Ou então pede pizza.

Outra coisa importante a ser dita: a “decepção” que seu filho pode vir a sentir ao descobrir que Papai Noel não existe ou a percepção de que “meus pais mentiram para mim” estará diretamente ligada a maneira como você vai se envolver com a fantasia dele. Você não precisa ser a pessoa que vai introduzir a mitologia do Noel para o seu filho. Você pode ser a pessoa que funciona como facilitadora de uma crença que ele fatalmente vai elaborar por conta própria. Nesse sentido, quanto mais histórias e firulas e mecanismos de reafirmação do mito você inventar, maior a sensação de “ter sido enganado” que seu filho pode vir a ter. Ou pode ser que você mesma seja capaz de perceber o momento em que a “magia” perdeu o sentido e vá explicando que o Papai Noel é o que é, um mito.

E pode ser inclusive que seu filho passe em branco por tudo isso por muito tempo e quando ele vier a prestar atenção já vai estar com idade suficiente para concluir que a história é bastante mal contada já que quase ninguém tem chaminé no Brasil e renas voadoras aqui já teriam sido abatidas em pleno vôo.

De qualquer forma, se a criança for aficcionada por Natal, tiete de Papai Noel, fã número um das renas e dos duendes… boa sorte e aproveita também. Daqui a pouco passa. Os filhos crescem muito rápido e não demora estamos sentindo saudades de quando a vida era tão simples para eles que a maior preocupação que tinham era receber a visita do bom velhinho.

problematizar o papai noel
Aproveita e escreve sua cartinha também! Feliz Natal!

Meu menino e o mar

Desde bebê seus olhos brilham de encantamento, quando engatinhava pela areia buscando as ondas. Eu seguro sua mão. Pequena. A água chega. Molha meus pés, nossos pés. Ele se joga. É o meu menino e o mar.

Ele não tem medo do mar. Segura firme em minhas mãos e deixas as ondas arrebentarem no seu corpo, engole a espuma, o sal, engasga e ri. Eu o amparo com o coração aos pulos mas não há nada a fazer, exceto deixá-lo descobrir. Ele se sustenta, busca o equilíbrio, vai aprendendo o mar.

Ele não tem medo mar. As ondam surgem gigantes e ele pede mais. Quer ir mais fundo, acha que já sabe nadar. Eu peço a ele que respeite aquele gigante. O que me resta senão ensiná-lo a temer a grandiosidade do oceano? Senão segurar forte em sua mão para que a correnteza não o leve? Senão mostrar como se manter de pé, como reconhecer o perigo, como não ir longe demais?

Eu o seguro firme mas deixo-o livre o bastante para experimentar a potência daquela arrebentação. Para que ele possa se deixar levar. Cair e levantar. Eu o ajudo a se manter de pé e peço para que se acalme quando seus olhos ardem, quando a respiração falta. Eu o tiro de lá para que não fique cansado demais.

Mas um dia ele será grande o bastante, forte o bastante. Maior que eu. Do tamanho do mar. E irá desbravar aquelas águas sem precisar de mim. Ele irá para o mar com a paixão que tem pela vida, por aquele sol, por aquele azul. Ele nadará, vencerá a correnteza e conhecerá mais. Um dia ele não será mais o meu menino. E dele será a vida. E o mar.

O dia que o Lias foi embora

Quando Lias apareceu eu e meu companheiro nos assustamos um pouco. Lias era o amigo imaginário do meu filho. Ele apareceu quando ele tinha uns 3 anos e meio mais ou menos e, bom, talvez por meu filho ter pouca imaginação ou imaginação demais, Lias era a própria mão dele, cuja voz ele fazia, como um ventríloquo.

De certa forma era engraçado, era literalmente o famoso “fala com a minha mão”. Meu filho conversava o tempo todo com o Lias, que no caso era a própria mão dele, e ele mesmo respondia com uma voz fina engraçada. E eu cheguei a imaginar explicações diversas para um comportamento tão excêntrico até que resolvi pesquisar um pouco e entendi que era um processo absolutamente normal da criança em crescimento, e que o melhor era não se meter e deixar ela lá vivendo o processo. E eu no caso só filmei algumas vezes pra usar no futuro porque afinal aquelas cenas dele falando com a mão eram boas demais pra deixar passar.

Amigos imaginários são um recurso que muitas crianças utilizam — e outras não — para começar a lidar com a realidade, com seus sentimentos e com sua individuação. A criança “treina” com o amigo invisível suas habilidades em aquisição de ir pro mundo e se relacionar com o entorno.

E dessa forma Lias, a mão, entrou pra família. E já estávamos acostumados a ver meu filho colocando a culpa nela de coisas que ele tinha feito, brincando, brigando com a própria mão e nos envolvendo em intermináveis diálogos com ela.

Até que Lias foi aparecendo cada vez menos, a ponto de sua ausência ser sentida. E um dia eu não resisti e perguntei “meu filho, cadê o Lias?”, e ele respondeu “o Lias não existe”. Assim, na lata, sem nem preparar meu coração.

O Lias não existe. Eu e meu companheiro nos entreolhamos e os olhos dele estavam brilhando de lágrimas assim como os meus. Como assim o Lias não existe? Se outro dia ele estava aqui, brigando comigo pedindo um beijo de boa noite? Como ele não existe se eu ainda lembro de você meu filho, se atrapalhando com os primeiros passos? Se eu ainda escuto seu choro, se eu ainda lembro suas primeiras palavras e de toda a comida que você jogava fora do caldeirão? E todas aquelas fraldas que você não usa mais? E as roupas que já não te servem?

Você está crescendo meu filho, e o Lias foi embora. E eu estou escrevendo pra dizer que parte de mim está feliz porque é muito duro para uma mulher esses primeiros 5 anos da vida do filho, quando ele está fazendo essa transição de deixar de ser um bebê. Mas também hoje me dou conta que acaba de repente e aí a gente olha dentro de si e percebe que sim, bem lá no fundo, tem um pouco de saudade de algumas coisas. Eu vou sentir saudades de conversar com sua mão, aliás, com o Lias. E do bebê engraçado que você foi e que agora é esse garotinho esperto e divertido. E de como foi uma experiência incrível para mim poder ver você deixar de ser um bebê. E eu sempre vou lembrar do Lias no meu coração, como um alerta para aproveitar a parte boa de poder ser mãe, porque tudo passa.

