Da mãe que queremos ser

Existe uma distância – considerável – da mãe que queremos ser para a mãe que conseguimos ser. E talvez por isso, toda mulher-mãe em algum momento (ou quase sempre) já se sentiu incompetente enquanto mãe. Perceba o peso dessa palavra: “incompetência”. Não ter competência de. Não ser capaz de. Toda mãe em algum momento (ou quase sempre) já se sentiu incapaz. Será que estamos olhando pro que fazemos ou pro que acreditamos que deveríamos ser feito? E aquilo que acreditamos que deveria ser feito, porque a mídia disse, a família disse, o blog disse. É possível? É realmente possível ser essa mulher-mãe com tantas competências?

Nessa hora em que nós sentimos aniquiladas porque não ticamos todos os itens do check list das nossas expectativas é preciso um pouco de generosidade. Generosidade com nós mesmas. Que é tão difícil de nos oferecer porque fomos ensinadas a sempre dar e nada receber. Porque aprendemos que verdadeira e boa mãe sempre se sacrifica.

É importante sermos generosas com nós mesmas para podermos contemplarmos sem chicote na mão os resultados que conseguimos obter. Que estão ali na nossa frente. Tirar um pouco o foco de tudo que ainda não fizemos e admirar com orgulho aquilo que conseguimos fazer.

Porque somos mulheres, humanas e limitadas. E a maternidade, ao contrário do que apregoam, não dá super poderes. Não nos torna divinas. E o custo de dar conta de tudo é alto demais. Pra qualquer um. Porque é preciso uma aldeia pra cuidar de uma criança e via de regra nos sobra fazer tudo sozinha. Não dá.

A sociedade capitalista cria problemas o tempo inteiro para a maternagem para vender as soluções. A maternidade é a única função possível que o patriarcado nos ofereceu e ela tem que ser cumprida à risca segundo seus parâmetros. Mulheres são treinadas para vigiar umas às outras e a competirem incessantemente pelo posto de melhor esposa, melhor mãe, mulher mais bonita.

Aceite com generosidade e orgulho aquilo que você consegue oferecer ao seu filho. Se dê algum crédito. Tem uma sociedade inteira de dedos apontados querendo te colocar nesse lugar de angústia, dúvidas e incertezas. Há toda uma máquina que lucra com seu medo. Há toda uma socialização que te empurra para esse lugar de achar que toda a responsabilidade pela criação de um filho é sua, que faz você sentir culpa o tempo inteiro. Que faz você dar mais do que realmente pode. Te faz infeliz. Tem gente plantando expectativas para lucrar com tuas frustrações.

Olha pra tua cria com o amor que você tem pra dar, que é o que você tem, e acolhe a ti mesma com o abraço carinhoso que certamente tua cria pode te ofertar. Acolhe a ti mesma, mulher. Aceita a mãe possível que tu és. O mundo já é duro demais para nós.

Mãe de pet também é mãe?

Mãe de pet também é mãe? Em todo Dia das Mães ressurge a polêmica sobre as tutoras que intitulam-se mães dos seus animais de estimação versus os exaustivos argumentos de mulheres-mães que se se sentem incomodadas e até ofendidas com esse título.

De tudo que sempre é dito, sempre me resta a mesma reflexão: o que é SER mãe? Note que não estou perguntando o que uma mãe FAZ (logo a resposta não é “cuidar”); tampouco estou perguntando o que uma mãe SENTE (para que se diga que ser mãe é “amar”).

Dizer que ser mãe é amar e cuidar é bastante incompleto, inclusive. Vejamos, se uma mãe está em DPP (Depressão Pós Parto) e não consegue sentir amor pelo seu filho, naquele momento ela não é mãe? E se ela não vier efetivamente a sentir esse amor avassalador? Deixa de ser mãe?

Ser mãe é cuidar? Se uma mulher tem algum fator que a impede de cuidar dos filhos ela deixa de ser mãe? Se é a avó que cuida dos netos, ela deixa de ser avó para ser a mãe?

Ser mãe é gestar? E as mães adotivas? Se um pai ama e cuida, ele é mãe? Se amar e cuidar é prerrogativa de “ser mãe”, o que sobra para o pai?

