Sobre o pai que não estava lá

Sempre que chega o dia dos pais eu quero falar com todos os filhos que cresceram com essa sensação de o que o pai não estava lá. Que foram diretamente atingidos por essa organização familiar estranha onde o pai é uma figura distante, por vezes misteriosa, muitas vezes agressiva. Aquele homem que fala pouco, que não chora, que tem hábitos rígidos e ar taciturno. Que consegue o silêncio familiar apenas com um olhar.

Quantas famílias não foram e são governadas por essa figura clássica de homem. O PAI. Que chega tarde e cansado do trabalho, que a mãe coloca a comida no prato, que a casa precisa estar limpa, que o ruído precisa cessar porque ele quer descansar enquanto vê TV.

O PAI. Que grita com a mulher — sua mãe — mas não deixa faltar nada em casa. E que sua mãe sente-se agradecida porque “ele é honesto”, “ele é bom pra mim”, “pelo menos ele não bate”, “pelo menos ele não bebe”, “pelo menos ele não tem outra família”. Ou nada disso. Às vezes é uma gratidão surda, sem motivo, em meio a tantas violências, que só parecem menores porque o lar de origem da sua mãe era pior.

O pai. Tão diferente da figura que você vê nos filmes e nas novelas. Um homem que pouco sorri, que você não sabe bem o que sente, que está presente mas não estava lá.

Porque sua mãe estava lá. Na porta da escola, cerzindo suas roupas, escondendo seus pequenos malfeitos, te protegendo de pequenas e grandes surras. Descabelada, vendo novela, fazendo bolos. Sua mãe estava lá, lavando, passando, cozinhando, criando filhos, todos os dias, tão iguais. E muitas vezes ainda trabalhando fora, chegando cansada, chegando antes, fazendo tudo. Sua mãe estava lá, sem saber se era feliz, sem saber se era amada, sem saber se era prazer, sem saber se era vista, se era gente. Cuidando de tudo, de você dos seus irmãos.

E seu pai também estava lá. Embora você pouco o visse, embora você pouco se lembre, porque pensando bem você pouco o conhece. Talvez um dia descubra histórias sobre ele que vão te surpreender. Revirando albuns da época em que existiam retratos. Talvez descubra coisas que se orgulhe e tantas outras que a envergonhe ou amedronte.

E suas lembranças serão boas, ainda que difusas, afinal, ele é seu pai não é mesmo? Um pai fazendo o que bons pais devem fazer. Ele nunca deixou você passar fome afinal, nem te faltou um teto. Não importa se você não tem certeza se é só isso que pais deveriam fazer. Não importa que ele saiba muito pouco sobre você. Que a relação que vocês têm é muito mais uma fantasia que você criou para suprir uma falta que você nem sabia que tinha. E que quando você lembra de algo semelhante a carinho, afeto, presença e até sorriso, seja tudo sobre sua mãe. Porque era ela que realmente estava lá.

Eu quero dizer a esses filhos que a socialização para masculinidade transformou esses meninos em homens que não conseguem dar-se por inteiro, que não conseguem mostrar-se por completo, que é impossível pensar num envolvimento amoroso, presente, honesto, íntegro, com o tipo que homem que homens aprendem a ser. E isso não é para que você “perdoe” o seu pai, é só pra dizer que essa presença ausente é a regra. Que a família margarina que vemos nas novelas e filmes tem um bocado de ilusão. Que somos alijados de estabelecer conexão porque se aos homens for permitido se abrirem, se mostrarem e se conectarem ele não darão conta de cumprir sua tarefa de explorar e subjugar mulheres. Que esse é o preço que todos pagamos. Essa presença ausente, extirpada de alma, de brilho nos olhos.

E está tudo bem se você sente que quem estava lá por você sempre foi a sua mãe. Você não tem que sentir gratidão por seu pai apenas porque ele ficou e tudo bem se você já sentiu que sua vida teria sido melhor se ele tivesse ido. Saiba que isso é muito comum, é sistemático, tudo bem conversarmos sobre isso, isso é um efeito colateral de uma coisa chamada patriarcado.

Onde há dominação não há como repousar o amor.

“Paternidade consciente” é a que luta contra o patriarcado

Há por aí todo um discurso de renovação da paternidade, vindo de um movimento capitaneado por homens interessados em serem pais “melhores” para os seus filhos. É a “paternidade ativa”, “paternidade consciente”, “paternidade participativa”. E esse é um discurso muito válido e legítimo, mas vale aqui pontuar algumas coisas importantes para que isso possa ser aproveitado de forma realmente revolucionária nas relações parentais, reverberando em mudanças reais na estrutura familiar e consequentemente na educação das crianças, na vida das mulheres e na sociedade. “Paternidade consciente” é a que luta contra o patriarcado.

É muito óbvio que há um lacuna importantíssima de afetividade deixada pelos homens das gerações anteriores na criação dos filhos, muito em virtude da socialização masculina, que retira os homens desse lugar de contato com a sensibilidade e também da função “tradicional” do pai na relação familiar, onde sempre bastou que ele fosse o provedor. Ser “bom pai” era sinônimo de não deixar que a família passasse fome, sendo o homem então completamente desobrigado de estabelecer vínculos amorosos com as crianças, que só eram importantes à medida que simbolizavam o resultado da união com a mãe.

Então, com as recentes discussões sobre “masculinidade”, a via que os homens conseguem alcançar e reivindicar nesse processo é o direito de “sensibilizar-se”, de poderem ser emocionais, de chorar, abraçar, usar um belo cardigã rosa sem que sua virilidade seja questionada. E a “nova paternidade” quase sempre passa por buscar ser acessível, sensível às demandas emocionais da criança e presente. E isso não é ruim em absoluto, muito pelo contrário, é valiosíssimo que homens conscientizem-se da importância de estabelecer vínculos afetivos concretos com seus filhos, mas é valiosíssimo também que se discuta que só isso não é o suficiente e que na verdade isso é só a ponta do iceberg. Falar em “paternidade consciente” significa prioritariamente ter consciência sobre o processo e as demandas impostas pelo patriarcado na organização da nossa sociedade, e atuar ativamente pela sua desconstrução, já que sem isso é impossível para os homens exercer um papel realmente saudável e feliz na configuração parental.