Está tudo bem se você não ama o seu pai

Olha, está tudo bem se você não ama o seu pai. Não sinta culpa por isso. Você não está só nesse sentimento, na verdade boa parte de nós tem sentimentos confusos sobre essa relação, mas se sente coagido demais pela sociedade para ter coragem de confessar.

Nós vivemos no país do abandono paterno, temos mais de 5 milhões de pessoas que sequer o registro do pai possui na certidão de nascimento. Isso fora aqueles que se dignaram a registrar mas não seguraram nem um minuto dessa onda e simplesmente se foram, deixando o filho nos braços de uma mãe perdida, solitária, e um tanto desesperada.

Nós vivemos em um país de índices assustadores de violência doméstica. Uma sociedade machista, autoritária, punitivista. Onde a necessidade de “disciplina” é sinônimo de parentalidade bem sucedida. Onde a “obediência” é obtida através da violência e do medo. Uma cultura que odeia mulheres e crianças e que quer submetê-las a todo custo.

Nós vivemos em uma cultura sexista onde está tudo bem se o pai cumprir o papel de provedor e nada mais. “Colocar comida em casa” é o bastante. Não importa se o pai é ausente, se não participa de verdade da vida dos filhos. Não importa se o pai não é carinhoso ou empático. Se é distante. Se o pai permanece e alimenta, se o pai “não bate”, já é o suficiente para ser um herói.

Nós vivemos em uma cultura onde homens não lidam com os próprios sentimentos e aprendem a lidar com a pressão através da fuga e da violência. E eles fogem. De alguma maneira fogem. Para o álcool, para todo tipo de outras drogas que ofereçam algum alívio temporário. Se retiram da realidade deixando quase sempre uma família ferida, assustada, exaurida, ao redor.

Então está tudo bem se você não ama seu pai como você acha que deveria. Se você não o ama. Está tudo bem inclusive se você não gosta dele em absoluto. Tudo que cerca a paternidade é moldado muito mais para ferir do que para curar. Por mais que haja uma idealização em torno da figura do “pai”, cuidador e protetor, a realidade é que homens são criados em um caldo de masculinidade que torna quase impossível que eles exerçam essa função de cuidado e proteção como se esperaria.

Então, está tudo bem se às vezes você sente uma inveja surda daqueles que tiveram uma figura presente, positiva, carinhosa. Dos amigos que tinham alguém sentado na primeira fila da cadeira, na apresentação do dia dos pais da escola. Dos que tinham um nome no seu registro de nascimento. Que não tinham que responder perguntas sobre onde está o seu pai. Que não sentiram vontade de inventar histórias. Que não enganavam a si mesmos dizendo que aquele pai não estava ali porque não podia e não porque não queria.

Está tudo bem admitir que ainda que você tenha sentimentos confusos, esse pai fez falta. Porque faz falta sim. Não que sua mãe não tenha feito o melhor que pôde, dentro das possibilidades dela. Não que sua mãe tenha sido perfeita. Mas ela não é uma heroína. Ela é apenas uma mulher cansada que teria tido uma vida muito mais simples e muito mais feliz, e você também teria tido uma vida muito mais simples e muito mais feliz, se a pessoa que também te gerou cumprisse a parte dela na responsabilidade que é gerar uma criança para este mundo.

Está tudo bem se você se sente triste, frustrada, desamparada. Se você sempre sonhou em ter um pai. Um pai melhor. Se você acredita que as coisas seriam muito melhores se ele fosse diferente. Exceto que ele não é. E lidar com isso dói sim. Não reprima, nem se envergonhe da sua dor.

Está tudo bem também se você não consegue amar como gostaria o pai que estava lá. Se você sente raiva das atitudes dele. Da sua violência, do seu descaso. Está tudo bem se você se revolta e se rebela e às vezes preferia não ter nascido. Se a presença dele na sua família causa tantos transtornos e tanto sofrimento que você preferia que ele tivesse partido. Que ele tivesse te abandonado ao invés de te criar em meio a tanta brutalidade. Está tudo bem cada vez que você o odiou por vê-lo espancar sua mãe. Por vê-lo espancar você ou aos seus irmãos. Está tudo bem se você o odiou por ele sempre estar bêbado, ou drogado. Por nunca ajudar de fato e ainda sobrecarregar a todos.

Está tudo bem se você tem raiva dele por tê-lo visto explorando domesticamente sua mãe, tratando-a mal, desrespeitando, traindo. Está tudo bem se só hoje você entende que sua mãe esteve trancada em um relacionamento abusivo com esse homem, que se beneficiou a vida inteira enquanto ela definhava. Não há como separar o homem, o marido, o pai. Isso é balela. São sentimentos conflitantes, e nada disso é sobre você.

Está tudo bem se você odeia seu pai porque ele abusou de você. Porque ele te estuprou. Você não tem que perdoá-lo. Você não precisa perdoar seu abusador a não ser que isso vá trazer algum benefício psicológico para você mesma.

Você não precisa amar o seu pai se ele te feriu a vida inteira. Se ele feriu as pessoas que você amava. Se ele não estava lá por você. Amor é um vínculo que se constrói. E construir vínculo de amor com os filhos é responsabilidade dos pais. Nada disso é culpa sua.

Homens nascem e são socializados da pior maneira possível. São socializados para a dominância e para a violência. Mas também são inseridos em um mundo de privilégios. Um mundo em que a paternidade é facultativa para eles. Eles não são punidos se não exercê-la. Portanto eles podem e devem ser responsabilizados pelos seus atos. Eles, diferente da maioria das mulheres, têm escolha e tem autonomia para escolher entre ficar ou partir, cuidar ou não dos filhos, ser ou não um bom pai. Então eles precisam ser cobrados e precisam ser responsabilizados pelas ações e pelas escolhas que fazem.