Perceba então que não é tão simples definir a partir de parâmetros de comportamento ou sentimento o que uma mãe é. Até porque existe esse script que fala de amor e cuidado que dita como uma mulher deve agir para ser qualificada como um mãe. E este é um script romantizado, uma ferramenta da maternidade compulsória para que mulheres queiram ocupar esse lugar de qualquer jeito. Que queiram ser mãe. Porque o que é vendido é que maternidade é status. Que mães são seres especiais, que mulheres são seres mágicos com o dom divino de cuidar e amar. Que uma mulher só está completa quando cumpre sua missão de cuidadora. De gente, de bicho, de planta. E em troca vão receber muito amor. E dar todo o amor que toda mulher tem que cultivar dentro de si pra distribuir por aí.

Nós mulheres somos socializadas dentro de uma carência profunda. Somos ensinadas a cultivar um vazio emocional que só consegue ser preenchido com um vínculo afetivo duradouro e presente. Seja um romance, seja um filho, seja um pet. Somos ensinadas que uma vida com amigos, família, relacionamentos casuais ou ocasionais não pode ser plena. Não pode ser leve. Temos que ter alguém. Ali. Alguém “nosso”. Então companheiros, filhos, ou pets, muitas vezes vêm pra preencher um buraco que não tem fundo que foi cavado no nosso subconsciente.

Antes de uma mulher desdobrar-se pra explicar sobre os motivos pelos quais ela é mãe do seu pet (eu sei, ela o ama e cuida “como a um filho”), se poderia parar, respirar, e pensar na necessidade que toda mulher demonstra de maternar alguma coisa. Por que a necessidade de humanizar um animal, chamá-lo de “filho”? Em que momento a ideia de que ser mãe virou essa batalha tão importante? Porque para uma “mãe de pet”, teoricamente, não deveria fazer tanta diferença a escolha carinhosa como ela trata seu animal de estimação. Ela o ama, ela cuida. E tem diversas opções de interação com este animal que não vão ser legisladas pela sociedade. Ela pode se dizer tutora (que é o que ela é) e chamá-lo de mil nomes amorosos. Isso não vai ter nenhum peso social. Ao contrário.

Uma mãe não pode chamar o seu filho de “pet”. Não pode dizer “vem cá, meu cachorrinho”. Ela não tem a opção de “animalizar” o seu filho. Uma mãe não tem nenhuma opção a não ser um manual de instruções bem detalhado sobre como ela deve agir, pensar e se comportar sob pena de ser durante constrangida, penalizada e rechaçada socialmente. E está aí onde reside toda a diferença. Para “mães de pet” maternidade é escolha. É “amor”. Para mães, maternidade é compulsória. E suas ações na maternagem não são fruto de nenhuma escolha individual que consiga tomar com liberdade. Maternidade é uma questão política e a grande questão que permeia essa polêmica das mães de pet é que isso revela além de uma imprecisão tremenda sobre a realidade do maternar uma grande romantização do que é a maternidade. E nenhuma mãe precisa de mais romantização sobre suas cabeças. A maternidade tem peso sobre todas as mulheres, traz consequências materiais para suas vidas, não tem a ver com sentimento, com amor, mas com ter um filho, uma pessoa, sob sua guarda para cuidados. Quase sempre compulsoriamente.

E socialmente mulheres pagam o preço por serem mães, não há nada de romântico ou de belo nisso. Se você quer saber quem é mãe e quem não é, não pergunte a uma mulher, pergunte a um homem. Ele sabe quem é a mulher que ele vai abandonar, desprezar, julgar, qual mulher ele vai classificar como “sexo casual”. Quer saber quem é mãe? Pergunte ao Estado. Ele sabe bem quem ele considera um peso social. A quem cobrar e culpabilizar. Pergunte ao mercado de trabalho quem é a mãe. Ele sabe quem ele vai contratar, quem vai ser vista como problema. Ser mãe não é um sentimento ou algo que você se auto-define. É algo que é definido quando você tem um filho.

E é importante também ressaltar que, apesar de todas as dificuldades da maternidade, está é uma condição propositalmente ocultada nas narrativas. O que vemos é a exaltação da figura materna como sendo a mais importante função que uma mulher ocupar. É o único posto a que é conferido algum “status” e reconhecimento (ainda que falso) na condição de mulher perante os olhos da sociedade em geral. Então é bem previsível que mulheres inconscientemente disputem esse espaço. A rivalidade feminina está em toda parte.