O sistema patriarcal, sob qual todos nós nascemos e somos socializados nos coloca uma relação onde mulheres e crianças necessariamente são subordinadas ao homem, que exerce uma figura de autoridade e controle sobre os membros da família. Onde a mãe tem funções muito específicas, todas ligadas ao trabalho doméstico e reprodutivo (ainda que também seja uma trabalhadora no mercado), e o pai tem a função muito definida de sustentar e “proteger” o lar, que é “seu”, conferindo-lhe inclusive a prerrogativa do uso da força e da agressividade para manter sua influência e domínio. Então qualquer ação que pretenda-se realmente transformadora em relação a paternidade é aquela que propõe-se a romper completamente com essa lógica.

Portanto, não adianta nada você ser um pai bacana, carinhoso, que chega do trabalho e vai brincar com o filhão no sofá, ou é completamente disponível para seus filhos no final de semana para muita “presença” e diversão, se você é completamente alheio a todo o trabalho invisível de manutenção da vida dessa criança. Trabalho esse que é sua mulher (ou alguma mulher, certamente) que está executando. Se você, de alguma forma, permanece explorando a mãe dos seus filhos para mantê-lo lindos, limpos e cheirosos, para você só chegar e brilhar como o paizão legal, desculpa, mas você apenas colocou glitter no mesmo sistema de bosta de sempre, e está oferecendo o mesmo modelo habitual de homem misógino e machista, na versão velada premium, agora com muitos abraços ao invés de gritos.

É preciso presença de verdade. Isso significa envolver-se realmente em todas etapas de desenvolvimento das crianças. E convenhamos, isso não acontece em absoluto. Se você entrar hoje em quaisquer fóruns, cursos, palestras, que falem sobre gestação, parto, amamentação, puerpério, pediatria, alimentação, educação, vestuário, escola … quaisquer temas que sejam relacionados à criação de filhos, muito certamente 95% do público será feminino. Se for nas reuniões de escola, consultas médicas, apresentações escolares, parques, praças, supermercados, lojas de roupa, verá que são mulheres em toda parte cuidando das demandas das crianças. Escrevendo e consumindo informação o tempo inteiro, enquanto homens limitam-se a ser orientados e executar instruções, sentindo-se muito importantes por bancarem o pai esforçado que sabe trocar fralda. Mas onde eles estão se informando sobre tudo que é necessário sobre crianças para dividir essa carga mental com a mãe dos seus filhos? Estando ou não com ela?

Uma boa paternidade não pode limitar-se a ter muito orgulho de si por finalmente dizer “eu te amo” para os filhos. Por ter assumido. Por pagar pensão. Por não espancar. Por dar banho e colocar pra dormir. Eu sei que para homens parece muita coisa, mas por favor, vejam tudo que mulheres fazem, eu sei que vocês podem ser menos medíocres que isso.

Eu quero ver um dia, páginas falando sobre a “paternidade real” de homens reclamando que não têm mais tempo para tomar banho, que não vão ao banheiro sozinhos porque os filhos não os deixam em paz , homens exaustos reclamando de restrição de sono e sendo inquiridos nas entrevistas de RH sobre quem fica com os filhos enquanto trabalham. Quero ver homens remarcando compromissos pra levar o filho ao médico, ir na reunião da escola ou tendo que faltar porque a criança amanheceu com diarreia. Homens trocando informações sobre fralda de pano ou marca de descartáveis mais baratas. Trocando receitas pra tirar mancha de molho do sofá e riscado de canetinha da cortina. Pesquisando sobre aquela mancha esquisita que apareceu na sola do pé da criança. No grupo da escola ajudando a organizar a festinha de fim de ano.

E não um ou dois indivíduos, os alecrins dourados, mas todos os pais. Quero ver a guerra infinita acontecendo nos grupos de criação parental, com homens e mulheres, todos discutindo se devem ou não dar chupeta para as crianças ou se a Peppa Pig é uma má influência. Conversando com os amigos o tempo inteiro sobre as peripécias das crianças. Porque é isso o que acontece com quem realmente está envolvido, cuidando completamente dos seus filhos, de todas as etapas, ainda que dividindo as tarefas. É difícil, cansativo, chato, muitas vezes enlouquecedor, não é “divertido”. Se você se acha um “pai participativo” e não está exausto meu amigo, tem alguma coisa errada porque com certeza alguém está, e deve ser sua companheira ou qualquer outra mulher sendo explorada no caminho.

Para renovar a paternidade é preciso reordenar toda a lógica de organização doméstica com homens assumindo sua parte no trabalho. Não importa se estão empregados ou não. Assumir que ter um emprego é cansativo o suficiente para precisar não fazer mais nada é também admitir que não entende o quanto cuidar de uma casa custa, tanto em termos financeiros quanto laborais. É também admitir que acredita que sua companheira te deve alguma coisa, paga em casa limpa, comida pronta e roupa lavada, em troca do sustento que você oferece. E isso é suco de patriarcado. Um péssimo modelo parental, que mantém a noção de hierarquia de homens sobre mulheres.

E finalmente, para construir essa presença parental realmente transformadora é preciso comprometer-se com a construção de um mundo mais decente que esse. Isso significa não só romper com os privilégios sobre as mulheres por ter nascido homem, como envolver-se ativamente no desmantelamento desse sistema hierárquico, repudiando, constrangendo e exigindo medidas contra abandono parental, violência doméstica, pedofilia, estupro e tudo que envolve a exploração sexual da mulher. Quero ver esses pais defendendo espaços de livre circulação para crianças, creches gratuitas, de qualidade, em quantidade. Homens reivindicando as pautas de humanização do parto defendendo um nascimento digno para seus filhos e o fim da violência obstétrica para suas companheiras.