Você não precisa se punir e se culpar porque a sociedade quer obrigar você a amar um homem, a qualquer custo. Porque a sociedade quer que você respeite o “pai”, quando esse pai nunca esteve lá por você. Culpa é a sensação de que estamos quebrando alguma norma. A sociedade empurra essa norma para nós. É a lei do patriarcado. Homens devem ser venerados acima de tudo, façam o que for. Sem consequências.

Saiba. Esta norma está errada.

Todo choro deve ser consolado

Ora, mas vejam só, agora nós somos uma sociedade moderna que finalmente percebeu que não devemos espancar crianças, que acredita que todo choro deve ser consolado. Agora nós temos métodos mais modernos, arejados, “positivos”, “não violentos”. É o cantinho da calma, é a escuta ativa. Agora vai.

Aí corta para a historinha, totalmente real.

Estava eu aguardando meu marido e meu filho na saída do banheiro que também era a saída do cinema. Sentado na escada de saída do cinema estava um pai, placidamente, conversando em voz baixa, com toda a calma do mundo com seu filho. O menino era visivelmente bem jovem e depois eu descobri que ele tinha apenas 2 anos. E chorava copiosamente. Copiosamente. E o pai o mantinha (apenas com calmos comandos verbais) de pé junto a parede. De castigo.

Enquanto o castigo prosseguia o pai ia dando o sermão da montanha e eu, que acompanhava a cena mortificada com o canto do olho, pude me inteirar da história. A família estava no cinema, a mãe, o pai, um bebê de colo, o menino de 2 anos, e mais um irmão (possivelmente mais velho). O menino de 2 anos começou a se agitar e a chorar, e a querer o colo da mãe. O pai ofereceu o colo, o menino não quis. Queria o colo da mãe. E aí estava armada a celeuma. O garotinho pode ter se “comportado mal” (sabe-se lá o que isso quer dizer para um menino de 2 anos), e ganhou com isso a retirada do cinema e a punição de ficar em pé do lado de fora (tudo bem, ele poderia sentar se quisesse, pelo que entendi) até o filme terminar.

O menino pedia a mãe e ouvia como resposta: “não, sua mãe está lá dentro do cinema vendo filme com seus irmãos ela não vai vir te ver”. O menino pedia colo e ouvia: “não! eu quis te dar colo lá dentro e você não quis! Agora fica aí”. O menino, estoicamente, pedia pra ir pra outro lugar e ouvia: “não, vamos ficar aqui até o filme acabar”. Tudo pontuado por “pode chorar à vontade, não tem problema”. O menino tinha 2 anos e estava completamente desconsolado.

Olha, eu realmente acredito que aquele pai estivesse completamente bem intencionado no que estava fazendo e até estivesse orgulhoso de si mesmo se achando o rei da pedagogia porque estava ali ‘disciplinando’ o seu filhinho ao invés de simplesmente tê-lo espancado para ele calar a boca.

Mas

Nenhuma técnica, nenhuma filosofia de “disciplina” vai funcionar se você não acalmar seus demônios internos, meu amigo, minha amiga. E se você não partir de uma premissa elementar, básica mesmo: crianças são pessoas.

Se uma criança está chorando desconsoladamente, não seja a pessoa babaca que acha isso edificante. Console-a.

Há uma diferença aliás entre o choro de “birra”, que é frustração por não ter conseguido algo. O choro de raiva, o choro de tristeza. E quer saber? Todos eles precisam ser consolados. Consolar e acalmar uma criança não significa “ceder”, não significa “perder”. Significa que você está ali pelo seu filho e está mostrando pra ele que você se importa com os sentimentos dele e que você estará ao lado dele para ajudá-lo.

Aliás, que obsessão que pais tem por disciplina, autoridade, bla bla bla. Que queda de braço com crianças que ainda estão provando o próprio cocô. Deixa eu explicar aqui uma coisa que deveria ser óbvia: vocês têm esse empenho por disciplinar seus filhos mas isso é muito mais uma necessidade SUA de domesticar essa criança pra ela dar menos trabalho pra VOCÊ, do que uma coisa que você está fazendo por ela. E de mostrar serviço para sociedade que sutilmente dá status social para pais carrascos, que têm filhos “comportados”. Filhos que, embora crianças, ajam como adultos na cerimônia do chá da rainha da Inglaterra. Vai se saber a que custo psicológico.

O que pais devem transmitir aos filhos são valores, o que devem ensinar são bons hábitos, o que devem explicar são as regras para se viver em sociedade e ajudá-los a se adequar, o que devem demonstrar são bons exemplos e o que devem ser são companheiros, pessoas em que essas crianças possam confiar, possam amar devotadamente como já fazem, sem sofrer por isso. Sem sofrer porque ama alguém que o magoa.

O pai que estava mantendo o filho aos prantos fora do cinema, certamente estava muito convencido de que estava ensinando uma lição ótima para aquela criança. Se ele olhasse para ela como uma pessoa, se olhasse para suas necessidades, entenderia que: a) ela ainda era pequena demais para assistir um filme de sei lá quantas horas entendendo tudo que estava acontecendo e mantendo a atenção, portanto obviamente ia se sentir entediada; b) sentindo-se entendiada, ou com sono, ou com frio, ou com qualquer outro sentimento que ela talvez nem soubesse identificar ainda, obviamente que ela iria buscar a mãe, que é a sua principal fonte de aconchego; c) o colo que era dela estava ocupado por um outro bebê e sabe-se lá se ela estava lidando bem com isso. O que esse pai poderia fazer? Consolar o filho, tirá-lo do cinema e levá-lo para a piscina de bolinhas, para tomar um sorvete, para fazer qualquer outra coisa. Mas não, “olha uma criança que não se comporta como eu preciso: vamos “discipliná-la!”.

E o que a criança estava vendo ali? O que ela está aprendendo com essa lição? Que as necessidades dela não são importantes diante das necessidades dos pais e dos irmãos. Que ela não tem a quem pedir ajuda e consolo quando se sentir sozinha. Que ela deve aprender a se virar sozinha sem o apoio do pai. Que o único recurso que ela tem para tentar comunicar as emoções dela (chorar) não são ouvidas. Não demora muito aliás ela vai parar de chorar e vai se comportar, papai, não se preocupe. E você vai sentir que tudo deu “muito certo”. Mais uma criança domada na conta do terapeuta.