Dessa forma, a reivindicação das mães perante as tutoras não passa por querer legislar sobre a vida privada dessa mulher nem sobre a maneira como ela chama seus animais de estimação. É sobre abandonar a por um título que confere opressão. É sobre empatia e consciência política. Ela está pedindo reflexão sobre o papel da maternidade. Está pedindo que essas mulheres que não tem filhos OUÇAM as mulheres que tem filhos. Que estão pedindo ajuda. Estão pedindo que elas não engrossem o coro da romantização que tanto prejudica a luta política das mulheres que pautam a problematização da maternidade. Estão pedindo que, como mulheres, possamos avançar nas pautas do feminismo combatendo uma das principais formas de opressão que nos assolam.

Uma mulher, tecnicamente, pode se declarar mãe do que quiser. Animais, vegetais, plânctons. Não importa. Mas entenda que é um privilegio poder escolher se afirmar mãe de alguma coisa que não um ser humano, com suas demandas bem específicas, e listar como motivo para isso “o amor”. É bonito. Só que uma mulher nunca saberá de verdade o que é maternidade até ter um SER HUMANO sob sua tutela. Porque ela só será mãe, e entenderá o que é ser mãe, quando a sociedade colocar seu carimbo na testa dela.

Maternidade não se trata de se sentir mãe. Se trata de ser tratada como mãe. E entenda, isso não tem nada de bom. Ser tratada como mãe é ser humilhada, perder autonomia, ser relegada a segundo plano, ser ignorada. Taí a treta da mãe de pet que não me deixa mentir onde mulheres-mãe estão exaustivamente falando, se explicando, pedindo voz. E continuamente sendo silenciadas. Ignoradas. Pois, repito, ninguém se importa com as mães. Essa discussão incessante, em boa parte alimentada pela competição feminina (socialização não falha) poderia dar outros frutos num ambiente de escuta. Mas somos tachadas de ridículas. Somos acusadas de falta de empatia. Chega a ser irônico.

Você, “mãe de pet”, não quer ser TRATADA como mãe. Você quer se SENTIR mãe porque foi ensinada que isso é muito importante, e sublime e bonito. Estamos todas nós, mulheres, muito fudidas nesta história. E enquanto a maternidade não for vista como pauta política do feminismo vamos chafurdar nessa lama. E continuar a sermos massacradas.

Devo ter filhos?

Muitas mulheres me perguntam: “devo ter filhos”, “qual a parte boa de ser mãe?”. E eu confesso que são das perguntas mais difíceis que me surgem porque a maternidade enquanto função social em um mundo onde mulheres tem sua capacidade reprodutiva completamente explorada é um massacre. Mas eu estaria mentindo se dissesse que não há nada bom ou não há felicidade possível, levando em conta a experiência individual e subjetiva das mulheres.

Para aquelas que conseguiram estar em um ponto de suas vidas que avaliam conscientemente a opção de ter filhos, o que fazer? Não sei.

Mas sei que há fatores importantes sobre a decisão de ter filhos que precisam ser considerados:

1. É preciso pelo menos duas pessoas:

Primeiro, é preciso pelo menos duas pessoas desejosas e empenhadas nessa missão porque sozinha as chances de se afogar nessa empreitada é muita alta. “Nossa, eu não posso então tentar uma maternidade solo?”. Pode, claro, mas na prática isso não se realiza, você necessariamente precisará de alguma rede de apoio para conseguir caminhar, a matemática de criar um filho completamente sozinha não fecha. Então ter alguém ali dividindo a carga de criação da criança, seja o pai, um companheiro ou companheira, uma pessoa amiga, não importa. Sozinha é da ordem do impossível para a saúde mental.

A maternidade é um mar bravio em que é preciso que se entenda bem onde está entrando e como navegar sem enlouquecer e naufragar. E preciso entender como manejar o barco e é preciso uma tripulação. Sempre.

2. É preciso entender quais as suas motivações:

Há inúmeras justificativas que damos a nós mesmas sobre isso que são um sintoma claro da nossa socialização para maternagem e da romantização da maternidade. E nem é tão difícil identificar porque que sempre são coisas falam de necessidades que não elaboramos por conta própria, mas que são clichês sociais que foram repetidos à exaustão até que nós adotássemos: como “formar família”, “atender ao chamado do relógio biológico”, “cumprir o destino de toda mulher”. Ou como solução para coisas que falam de nossas carências e questões que estamos vivendo e que creditamos a um filho a missão de resolver, como: “unir mais o casal”, “dar um irmão pra fazer companhia ao primeiro filho”, “ter alguém pra amar”, “completar um vazio”, etc. E fora a pior motivação de todas, e infelizmente a mais comum: ter um filho porque todos estão insistindo e você quer que parem de encher o seu saco.

