De um corpo que é só seu

Nenhuma mulher tem um corpo que é só seu. Quando nascemos mulher a demarcação do nosso corpo como um objeto de beleza e apreciação (não admiração) é uma coisa completamente naturalizada. A partir do momento em que o médico informa nosso sexo feminino aos nossos pais, todo um arsenal começa a ser providenciado para que nos apresentemos à sociedade sempre bela e recatada. “Sexy sem ser vulgar”.

Quando somos recém-nascidas, nossas orelhas são perfuradas, a despeito da dor, do desconforto, da nossa incapacidade de expressar consentimento, porque precisamos rapidamente informar ao mundo que somos meninas.

Nos anos seguintes os demais marcadores estéticos vão se apresentando um a um: como devem parecer nossos cabelos (graciosos, bem penteados, com acessórios, “domados”), como devemos estar vestidas (tons pastéis, tecidos flutuantes, vestidos, saias, “como uma princesa”), como devemos nos comportar (sem correr, sem gritar, pernas fechadas “como uma mocinha”).

Pré-púbere, o corpo feminino já está “pronto” para ser rifado e impiedosamente é empurrado a se apresentar como “feito”, sexualizado. A sensualidade precoce é glamourizada, cobiçada (“novinha”, “ninfeta”, “Lolita”). E as adolescentes sofrem, adoecem, se mutilam, se suicidam, caso não se encaixem no padrão imposto de como devem se parecer: “bonita”. Essa característica que toda menina aprende que é a principal qualidade de uma mulher, o seu grande atributo e atrativo. O principal (e muitas vezes único) elogio que uma mulher recebe na vida.

Ser “bonita”. Que quer dizer, na verdade, ser um objeto sexualmente atrativo para outros homens.

Por toda a vida, a mulher aprende que o próprio corpo não lhe pertence. Que ele existe para atender expectativas das outras pessoas. Da sociedade. Dos homens. E ela paga, literalmente, um preço alto por essa aceitação social. Para se adequar ao que é considerado correto sobre como uma mulher deve parecer. Todas ou quase todas as intervenções que são feitas rotineiramente no corpo feminino envolvem algum nível de dor, desconforto, privação, custo financeiro, tempo: manicure, pedicure, tratamento facial, tratamento corporal, maquiagem, depilação, tratamentos capilares, tinturas, dietas, preenchimentos diversos, enchimentos, implantes. Um cardápio diversificado de cirurgias plásticas estéticas: na face, seios, barriga, pernas, nádegas, mãos, pés, vagina. Nenhuma parte do corpo feminino está livre de policiamento.

Somos doutrinadas para agir assim, achar normal, achar que é “porque gostamos”, “porque queremos”. Estar “bem”, na verdade é estar “bela”. E não suportamos a ideia de não sermos bonitas o bastante. Nossa estima é construída em torno disso. Para delírio do mercado. Que tudo vende para alimentar essa necessidade construída. Vivemos o eterno dilema entre a repulsa por sermos objetificadas e a necessidade de sermos queridas. Sendo que não há aceitação possível para uma mulher em uma sociedade machista como a nossa que não passe pela objetificação de seu corpo.

E o que acontece quando a mulher engravida? Quando esse corpo, que a sua vida inteira não lhe pertenceu de fato, se transforma radicalmente e sua principal função, pelo menos temporariamente, muda? O que acontece com a mulher quando deixa de ser prioritariamente um objeto de consumo sexual para ser um corpo que gesta outro?

Note que apesar da função do corpo feminino mudar com uma gestação, a tutela não cessa. Só se reconfigura. Toda a sociedade se encarrega de vigiá-la para que se cumpra as regras implícitas que estão muito bem demarcadas para a maternidade. O que vestir, o que comer, como se sentir, como se comportar, o que comprar. Já está tudo pré-definido, assim como os limites até onde ir: o quanto engordar, como não adquirir estrias, ou manchas. E esse corpo que gesta também não é só da mulher. Ele é um binômio mãe-bebê. Indissociável. Um duplo.

Mas então finalmente o bebê nasce. E o corpo é devolvido à mulher. Irreconhecível, transformado. Que nunca mais será como foi. Um híbrido que não tem mais a função da gestação e tampouco um corpo que atende ao padrão de objeto sensual.

O corpo depois dos filhos é outro. Que pode ter diástase. Barriga. Estrias, flacidez, manchas. Que pode ter cicatrizes. Seios diferentes. Que ostenta as marcas da batalha da gravidez.