E sabe o que mais que essa criança aprendeu? A ser autoritário. A ignorar o sentimento das outras pessoas. A ser intransigente. A ser frio. Porque é isso que ela estava vendo ali. É o comportamento que ela estava assimilando. De que você não precisa se preocupar com os sentimentos do outro.

Quer outra regra de ouro na hora de se relacionar com os seus filhos? Pense sempre “que mensagem eu estou passando”. Que não é o que você DIZ, mas é o que você FAZ. É isso que ela está apreendendo. E é nessa chave que você vai definindo que tipo de orientações e interdições (porque sim, educar é também se o primeiro a realizar interdições nos desejos dos filhos) você vai realizar.

E avaliem sempre se a criança está em uma idade que ela tem condições de assimilar o que você está tentando ensinar. Não existe uma “janela de oportunidade” que se você não ensinar coisa x na idade y nunca mais a criança aprende. Socialização é um processo complexo e múltiplo e vamos aprendendo a vida inteira e nos moldando. Fica difícil aprender quando crescemos porque somos esse saco ambulante de traumas justamente porque nossos pais exigiram de nós quando crianças elaborações e comportamentos que não éramos capazes de corresponder.

E olha, na dúvida do que fazer, dê afeto. Afeto sempre afeta e todo choro deve ser consolado.

Como proteger nossos filhos da cultura do estupro?

Como proteger nossos filhos da cultura do estupro? Esta é uma pergunta que assombra toda e qualquer pessoa comprometida com a criação dos filhos.

Todo homem é um estuprador em potencial, dizem. Essa frase é incomoda para homens e um choque para muitas mulheres. Principalmente para mães de meninos. Como assim aquele menino tão doce que ela aninha no colo é um potencial estuprador de mulheres? Pois é. Isso não quer dizer que todo homem estupra. Mas quer dizer que qualquer homem poderia estuprar uma mulher. Porque homens estupram. Não tem uma etiqueta na testa com selo de decência para sabermos quais oferecem segurança e quais não oferecem.

Quando pensamos em estupro, pensamos no ato violento, forçado, coercitivo. E então muitos homens respiram aliviados por sentirem-se fora dessa equação. No entanto se pensarmos nas fronteiras embaçadas de consentimento que nos são ensinadas, o número de homens que cometeu alguma violência sexual é infinitamente maior do que imaginamos. Quantos não roubam beijos, acariciam mulheres de maneira inconsentida? Quantos homens não fazem sexo com sua parceira sem estar realmente preocupado se ela está com vontade, ou mesmo se ela também está aproveitando a experiência?

Que mulher nunca transou com o marido ou namorado sem estar com nenhuma vontade, por senso de “obrigação”? Pela ameaça velada de traição “se não transar com você vou ter que transar outra”? Ou porque o “não estou com vontade” foi solenemente ignorado e homens permaneceram insistindo tanto que ela acabou cedendo para ter sossego? A ponto de originar a clássica piada sobre a desculpa da “dor de cabeça” para não transar. Ou a de ficar “escolhendo a cor que vai pintar o teto” enquanto faz sexo. Isso não é engraçado. Isso é muito violento. Mulheres terem que inventar que estão doentes ou indispostas para que seus companheiros desistam de querer um sexo que ela não está com vontade de realizar é cruel demais. Um sexo que muitas vezes aquela mulher não quer fazer simplesmente porque é ruim. É um sexo onde ela não tem nenhum prazer, não é uma experiência que ela aproveite. Que ela finge ter um orgasmo para ver se aquilo acaba de uma vez e ela pode voltar pra ver novela. Um sexo que é visto como um mal necessário a alguma estabilidade e paz na união que ela está, que “não custa nada”.

“É rapidinho”, “depois você vai gostar”, “não custa nada”, eles dizem.

Vejam que perverso:

Homens aprenderam que sexo é para eles, é sobre eles. Que apenas eles têm prazer dessa experiência. Que seu corpo tem “necessidades”. Que é “instinto”. Que ele é um animal sexual cujas gônadas vão explodir se ele não transar. Que ele não pode se conter. Que eles devem conquistar e foder o maior número de mulheres possível porque é isso que prova que ele é macho e viril.

Mulheres aprenderam que sexo é uma coisa “suja”, que boas mulheres sequer gostam de sexo, aprenderam que homens é que devem “fazer a mulher gozar”, como se apenas eles soubessem os segredos sobre o corpo de uma mulher. Mulheres aprenderam que não sentem desejo. Que são frígidas. Que gozar é difícil. Que não devem tocar-se. Que é normal o sexo ser ruim. Que devem fazer sexo com o menor número de homens possível, porque isso é prova que ela tem dignidade moral. E mulheres aprenderam que só são valorizadas se forem dignas. Se forem “direitas”, se forem “puras”. Porque o sexo macula.

O sexo é uma coisa mundana. E o homem é que é do “mundo”. Mulheres são do confinamento do lar, da domesticidade.

Homens aprenderam que mulheres valorosas não devem gostar de sexo. Ou melhor, mulheres podem até gostar depois que conhecerem “o homem certo”. Então homens tem a noção distorcida de que mulheres acham que não gostam de sexo e nunca querem sexo porque ainda ninguém lhes mostrou como sexo é bom. E que por isso recusam. Por isso O recusam. Então ele deve insistir, insistir, insistir, até ela ceder. Porque no final, ela vai gostar.

Mulheres aprenderam que não devem demonstrar que querem sexo, mesmo que queiram muito. Porque mulheres que cedem na primeira tentativa já sabem que sexo é bom. Portanto já tiveram sexo com outro homem. Já gostam. Não são mais “puras”, já não tem mais tanta moral e dignidade. Perderam o “valor”. Porque o “valor” de uma mulher está exatamente localizado entre suas pernas na nossa sociedade. Não à toa mulheres são, por séculos, coagidas e punidas por não manterem suas “virgindades”. Não à toa, até hoje, um hímen intacto faz fortuna em leilões.