E o problema de iniciarmos essa empreitada com motivações equivocadas ou expectativas pouco elaboradas é que é muito fácil se perder no caminho da criação dos filhos e odiar tudo aquilo. Inclusive o filho. Criar uma criança pode até atender sim a expectativas e sonhos pessoais que tenhamos mas isso será pura casualidade. Não sabemos o resultado dessa experiência, não temos controle. Criar filhos não é nunca sobre nós, nossos sonhos, desejos, sentimentos ou carências afetivas e sim sobre preparar da melhor maneira possível um ser humano para o mundo. Viver isso. Fazer parte disso. Sabendo inclusive que em muitas partes da jornada teremos um grau de dor muitas vezes mais agudo que de prazer. É algo que nos propomos a fazer pelo outro. Um outro que não se conhece ainda, que pode ou não ser como se espera, que aliás tem muita chance de não ser nem um pouco como você espera. Que não nos deve nada.

Nós navegamos nesse mar da maternidade pelo prazer de navegar, de guiar o barco, sentir a ondas, o vento no rosto. A beleza do nascer e do pôr do sol. É pelo céu estrelado. Porque não há um mapa indicando qual terra está à vista. Qualquer bússola não nos serve para muito. Não há uma terra para aportar, um filho não é um objetivo, ele não tem que nos dar nada. Crianças são pessoas.

Qualquer coisa fora disso pode criar uma relação de dívida para com um indivíduo que nem nasceu ainda e na real poderia nem nascer porque o mundo está aí lotado de gente, não é mesmo? Se isso está acontecendo dentro de um movimento consciente e minimamente planejado, é importante entender que a criança realmente não tem que atender a expectativas de ninguém porque efetivamente é o popular “ela não pediu para nascer”.

Ter filhos é sobre empregar seu tempo e sua energia para criar crianças pro mundo da melhor maneira possível, sem recompensas no horizonte. É um trabalho sim, que exige demais, exige apoio, exige ajuda, exige dedicação e que vai exigir entrega também. De TODOS os envolvidos, repito. E o ganho é fazer parte desse processo.

3. É preciso entender o que é a maternidade e o que é ser mãe de fato, para a sociedade patriarcal:

A despeito do que nós entendemos e como nos pensamos enquanto mães, da porta para fora a conversa muda. A sociedade tem muito bem desenhado o papel da mulher-mãe, o que ela pode e não pode fazer, o que ela deve realizar, como ela será cobrada, que lugares ela pode estar, como ela pode se comportar e principalmente, que punições irá receber. Há limitações objetivas que a maternidade impõe às mulheres, e é preciso conhecê-las.

Então quando você pensar em ser “mãe”, é importante não se concentrar apenas naquilo que você pensa que uma mãe deve ser, mas sobre como você passará a ser vista, pensada e tratada socialmente. Entender que, como mulher, você será sempre responsabilizada. Que a presença inicial de um pai (mesmo consciente, ativo, engajado) não garante nada pro futuro porque homens são socializados de uma maneira completamente diferente para a paternidade e que se eles quiserem realmente fugir à responsabilidade… irão. É importante saber que não há um sistema a seu favor, não há um Estado a seu favor, não há uma sociedade a seu favor. É importante saber que existe uma romantização tremenda em cima da maternidade, que mulheres mentem sobre suas realidades porque sentem-se coagidas, perdidas e um tanto enganadas. E que é especialmente confuso porque muitas vezes elas amam e odeiam na mesma medida o que estão fazendo. Você será vigiada, culpabilizada e monitorada e terá um outro tipo de vida pela frente talvez bastante diferente do atual, onde por um tempo muita coisa deixa de ser sobre você e passa a ser sobre esse filho.

E portanto, para mulheres, decidir-se por ter filhos requer sim é algum planejamento. Que não passa só por tomar vitaminas, mas uma organização de vida, emocional, profissional, financeiro, de rede de apoio. Tentar entender as diversas demandas decorrentes da criação de crianças e salvaguardar-se para atender sem tantos sacrifícios.

É preciso ressaltar também que, enquanto experiência objetiva, as possibilidades de uma vivência mais plena e tranquila da da maternidade são bem mais aumentadas com o acesso a determinados privilégios de raça e classe que são capazes de atenuar muitos dos desafios impostos a essa tarefa. Por exemplo, ter segurança alimentar, segurança de moradia, uma rede de apoio consistente, fazem toda diferença (e isso quase sempre está relacionado a ter dinheiro). Isso é um fato dado, mães de filhos brancos de classe média não precisam se preocupar, por exemplo, em ensinar aos seus filhos como entrar em lojas sem serem seguidos pelo segurança.