A “nova paternidade” precisa caminhar além e mais conscientemente rumo a uma sociedade livre de toda exploração, seja de gênero, raça ou classe. Explorações essas que homens invariavelmente colhem vantagens de alguma espécie. “Amor” é muito importante, que bom que homens estão cientes da necessidade de despertar pra isso. Mas agora é preciso mergulhar no cuidado. Até porque dizem por aí que quem ama, cuida. Não é mesmo? Então comecem por aí. Amem, responsabilizem-se e cuidem.

O que é masculinidade?

Não se nasce homem, torna-se. E nesse fazer, aquele menino, um ser dotado de inúmeras potencialidades, é podado, transformado. O que é masculinidade, afinal?

E o que consta nos manuais da “Escola Patriarcal de Formação de Homens”? Regras que ditam como ele deve ser (ou demonstrar ser, a qualquer custo), comportar-se, sentir. Instruções tão detalhadas e que são passadas tão cedo e tão sistematicamente que em pouco tempo o comportamento torna-se um padrão a ponto de chegarmos a achar que “meninos são assim”. A ponto de acreditarmos que existe um “energia masculina” ou uma “energia feminina”.

Forte, rápido, agressivo, implacável, corajoso, heróico, destemido, objetivo, resolvedor, esperto, ativo, conquistador, sexual, extrovertido, dominante, controlador. Meninos aprendem desde cedo que o homem manda e os outros obedecem. Que o homem produz, ou faz produzir. Que ele tem a prerrogativa de usar o grito, a intimidação, a imposição, a manipulação, a chantagem, a força. Tudo para conseguir o que quer. Que ele, a saber de sua condição de raça e classe, pode inclusive dominar outros homens. Conquistar o mundo. Que o corpo das mulheres o pertence e ele pode pegar a hora que ele quiser. E principalmente, meninos aprendem que um homem não é uma mulher. Em hipótese alguma ele pode comportar-se, gostar, sentir coisas que “são de mulher”. Porque ser mulher é ser o elo fraco. E aprendem a odiar e rejeitar tudo que é relacionado ao “feminino”.

E essa informação é muito importante.

Não existe a ideia de masculinidade sem o seu oposto complementar que é a ideia de feminilidade. A fortaleza simbólica do homem só existe em contraste à pretensa fragilidade da mulher e foi a masculinidade que criou a feminilidade para que esse contraponto fosse feito.

Dessa forma, o que é a mulher? Ela representa exatamente tudo aquilo que o homem não é. O outro. O não-homem. É sua via negativa. O homem é o sol, a mulher a lua. O homem é a luz, a mulher a escuridão. Ela é a passividade, a fragilidade, a sensibilidade, a empatia o cuidado, a interioridade, domesticidade, empatia, cuidado, reserva, discrição, o sutil, suave, a organização, a beleza, doçura. A candura, os tons pastéis, o perfumado, sensual, sedutor, lascivo. Que é feito para ser conquistado. Meninas aprendem que mulheres cuidam. Mulheres nutrem. Mulheres criam. Mulheres reproduzem. E principalmente aprendem que devem conquistar um homem provando a ele seu valor, para finalmente terem lugar no mundo. E devem dar filhos ao homem. Cuidar dele, honrá-lo, servi-lo. Para serem protegidas. São aquelas que existem para serem salvas. E que aprendem a admirar e defender tudo que é “masculino”.o “homem masculino” não foge do conflito

Qual a primeira “ofensa” que um menino recebe para aprender a como deve portar-se enquanto homem? “não seja como uma menininha”. Isso está dizendo a ele: não seja fraco senão ou será dominado.

“Mulher” é um xingamento. Perceba aliás como a quase totalidade dos palavrões e ofensas verbais tem a ver com atacar a virilidade masculina com comparações a mulheres. E como a homofobia é um filhote da misoginia pois o homem gay, é tido como o homem “feminino”, e o maior crime que um homem pode cometer é associar-se ao “feminino” de qualquer forma.

“Meninos não choram”, “meninos não fazem drama”, “seja homem!”, “seja forte”, “vai lá e dá uma porrada nele”, “homem não tem medo”, “não seja covarde”, “é fracote agora?”, “vai deixar barato?”, “ai, se fosse homem não deixava falar assim com você”, “vai encarar?”, “ihh, ta de blusa rosa agora, é viadinho”, “toma esse copo azul, que rosa é coisa de menina”, “flores é coisa de menina”, “pôneis são coisas de menina”, “bonecas são coisas de menina”, “brincar de comidinha é coisa de menina”, “cara, pra que tanto tempo se arrumando, virou viado agora?”, “tem que gostar de esporte de macho”, “cinza, cor de macho”, “comida de macho”, “filme de macho, com muito tiro”, “jogo de macho”, “roupa de macho”, “não me abraça não cara, tá me estranhando?”, “tá me olhando assim porquê, tá me estranhando?”, “ihhh olha lá de mão dada com outro cara, é viado”, “olha lá que mulezinha gostosa, bora assoviar”, “pow, você deixou ela te dizer não? volta lá e cata ela”, “dá bebida pra ela”, “conta aí, como foi lá com a mina, comeu? tirou foto?”, “ihh ta arrumando a casa igual mulherzinha agora?”, “larga isso aí que sua mãe que é mulher cuida”, “pede pra tua irmã cuidar ué, ela é mulher”, “vai ser jogador de futebol e pegador de mulher”, “pára de frescura, virou viado agora”, “ihh vai chorar? não é macho não?”, “aguenta porra! vira homem!”, “tem que chegar em cima e sair pegando as mulé”, “mulher gosta é de homem cafajeste”, “mulher boa é mulher com a boca ocupada”, “resolve logo na porrada não é na conversa não”, “tu não manda na tua mulher não?”, “mulher só pensa em dinheiro, são todas aproveitadoras”, “você conta a verdade pra sua mulher? é otário mesmo”, “mete a porrada logo!”, “quem tem que cuidar do filho é a mãe”, “quem tem que cuidar da casa é a mulher?, “tá lavando louça da madame? é mané mesmo”, “olha ali, cresceu rápido, o corpo já tá todo formado”, “sentou no vaso e colocou o pé no chão já aguenta” , “você tem que pensar em você”, “você pode ser o que você quiser”, “não deixa nenhuma mulher atrapalhar você”, “o casamento só vai atrapalhar sua vida”, “se tiver filhos vai ter que pagar pensão”, “você pode ter um futuro brilhante”, “se nada der certo, assalto um banco”, “olha lá, maior safada, aposto que todo mundo já comeu, não vale nada não”, “cara, olha a roupa dela, ta pedindo uma apertada”, “é piranha”, “essa é pra casar”, “já vem com pacote”, “mulher direita não faz isso”, “se me deixar eu mato”.

