Mulheres aprendem que devem sexo. E homens aprendem a cobrar.

Mulheres aprendem que devem sexo e homens aprendem a cobrar. Falamos sobre assédio, estupro e abuso, tentamos buscar maneiras de ensinar nossas meninas a se defender mas muitas vezes ignoramos que vivemos em uma cultura que organiza a relação entre homens e mulheres com base na compulsoriedade sexual onde meninos aprendem que podem – e devem – tomar sexo para si no momento que desejarem e mulheres que negam podem ser coagidas.

Falamos sobre assédio, explicamos, mas falamos sobre consentimento em bases incompletas, fazendo parecer que basta dizer “sim”. Não dizemos que o “sim” não é suficiente se ele for obtido em bases coercitivas, se for para agradar, se for para não ser importunada, se for para obter alguma vantagem.

Não falamos abertamente para mulheres que elas têm direito absoluto de sentir desejo de fazer sexo. Tesão. E que tem direito a não fazer sexo quando não estão com vontade. Que quando fazemos algo sem desejo não é consentimento é concessão. E ceder não é consentir. Cedemos por muitos motivos e homens se especializam em manipular, chantagear, subornar, ameaçar, coagir mulheres até que elas cedam. E não se importam com o real desejo da mulher, apenas querem que elas cedam e então chamam hipocritamente isso de consentimento. E mulheres, sem saber que têm direito a ter vontade, assumem a culpa por envolver-se em uma relação de abusividade nas quais são puramente vítimas.

Falar sobre assédio é falar sobre recusa. Sobre direito a mulheres recusarem qualquer tipo de abordagem, de proposta, de presença masculina se assim desejarem. De não serem coagidas a serem receptivas, simpáticas, amáveis, com quem não estão dispostas a ser. Sobre poderem dizer não e sair de uma interação a qualquer momento, não importando se em algum momento ali elas também quiseram ou desejaram.

Meninas precisam aprender a conhecer os mecanismos da socialização que a deixam expostas a manipulação masculina. Precisam fortalecer-se para fazer valer sua recusa e também para poder participar de interações amorosas e sexuais de maneira saudável, não-hierarquizada. Que possam flertar em paz, sem isso significar um sinal verde para que sejam violadas.

Não é função da mulher cuidar da higiene do companheiro

Um grande desafio que mulheres enfrentam nos seus relacionamentos é entender que não é sua função cuidar da higiene do companheiro. E isso por causa de uma socialização que começa na infância. Meninas aprendem que autocuidado é embelezar-se (para aprovação masculina) e essa lógica ricocheteia e meninos aprendem a repudiar tudo que tem a ver com higiene e autocuidado por ser considerado “coisa de mulher” e consequentemente “frescura”. Uma ameaça ao ideal de virilidade que homens precisam ostentar a todo custo.

Homens também não se preocupam em cuidar de si, é bom dizer, porque crescem com a percepção de que sempre haverá uma mulher ali, monitorando sua saúde e seus hábitos de higiene. Avisando que está na hora de cortar o cabelo, comprando roupas novas, sugerindo cortes de cabelo, comprando produtos de higiene, mandando pro banho, limpando o banheiro que eles sujam. Não amadurecem e não adquirem uma verdadeira autonomia.

E os homens que fazem o básico, saber se cuidar, são tão raros que são considerados “diferentes”, “especiais”. Mulheres sentem-se “afortunadas”, apenas se o companheiro não for um porcalhão completo. E é tanta negação do hábito de autocuidado que homens que são asseados tem sua sexualidade questionada, ou mesmo questionam-se se não são “femininos”, como se gostar de banho, gostar de sentir-se “bonito”, cheiroso, andar limpo, fosse uma prerrogativa de mulheres.