Dessa forma, quanto mais rápido mulheres cedem, mais isso indica que elas tiveram muitos parceiros, porque talvez ela goste muito mesmo dessa coisa de sexo e vá transar com qualquer um. E mulheres não podem transar com quem quiserem, porque vai que ela engravida, como saber quem é o pai? Como garantir que o homem que está espalhando sua semente está criando um herdeiro que é seu?

Então mulheres aprenderam que devem sempre dizer não, numa tentativa de “valorizar-se” e que deve deixar o homem “conquistá-la”, que nada mais é do que tentar persuadi-la a ter sexo com ele, e quem sabe nesse meio tempo descobrir que ela é uma mulher digna o bastante para ele querer ter uma família com ela. Se a fórmula funcionar bem e ela conseguir sustentar esse jogo por tempo o suficiente, homens podem inclusive casar com ela no recurso último de finalmente transarem. E assim mulheres obtém o que elas aprenderam que é importante — e que não é sexo — mas “ter um lar e um marido”.

Portanto a boa mulher sempre nega sexo, o bom homem sempre insiste apesar do não. A vontade da mulher que gera um consentimento verdadeiro é relegado a segundo plano. A recusa da mulher é sempre desconsiderada porque faz parte do jogo da conquista. Mulheres não tem direito real de dizer não às investidas sexuais masculinas.

Essa lógica tem um nome. É cultura do estupro.

E como isso opera, na prática? Antigamente, essa ideia desdobrava-se simplesmente com homens capturando mulheres e estuprando-as abertamente, para satisfazer seus “instintos primitivos”. Ou comprando-as dos seus pais em casamento quando queriam aliar a necessidade de sexo com a obrigação social de constituir família, deixar herdeiros e outros arranjos de ordem puramente comercial.

Modernamente o homem não compra mais a mulher em casamento, cultiva-se a ideia de “amor romântico” mas permanece a lógica comercial nas relações de que ele deve conquistá-la através de exibicionismo financeiro, seja porque mulheres são fúteis e gostam mesmo “é de dinheiro”. Seja porque mulheres aprendem que um “homem bom” é aquele que demonstra solvência financeira para prover uma família. Então a lógica da negociação sexual que não passa pela violência direta ou velada pula direto para a estratégia de compra. Presentes, jantares, jóias, viagens.

Antes da violência pura e simples, tenta-se comprar o consentimento com o nome de “conquista”.

Pense em todos os contos de fada que você já leu. Quem é o príncipe? O homem rico que dá a mulher uma vida de “princesa”. E o que é ter uma vida de “princesa”? Uma vida de luxo, riqueza e ostentação. O príncipe é desobrigado de ser um cara minimamente decente. O príncipe da Branca de Neve dá o primeiro beijo nela quando ela está desacordada (!!!), o príncipe da Bela e a Fera… é uma fera, literalmente. O príncipe da Cinderela dá uma festa pra escolher um mulher como se fosse fazer compras no supermercado. Nem nome esses personagens tem. Nem muito bonitos eles precisam ser também (a Fera que o diga), mas o que todos eles têm em comum? São estupidamente ricos.

Pense em todos os filmes românticos que você já viu. Nos livros que você já leu. O homem ideal, ideal mesmo, é sempre rico e bem sucedido, ou pelo menos muito promissor. Ele não precisa ser bonito necessariamente. E ela sempre é estonteantemente bela. A ideia de “romance” e “conquista” começa a acontecer quando o homem começa a dar coisas ou levar a mulher para fazer coisas (jantares, festas, etc). Já é pré-estabelecido no ritual da paquera que homens pagam a conta ao passo que mulheres devem comparecer estupidamente bonitas para agradar e alimentar o desejo masculino. Ele paga o motel já que ela… fez sexo?

Aprendemos a ser “sensuais”, “sedutoras”. A manter a chama do desejo e a imaginação masculina sempre ligada nessa voltagem da caçada. Por que homens não aprendem que precisam ser sensuais? Por que não existem signos de sensualidade para homens? Porque o homem não precisa se preocupar com o desejo feminino de maneira nenhuma. Não é importante.

Mulheres casam e ficam reféns dos seus maridos caso não tenham autonomia financeira. Porque o trabalho doméstico e de cuidado com os filhos não é visto como trabalho e a mulher muitas vezes está presa em casa sem nenhuma possibilidade de gerar a própria renda e homens lhes cobram sexo como se elas lhe devessem um favor. Que ela faz porque “ele coloca tudo dentro de casa”. Como se comer a comida que ele compra e que ela cozinha todos os dias precisasse ser paga. E sexo paga. E homens cobram. Muitos homens não querem que mulheres trabalhem ou tenham sua própria renda porque mantém essa lógica de dominação nos seus lares. Querem sua escrava sexual particular.

Normalizou-se uma lógica de coerção financeira para a negociação sexual onde como sempre a vontade da mulher em fazer sexo é secundária. Ela é um corpo sendo negociado. Sexo é deslocado do lugar de uma coisa que é feita por duas pessoas que se desejam e querem obter prazer daquilo, para ser um “serviço” que mulheres podem prestar aos homens.

“Mulheres são interesseiras” eles aprendem, “só querem o seu dinheiro”. “Homens só pensam em sexo”, elas aprendem, “fazem qualquer coisa por isso”. “Por que não? Não custa nada.”

A prostituição não é um trabalho mas talvez seja realmente uma das práticas mais antigas do mundo porque mulheres sempre foram mais vulneráveis financeiramente e são coagidas de inúmeras formas a fazer sexo com homens desde tempos imemoriais. Já que a vontade dela, a necessidade dela, o desejo dela, o orgasmo dela, o querer dela, é desprezível, e desprezado. A prostituta ocupa o lugar de fornecer o sexo com o menor esforço possível antes de se apelar para o uso da violência física.

E no desdobramento mais violento homens simplesmente tomam mulheres à força. Porque “no fundo ela quer”, ela está “fazendo cu doce”. Homens aproveitam-se de mulheres bêbadas, homens dopam mulheres, homens aproveitam-se de mulheres dormindo, mulheres inconsciente, mulheres em coma. E saem rindo e pensando “tenho certeza que ela está gostando”.