Assim nasce o homem. Como é que meninos tão rapidamente tornam-se um grupo cuja principal característica é a agressividade, violência e dominação, não só da outra metade da população mas de todo o ecossistema, sempre numa relação predatória? Que faz com que sejam majoritariamente os agressores de mulheres e crianças, os violadores, os abusadores, os atiradores em massa. Que faz com que sejam majoritariamente os que deflagram guerras e conflitos de toda ordem. Que disseminam a tortura, o medo, a destruição.

Homens estão no comando do mundo há 6 mil anos. Um mundo cuja lógica é a dominação através da força, do massacre, da invasão e da guerra.

E não sou eu quem estou dizendo. São as estatísticas. Os fatos históricos. Fatos esses de onde mulheres sequer constam porque foram sistematicamente apagadas. A história é sempre contada pelos conquistadores, lembram?

Não há nada na concepção de masculinidade que não passe pela formação de um ente feito para dominar através da violência e da agressividade. Todos os símbolos, toda a liturgia.

Não há nada na concepção de feminilidade que não passe pela formação de um ente a ser dominado, submetido e subalternizado. Criado com a ideia de que deve ser eleito e conquistado, reproduzir e servir ao seu amo e senhor.

E tudo isso pra dizer que não existe “masculinidade tóxica”. É incoerente e politicamente improdutivo se aferrar a essa ideia. Há movimentos até legítimos de homens que estão finalmente querendo pensar e discutir a formação do seu comportamento então é importante entender que é impossível separar uma masculinidade boa de uma ruim quando tudo que tem a ver com o esse tema faz parte de um terrível sistema de violência e conquista.

A masculinidade não se torna “boa” só porque um homem que continua usufruindo seus privilégios de dominância social, agora também “chora” e usa um pulôver rosa. Porque ser “menos tóxico” não tem a ver com fazer concessões aderindo a estereótipos de gênero do campo do “feminino”. Isso não faz nem cócegas no sistema de hierarquia que a ideia de masculinidade e feminilidade sustentam. E isso em última instância, limpa a consciência de todos os envolvidos, fazendo homens e mulheres pensarem que “algo está sendo feito”, que “homens estão melhorando”, que “homens estão se esforçando”, quando no fim eles só estão afrouxando um pouco o nó da gravata que aperta o próprio pescoço. Agora eles podem ser exploradores de mulheres, que choram.

Para homens que realmente desejam engajar-se na proposta de serem pessoas melhores o único caminho viável é romper com a ideia de masculinidade. E isso implica em abrir mão da sua prerrogativa de dominação e uso sistemático da violência. Implica em repudiar e combater veementemente toda e qualquer ação que passe pela coação, coerção e uso da força como estratégia para transitar no mundo.

Isso significa ir contra os seus e denunciar a exploração de homens para com mulheres. Significa reequilibrar a distribuição de todas as históricas funções da esfera reprodutiva que estão convenientemente no campo do “feminino”, que revertem em benefícios para homens. Significa também repudiar a feminilidade enquanto construção do ideal de mulher perfeita, bela, recatada e do lar. Da mãe e esposa. Criadas para servir ao homem nos seus propósitos.

Isso é sobre desmontar a indústria do sexo que lucra trilhões através da objetificação e comercialização do corpo feminino. Desde maneiras “sutis” como a industria da moda e beleza até seu resultado final na pornografia e prostituição. É repudiar toda e qualquer exploração do corpo feminino. Combater o assédio, o estupro. Proteger as meninas. Combater o casamento infantil. Reconhecer toda a dívida histórica que vocês possuem para com as mulheres, todo o sangue derramado, trabalho usurpado, toda a dor e violência.

Rever a “masculinidade” é tomar consciência do que significa tornar-se homem na nossa sociedade e romper com isso. E combater, ativamente. Junto a todos os outros homens. Quebrar a roda. Isso é assumir compromisso com ser homens melhores. Abrir mão do privilégio que representa pertencer a uma classe que é ensinada a ser servida e atendida o tempo inteiro por outras mulheres.

Quando o feminismo fala em “igualdade”, isso não é sobre direitos civis, ou uma equiparação dom o privilégio masculino de conquistar e invadir. Não queremos ser como os homens são dentro desse sistema. “Igualdade” para mulheres é ter o reconhecimento que somos PESSOAS, que temos integridade, dignidade, inviolabilidade. Assim como cada homem tem, só por ter nascido homem.