A parte boa em ser mãe

Do ponto de vista pessoal, a maternidade te oportuniza uma profunda mudança interna e a possibilidade de uma visão bastante integrada e consciente da sociedade. São mudanças profundas que podem nos tornar uma pessoa completamente diferente, muitas vezes num aspecto positivo. E maternidade não santifica, não reforma caráter, não cura dores da alma, mas te desafia e te coloca em lugares que você não esteve, e te exige coisas que você nem sabia que tinha pra dar. E isto pode ser transformador sim. Quase sempre é.

(Pessoalmente, eu aprendi tanto nesses anos de maternidade, com uma criança, quanto em trinta e tantos anos anteriores. Aprendi sobre mim, sobre o outro, sobre o mundo. Eu não estaria aqui hoje, escrevendo para vocês se não fosse essa experiência.)

Há também a possibilidade de acompanhar o crescimento de uma pessoa e acredite isso é uma das experiências mais lindas que se pode ter. Ver o seu desenvolvimento, ensinar coisas, mostrar o mundo. Compartilhar as primeiras descobertas de uma criança conhecendo o mundo nos dá a oportunidade de tomar contato com sentimentos muito belos e apaziguadores, como a ternura e a esperança.

Há a responsabilidade de oferecer instrução, valores e explicar o mundo para um pessoa que irá crescer e tomar seu lugar nessa selva que é a vida. Nós mulheres somos educadas para sermos as capatazes do patriarcado, não me canso em dizer. E observar atentamente os valores que passamos para a frente pode ser revolucionário.

E há o amor. Que não posso afirmar que seja universal, que sei eu do coração de todas as mulheres? O amor não é uma coisa automática, que surge só porque se tornou mãe, mas sim uma construção fortalecida pelo vínculo que se estabelece no cuidado, no convívio, na responsabilização pelo outro. Mas é um fato, uma vez lá, é um sentimento colossal. Tão intenso que chega a doer. Mães não estão loucas, ou inventando, ou romantizando quando falam sobre isso, e vocês podem atribuir ao que quiser, a hormônios, a socialização, no fim não importa tanto.

E sim, é muito difícil separar o que é maternidade compulsória e romantização da maternidade do legítimo desejo de viver essa experiência. É muito difícil dizer se a maternagem, individualmente falando, e a despeito de todas as variáveis que uma mulher tenha a sua disposição (favoráveis e desfavoráveis) vai ser plena e feliz ou não. Social e politicamente falando, a maternidade é um grande problema para mulher. Mas fato é que, individualmente, é uma experiência que pode sim oferecer muita alegria e plenitude. E realização. Não há como tirar isso de tantas mulheres que chegaram nesse lugar. Negar essa vivência legítima.

E sim, em uma sociedade de maternidade compulsória, falar sobre motivos “válidos” para ter filhos pode parecer um tanto “elitista” no sentido de que hoje apenas pessoas muito privilegiadas conseguem dar-se ao luxo de cercar-se de tantas variáveis para poder vivenciar uma parentalidade mais plena. E é justamente por isso que precisamos politizar e discutir esse tema. Porque mulheres não deveriam ser fábricas de produzir gente. Mulheres são pessoas e não ter filhos deveria ser o padrão, e não o contrário. Não deveríamos ser tratadas como máquinas de produzir pessoas, assim, todas aquelas que finalmente decidissem pela tarefa de gestar e criar crianças o fariam pelo melhores motivos possíveis para si e para o outro e receberiam todo o reconhecimento, apoio e valorização pela realização da árdua tarefa de produzir cidadãos para manter a sociedade funcionando.

Então, para as mulheres que estão navegando nesse mar da maternidade, ou querem navegar, eu desejo que todas possam curtir plenamente a parte boa de ser mãe. E que a luta política de tantas pessoas em torno das pautas maternas possa permitir que todas as mulheres possam escolher de fato caso queiram ter a experiência da maternidade e ter apoio para isso. Para uma vivência mais feliz e plena. Tendo mais tempo com seus filhos. Tendo apoio da família. Tendo a correta divisão de responsabilidades sobre tudo com o pai da criança. Tendo políticas de Estado. Tendo apoio dos sistemas de saúde e dos sistemas educacionais. Tendo seus filhos respeitados no espaço público. Tendo apoio da comunidade.

