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É possível controlar o que crianças assistem?

Round 6 (Squid Game) é uma série coreana, sucesso absoluto na Netflix, e que conta história de um grupo de pessoas disputando literalmente até a morte uma fortuna em dinheiro. É uma boa série, o enredo é relativamente simples e muito bem contado, e possui classificação de 16 anos. Não é indicada para crianças e nem mesmo adolescentes por possuir cenas explícitas de assassinato, suicídio, tráfico de órgãos e sexo. E no entanto, todas as crianças não param de falar nela, para desespero dos pais. É possível controlar o que crianças assistem? E aí antes de ficarmos preocupados ou indignados, precisamos levar algumas questões muito importantes em consideração para que estejamos, acima de tudo preparados para esse tipo de coisa. Porque esse não será o primeiro, e muito menos o último, conteúdo “inadequado” que nossos filhos terão contato.

É impossível controlar completamente o que as crianças vêem

Num mundo hiperconectado como o nosso a questão não é mais SE crianças vão tomar contato com determinado tema, mas QUANDO e COMO.

Boa parte das crianças de hoje está sendo criada por pais que tiveram sua infância em um mundo bastante analógico. Assistíamos programas infantis, desenhos animados, filmes, quase tudo na TV aberta ou em meia dúzia de canais de TV a Cabo. Era bem mais simples controlar o conteúdo audiovisual porque tínhamos poucos emissores (TV, rádio, revistas) e conteúdos emitidos de maneira mais ou menos centralizada. Então, nossos pais, se assim desejassem, poderiam organizar praticamente tudo a que teríamos acesso ou pelo menos conhecer toda a programação. Não é o nosso caso.

Hoje crianças tem acesso a dezenas de serviços de streaming diferentes que por sua vez tem centenas de desenhos animados, filmes, séries e todo tipo de conteúdo, fora os próprios canais de TV a Cabo e a TV aberta. Por um celular (que muitas vezes é próprio) crianças acessam a internet, tendo acesso a buscadores que podem trazer praticamente qualquer informação. Elas acessam o Youtube, e seus ídolos são Youtubers que fazem às vezes de babá eletrônica e dizem uma infinidade de coisas interessantes assim como toneladas de bobagens. Acessam TikTok onde milhares de outras crianças fazem todo tipo de coisa sem nenhuma supervisão. Há um ecossistema tecnológico que pouco dominamos e uma infinidade de conteúdos disponíveis impossíveis de serem contabilizados.

Há também o fato de que os cuidadores (e aqui invariavelmente estou falando da mãe, que acaba sendo a principal responsável e quem lança olhos pra essas coisas) não têm como ficar 24 horas sobrevoando os filhos para regular o que eles estão assistindo. Muitas crianças estão nas mãos de terceiros enquanto a mãe trabalha, e muitas vezes, todo esse aparato eletrônico faz as vezes de babá entretendo as crianças enquanto adultos fazem coisas como tentar ganhar dinheiro para sobreviver, limpar a casa para manter um mínimo de salubridade, cozinhar, e etc. E a despeito de todas as críticas (válidas), sobre o excesso de telas, esta acaba sendo uma consequência de uma realidade imposta pelo tipo de vida que temos a nossa disposição: pessoas empobrecidas, em dupla, tripla jornada com pouco tempo para fazer coisas como dar atenção qualificada e em quantidade aos filhos.

Então a primeira informação aqui é: se já era difícil antes, hoje é impossível dar conta dos conteúdos e informações que nossas crianças terão acesso. Todo o tempo que não temos as crianças têm de sobra para estar por dentro de todas novidades. Se algo faz parte do hype, elas estarão sabendo, acredite.

Quase nenhum conteúdo cultural é realmente bom para as crianças, mesmo os infantis

Nós temos apego a classificação indicativa e ela é realmente importante, mas pensar o que é “adequado” e o que não é requer um pouco mais de reflexão. Se pensarmos que a mídia é um braço do patriarcado para a nossa socialização fazendo propaganda sobre como devemos nos comportar, o que devemos naturalizar, o que é aceitável e o que não é, vamos perceber que quase nenhum conteúdo (mesmo os ditos infantis) deveria passar sem algum acompanhamento ou problematização junto às crianças. Desde o mais singelo conto de fadas (Branca de Neve foi beijada desacordada), passando por canções de ninar (o Boi da Cara Preta ataca crianças que sentem medo), cantigas de roda (o Cravo despedaça a Rosa em uma briga), chegando aos desenhos, filmes, séries, games e todo o resto. Nossa produção cultural a despeito de nos entreter e até informar, serve principalmente para nos educar dentro da agenda patriarcal. Nossa cultura espelha nossa sociedade e nossa sociedade molda nossa cultura. É uma roda que se retroalimenta.