Eu olho para o meu filho de 5 anos e me recuso a perdê-lo para esse sistema de moer consciências. Meu filho, meu menino não é assim. Crianças não são assim. Nós a tornamos. Nós usurpamos sua humanidade. Eu acredito em um mundo onde nossos filhos tenham o direito de crescerem livres de todos estes estereótipos que os convocam a dançar essa melodia mortal tocada pelo patriarcado. E como feminista, eu acredito na revolução. E acredito que a revolução está neles, mas também está em nós, mulheres. E sim, pode estar também nos homens.

Há um teórica feminista fantástica chamada Andrea Dworkin que escreveu um discurso essencial chamado “Eu quero uma trégua de 24 horas sem estupro”. E com uma trecho desse discurso que eu quero encerrar esse texto e convocar todos a pensarem.

“Eu vim aqui hoje porque eu não acredito que o estupro é inevitável ou natural. Se eu acreditasse, eu não teria razão para estar aqui. Se eu acreditasse, minha prática política seria diferente dessa. Vocês já se perguntaram por que nós não entramos em um combate armado contra vocês? Não é porque não há uma escassez de facas de cozinhas neste país. É porque nós acreditamos na humanidade de vocês, contra todas as evidências.

Nós não queremos fazer o trabalho de ajudar vocês a acreditarem em sua humanidade. Nós não podemos fazer mais isso. Nós sempre tentamos. E em troca, temos sido pagas com exploração e abusos sistemáticos. Vocês vão ter que fazer isso sozinhos de agora em diante e vocês sabem disso.”


Dica: sugiro demais que toda a família assista ao documentário “The Mask You Lived In”, do Netflix:.

Está tudo bem se você não ama o seu pai

Olha, está tudo bem se você não ama o seu pai. Não sinta culpa por isso. Você não está só nesse sentimento, na verdade boa parte de nós tem sentimentos confusos sobre essa relação, mas se sente coagido demais pela sociedade para ter coragem de confessar.

Nós vivemos no país do abandono paterno, temos mais de 5 milhões de pessoas que sequer o registro do pai possui na certidão de nascimento. Isso fora aqueles que se dignaram a registrar mas não seguraram nem um minuto dessa onda e simplesmente se foram, deixando o filho nos braços de uma mãe perdida, solitária, e um tanto desesperada.

Nós vivemos em um país de índices assustadores de violência doméstica. Uma sociedade machista, autoritária, punitivista. Onde a necessidade de “disciplina” é sinônimo de parentalidade bem sucedida. Onde a “obediência” é obtida através da violência e do medo. Uma cultura que odeia mulheres e crianças e que quer submetê-las a todo custo.

Nós vivemos em uma cultura sexista onde está tudo bem se o pai cumprir o papel de provedor e nada mais. “Colocar comida em casa” é o bastante. Não importa se o pai é ausente, se não participa de verdade da vida dos filhos. Não importa se o pai não é carinhoso ou empático. Se é distante. Se o pai permanece e alimenta, se o pai “não bate”, já é o suficiente para ser um herói.

Nós vivemos em uma cultura onde homens não lidam com os próprios sentimentos e aprendem a lidar com a pressão através da fuga e da violência. E eles fogem. De alguma maneira fogem. Para o álcool, para todo tipo de outras drogas que ofereçam algum alívio temporário. Se retiram da realidade deixando quase sempre uma família ferida, assustada, exaurida, ao redor.

Então está tudo bem se você não ama seu pai como você acha que deveria. Se você não o ama. Está tudo bem inclusive se você não gosta dele em absoluto. Tudo que cerca a paternidade é moldado muito mais para ferir do que para curar. Por mais que haja uma idealização em torno da figura do “pai”, cuidador e protetor, a realidade é que homens são criados em um caldo de masculinidade que torna quase impossível que eles exerçam essa função de cuidado e proteção como se esperaria.

Então, está tudo bem se às vezes você sente uma inveja surda daqueles que tiveram uma figura presente, positiva, carinhosa. Dos amigos que tinham alguém sentado na primeira fila da cadeira, na apresentação do dia dos pais da escola. Dos que tinham um nome no seu registro de nascimento. Que não tinham que responder perguntas sobre onde está o seu pai. Que não sentiram vontade de inventar histórias. Que não enganavam a si mesmos dizendo que aquele pai não estava ali porque não podia e não porque não queria.

Está tudo bem admitir que ainda que você tenha sentimentos confusos, esse pai fez falta. Porque faz falta sim. Não que sua mãe não tenha feito o melhor que pôde, dentro das possibilidades dela. Não que sua mãe tenha sido perfeita. Mas ela não é uma heroína. Ela é apenas uma mulher cansada que teria tido uma vida muito mais simples e muito mais feliz, e você também teria tido uma vida muito mais simples e muito mais feliz, se a pessoa que também te gerou cumprisse a parte dela na responsabilidade que é gerar uma criança para este mundo.

Está tudo bem se você se sente triste, frustrada, desamparada. Se você sempre sonhou em ter um pai. Um pai melhor. Se você acredita que as coisas seriam muito melhores se ele fosse diferente. Exceto que ele não é. E lidar com isso dói sim. Não reprima, nem se envergonhe da sua dor.

Está tudo bem também se você não consegue amar como gostaria o pai que estava lá. Se você sente raiva das atitudes dele. Da sua violência, do seu descaso. Está tudo bem se você se revolta e se rebela e às vezes preferia não ter nascido. Se a presença dele na sua família causa tantos transtornos e tanto sofrimento que você preferia que ele tivesse partido. Que ele tivesse te abandonado ao invés de te criar em meio a tanta brutalidade. Está tudo bem cada vez que você o odiou por vê-lo espancar sua mãe. Por vê-lo espancar você ou aos seus irmãos. Está tudo bem se você o odiou por ele sempre estar bêbado, ou drogado. Por nunca ajudar de fato e ainda sobrecarregar a todos.