E que a parte boa, essa possibilidade de aprender, se transformar, ajudar na educação de um novo ser, vivenciar esse amor intenso e belo, se sobressaia a toda dificuldade inerente. E que possamos chegar em um momento que a maternidade não seja mais uma coisa compulsória que atravessa a vida das mulheres sem elas pensarem a respeito munidas de todas as informações possíveis. 

A maternidade e a dança da solidão

Exercer a maternidade é dançar uma estranha dança da solidão. Como é possível sentir tão só em um momento da vida que é quase que literalmente todo preenchido pela presença dos filhos é possível?

Conversando com outras mulheres, é possível notar como o maternar pode ser desalentador e opressivo. Quase nenhuma mulher, atualmente, está preparada de verdade para o que significa a maternidade. Não há literatura, filmes, novelas, séries, publicidade, escola, família… nada que de fato faça entender o que a espera, em termos físicos, emocionais, sociais, psicológicos. Antes, a maternidade é apresentada como um privilégio, como bênção, como um dom divino que nos arrebata a um patamar sagrado. A ponto de mulheres desejarem engravidar para alcançar um novo status na sua comunidade. E esse “altar” a que somos elevadas nos condena a uma vida de solidão, desamparo e profundo silenciamento.

De onde vem a solidão materna?

1. O silenciamento das emoções

Quando uma mulher engravida, já há todo um script ditando como ela deve se comportar, pensar, agir e principalmente sentir. Há um manual, um guia invisível de boa conduta que rege o comportamento da futura mãe. Ela é tutelada e perde autonomia. Vira uma “mãezinha”. Gestantes não podem se sentir mal e reclamar da dor física, da confusão emocional, do desconforto, do desequilíbrio psicológico, do medo, e da fragilidade que uma gestação traz, afinal “está carregando um milagre”. A quem uma mulher-mãe consegue dizer “eu não gosto de estar grávida”? ou “eu não estou feliz por ser mãe”? ou simplesmente “estou com medo”?. Que mulher não sente culpa por se sentir assim? Já que é doutrinada por todos os cantos para achar que uma gestação e filhos devem ser a coisa mais importante do universo para ela?

Com quem conversar? Amigos sem filhos se afastam ou simplesmente não compreendem como é o novo mundo daquela mulher e o abismo entre as realidades muitas vezes causa afastamento emocional ressentido. A família, na expectativa de ajudar, pode acabar atropelando a autonomia da mãe e igualmente lhe nega o direito de se sentir infeliz ou confusa ou angustiada com a maternidade.

Com quem uma mãe consegue desabafar sem julgamentos?

2. Ausência do pai

O pai da criança, quando ainda está lá, via de regra, se faz apenas de corpo presente, não assumindo sua parte na responsabilidade dos cuidados com os filhos e a casa. E ainda acaba sendo mais um problema que uma solução, comportando-se como um segundo filho, fazendo cobranças extras para a mulher já sobrecarregada, e sendo incapaz de compartilhar as questões que assombram as mães no cuidado com os filhos.

Quantos pais você conhece que estão ativos em grupos de cuidado com crianças buscando ou compartilhando informações? Quantos grupos de pais-cuidadores existem discutindo criação e cuidado com os filhos? Quantos pais aparecem apresentando dúvidas em grupos de pediatria? Quantos em grupos de alimentação, carregamento de bebês, sono, educação, escola? Quem, no fim das contas, carrega sozinha o peso de aprender como cuidar de uma criança? E acertar sempre? Quantas mães conseguem compartilhar com seus companheiros todas as dúvidas, questões, problemas, medos, angústias, e decisões inerentes a criação e cuidado das crianças? Quantas mulheres conseguem compartilhar com seus companheiros suas angústias em relação a transformação que ocorre na sua vida com a maternidade, na sua individualidade, e serem aceitas e compreendidas nas suas dificuldades?

3. A exclusão social das mães

Mulheres-mães vivem uma quarentena sem fim onde tudo o que existe no seu mundo obrigatoriamente tem que ter a ver com o seu filho. São expulsas do espaço público. Constrangidas por amamentar em espaços abertos. Suas crias são abertamente alvo de ódio por conta do comportamento infantil. Essa é uma sociedade intolerante com crianças. Não há acolhimento para as mães e suas demandas. Não há acolhimento para as pautas maternas. Crianças e suas mães são vistas como um problema. Uma carga. Um peso vulnerável. Mulheres são coagidas a manter seus filhos sempre “sob controle”, longe de espaços onde podem ser um “incômodo”. São integralmente culpadas por qualquer comportamento desviante da norma que seus filhos possam apresentar. Poucos são os olhares solidários. Fique longe, é o que a sociedade sutilmente diz.