Mulheres precisam compreender que não são responsáveis pela higiene dos seus companheiros, ainda que exista essa expectativa implícita. Seu companheiro é um homem adulto e ter que gerenciar a maneira como ele se limpa para poder ter alguém higienizado ao seu lado é um absurdo que já naturalizamos porque aprendemos que é normal maternar nossos companheiros. São aos filhos que devemos orientação para que aprendam o padrão de higiene e saúde desejado e façam a manutenção disso por sim mesmos a medida que crescem.

Por mais difícil que isso seja, uma pessoa que seja responsável pelo próprio asseio, que tenha autocuidado, preocupação com a própria saúde é o mínimo de onde você deve partir dentre inúmeros outros critérios na hora de escolher alguém com quem compartilhar a vida. Não normalizem a pouca higiene! Não se relacionem com homens que não tem capacidade de manter a própria bunda limpa! Busquem homens adultos, autônomos e autossuficientes de verdade.

Toda mulher é socializada para ser capataz do patriarcado.

Toda mulher é socializada para ser capataz do patriarcado. E eu penso nessas mulheres, que nos criaram, nossas mães. Sua mãe. Minha mãe. Elas nos contaram sobre suas dores? O que há por trás de uma criação muitas vezes frustrante para nós, filhas, e agora também mães, que vamos aos trancos tentando superar?

Eu quero falar de mulher para mulher.

De mãe para mãe.

Sobre a mãe que tivemos para a mãe que nos tornamos. Sobre ser filha no meio disso tudo. Dessa relação tão difícil e delicada. Mãe, filha. Duas mulheres. Criadas para servir num mundo dominado por homens. Ensinadas a competir, mesmo entre si. Mulheres a quem é dado o chicote da criação dos filhos e a missão de perpetuar a socialização masculina para dominação e a socialização feminina para submissão.

Toda mulher é educada para ser o capataz do patriarcado. Para reproduzir a educação machista que lhe foi ensinada. Infligir as mesmas privações e sofrimentos que recebeu sem a menor consciência do que sofreu e do que está fazendo sofrer. Para naturalizar a própria dominação, sendo esvaziada de si.

Mãe. Filha.

Duas cegas tateando num mundo de violência, que subjuga, subestima, humilha, persegue, abusa, sequestra, estupra, mutila, espanca, extermina mulheres. O tempo todo.

Será que somos capazes mesmo de entender o caminho que nossa mãe percorreu até nós? Será que ela foi assediada? Humilhada? Viveu relacionamentos abusivos? Será que ela desejou nos ter? Teve ajuda para nos criar? O que ela teve que suportar para ir em frente?

Será que nossa mãe se sentiu desesperada ao nos ter colo, sem saber o que fazer? Será que teve a quem recorrer? Será que notou o quão grande é o peso da maternidade nas costas? Quanto medo ela sentiu ao ver que éramos meninas? Meninas que poderíamos sofrer coisas que talvez ela tenha sofrido. Por ser mulher.

Será que ela descontou na nossa relação de mãe-filha todas as dores que também sofreu? Será que conseguiram nos amar incondicionalmente? Como? Se ninguém nos ensinou como se ama uma mulher?

O quanto nossas mães nos feriram tentando nos proteger? Das dores do mundo. Das próprias dores.

Será que se arrependem? Lamentam a vida que poderiam ter tido, sem nunca ser capaz de confessar, e se consomem de culpa? Culpa sempre. A culpa que castiga a todas nós, desde o mito do pecado original. Eternas Evas condenadas a sentir todas as dores do parto, expulsas do paraíso.

Em que uma vida de machismo, sofrimento, abandono, abusividade e solidão pode transformar cada mulher? Em que está nos transformando? O que fez com nossas mães? Quanta dor?

A dor de ser mulher em um mundo que odeia mulheres.

A dor de ser mãe em um mundo que desampara mães.

O quanto dói a solidão no coração de cada mulher e hoje nossas mães nos olham nos olhos, de mulher para mulher, e ainda vêem a mesma criança que fomos, e sentem a falta daquela menina que não está mais lá. Fazendo companhia. Lado a lado. Em disputa. Lambendo cicatrizes.