A sociedade rejeita e repele esse corpo novo. O que vemos nas revistas, sites, televisão, são mulheres que parecem as mesmas de antes de engravidarem. Como se nunca tivessem parido. A pressão para recuperar o corpo “perdido” é absurda e as mulheres vivem um verdadeiro luto por conta da “perda” desse corpo. E são estimuladas a terem asco de si mesmas após o parto ao invés de ficarem maravilhadas com sua própria biologia e o que ela é capaz de realizar.

Mas esse tal corpo “perdido” que era destinado a ser apreciado e sexualmente desejável pertencia de fato à mulher? A quem se destina tantos rituais de feminilidade e beleza? Para agradar a quem? Para o olhos de quem? Precisamos mesmo disso?

E se nesse caminho entre uma coisa e outra, em meio a barriga flácida, as marcas, as olheiras, os seios inchados. E se nesse momento em que não se tem mais tanto tempo para se ocupar dos rituais de feminilidade, talvez (e repito, apenas talvez) haja uma janela de oportunidade para repensar a relação com o próprio corpo? De se reapropriar de si mesma? Nem que seja por esse instante? Não é pouca coisa, numa vida inteira de objetificação.

O corpo do pós-parto é um corpo transgressor que grita aos quatro cantos que aquela mulher gestou uma vida. É um corpo que deveria ser orgulhoso e não envergonhado. Reapropriado, onde cada marca, cada dobra tem uma memória que é só sua. Metamorfoseado.

Mulher, esse corpo é teu. Orgulhe-se dele. É um corpo que fez outro ser humano das suas próprias células. Que acomodou no ventre um bebê em crescimento pleno de si, o alimentou, o aconchegou e o pariu. Não percebe como isso é fantástico? Como não amar esse corpo? Como não achar isso belo?

Não vamos seguir deixando que os homens nos validem segundo seus desejos. Nós não somos meros objetos de apreciação estética. De desejo sexual. Nossos corpos tem valor para além dos padrões de beleza. Sim, é muito difícil romper com isso. Mas podemos tentar fazer isso por nós mesmas. Nos emancipar da validação masculina é tomar nosso corpo de volta.

A maternidade e a dança da solidão

Exercer a maternidade é dançar uma estranha dança da solidão. Como é possível sentir tão só em um momento da vida que é quase que literalmente todo preenchido pela presença dos filhos é possível?

Conversando com outras mulheres, é possível notar como o maternar pode ser desalentador e opressivo. Quase nenhuma mulher, atualmente, está preparada de verdade para o que significa a maternidade. Não há literatura, filmes, novelas, séries, publicidade, escola, família… nada que de fato faça entender o que a espera, em termos físicos, emocionais, sociais, psicológicos. Antes, a maternidade é apresentada como um privilégio, como bênção, como um dom divino que nos arrebata a um patamar sagrado. A ponto de mulheres desejarem engravidar para alcançar um novo status na sua comunidade. E esse “altar” a que somos elevadas nos condena a uma vida de solidão, desamparo e profundo silenciamento.

De onde vem a solidão materna?

1. O silenciamento das emoções

Quando uma mulher engravida, já há todo um script ditando como ela deve se comportar, pensar, agir e principalmente sentir. Há um manual, um guia invisível de boa conduta que rege o comportamento da futura mãe. Ela é tutelada e perde autonomia. Vira uma “mãezinha”. Gestantes não podem se sentir mal e reclamar da dor física, da confusão emocional, do desconforto, do desequilíbrio psicológico, do medo, e da fragilidade que uma gestação traz, afinal “está carregando um milagre”. A quem uma mulher-mãe consegue dizer “eu não gosto de estar grávida”? ou “eu não estou feliz por ser mãe”? ou simplesmente “estou com medo”?. Que mulher não sente culpa por se sentir assim? Já que é doutrinada por todos os cantos para achar que uma gestação e filhos devem ser a coisa mais importante do universo para ela?

Com quem conversar? Amigos sem filhos se afastam ou simplesmente não compreendem como é o novo mundo daquela mulher e o abismo entre as realidades muitas vezes causa afastamento emocional ressentido. A família, na expectativa de ajudar, pode acabar atropelando a autonomia da mãe e igualmente lhe nega o direito de se sentir infeliz ou confusa ou angustiada com a maternidade.

Com quem uma mãe consegue desabafar sem julgamentos?

2. Ausência do pai

O pai da criança, quando ainda está lá, via de regra, se faz apenas de corpo presente, não assumindo sua parte na responsabilidade dos cuidados com os filhos e a casa. E ainda acaba sendo mais um problema que uma solução, comportando-se como um segundo filho, fazendo cobranças extras para a mulher já sobrecarregada, e sendo incapaz de compartilhar as questões que assombram as mães no cuidado com os filhos.