Está tudo bem se você tem raiva dele por tê-lo visto explorando domesticamente sua mãe, tratando-a mal, desrespeitando, traindo. Está tudo bem se só hoje você entende que sua mãe esteve trancada em um relacionamento abusivo com esse homem, que se beneficiou a vida inteira enquanto ela definhava. Não há como separar o homem, o marido, o pai. Isso é balela. São sentimentos conflitantes, e nada disso é sobre você.

Está tudo bem se você odeia seu pai porque ele abusou de você. Porque ele te estuprou. Você não tem que perdoá-lo. Você não precisa perdoar seu abusador a não ser que isso vá trazer algum benefício psicológico para você mesma.

Você não precisa amar o seu pai se ele te feriu a vida inteira. Se ele feriu as pessoas que você amava. Se ele não estava lá por você. Amor é um vínculo que se constrói. E construir vínculo de amor com os filhos é responsabilidade dos pais. Nada disso é culpa sua.

Homens nascem e são socializados da pior maneira possível. São socializados para a dominância e para a violência. Mas também são inseridos em um mundo de privilégios. Um mundo em que a paternidade é facultativa para eles. Eles não são punidos se não exercê-la. Portanto eles podem e devem ser responsabilizados pelos seus atos. Eles, diferente da maioria das mulheres, têm escolha e tem autonomia para escolher entre ficar ou partir, cuidar ou não dos filhos, ser ou não um bom pai. Então eles precisam ser cobrados e precisam ser responsabilizados pelas ações e pelas escolhas que fazem.

Você não precisa se punir e se culpar porque a sociedade quer obrigar você a amar um homem, a qualquer custo. Porque a sociedade quer que você respeite o “pai”, quando esse pai nunca esteve lá por você. Culpa é a sensação de que estamos quebrando alguma norma. A sociedade empurra essa norma para nós. É a lei do patriarcado. Homens devem ser venerados acima de tudo, façam o que for. Sem consequências.

Saiba. Esta norma está errada.

Não tenha filhos: como se fosse fácil

Circulou por aí um texto do palestrante sobre parentalidade Marcos Piangers, orientando que pessoas que não tem condições de criar filhos adequadamente não deveriam tê-los. Como se fosse fácil. Embora a premissa seja bastante correta, valem aí algumas ponderações bastante importantes que foram deixadas de fora.

Bom, em primeiro lugar, é importante destacar que a premissa de que pessoas que não querem se comprometer com a criação de crianças não deveriam ter filhos é tão correta quanto falaciosa. Existe pouquíssima conscientização sobre contracepção, planejamento familiar, os impactos de uma gravidez, e, principalmente, na nossa sociedade a responsabilidade pela contracepção sempre recai 99% das vezes no colo da mulher. Homens estão lá a passeio, só querem usar camisinha sob ameaça de uma escopeta, e aproveitam a primeira oportunidade para chantagear a parceira com o papo de que “agora que estamos num relacionamento sério podemos abrir mão da camisinha”.

E aqui uma informação bacana: nenhum método contraceptivo oferece uma margem de 100% de segurança. NEM LAQUEADURA. NEM VASECTOMIA. O ideal é usar métodos combinados, ou seja, se o homem e a mulher não estiverem ativamente envolvidos na ideia de contracepção, ela pode simplesmente falhar.

Outro ponto importante a ser abordado é como é cruel o argumento de “não tenha filhos se não vai ter tempo”. É o tipo de fala que ignora a realidade da esmagadora maioria da população que trabalha 14 horas por dia e dá graças a Deus porque conseguiu comprar carne moída nas compras de supermercado de mês. E aqui, diga-se de passagem, mais uma vez, as mulheres. Porque elas que são as chefes da família tradicional brasileira. É bastante insensível sugerir que uma mulher que realmente não conseguiu controlar o surgimento daquela gravidez e está se esfolando para criar os filhos, quase sempre sozinha, que ela é culpada por toda a dificuldade que está passando e que “não deveria ter tido filhos”.

Eu até entendo que esse argumento do “não tenha filhos” pode ressoar com alguma razoabilidade para um público que tem dinheiro, esclarecimento, acesso a recursos e para quem a existência de filhos obedece a um planejamento de vida e não a uma consequência quase sempre cercada de desespero de uma relação sexual. E ainda assim isso pode ser discutível porque sabemos que mulheres estão sempre desiguais nas relações. Mas o fato é que ainda estamos longe de ser uma sociedade organizada para o melhor bem-estar de uma criança, desde a concepção, e precisamos pensar isso coletivamente, com políticas sérias de planejamento e suporte a parentalidade e não simplesmente colocando tudo na conta da “escolha” das pessoas. Isso simplesmente não funciona.

Dia dos pais sem ter o que comemorar

Este é um dia dos pais sem ter o que comemorar. Queria dizer a todas as mulheres que criam os seus filhos sozinhas que esse dia não é delas e não deve ser celebrado. Não há nada para comemorar. Uma mulher que cria o seu filho sozinha é uma mulher extremamente sobrecarregada que tenta minimizar as lacunas deixadas pela ausência do genitor, e que efetivamente ela não conseguirá cumprir esse papel de “pai”. Porque ela é a mãe. Uma mãe exausta, uma mãe solitária, uma mãe cheia de perguntas sem resposta. A mãe. O pai que deveria estar lá e não está, quase sempre por abandono, descaso, displicência, irresponsabilidade é o que é. Uma ausência. Filhos crescerão com esse peso. Com esse tema para levar para a terapia, caso tenham a oportunidade de fazê-lo.

No país do abandono paterno, do machismo, da paternidade de ocasião, de pais de selfie, este é um dia de denúncia e pouca comemoração. É um dia para que homens reflitam como estão exercendo sua paternidade, para que reflitam sobre que tipo de modelos de paternidade tiveram e se esse modelo foi realmente positivo, carinhoso, contributivo para que eles se tornassem homens melhores, ou apenas reprodutores do que há de mais violento e machista na sociedade.