Como proceder essa reparação, se nós mesmas, filhas, agora mães, mulheres, acumulamos nossas próprias feridas de guerra? É tanto peso, acumulado de geração, para geração, para geração.

Toda mulher é socializada para ser capataz do patriarcado. E a mãe é a figura primeira que vai iniciar o nosso treinamento social para a subalternidade ou dominância. Porque ela também foi treinada. Ela também aprendeu a servir o patriarca e ela também aprendeu que seu valor enquanto mulher só é dado se ela cumprir bem seu papel de esposa e mãe. E como mãe ela é o todo o tempo vigiada e instruída a doutrinar seus filhos para cumprirem a risca os papeis na hierarquia social que são destinados de acordo com o sexo que nascerem.

São as mães que tem a missão de preparar mulheres para serem mães e esposas. Que vão fiscalizar se você está se tornando “direita”, que vão reprimir qualquer coisa que esteja fora do que manda o manual patriarcal de comportamento feminino. Que vai repudiar qualquer coisa que não seja belo, recatado e do lar. Não há conciliação possível.

A mãe sabe que será punida se permitir que seus filhos repudiem o protocolo. A mãe sabe que será julgada e que a culpa será dela. Essa mulher aprendeu isso e ensinará isso. A misoginia que ela internaliza nos seus é a mesma que aprendeu das suas ancestrais. E romper com essa logica passa pelo entendimento do terrível lugar que a maternidade reserva para toda mulher. E com o rompimento com essa lógica nefasta.

Não existe possibilidade de uma relação de afetividade saudável entre mães e filhos, e principalmente entre mães e filhas, sob um regime de maternidade compulsória.

“Fecha estas pernas, menina”. Nossas mães disseram. Porque o mundo devora mulheres. Porque elas não puderam nos proteger. Não puderam proteger a si mesmas. E seguimos tentando perdoá-las, nos perdoar, nos amar e vencer esse desamparo. Permanecer vivas no meio desse massacre.

“Fecha estas pernas, menina”. Ainda é o que teremos que dizer para nossas filhas.

Será que hoje, nós, mulheres adultas, também mães, feministas, conseguimos separar nossas dores de filhas marcadas por uma criação machista e castradora da nossa solidariedade com a mulher que a vida fez nossas mães tornarem-se?

E nossas filhas? Será que um dia nos perdoarão?

Que mulheres possam quebrar essa roda. Que tenham força, apoio e incentivo de outras mulheres, porque não é fácil. A mãe é vigiada. A mãe é punida. A mãe existe da maneira que é dado na nossa sociedade para cumprir esse papel. A mãe também foi filha. A mãe é uma mulher marcada pela misoginia. A mãe marca.

Nós. Mães. Filhas. Mulheres.
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A mãe transgressora é revolucionária.

Mulheres salvaram minha vida

Mulheres salvaram minha vida. E por isso, eu pensei longamente em como e no que escrever sobre rivalidade feminina. Em falar sobre como somos socializadas para entender que nosso lugar no mundo só é validado pelo olhar masculino e como isso atravessa toda nossa relação com outras mulheres porque nos coloca como rivais já de partida.

E a rivalidade feminina, além desse componente basilar, que é a disputa pela atenção masculina também é fomentada por um motivo não tão óbvio porém absolutamente estratégico aos objetivos de manutenção do patriarcado: nos manter profundamente desunidas, desconfiadas umas das outras, nos manter em silêncio, sem trocar experiências sobre o que acontece em nossas vidas, nos manter sempre na defensiva, colocando homens no centro. Desde amigas de infância que brigam por causa de um namorado, até cunhadas, sogras, noras, e todas as outras relações entre mulheres que envolvem homens e que são alimentadas por ódio na maior parte das vezes gratuito e disputa pelo amor do macho em questão.