E é fácil verificar isso. Estamos escandalizados com Round 6 e assemelhados mas, voltemos para nossa idílica infância por um momento. Onde não havia internet e nem tantos conteúdos, tik toks, e influenciadores. Uma época melhor? Mais fácil? Nós víamos programas infantis onde as apresentadoras estavam seminuas, e recebiam convidados para cantar músicas profundamente sexualizadas. Nós aprendemos a descer na boquinha da garrafa nesses programas, inclusive. Assistíamos desenhos infantis onde os “inimigos” eram combatidos na base de muita briga e violência. Tom e Jerry, Pica Pau, Papa Léguas, He-Man, Liga da Justiça, Batman, e uma lista infinita atestam isso. Assistíamos Sessão da Tarde (onde passava Goonies mas também passava Porky’s), e víamos novela. Produções dos anos 80 e 90 (não que a dos anos 2000, 2010, 2020, estejam melhores) onde violência, racismo, machismo, pedofilia, caricaturização da pobreza, normalização da prostituição, romantização da maternidade e de relacionamentos abusivos eram a regra e não a exceção.

E poderíamos inclusive fazer o exercício de analisar os produtos culturais disponíveis para as gerações anteriores (aí em formato de cinema, radionovela, fotonovelas, livros, revistas diversas). Em todos eles teremos o mesmo combo de naturalização da violência, sexismo, racismo, elitismo porque a mídia, os produtos culturais e artísticos pertencem ao grupo que nos domina (homens brancos), refletem seus valores e fazem propaganda das suas ideias de dominação.

Dessa forma pensar em produtos “adequados” ou “inadequados” é questão de um ponto de vista. A violência do Round 6 é gráfica, crua, espirra sangue na tela, mas o adolescente de 17 anos que tem permissão pela classificação indicativa para assistir a isso já teve seu espírito preparado para a ideia de que opositores podem ser assassinados desde a época em pisava na cabeça de cogumelos jogando Super Mario. Você não vê ninguém, nos desenhos, nos filmes, nas séries, do Harry Potter até a Turma da Mônica, resolvendo seus conflitos com Comunicação Não-Violenta. A dominação, punição e aniquilação do inimigo é a regra.

Dessa forma precisamos atentar para o fato de que muitas vezes só nos chocamos e nos atentamos pro que nossos filhos consomem quando o sangue jorra ou aparece gente pelada. E na verdade todos os conteúdos que nos são oferecidos precisam de um apreciação mais atenta. Somos bombardeados de mensagens que vão nos formando também, que vão nos conduzindo a pensar de uma determinada forma, que vão naturalizando comportamentos e fatos que nunca deveriam ser considerados normais em uma sociedade saudável.

A violência é tão fascinante e nossas vidas são tão normais

Violência pode causar morte, mas violência não é sobre morte. A morte é um fato que faz parte da vida. Tudo morre e crianças tomam contato muito precocemente com essa noção por inúmeros motivos. E as histórias muitas vezes a ajudam a elaborar esse conceito de perda.

Violência é sobre dominação com uso de força, intimidação, coerção.

Vá a uma sessão de brinquedos e veja a quantidade de armas que estão reservadas para serem vendidas aos meninos. E nós compramos. Nós naturalizamos crianças brincando de “bandido e polícia”. Crianças aprendem sobre “heróis e vilões”, “bom e mau”, sobre “defender” os inocentes, numa representação onde aquele que tem permissão para perseguir e matar tem sempre a mesma cara masculina e branca. Onde as mulheres sempre precisam ser salvas. Onde a disputa é sempre por poder, dinheiro, terras, dominar o mundo. Ensinamos a lógica da dominação para nossas crianças. Legitimamos o uso da força por detrás de uma narrativa heróica e justificamos seu uso em nome de um “bem maior”.

A linguagem da nossa cultura é a violência com fins de intimidação e dominação. Somos violentos uns com os outros, com vulneráveis, mulheres e crianças. Com pessoas negras, pobres. A depender da raça e classe, crianças já presenciaram mais sangue e assassinatos recaindo sobre os seus que em um episódio fraco de Round 6. A normalização da violência é uma estratégia fundamental para a manutenção do poder masculino e não é interessante que seja diferente já que é através dela que homens mantêm-se no poder.

Um mundo onde meninos repudiam a violência, onde meninas rebelam-se contra a violência, onde a violência torna-se inadmissível simplesmente inviabiliza a manutenção dos sistemas de poder vigentes.

Então precisamos falar sim sobre violência com as crianças. Precisamos explicar qual a lógica que move as engrenagens desde mundo em que elas irão viver. Explicar qual o objetivo das regras implícitas que lhes são sutilmente apresentadas. Crianças precisam aprender, o mais cedo possível, a reconhecer, repudiar e denunciar todo tipo de violência e isto é um feito dificílimo porque levado ao pé da letra vamos notar que toda nossa vida está completamente impregnada de códigos abusivos.