Quantos pais você conhece que estão ativos em grupos de cuidado com crianças buscando ou compartilhando informações? Quantos grupos de pais-cuidadores existem discutindo criação e cuidado com os filhos? Quantos pais aparecem apresentando dúvidas em grupos de pediatria? Quantos em grupos de alimentação, carregamento de bebês, sono, educação, escola? Quem, no fim das contas, carrega sozinha o peso de aprender como cuidar de uma criança? E acertar sempre? Quantas mães conseguem compartilhar com seus companheiros todas as dúvidas, questões, problemas, medos, angústias, e decisões inerentes a criação e cuidado das crianças? Quantas mulheres conseguem compartilhar com seus companheiros suas angústias em relação a transformação que ocorre na sua vida com a maternidade, na sua individualidade, e serem aceitas e compreendidas nas suas dificuldades?

3. A exclusão social das mães

Mulheres-mães vivem uma quarentena sem fim onde tudo o que existe no seu mundo obrigatoriamente tem que ter a ver com o seu filho. São expulsas do espaço público. Constrangidas por amamentar em espaços abertos. Suas crias são abertamente alvo de ódio por conta do comportamento infantil. Essa é uma sociedade intolerante com crianças. Não há acolhimento para as mães e suas demandas. Não há acolhimento para as pautas maternas. Crianças e suas mães são vistas como um problema. Uma carga. Um peso vulnerável. Mulheres são coagidas a manter seus filhos sempre “sob controle”, longe de espaços onde podem ser um “incômodo”. São integralmente culpadas por qualquer comportamento desviante da norma que seus filhos possam apresentar. Poucos são os olhares solidários. Fique longe, é o que a sociedade sutilmente diz.

4. A sobrecarga de responsabilidades

De repente a mãe se torna praticamente a unica responsável pela gestação, nascimento, sobrevivência e socialização de outro ser humano. Para a sociedade, o pai é uma figura absolutamente acessória e secundária. E não é possível falar em escolha da mulher quando não existe nenhum contraceptivo que realmente a proteja. Não quando meninas ganham como primeiro brinquedo uma boneca e são massacradas pela ética do cuidar como principal aprendizado. Não quando é vendido para a mulher que a felicidade e completude se realiza através da maternidade. Homens não conhecem esse peso. Não são educados para paternidade. Meninos ganham carros, aviões e promessas de uma vida de aventuras e é isso que saem em busca por toda sua vida.

Mulheres estão sobrecarregadas. Estão, na prática, sozinhas na tarefa de criar os filhos. Todos os dedos apontados. Com quem ela pode contar de fato? Não há políticas de Estado que apoiem efetivamente uma boa maternagem. Não há uma cultura de compartilhar socialmente a responsabilidade pela criação das crianças. Sequer há uma cultura que constranja os homens a assumirem seus próprios filhos. Por mais que possam existir as condições satisfatórias para algumas mulheres, essas são a exceção na sociedade. A regra é a maternidade ser uma empreitada feminina, sempre.

A dança da solidão

Nós, mulheres, somos forjadas no aço da solidão e do desamparo. Não somos socializadas para sermos irmãs, companheiras ou amigas e sim mães, cuidadoras, responsáveis, carregadoras do peso do mundo. Não precisamos ir muito longe, inclusive, pra entender isso, está nas novelas, nos filmes, na publicidade, na literatura. Quantas belas histórias você conhece sobre amizade entre mulheres? Sobre amor entre mulheres? Sobre companheirismo entre irmãs? E quantas histórias lhe foram contadas sobre o amor entre uma mulher e um homem, e sobre como a vida finalmente encontra um sentido, principalmente quando nascem os filhos?

E nos são atiradas todo dia as migalhas da expectativa da felicidade através do amor. Senão o amor do marido, o amor dos filhos. Maternidade não é somente sobre amor. É sobre cuidado. E cuidar de outro ser de maneira tão intensa é exaustivo. Não é possível de ser feito sozinho. Mulheres estão sendo atiradas nesta empreitada por conta própria e naufragando num mar de solidão. Silenciadas, incompreendidas, isoladas, excluídas e obrigadas a ostentar eternamente um ar de felicidade. Porque são mães.

Dizem então que “ser mãe é padecer no paraíso”. Perceba a crueldade dessa frase. Você vai chegar no paraíso. E vai padecer. Não há nada mais solitário que isso.