Estupro é sobre poder porque homens nesse momento expressam toda sua misoginia e todo seu ódio e sentem prazer na subjugação do corpo feminino e no seu sofrimento explícito. Mas estupro é também sobre sexo porque homens aprendem que o consentimento feminino não é importante e que ele pode obter sexo de qualquer mulher, a qualquer momento, usando qualquer recurso, caso queira. Muitos homens sequer se dão conta de que aquilo que estão fazendo com aquela mulher é estupro, “porque ela não gritou”.

Isso é tão extremo que muitos homens que não conseguem obter sexo passam a odiar tanto mulheres que se declaram celibatários voluntários. Também conhecidos como Incels. E se reúnem online para planejar, noite e dia, o massacre de mulheres que acreditam que nunca fariam sexo com eles espontaneamente. E depois saem metralhando escolas e cinemas.

Na pornografia você vê mulheres sofrendo violências terríveis que são mostradas como sendo um ato sexual. São penetradas violentamente, são espancadas, são humilhadas, são xingadas. E as atrizes, apesar da dor física, emocional e psicológica que estão sentindo estão ali coagidas e sendo pagas para fingir que gostam. Homens aprendem que mesmo com violência, elas gostam.

Pornografia é estupro filmado. É como meninos e meninas aprendem que sexo se parece.

Cultura do estupro.

Todo homem é um estuprador em potencial. É no que a sociedade transforma os nossos meninos. É a mensagem que é passada para eles o tempo inteiro. Que o consentimento, que a vontade feminina, não é importante. Que eles devem obter sexo custe o que custar, porque é isso que homens fazem.

Ensinem suas meninas a dizerem sim quando quiserem dizer sim, a conhecerem o próprio corpo, o próprio desejo, permitir que sejam seres sexuados e que possam relacionar-se de maneira saudável com isso. Que elas não entrem nesses jogos perversos e desnecessários de conquista. Ensine a ela que se tudo o que um menino quer dela é obter sexo, ela fará se estiver com desejo, com vontade honesta. Que ela fará porque quer obter prazer da experiência. Sempre, não apenas às vezes. Não apenas em um evento mágico e aleatório. Mulheres podem e devem ter orgasmos em 100% dos seus intercursos sexuais assim como homens conseguem. E que elas possam fazer sexo ou ter qualquer contato físico, seja um beijo, seja um aperto de mão, no exato momento em que tiverem vontade. Seja na primeira vez que se conheceram, seja no décimo encontro. E que se aquele rapaz que ela está saindo não puder esperar e respeitar isso, então ele simplesmente não vale a pena.

Diga a sua menina para dizer não quando quiser dizer não. Que consentimento não se compra. Que custa sim. Que um beijo sem vontade custa. Que receber toques no seu corpo quando não se está com desejo custa. Que transar sem estar excitada de verdade custa muito. Que ela é o corpo dela. Que ela não deve desassociar-se. Afastar a mente do corpo de tal forma que ele possa ser usado por um homem como se fosse uma casca vazia. Diga a sua menina que ela não tem preço e que ela é uma pessoa.

Diga a seu menino que ele é uma pessoa inteira e que a vida não gira em torno das proezas que o pênis dele realiza. Que ele não é apenas um ser sexuado e que seu valor não pode ser medido em função do número de mulheres que ele transou. Porque sexo é uma coisa íntima, privada, e não é dá conta de ninguém. Não é um troféu que ele deve ostentar. Mulheres não são troféus. Sexo não é olimpíada onde ele ganha medalhas pelo número de coitos obtidos. Ele não precisa provar nada para ninguém. Que o peso da virilidade é pesado demais. Vamos tentar desassociar essa ideia da competitividade sexual entre os homens que querem provar sua macheza a todo custo.

Diga ao seu menino que ele deve acatar o não quando ouvir o não. Que consentimento não se compra. Que o sexo é algo que deve servir para satisfação de todos os envolvidos. Que se a pessoa que estiver com ele não tiver dado o consentimento expresso da vontade e do desejo dela em estar envolvida no ato, ele está cometendo uma violência. Que o universo não gira em torno do desejo dele. Que nenhum desejo é soberano à custa da violência sobre o outro.

Vamos desmistificar a ideia da “conquista”. Esse conceito parece romântico mas embute uma noção extremamente perigosa. Para todo conquistador existe um conquistado. E esta é uma relação de dominação, de subjugação do outro. Vamos ensinar as nossas crianças que sexo é fruto do desejo surgido através do feliz encontro entre duas pessoas. É decorrência de sentimentos que naturalmente surgem quando sentimos atração, temos compatibilidade e vamos nos relacionando com o outro. Que sexo não é o objetivo final do relacionamento entre um homem e um mulher, mas sim uma relação de afeto, companheirismo e amizade. Onde esse casal faz sexo um com o outro porque se deseja e porque é bom. E onde o sexo não é uma obrigação e sua falta não será o fim, porque uma relação contém inúmeros outros elementos igualmente ou muito mais importantes.

Vamos ensinar homens a verdadeiramente amar mulheres. Querê-las como amigas, companheiras, parceiras. Querer unirem-se a elas porque as admiram, e não porque elas são um corpo a mais para que eles consumam sexualmente. Só assim vamos conseguir algum avanço nesta sociedade onde sim, todo homem é um estuprador em potencial, vivemos imersos em uma cultura do estupro, então precisamos conversar sobre sexo com nossas crianças, mas precisamos deslocar toda a lógica que rege a maneira como nos relacionamos com o tema. Precisamos conversar sobre amor.

O que o sucesso da criação com apego revela sobre a sociedade que vivemos

O que o sucesso da criação com apego revela sobre a sociedade que vivemos? A teoria do apego é uma teoria criada por um psicólogo britânico que reza sobre técnicas para criação de filhos calcada em proximidade física, criação de vínculo e não violência. Ainda que muitíssimo correto, tudo que é dito por essa cartilha deveria ser da alçada do capitão óbvio, e o seu sucesso estrondoso esconde, ou melhor evidencia, algo que não queremos encarar conscientemente: o quanto vivemos em uma sociedade que não se importa com crianças.