4. A sobrecarga de responsabilidades

De repente a mãe se torna praticamente a unica responsável pela gestação, nascimento, sobrevivência e socialização de outro ser humano. Para a sociedade, o pai é uma figura absolutamente acessória e secundária. E não é possível falar em escolha da mulher quando não existe nenhum contraceptivo que realmente a proteja. Não quando meninas ganham como primeiro brinquedo uma boneca e são massacradas pela ética do cuidar como principal aprendizado. Não quando é vendido para a mulher que a felicidade e completude se realiza através da maternidade. Homens não conhecem esse peso. Não são educados para paternidade. Meninos ganham carros, aviões e promessas de uma vida de aventuras e é isso que saem em busca por toda sua vida.

Mulheres estão sobrecarregadas. Estão, na prática, sozinhas na tarefa de criar os filhos. Todos os dedos apontados. Com quem ela pode contar de fato? Não há políticas de Estado que apoiem efetivamente uma boa maternagem. Não há uma cultura de compartilhar socialmente a responsabilidade pela criação das crianças. Sequer há uma cultura que constranja os homens a assumirem seus próprios filhos. Por mais que possam existir as condições satisfatórias para algumas mulheres, essas são a exceção na sociedade. A regra é a maternidade ser uma empreitada feminina, sempre.

A dança da solidão

Nós, mulheres, somos forjadas no aço da solidão e do desamparo. Não somos socializadas para sermos irmãs, companheiras ou amigas e sim mães, cuidadoras, responsáveis, carregadoras do peso do mundo. Não precisamos ir muito longe, inclusive, pra entender isso, está nas novelas, nos filmes, na publicidade, na literatura. Quantas belas histórias você conhece sobre amizade entre mulheres? Sobre amor entre mulheres? Sobre companheirismo entre irmãs? E quantas histórias lhe foram contadas sobre o amor entre uma mulher e um homem, e sobre como a vida finalmente encontra um sentido, principalmente quando nascem os filhos?

E nos são atiradas todo dia as migalhas da expectativa da felicidade através do amor. Senão o amor do marido, o amor dos filhos. Maternidade não é somente sobre amor. É sobre cuidado. E cuidar de outro ser de maneira tão intensa é exaustivo. Não é possível de ser feito sozinho. Mulheres estão sendo atiradas nesta empreitada por conta própria e naufragando num mar de solidão. Silenciadas, incompreendidas, isoladas, excluídas e obrigadas a ostentar eternamente um ar de felicidade. Porque são mães.

Dizem então que “ser mãe é padecer no paraíso”. Perceba a crueldade dessa frase. Você vai chegar no paraíso. E vai padecer. Não há nada mais solitário que isso.

Do profundo desamparo da maternidade

Basta que uma mulher torne-se mãe para descobrir que não há com quem contar e conhecer o profundo desamparo da maternidade. Nenhuma mulher é preparada para as implicações da maternidade. E nenhuma mulher consegue cuidar de uma criança sozinha, sem nenhum tipo de apoio. Se tornar mãe é, em instância primeira, perder a autonomia. Um outro ser humano passa a depender de você num nível de simbiose tal que te impede de qualquer outro tipo de performance plena. E é quando se perde esta autonomia e percebe-se a necessidade de uma rede de amparo, que nos damos conta que ela não existe. Não existe.

O retrato de uma maternidade sem amparo

Com o que de fato mulheres podem contar ao terem filhos? A reposta é: nada.