E não é apenas uma questão de ausência. É de presença ausente. De abster-se do cuidado, do fortalecimento de vínculo, por acreditar que o papel de pai limita-se a colocar comida na mesa em troca da eterna gratidão e subserviência da família. A existência dos homens na lembrança de boa parte das pessoas quando pensam sobre paternidade está quase sempre ligada a episódios de violência, alcoolismo, descaso, desleixo, irresponsabilidade, omissão, abuso. Pessoas que crescem buscando tampar esse buraco, suprir essa carência, que se agarram às poucas migalhas de afeto que receberam na infância dos seus pais como se fossem tesouros sagrados.

É um momento para que se faça um exame de consciência e uma admissão coletiva de culpa: homens, vocês não são bons pais. Vocês não estão exercendo a paternidade de forma a criar pessoa melhores, vocês não estão presentes na vida dos seus filhos. Assim como o pai de vocês provavelmente não esteve. Esse sequer é um fenômeno local: já notou como a maior parte das narrativas de filmes, séries e novelas tem a ver com pessoas tentando resolver seus traumas com os pais, via de regra o pai? O pai que não está lá. O pai que não dá afeto. O pai, o eterno atrapalhado bobalhão.

E por favor, me poupem do discurso “mas nem todo pai”. Se você não é assim, ou seu pai não é assim, toma aqui sua medalha de honra ao mérito. Você é exceção, não é regra. Onde estão os homens nos grupos que falam sobre cuidados dos filhos, pediatria, escola, fraldas, comida, roupas? Por que homens sentem-se confortáveis conversando sobre futebol enquanto suas mulheres estão conversando sobre seus filhos? Por que homens simplesmente esquecem dos filhos quando separam-se da mães? Por que é preciso uma lei que precise prender homens para que eles façam o mínimo que é pagar pensão para sustentar os filhos das relações que se romperam? Por que homens não combatem homens que demonstram desejos pedófilos? Por que homens não protegem a infância? Não protegem as crianças?

Falar de criação de filhos é falar de afeto, de cuidado, de presença. De querer estar ali para cuidar, amar e socializar uma criança. Essa é a função do pai. Dividir esta tarefa com a mãe. Sendo companheiro dela ou não. Se você não faz isso, não dá afeto, cuidado de verdade e presença, sua paternidade não é o bastante. Você não merece parabéns por nada. Aproveite este dia para pensar na sua parte, para pensar na sua função social. Para pensar se você merece algum presente.

Não há nada de feliz no dia dos pais.

A paternidade é facultativa

Vivemos em uma sociedade onde a paternidade é facultativa e a maternidade é compulsória. Mulheres aprendem que a maternidade é um destino, uma função que devem cumprir para serem completas. Desde o seu nascimento recebem todo um treinamento que a encaminham para a culminância da sua vida que, segundo lhe dizem, acontece quando ela engravida e se torna mãe.

Homens, por outro lado, aprendem muito claramente que paternidade é uma atividade facultativa, que podem ou não exercer sem muitos constrangimentos sociais. O menino nasce e desde já tudo a sua volta gira em torno de ensiná-lo sobre transitar no mundo agressivamente, exercendo dominância e recolhendo recompensas na forma de dinheiro e sexo. Ele recebe carros, bolas, bonecos de guerreiros, soldados, super-heróis. Ele assiste por toda a parte homens em combate. E fantasia matar inimigos e ser o herói.

Se o treinamento da menina é para a vida doméstica e o cuidado (do lar, de si mesma, dos menores, dos pais); o treinamento do menino é para enfrentar o inimigo (o ladrão, o vilão, o alienígena, o monstro). A mídia, as propagandas, desenhos, filmes, livros, situam sempre o homem na posição de homem conquistador, resolvedor dos problemas, em que tudo gira a sua volta. Ele cresce com a superestimada noção de que o universo existe esperando por ele para salvar o dia.

Qual é a função do homem na sociedade? O que ensinamos a esses meninos? Que eles devem ter sucesso, dinheiro, mulheres, aventuras, e aproveitar a vida enquanto podem. Que o mundo está a disposição deles e devem se divertir. Devem ser fortes, viris, conquistadores. Machos. Provedores. Gostar de coisas de “homem”. Carros, esportes, sexo, drogas e diversão. Que mulheres existem para limpar o que eles sujam, cozinhar para que eles comem, servi-los , cuidá-los e fazer muito sexo com eles. Porque é sua função enquanto mulheres.

Que parte da educação de um menino o orienta sobre a importância da família? Do cuidado? De se respeitar mulheres? De valorizar o amor não-sexual? Um relacionamento? A família? Que parte da educação de um menino orienta sobre sua responsabilidade com seus futuros filhos? Nenhuma.

Crianças fazem suas primeiras brincadeiras imitando o que elas vêem no seu cotidiano. Se um menino demonstra interesse em brincar de imitar aquilo que vê sua mãe fazer (limpar, cuidar, cozinhar), o que acontece? é imediatamente reprimido e orientado que “aquilo não é brincadeira de homem”. Se ousar brincar com uma boneca, alimentá-la, vesti-la, banhá-la, penteá-la, fazê-la dormir, pode até ser castigado. Quantas famílias compram para seus meninos conjuntos de panelinha, vassoura, boneca, para que eles exercitem e naturalizem no seu repertório sua parte nos cuidados com a casa onde vive e com as outras pessoas do ambiente? Quantos meninos convivem em um ambiente ondem vêem os homens atuando ativamente com o cuidado dele, da casa e de todos a sua volta? Quantos conseguem crescer em um ambiente onde não assistem o trabalho doméstico de mulheres sendo explorado? Ou um ambiente sem violência?