O quão estranho é uma pessoa ter que ser “ensinada” que ela deve tratar seu filho com “apego” (também conhecido como carinho) e ouvir as necessidades dele?

Porque no fim, a criação com apego se trata justamente disso, você ter que explicar a adultos que eles não podem ceder aos piores instintos que cuidar de uma criança pode despertar: o egoísmo, a tirania, a megalomania, a impaciência, a violência, já que você de repente detém completo poder sobre a vida de um outro ser humano, completamente vulnerável, e que lhe tem total devoção. A síndrome do pequeno poder impera, confessemos.

E então, o que a teoria do apego diz na verdade é: você não é dono do seu filho. Ele é uma pessoa, tem necessidades, e precisa de você. E convenhamos que nada, absolutamente nada, do que é pregado é revolucionário, o que torna tudo muito mais triste e deprimente. Deixar um bebê mamar quando tem fome e pelo tempo que ele precisa, deixar ele dormir com você enquanto ele se sente inseguro para dormir sozinho, confortá-lo quando chora, dar colo, não espancá-lo, deveria ser evidente já que crianças são seres dependentes, vulneráveis, carentes e que não tem nenhum portfólio sobre como viver nesse mundo. E que decadência civilizatória ter que falar isso. Ter que explicar aos pais que eles devem amar e respeitar o próprio filho.

Admitamos que vivemos em uma sociedade que odeia crianças. O amor que dispensamos a elas é o que dispensamos a um souvenir. Bebês são ótimos na foto fazendo fofurices, mas queremos que durmam rápido e a noite toda como adultos, que comam sozinhos o quanto antes, desfraldem em duas semanas, não chorem, não se irritem. Parem dar trabalho. Uma sociedade onde fazem sucesso as “Encantadoras de Bebês”, com a solução mágica que deixa claro uma realidade terrível: vemos as particularidades e necessidades de um bebê como um problema que precisa de passe mágica para ser resolvido.

E quando eu falo “sociedade”, que fique claro, eu falo dessa que vivemos: patriarcal e capitalista que enfia todos nós dentro de uma lógica massacrante, individualista e consumista onde mulheres devem ser produtivas, lindas, fazer a roda do consumo girar e ao mesmo tempo também devem continuar domésticas e reproduzindo a espécie. Afinal precisamos de mão de obra. Homens e mulheres são engolidas pela rotina produtiva e a necessidade de sobreviver e quase não tem tempo de cuidar com qualidade dos seus filhos.

Crianças não são produtivas. Não são mão de obra aproveitável até entrarem na vida adulta, então não são consideradas tão importantes. Na verdade só servem para gerar mercado consumidor. Alguém já parou para pensar como a chegada de um bebê é embalada como um grande produto? Enxoval, chá disso, chá daquilo, festa na maternidade, e depois do nascimento, mãe e criança são atiradas no ostracismo e o recém-nascido vira um empecilho a ser resolvido. Buscamos o tempo todo soluções mirabolantes para que os bebês parem de se comportar como bebês e sejam independentes o mais rápido possível.

Chegamos ao ponto em que precisamos de técnicas”, de livros e cursos e vídeos para dizer o óbvio: crianças são pessoas. São seres em desenvolvimento em situação de completa vulnerabilidade e necessitam de compreensão, paciência e empatia. São seres que precisam de carinho e cuidado. Dar colo e aconchego ao filho virou uma “técnica”. Somos uma civilização em que amor, carinho e respeito por crianças precisa de prescrição.

She-Ra e as Princesas do Poder

A Netflix lançou recentemente um reboot do popular desenho da She-Ra, e as Princesas do Poder, muito famoso nos anos 80. O desenho é uma agradável surpresa e recomendadíssimo para assistir com crianças já que finalmente apareceu alguma coisa que traz uma mensagem decente sobre o tal empoderamento feminino.

A premissa do desenho é a mesma: Adora é uma órfã que foi criada e treinada pela Horda para supostamente lutar para salvar o mundo em que vivia. Após um acidente, se perde na floresta dos Sussurros e é capturada pela princesa Cintilante e pelo Arqueiro, que lutam pelos Rebeldes, que a mostram que tudo que aprendeu sobre o mundo onde estava vivendo estava equivocado e que ela estava lutando do lado errado. Nesse meio tempo ela descobre uma espada mágica que a transforma na princesa prometida She-Ra, uma guerreira de 3 metros cheia de poderes muito loucos, como transformar um cavalo comum em um unicórnio. Então a trama se desenvolve com Adora na busca por entender seus novos poderes e lidando com as conseqüências das suas escolhas, enquanto fortalece seus laços de amizade com as pessoas que vai conhecendo entre os Rebeldes com quem se une para ajudar a combater a Horda e proteger Etéria.

O desenho é formado por 95% de personagens mulheres. Mesmo. E os personagens masculinos ou são acessórios, escada para um personagem feminino ou alívio cômico. Só por isso o desenho é bastante revolucionário. O personagem do Arqueiro, por exemplo, melhor amigo da princesa Cintilante, é um adolescente sensível, companheiro, que se emociona freqüentemente e serve muito mais como recurso para mostrar o desenvolvimento da Cintilante, que é um personagem muito rico, sempre em conflito com sua mãe, a Rainha de Lua Clara, para ter autonomia, independência e mostrar suas potencialidades.

Do lado da Horda, as antagonistas são maravilhosas e complexas. Felina tem um relação complicada de amor e ódio por Adora, que era sua amiga até sua partida e união com rebeldes. A relação delas inclusive é um fio condutor importante da trama pois Adora passa o tempo todo lidando com sentimentos contraditórios por ter deixado a amiga para trás, por vê-la escolher o lado dos vilões, por ter que lutar contra ela. E Felina por sua vez tem que lidar com o sentimento de abandono, rejeição, vingança e ambição de se tornar a capitã da Horda, agora que Adora estava fora do caminho. O Hordak aqui é um vilão completamente insípido totalmente nublado pela complexidade da Sombria, que tem uma estranha relação quase maternal com Adora enquanto maltrata e humilha Felina.

she-ra e as princesas do poder
Felina e Adora, amigas e rivais

As Princesas também são um show à parte, e ajudam no alívio cômico, cada uma com poderes bem específicos e personalidades exóticas. E palmas aqui para a preocupação com a representatividade de biotipos (Cintilante é baixinha e gordinha, por exemplo), raças e etnias. E um adendo para falar do Ventania, lembra dele? Aqui ele se torna um unicórnio falante revolucionário que quer libertar todos os cavalos do mundo!