Eu poderia escrever laudas e laudas sobre como mulheres tomam por elogio ser diferenciada (“você não é como as outras”), sobre como nunca dão o benefício da dúvida para outras mulheres, sobre como não falam da sua vida para “não atrair inveja”, sobre como encaram críticas vinda de uma mulher como “recalque”, sobre como giram tudo em torno de quem é a mais “bela” (e consequentemente chama mais atenção masculina) e sobre como não confiam no alerta de outras mulheres — principalmente sobre homens.

E eu penso nisso tudo e me dá uma tristeza profunda porque eu vejo como são insidiosos e eficientes os mecanismos do patriarcado em nos manter desunidas e em impedir que nos enxerguemos como classe, como iguais, como irmãs. Como somos impedidas na origem de enxergar como é poderosa a união entre mulheres, sobre como a revolução acontece quando mulheres reúnem-se e conversam.

Tudo o que eu tenho, tudo o que eu sou, eu devo a outras mulheres. Tudo. Da minha mãe – a primeira mulher que eu amei, passando pela minha irmã, minhas sobrinhas, todas as minhas preciosas amigas. Eu não sei se elas sabem, se eu já disse assim tão textualmente, mas eu digo agora: vocês salvaram minha vida muitas e muitas vezes. Com afago, conselhos, esporros, abraços, acolhimento, ajuda material, psicológica, emocional, física e extrafísica. Em todos os momentos cruciais era uma mulher que estava do meu lado, me apoiando de alguma forma. Todas as vezes que cai, foi pela mão de uma mulher que eu me ergui novamente. Sempre que tudo ficou escuro demais, foi uma mulher que apareceu com uma lanterna, mesmo de luminosidade débil. Eu não estaria aqui, eu não seria eu, se não fosse pelas mulheres que atravessaram minha vida.

Os homens que por aqui passaram quase sempre me trouxeram a dor que elas vinham ajudar a curar. E se eu tenho algum arrependimento é de não tê-las ouvido mais, de não tê-las antes junto de mim, desde sempre. De não nascer sabendo que são as mulheres, umas pelas outras, que vão te pegar pela mão nessa dura travessia da vida e colocar flores no seu cabelo enquanto cantamos canções.

Eu sou profundamente grata a todas, que ainda estão, ou que passaram e as que certamente virão. Profundamente. Talvez elas nunca saibam o quanto. E também tenho um amor desmedido por todas, companheiras que somos desse cativeiro que é ser mulher sob patriarcado. Eu acredito na força do amor que só uma mulher pode te oferecer, e sei que elas sempre estarão lá por você. Alguma mulher sempre estará lá por você, basta você dar a chance

O amor em tempos de cólica

Quando um bebê nasce começa o primeiro grande teste de qualquer relacionamento amoroso. Começa o amor em tempos de cólica. Filhos trazem muitas coisas para a relação e também retiram muitas coisas. É ilusão acreditar que nada vai mudar. A expectativa fantasiosa da família margarina cultivada durante a gestação muitas vezes dá lugar a profundas crises profundamente calcadas na maneira como homens e mulheres são socializados para lidar com família, filhos e relacionamento.

Homens aprendem que tudo na relação é sobre eles e que a mulher existe para gravitar em torno de suas necessidades. Mulheres aprendem que devem satisfazer a todas as necessidades masculinas sob pena de serem rejeitadas, caso não façam. Aprendem que devem ser mães devotadas, entregues, cuidadoras. Aprendem que devem administrar todos os detalhes do funcionamento do lar com excelência, caso contrário não serão consideradas boas.

Para o homem, a família é como se fosse um símbolo de status. Algo que eles “possuem” e que demonstra para a sociedade que já são “homens”, são responsáveis. O homem aprende que precisa cuidar da família da porta pra fora. Cuidar da imagem, da reputação, da respeitabilidade, da segurança, do sustento. E que é função da mulher cuidar da família da porta pra dentro, do gerenciamento do lar, do cuidado de todos.