  • Não podemos contar com nenhum método contraceptivo eficiente, pois nenhum é 100% seguro (tampouco podemos contar com a parceria dos homens que dificilmente se preocupam em apoiar um método de dupla barreira: camisinha + outro método).
  • Não podemos contar com o apoio do Estado para garantir a interrupção de uma gravidez que é compulsória, com a mulher tendo empurrada para si a responsabilidade de controlar a contracepção, sendo culpabilizada caso ocorra uma gravidez indesejada.
  • Não podemos confiar no sistema obstétrico numa realidade em que a rede pública te oferece violência obstétrica e a rede privada te vende cesárea eletiva.
  • Não podemos contar com o apoio, companheirismo e fidelidade dos companheiros durante a gestação e o puerpério, que via de regra exigem que a mulher continue performando plenamente o papel de “esposa”, inclusive gerando uma pressão absurda em relação à estética e libido.
  • Não podemos contar com leis trabalhistas que garantam que você consiga suprir plenamente o período de seis meses da amamentação exclusiva que tanto é cobrada.
  • Não podemos contar com quem deixar os filhos para trabalhar porque a rede de creches públicas é numericamente insuficiente e a rede privada é cara demais.
  • Não podemos contar com apoio no mercado de trabalho, empregabilidade, plano de carreira, salários justos, flexibilidade de horários, porque mulheres-mães são vistas como um problema.
  • Não podemos contar com um sistema de saúde pediátrico que esteja disponível, atualizado e oferecendo as melhores informações para as mulheres-mães e seus filhos.
  • Não podemos contar com uma indústria que ofereça alimentos saudáveis e confiáveis a preços acessíveis.
  • Não podemos contar com o apoio dos companheiros para dividir o cuidado doméstico e com os filhos.
  • Não podemos contar com acessibilidade e políticas de inclusão para filhos neuroatípicos e com deficiência.
  • Não podemos contar com lugares e pessoas que sejam acessíveis e amigáveis com crianças e suas especifidades características da infância.
  • Não devemos contar com o suporte dos filhos, quando ficarmos velhas. E tudo ficar difícil demais. Porque preferimos não dar trabalho.

A felicidade não é a regra

E entenda, isso não é sobre você. Individualmente. Não é sobre você que nunca teve uma gravidez indesejada nunca ficou desesperada sem saber o que fazer. Ou seu parto humanizado. Ou sobre seu marido bacanão, que ainda está aí, assumiu os próprios filhos e ainda troca a fralda deles. Ou sobre seu chefe legal que te libera mais cedo para você pegar seus filhos naquela creche Montessori. Todas essas coisas existem sim, mas infelizmente. estão longe de ser a regra. Esse texto é sobre o desamparo materno. Sobre não haver nenhum sistema estrutural de apoio a uma mulher-mãe, para que ela possa criar seus filhos mantendo sua sanidade mental. Mantendo algum nível de felicidade.

As mães estão infelizes. Mães se sentem inseguras o tempo inteiro. Porque não podem, simplesmente não podem, contar com 100% de certeza com nenhum tipo de apoio em nenhuma área. Não temos segurança mínima se vamos conseguir uma boa gestação, um bom parto, se o companheiro será realmente um bom companheiro, se vamos conseguir sustentar os filhos, se vamos conseguir bons médicos, se a informação que recebemos é segura, se vamos ter apoio para amamentar, se o trabalho vai nos aceitar, ou se vamos conseguir trabalho, onde vamos deixar os filhos e se ele estará seguro, se conseguiremos bons médicos, acesso a remédios, acesso a boa informação, acesso a boa alimentação, acesso a opções de lazer. Não há espaço de segurança para crianças, não há leis que regulem e protejam e garantam o exercício da maternagem sem a exploração da mulher. Sem a imposição da disponibilidade feminina para cuidar e sua conformidade em não ser cuidada.

É muito cruel sermos educadas para cuidar de tudo, e nunca para “dar trabalho”. Nós mulheres nunca “damos trabalho”, apenas tomamos todo o trabalho do mundo pra executarmos. E ninguém está segurando essa onda. Mulheres mentem dizendo que está tudo bem e que dão conta. Mentem para os outros. Mentem para si mesmas. Porque fomos ensinadas que é pra isso que servimos. Porque não tem nenhuma opção mesmo. É muito mais profundo que romantização da maternidade.

As mulheres-mães estão doentes, depressivas, estressadas, solitárias. Suportando casamentos fracassados e relacionamentos abusivos por falta de suporte para sustentarem seus filhos. As mulheres estão em sub-empregos, se prostituindo para alimentar suas crias. Estão interrompendo seus estudos. Estão o tempo inteiro tendo que escolher entre si mesmas e os filhos e sendo julgadas por isso. Contando com a sorte para cuidarem das crias porque não há políticas públicas sérias e eficazes para apoiar a maternagem. Dizem que as mães são sagradas, crianças são anjos. Isso é mentira. Ninguém se importa de verdade com mulheres e seus filhos. Não há nenhuma rede de apoio estrutural que apoie mães. Mulheres-mães e seus filhos são vítimas sistemáticas de todo tipo de violência. Ninguém se importa.

A única coisa que uma mãe pode contar, de fato, é com a sorte.