Limpar o que suja, cozinhar a própria comida, ser capaz de dar conta da organização do ambiente onde vive, ter auto-cuidado, cuidado com o outro, não são habilidades femininas. São pré-requisitos básicos para uma sobrevivência autônoma na vida adulta. Exaltamos tanto uma criação que valorize a independência, mas no caso dos meninos alimentamos uma cultura que os torna co-dependentes a vida inteira de alguém que vai lhe garantir a estrutura mínima para sua sobrevivência, como comida, organização e limpeza pessoal.

No entanto, meninos são, quase sempre, completamente impossibilitados, desde a infância de treinar habilidades de cuidado doméstico, cuidado com si mesmo e com o próximo. São ensinados que CUIDADO é uma tarefa de mulheres. Crescem sem desenvolver nenhuma noção de responsabilidade com nada, principalmente com crianças que exigem dedicação absoluta. E se tornam homens que primeiro são dependentes da mãe para que lhes frite um ovo, passando essa tarefa para uma esposa, ou então para uma trabalhadora doméstica.

E meninos não aprendem como encaixar as responsabilidades que ter uma família significa dentro das ambições que são cultivadas no seu mundo. A família é um dilema, uma armadilha. É o ponto de ruptura entre uma vida de direitos, aventura, esbórnia e diversão das suas fantasias e uma vida de deveres, tédio, previsibilidade. E muitos crescem e se casam como quem vai para a execução na guilhotina. É o “game over”.

A família para o homem é um símbolo de “status” , uma prova de que agora se tornou um “homem responsável”, que “tomou juízo”, “tomou jeito”. É uma prova de amadurecimento que ele oferece à sociedade. A mulher é tida como sua propriedade, como uma aquisição que vai cuidar dele e da casa. E os filhos são os acessórios necessários para provar sua virilidade e fertilidade. E só são importantes na medida que representam o vínculo com a mulher. Porque o homem aprende que os filhos são dela, e um desejo e uma necessidade da mulher. E que a única relação que eles precisam desenvolver com os filhos é o de provedor, a única responsabilidade que devem ter em relação a filhos é a de pagar pensão. E sentem-se muito orgulhosos de si mesmos quando pagam, porque mesmo isso já é uma exceção.

Quantas e quantas crianças não crescem sofrendo inúmeras violências e abusos por parte do seu pai? Vendo sua mãe apanhar cotidianamente? Para quantas famílias o homem é a figura a ser temida, “respeitada”, acatada? É a figura que é suportada apenas em função dele ser aquele que coloca comida dentro de casa. Olhem os índices de violência doméstica, de abuso sexual intra familiar. São assustadores. Quem são os perpetradores? Homens. Que fazem da sua mulher e filhos seus escravos particulares, exercendo sobre eles toda sorte de agressões. Olhem os números.

A paternidade é uma mentira. Fingimos todos que homens estão ali fazendo parte afetivamente daquela família, mas quase sempre ele é o elemento autoritário, abusivo e desagregador. Aquele que tem permissão para entrar e sair do acordo a hora que quiser. Nenhum homem é constrangido por não registrar seus filhos, por não contribuir para o seu sustento, por abandoná-los emocionalmente. Quantos e quantos homens que após separar-se e formar uma nova família simplesmente esquecem a existência dos filhos crescidos?

A função do pai na sociedade patriarcal não é o de cuidador dos seus filhos. O que é esperado do homem é o papel de macho-alfa conquistador. E esse lugar da paternidade só existe socialmente se for exercida nesses moldes. É isso sim que lhes é cobrado todo dia, incessantemente. Que homens sejam MACHOS, todo o tempo e qualquer desvio dessa norma, qualquer performance que ele execute que se aproxime vagamente de uma ideia de feminilidade ou qualquer tarefa que execute que esteja no espectro que é designado a uma mulher será criticado, punido, execrado. E é nesses moldes que a paternidade é exercida e é por isso que aos homens é facultado o direito de cuidar ou não dos seus filhos, de estar ou não presente. Por isso a eles é facultado o direito de abandonar, de sair para o mundo em aventuras, fazendo mais filhos, abusando, conquistando. Ou de ficarem e serem donos de uma família, onde podem fazer o que bem entender.

Esse pai sorridente, presente, de propaganda de margarina é uma exceção total, completa e absoluta sob o patriarcado. Eleger e vender esse modelo como padrão só serve para jogar para debaixo do tapete a verdadeira função do pai, e nos impede de discutir, nos defender, e rechaçar e convocar a transformação desse modelo.

O principal desafio da paternidade hoje é um desafio anterior que é o de romper com o padrão de masculinidade a que todo homem é submetido. Porque sem rever o que é o papel do homem na sociedade, sem quebrar o pacto com os estereótipos de gênero e com a hierarquia sexual, não há pai cuidador possível. É preciso ressignificar completamente a posição do homem no núcleo familiar a começar pelas razões com que as famílias são formadas e isso passa por ter coragem de rasgar a cômoda cartilha do papel social que diz quais as funções deveriam ser do homem ou da mulher. As regras dessa cartilha que, implícita e explicitamente exigem que o homem reine tiranicamente no lar e explore o trabalho de uma mulher.

Se um homem quer ser um bom pai, deve começar parando de explorar sua mulher. Assumindo que foi educado para ter privilégios e romper com isso. Assumindo que é o modelo de homem que seus filhos estão observando e vão reproduzir e/ou inconscientemente buscar. Envolvendo-se de verdade na ética do cuidado. Com si, com seu espaço, com o outro. Responsabilizando-se. E devem romper com a violência, romper com a agressividade como modo de estar no mundo e se relacionar com mulheres, crianças e demais populações vulneráveis.

E sim, sabemos que homens não são socializados para isso e que acham que o mundo está nas suas mãos. Mas homens também são seres pensantes, dotados de capacidade crítica e perfeitamente capazes de buscar a desconstrução desse conjunto de instruções em que é socializado. E esse papel que se cumpre sem refletir também tem um preço. E as mulheres, estão cobrando. E não vão parar de cobrar.