Como resultado disso, muitos relacionamentos começam a trincar com a chegada de crianças, porque o homens e mulheres recusam-se — ou não conseguem — entregar-se à profunda transformação pessoal que esse evento familiar exige. Homens por um lado ressentem-se porque percebem que não estão mais no centro das atenções da companheira, porque são cobrados de tarefas que nunca entenderam como suas, porque sentem-se abandonados, porque recusam a responsabilidade, porque não conseguem lidar com o fato de que a vida mudou, de que a diversão transformou-se, de que será mais exigido por um longo tempo. Mulheres ressentem-se porque sentem-se rejeitadas, sobrecarregadas, coagidas, solitárias e profundamente infelizes, além de frustradas no seu imaginário de como seria o casal brincando de boneca com o filho.

E é claro que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco e mulheres são o lado mais vulnerável. Com a chegada do bebê, são cobradas pesadamente para manter uma performance que é impossível de ser cumprida. Não só pelo companheiro mas por toda a sociedade. Chega a ser cruel. Já no puerpério as mensagens são de que a “normalidade” deve ser instaurada o quanto antes pelo “bem do casal”. E por normalidade entenda-se o corpo de “antes”, o sexo de “antes”, a atenção e leveza de “antes”. São ameaçadas. “Se você não transar com seu marido ele vai procurar outra”, “se você não emagrecer ele vai procurar outra”, “se você deixar a casa essa bagunça ele vai procurar outra”. São pressionadas a escolher entre as demandas da criança e as demandas do companheiro que vê o filho como um rival da atenção da mulher que antes era exclusiva dele. Sentem que estão cuidando sozinha do bebê (e quase sempre estão mesmo), além de administrar de todo o resto e estão sempre cansadas demais.

E o bebê, muitas vezes, é atropelado nesse processo para que a “normalidade” seja restaurada. E aí ele precisa o mais rápido possível dormir a noite toda, preferencialmente no próprio quarto “para preservar a intimidade do casal”. A mãe é cobrada para tornar o filho “independente” o quanto antes, para não “sobrecarregar” os pais. Desmame, desfralde. Tudo feito o quanto antes, de qualquer jeito, de forma a transformar aquele bebê num mini adulto que não vai ser mais um empecilho para os pais viverem como antes dele ter nascido. Crianças não podem chorar, não podem gritar, não podem brincar, não podem atrapalhar.

E o homem, nesse processo, vai de coação em coação, rejeição em rejeição, chantagem emocional em chantagem emocional, manipulando a mulher para que ela atenda a todas as suas necessidades. E que não o cobre para assumir sua responsabilidade no cuidado dos filhos e da casa onde reside. E ameaça partir quando é confrontado. Fica agressivo. Ameaça tirar os filhos. Ameaça financeiramente. E se ele quiser cumprir o que sugere, ele pode. E talvez ele vá.

O homem — diferente da mulher — tem a opção de abdicar da paternidade, e ele abdica. Ele age como se aquela criança não existisse, caso queira. Abandona o projeto e parte para outro, como se nunca tivesse tido um filho. Sem nenhuma culpa.

Você conhecerá um lado importante do seu parceiro ao ter um filho com ele. É nesse momento que o “na saúde e da doença, na alegria e na tristeza” vai ser posto à prova: seu corpo não será mais o mesmo que ele está acostumado a desejar, sua disponibilidade sexual não será mais a mesma, sua libido, sua liberdade de ir e vir. A intimidade do casal será sequestrada. A privacidade praticamente extinguida. E o cansaço será a tônica dos dias. Aquele casal que existia antes simplesmente não terá mais espaço pra existir e será convocado a romper com sua socialização.

Entenda, quando você tem filhos a matemática da vida pára de funcionar. Você não consegue mais dar conta de “tudo”, “tirar de letra”. Quando mulheres são as únicas que se responsabilizam e se ocupam da organização doméstica, dos filhos, do relacionamento, de si mesma, ela se vêem forçadas a estar constantemente fazendo escolhas muito cruéis. Dar atenção ao filho ou ao companheiro? Cuidar da casa ou de si mesma? E o trabalho? E o descanso? E o lazer. Essa conta só fecha se for compartilhada. Ela precisa ser dividida com a outra parte interessada que é o parceiro. E se ele não assumir essa responsabilidade, que é dele, mulheres ficam completamente reféns no relacionamento e forçadas ou a aceitar uma situação de completa exploração do seu trabalho ou a romper e lidar com as consequências, já que quase sempre homens dão um jeito de punir mulheres que o rejeitam.