Os conflitos da trama são na verdade muito mais sobre questões psicológicas e emocionais dos personagens do que sobre a luta pra libertar Etéria. She-Ra não é uma guerreira pronta, na verdade muito longe disso. Adora recebe uma missão que não sabe como lidar e é o seu caminho para aprender como usar toda a força que descobre que tem que dá uma belíssima lição de empoderamento para meninas.

Em primeiro lugar essa força, esse poder, que Adora descobre que tem não a deixa pronta, nem traz resultados, muito longe disso na verdade. She-Ra é uma guerreira em construção, falha, e cheia de crises existenciais. E toda sua descoberta de si mesma passa por restaurar a Aliança das Princesas que foi desfeita no passado porque elas acreditaram que não havia resultado em lutarem juntas, que se saíam melhor sozinhas. Durante toda a série, Adora e Cintilante buscam reustarar e fortalecer os laços de confiança e amizade entre as Princesas do Poder, busca romper as diferenças, os medos, para que possam somar suas potencialidades e enfrentar o inimigo em comum. Então o desenho fala de muita coisa, mas fala principalmente de mulheres conhecendo sua força, de mulheres aprendendo a lidar com suas dificuldades pessoais, de mulheres aprendendo a importância de lutarem juntas, de mulheres aprendendo a confiar umas nas outras. E é apenas quando elas decidem se unir que o empoderamento acontece. Porque empoderamento é uma força coletiva. É a força de um grupo que consegue mudar uma realidade, não é um sentimento individual. She-Ra não é empoderada, mas a Aliança das Princesas é poderosíssima.

E por isso que o desenho vale cada minuto, para meninas verem princesas que valem a pena querer ser. Para meninos aprenderem a admirar meninas por suas habilidades, força, inteligência, coragem, e não por sua aparência. Que sorte que essa geração tem coisas assim para assistir, saudosismo com a She-Ra da sainha dos anos 80, nem pensar.

Dia dos pais sem ter o que comemorar

Este é um dia dos pais sem ter o que comemorar. Queria dizer a todas as mulheres que criam os seus filhos sozinhas que esse dia não é delas e não deve ser celebrado. Não há nada para comemorar. Uma mulher que cria o seu filho sozinha é uma mulher extremamente sobrecarregada que tenta minimizar as lacunas deixadas pela ausência do genitor, e que efetivamente ela não conseguirá cumprir esse papel de “pai”. Porque ela é a mãe. Uma mãe exausta, uma mãe solitária, uma mãe cheia de perguntas sem resposta. A mãe. O pai que deveria estar lá e não está, quase sempre por abandono, descaso, displicência, irresponsabilidade é o que é. Uma ausência. Filhos crescerão com esse peso. Com esse tema para levar para a terapia, caso tenham a oportunidade de fazê-lo.

No país do abandono paterno, do machismo, da paternidade de ocasião, de pais de selfie, este é um dia de denúncia e pouca comemoração. É um dia para que homens reflitam como estão exercendo sua paternidade, para que reflitam sobre que tipo de modelos de paternidade tiveram e se esse modelo foi realmente positivo, carinhoso, contributivo para que eles se tornassem homens melhores, ou apenas reprodutores do que há de mais violento e machista na sociedade.

E não é apenas uma questão de ausência. É de presença ausente. De abster-se do cuidado, do fortalecimento de vínculo, por acreditar que o papel de pai limita-se a colocar comida na mesa em troca da eterna gratidão e subserviência da família. A existência dos homens na lembrança de boa parte das pessoas quando pensam sobre paternidade está quase sempre ligada a episódios de violência, alcoolismo, descaso, desleixo, irresponsabilidade, omissão, abuso. Pessoas que crescem buscando tampar esse buraco, suprir essa carência, que se agarram às poucas migalhas de afeto que receberam na infância dos seus pais como se fossem tesouros sagrados.

É um momento para que se faça um exame de consciência e uma admissão coletiva de culpa: homens, vocês não são bons pais. Vocês não estão exercendo a paternidade de forma a criar pessoa melhores, vocês não estão presentes na vida dos seus filhos. Assim como o pai de vocês provavelmente não esteve. Esse sequer é um fenômeno local: já notou como a maior parte das narrativas de filmes, séries e novelas tem a ver com pessoas tentando resolver seus traumas com os pais, via de regra o pai? O pai que não está lá. O pai que não dá afeto. O pai, o eterno atrapalhado bobalhão.

E por favor, me poupem do discurso “mas nem todo pai”. Se você não é assim, ou seu pai não é assim, toma aqui sua medalha de honra ao mérito. Você é exceção, não é regra. Onde estão os homens nos grupos que falam sobre cuidados dos filhos, pediatria, escola, fraldas, comida, roupas? Por que homens sentem-se confortáveis conversando sobre futebol enquanto suas mulheres estão conversando sobre seus filhos? Por que homens simplesmente esquecem dos filhos quando separam-se da mães? Por que é preciso uma lei que precise prender homens para que eles façam o mínimo que é pagar pensão para sustentar os filhos das relações que se romperam? Por que homens não combatem homens que demonstram desejos pedófilos? Por que homens não protegem a infância? Não protegem as crianças?

Falar de criação de filhos é falar de afeto, de cuidado, de presença. De querer estar ali para cuidar, amar e socializar uma criança. Essa é a função do pai. Dividir esta tarefa com a mãe. Sendo companheiro dela ou não. Se você não faz isso, não dá afeto, cuidado de verdade e presença, sua paternidade não é o bastante. Você não merece parabéns por nada. Aproveite este dia para pensar na sua parte, para pensar na sua função social. Para pensar se você merece algum presente.

Não há nada de feliz no dia dos pais.