Como lidar com as crianças e os conteúdos que elas acessam?

  1. Primeiro é preciso trazer as crianças para o problema. Estamos falando sobre Round 6, mas pornografia é um problema infinitamente maior e acredite, elas também estão acessando ou em vias de acessar. Não temos como controlar os conteúdos mas temos como orientar as crianças para fazerem escolhas mais qualificadas. Explicar o que é a classificação indicativa, para que serve, qual a importância. Que tipo de conteúdos podem encontrar pela internet e como alguns podem ser bastante nocivos. Que a despeito da curiosidade, há conteúdos e temas que é preciso um pouco mais de maturidade emocional para acessar. Que muitas vezes um determinado assunto será um burburinho no grupo dela mas que isso não significa que os amigos estão conseguindo ter a melhor abordagem do tema. Contar um pouco que a própria criança conseguirá realizar certos filtros a partir do que você orienta que é melhor para ela. Se a criança tiver medo, ou simplesmente for proibida, coagida, ameaçada, para não acessar… a primeira coisa que ela vai fazer é correr para ver tudo.
  2. Outra dica que pode ajudar é tentar limitar minimamente, e na medida do possível mesmo, a quantidade de conteúdo que a criança acessa. Promover uma certa curadoria. Limitar acesso a diversos serviços de streaming, sempre com filtro de classificação etária, limitar o número de canais de youtubers que a criança segue e sempre, na medida do possível dar uma olhada na playlist do youtuber para ver que tipo de conteúdo ele produz, assistir uns vídeos de amostra. O mesmo para o Tik Tok.
  3. Use todos os recursos de restrição e filtro que estiverem ao seu alcance nas plataformas e dispositivos que a criança acessa. Caso a criança tenha seu próprio celular usar aplicativos de controle parental onde você consegue monitorar todo o conteúdo que a criança vai acessar do seu próprio aparelho.
  4. Reduzir o tempo das telas e redes na medida do possível. Assistir conteúdos junto com a criança, ou colocá-la assistindo perto de você. Compartilhar um pouco dos filmes, desenhos e demais coisas que ela vê. Isso ajuda a criar vínculo e parceria para que você fique minimamente inteirada do que está acontecendo no universo virtual infantil.
  5. Conversar com a criança sobre o que ela anda vendo, pedir pra ela contar sobre as histórias que assistiu, sobre as últimas youtuber predileto também é um bom caminho para fazer uma ponte para o mundo dela e ficar de olho.

Resolve? Não. Funciona 100%? Também não. Mas já ajuda a pelo menos mapear por onde sua criança anda se informando. Se nosso desafio aqui na criação deles é a socialização, nossa principal batalha parece mesmo ser os produtos culturais e os valores que eles propagam.

Tá, mas e Round 6?

Retomando as premissas de que: é impossível controlar o que elas vêem, nenhum conteúdo pode ficar inteiramente sem alguma problematização e que existe um sistema de dominação que é retroalimentado na socialização das crianças para se tornarem adultos violentos, Round 6 é o menor dos nossos problemas. Mas sim, eu entendo que muitos cuidadores estejam preocupados e desconfortáveis.

Então acho que vale saber que ainda que crianças e adolescentes não estejam vendo a série, elas têm uma boa noção do conteúdo, seja através de canais de You Tube, Tik Tok, ou conversando com os amigos que viram. Em seguida, a premissa “pessoas morrem em jogos de disputa” não é exatamente uma coisa chocante para a maioria delas. O que, é claro, não justifica assistir a série porque, como disse, há cenas explícitas de assassinato e também de sexo. E há uma diferença entre saber que pessoas foram assassinadas e ver um cérebro espirrar na tela. Então aí acho que cada família vai precisar regular isso de acordo com suas regras internas mesmo.

De qualquer forma o que não se pode mesmo é menosprezar a capacidade das crianças de apreenderem o mundo e aproveitar o hype para problematizar algumas questões muito interessantes, a depender da idade delas, como: que tipo de vida é essa que temos onde pessoas preferem disputar dinheiro dispostas a matar e arriscando-se a morrer? Quanto vale vida de uma pessoa? É ético ser bilionário em um mundo com tanta gente miserável? Será que há espaço nesse mundo para existir algo assim de verdade? Será que tanto horror é somente ficção? O que a gente precisaria para não existir um Round 6 nesse mundo? Qual a verdadeira violência ali, pessoas tomando tiro na cabeça, ou pessoas estarem tão desesperadas a ponto de aceitarem arriscar-se a morrer por dinheiro? Ou ver pessoas bilionárias divertindo-se com isso? O que é mais desumano?

Colocar as crianças para pensar o mundo. Pensar o mundo junto com elas. Criar crianças críticas, conscientes. É um exercício que vale a pena.

Cila Santos

https://cilasantos.medium.com

Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?

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