E mulheres-mães também sentem falta de como era suas vidas antes dos filhos. De poder namorar tranquilamente. De se sentirem desejáveis. De fazerem sexo sem pressa. De não estarem sempre sujas, cheirando a leite, cocô, vômito, comida. De não estarem sempre com um bebê nos braços. Mulheres-mãe sentem saudade de andar de mãos dadas. De beijar na boca, sem testemunhas. De tomar um longo banho, se arrumar, sair para ir a um cinema, ao bar. Paquerar. De dormir 8 horas por dia, estudar, dedicar-se ao trabalho sem pressão nem interrupções. De ter a atenção de alguém toda pra si. Essas necessidades não são exclusividades masculinas.

Se os homens se envolvessem na criação dos filhos com a mesma medida que as mulheres, no mínimo compartilhariam do mesmo cansaço, dos mesmos dilemas, das mesmas dificuldades. E cada momento de intimidade reconquistada, seria um prêmio para o casal. Cada instante de privacidade seria degustado entre risos e suspiros. Para além da oportunidade de desenvolver o mesmo vínculo emocional que mães compartilham com seus filhos, quase sempre formados ali na convivência do cuidado. Se tornarem pais, de verdade.

Quando você tem filhos vai poder entender a força do seu relacionamento. Porque manter- se juntos, manter uma unidade para criar crianças, administrar a vida, não é sobre amor. É sobre vontade e capacidade de trabalhar em equipe. Sobre entender que os dois estão ali num projeto de longuíssimo prazo, transformador para ambos. Individualmente e como casal. E isso é avassalador. De muitas maneiras. O casal pode se afastar definitivamente ou pode se unir mais do que nunca em torno dos desafios.

O “segredo” talvez seja entender que alguns primeiros anos serão mais difíceis, mas que aquilo vai passar. E que nunca mais será como antes mas que isso não quer dizer que será ruim, ao contrário pode até ser muito melhor. E afinal, não tem uma história aí que era pra ser até que a morte os separe? Por que não é possível vivenciar juntos todas as dores e delícias do cuidado das crianças e suportar por um tempo as impossibilidades que filhos pequenos trazem para um casal? Quando os dois estão verdadeiramente envolvidos na tarefa da criação dos filhos o “romance” ressignifica. Basta apenas que haja maturidade para ajustarem expectativas e para que possam agir como companheiros de um jornada que nem sempre é fácil mas não precisa ser sofrida. E que se entenda que relacionamentos acabam, mas os filhos são para sempre, então acertar essa relação e essa divisão de cuidado é algo fundamental e que vai estar sempre presente.

Rivalidade feminina: dividir para conquistar

Há um tipo de amor que só uma mulher pode oferecer, e que no entanto pouquíssimas vezes conseguimos acessar. Nossa socialização é perfeitamente moldada para nos vermos como inimigas, nunca aliadas, e isso é providencial para que não consigamos nunca nos unir em função de lutarmos juntas. A principal estratégia do patriarcado é fomentar a rivalidade feminina: dividir para conquistar.

A cruel competição por atenção masculina

Nascemos e somos impulsionadas a buscar aprovação e aceitação masculina para nos validar enquanto seres humanos perante a sociedade (“finalmente arranjou um marido”) e para cumprir nosso destino social imposto de procriar a espécie (“uma mulher só é completa quando se torna mãe!”). Somos doutrinadas a atrair e conquistar um macho que nos valide e nos fecunde (“a um casamento sem filhos falta alguma coisa!”) com a vã promessa de sermos transportadas para uma vida de conto de fadas (“e eles viveram felizes para sempre”).

Para alcançar este objetivo, “conquistar” — portanto casar — com um homem e ter filhos, que é o único objetivo absolutamente definido e completamente socialmente aceito para uma mulher, é necessário basicamente um único pré-requisito básico: ser bela.

Ser bela, a maldição de toda mulher, desde o nascimento (“mas que linda é a princesinha, parece uma boneca”; “coloca o brinquinho pra ficar bonita”; “e esse laço, pra ficar bonita”; “esse vestido, fica mais bonita”). Bonita, bonita, bonita, bonita, bonita. Seja bonita, mulher.

Desde crianças, não somos elogiadas, via de regra, pela nossa inteligência, pelo nosso bom humor, pela nossa perspicácia, independência ou engenhosidade. É o nosso cabelo, sorriso, olhos, pele, e até características que nunca deveriam ser levadas em conta em um bebê (“nossa, que perninha grossa, vai dar trabalho”) que entram na lista do que é digno de nota para ser elogiável. A “boquinha”, o “narizinho”, “vai ter um cabelo bonito”, “menina bonita não chora”, “sua feia”, “não come tanto, vai engordar, ninguém vai te querer”, “cabelo ruim”. Feia, feia, feia, feia. Não seja feia. Ou vai ser rejeitada. A sociedade vai te rejeitar, criança, menina feia. Porque você não é um projeto de menina bonita. Feita para atrair, conquistar um macho. Procriar.

Inteligência? Equilíbrio? Resiliência? Caracteres secundários. Sempre precedidos por uma conjunção que explicita muito bem o seu valor pois “não é bonita ‘mas’ é inteligente ou “é bonita e ‘ainda’ é inteligente”. Nenhum homem fala pra outro homem que a mulher que ele está saindo é “super legal”: Ela é “gata”, “gostosa”, “mulherão”.

Você pode até dizer que beleza é subjetiva. Mas não é. Toda mulher sabe bem. É muito claro quem é bonita e quem não é. Objetivamente. Está estampado em todas as capas de revista, em todos os horários da programação da TV, no cinema. Há instruções bem definidas para todos sobre como a mulher bela deve parecer. E os homens sabem muito bem como aumenta o seu capital social perante seus pares quando estão com uma “mulher bonita” ao lado. Não à toa, homens idosos, ricos e poderosos, compram a beleza e a juventude de mulheres para desfilarem status.

E às mulheres, o que resta? Uma vez que a beleza que é vendida para que seja alcançada é inalcançável? Competir umas com as outras (“espelho, espelho meu, existe alguém mais bela que eu?”). Competem ferozmente para serem as mais belas, até porque sua estima nunca está bem construída. Mesmo a mais bonita é ensinada a sequer se reconhecer bela, para permanecer frágil e não usar sua beleza como arma.

Toda mulher é ensinada a nunca se sentir boa o suficiente. Temos tanta disforia que nem nomeamos, é nossa velha companheira, desde sempre. Pergunte a uma mulher o que ela não gosta no próprio corpo, o que ela mudaria. Ela dirá “tudo”, ou quase tudo. Somos ensinadas a odiar nossos corpos e compelidas a modificá-los sempre. Em nome de uma beleza cruelmente esculpida em parâmetros inatingíveis com o objetivo se sermos eternos objeto do desejo masculino.

Competimos umas com as outras, sofremos, odiamos nossos corpos, em nome de sermos objetos sexuais. Na infância, doutrinadas para sermos belas. Na adolescência, jogadas na arena da validação de nossos corpos púberes.

Compete-se com as meninas que antes eram amigas de infância e brincadeiras por causa de outros garotos. Garotos que são educados a avaliar mulheres por sua beleza e disponibilidade sexual. Que fazem listas das mais belas. Das gostosas. Das “fáceis”. Que filmam as calcinhas das meninas às escondidas e compartilham às risadas. Que fotografam suas experiências sexuais e expõem como um troféu. Que atraem meninas dizendo “você é diferente”, “você não é como as outras”, “você é especial”.

Meninas que aprendem que “as outras meninas são chatas”, que “mulher tem muito mimimi”, que “mulher é tudo falsa, se você der mole elas roubam seu namorado”, que “mulher se arruma para competir com as outras”. Meninas, quando não “belas”, que aprendem a desprezar as outras meninas para serem validadas no grupo dos meninos como “uma garota muito legal”, que “nem parece mulher”.

Garotas que não conseguem confiar em ninguém. Porque não conseguem conversar com a mãe. Porque não aprenderam a confiar em outras meninas. Porque não tem com quem compartilhar seus medos, temores, experiências, e passam por isso sozinhas. Socializadas para se isolarem. Não trocarem experiências entre si. Não se solidarizarem. Não se ajudarem. Porque “mulher fala demais”.

Garotas que acabam tendo suas primeiras experiências com outros homens sem nenhuma rede de apoio para entender se estão num relacionamento saudável. Se estão tendo experiências sexuais plenas. Que acabam completamente reféns de um relacionamento porque “estão amando” e sentem que finalmente estão recebendo o combo prometido: aceitação e validação de um macho. Amor. Quem sabe casamento e filhos?

Quantos relacionamentos abusivos acontecem porque um homem olha nos olhos de uma mulher e diz que ela é especial? Que é só dele? Que juntos viverão felizes para sempre? Que finalmente fez essa mulher se sentir aceita, desejada, escolhida, validada, finalmente “completa”?

Nós mulheres somos socializadas para odiarmos umas às outras. Porque a outra mulher é uma competidora em potencial pela atenção e validação social que nos ensinaram que deveríamos receber. Sendo belas. Sendo objetos sexuais.

É assim que o patriarcado atua. É assim que patinamos e somos massacradas. Todos os dias.

Do amor que só uma mulher pode oferecer

Precisamos aprender a amar de verdade outras mulheres. De verdade. Compartilhar intimidade, nossos segredos, nossas dores. Nossas dores são tão iguais! Tão semelhantes. Assim como nossas alegrias. Nossos corpos, nossa socialização. Tantas cicatrizes vindas do mesmo agressor.

A maternidade, às vezes, te oferece esse possibilidade de ponto de encontro. Existe uma intersecção nas experiências de gestar, parir, alimentar, cuidar de uma criança, que te aproxima de outras mulheres. Embora mesmo na maternagem sejamos impelidas a competir, há um olhar de compreensão que só uma mãe exausta tem para outra mãe exausta que pode abrir uma comporta reprimida de afeto que só uma mulher consegue oferecer a outra mulher.

Sim. Há uma qualidade de afeto que só uma mulher pode oferecer a outra mulher. É aquele afeto de quem carrega dores muito semelhantes pela vida. De quem nasceu, cresceu, foi socializada, e foi tratada como mulher a vida inteira. Para o bem e para o mal. Há um lugar de conforto e carinho, de mulheres que choram juntas, que se entendem, se confortam, se perdoam. Que vertem sangue, leite, lágrimas. Que quando começam, que quando se permitem confiar, quando se permitem se amar, se sentem acolhidas. Se sentem em casa.

Não existe lugar mais solitário para uma mulher que na maternidade. Talvez por isso se abra essa janela de oportunidade. De receber outras fêmeas, de falarem de suas crias, lamberem suas dores. E quando isso acontece as coisas ficam menos sombrias. Porque quando mulheres se reúnem, e se amam, elas se fortalecem.

Há mulheres incríveis por aí. Maravilhosas, inteligentes, dedicadas. Com tanta coisa a ensinar. Mulheres não são falsas, nem fúteis. Ou estão espreitando para roubar seu homem. Elas estão ali sobrevivendo. Com histórias tão duras. Com tanta força, tanta coragem, tantas experiências incríveis de como conseguem permanecer inteiras numa sociedade que nos massacra, nos pisoteia. Mulheres resistem.