Militância Materna – Maternidade, Infância e Feminismo

Mulheres salvaram minha vida

Mulheres salvaram minha vida. E por isso, eu pensei longamente em como e no que escrever sobre rivalidade feminina. Em falar sobre como somos socializadas para entender que nosso lugar no mundo só é validado pelo olhar masculino e como isso atravessa toda nossa relação com outras mulheres porque nos coloca como rivais já de partida.

E a rivalidade feminina, além desse componente basilar, que é a disputa pela atenção masculina também é fomentada por um motivo não tão óbvio porém absolutamente estratégico aos objetivos de manutenção do patriarcado: nos manter profundamente desunidas, desconfiadas umas das outras, nos manter em silêncio, sem trocar experiências sobre o que acontece em nossas vidas, nos manter sempre na defensiva, colocando homens no centro. Desde amigas de infância que brigam por causa de um namorado, até cunhadas, sogras, noras, e todas as outras relações entre mulheres que envolvem homens e que são alimentadas por ódio na maior parte das vezes gratuito e disputa pelo amor do macho em questão.

Eu poderia escrever laudas e laudas sobre como mulheres tomam por elogio ser diferenciada (“você não é como as outras”), sobre como nunca dão o benefício da dúvida para outras mulheres, sobre como não falam da sua vida para “não atrair inveja”, sobre como encaram críticas vinda de uma mulher como “recalque”, sobre como giram tudo em torno de quem é a mais “bela” (e consequentemente chama mais atenção masculina) e sobre como não confiam no alerta de outras mulheres — principalmente sobre homens.

E eu penso nisso tudo e me dá uma tristeza profunda porque eu vejo como são insidiosos e eficientes os mecanismos do patriarcado em nos manter desunidas e em impedir que nos enxerguemos como classe, como iguais, como irmãs. Como somos impedidas na origem de enxergar como é poderosa a união entre mulheres, sobre como a revolução acontece quando mulheres reúnem-se e conversam.

Tudo o que eu tenho, tudo o que eu sou, eu devo a outras mulheres. Tudo. Da minha mãe – a primeira mulher que eu amei, passando pela minha irmã, minhas sobrinhas, todas as minhas preciosas amigas. Eu não sei se elas sabem, se eu já disse assim tão textualmente, mas eu digo agora: vocês salvaram minha vida muitas e muitas vezes. Com afago, conselhos, esporros, abraços, acolhimento, ajuda material, psicológica, emocional, física e extrafísica. Em todos os momentos cruciais era uma mulher que estava do meu lado, me apoiando de alguma forma. Todas as vezes que cai, foi pela mão de uma mulher que eu me ergui novamente. Sempre que tudo ficou escuro demais, foi uma mulher que apareceu com uma lanterna, mesmo de luminosidade débil. Eu não estaria aqui, eu não seria eu, se não fosse pelas mulheres que atravessaram minha vida.

Os homens que por aqui passaram quase sempre me trouxeram a dor que elas vinham ajudar a curar. E se eu tenho algum arrependimento é de não tê-las ouvido mais, de não tê-las antes junto de mim, desde sempre. De não nascer sabendo que são as mulheres, umas pelas outras, que vão te pegar pela mão nessa dura travessia da vida e colocar flores no seu cabelo enquanto cantamos canções.

Eu sou profundamente grata a todas, que ainda estão, ou que passaram e as que certamente virão. Profundamente. Talvez elas nunca saibam o quanto. E também tenho um amor desmedido por todas, companheiras que somos desse cativeiro que é ser mulher sob patriarcado. Eu acredito na força do amor que só uma mulher pode te oferecer, e sei que elas sempre estarão lá por você. Alguma mulher sempre estará lá por você, basta você dar a chance

Crianças não são um problema

O mundo seria muito diferente se as pessoas parassem de tratar as crianças como um problema. Que todo o discurso que é feito sobre elas, de toda a sociedade, não girasse em torno de uma ideia que não é claramente dita mas sempre muito sutilmente colocada de que elas causam o caos, que são uma perturbação, de que não deveriam estar ali.

Vivemos em uma sociedade que pretensamente “ama” todas as crianças e as protege. É o discurso oficial que está bastante longe da realidade. Crianças são um grupo vulnerável tratado como propriedade privada dos seus tutores, sob fiscalização bastante esparsa do Estado. São vistas como menos que coisas, muitas vezes equiparáveis a animais de estimação. São sistematicamente excluídas socialmente até atingirem uma idade em que possam ter utilidade social, sejam por serem férteis, produtivas, ou consumidoras. São alvo de todo tipo de discurso aberto de ódio sem que haja sequer indignação sobre o tema. E poucos se preocupam de fato do bem estar delas, enquanto grupo, enquanto classe, enquanto seres de direito, que são. Pessoas.

Eu queria que pessoas lembrassem que a infância é um estágio obrigatório para todos. Que sequer faz sentido tratar crianças como seres “inferiores” ou à margem, porque necessariamente todos nós já estivemos nesse lugar, tendo o mesmo tipo de comportamento típico, de ser uma pessoa em desenvolvimento apreendendo o mundo. Então eu gostaria que os adultos não dedicassem tanto tempo para simplesmente domesticar as manifestações naturais dos estágios necessários de crescimento de todas essas tão jovens pessoas. Que não reclamassem tanto de suas necessidades de choro, sono, fome, de sua curiosidade, rebeldia, de sua inocência, sua raiva, sua inconveniência.

Eu queria que crianças com deficiências não fossem invisíveis, não fossem tratadas como seres de segunda categorias que não precisam de deferência, afeto e cuidado porque são encaradas como pessoas sem plenas capacidades para serem exploradas à exaustão pela máquina capitalista, cujos poucos direitos que possuem foram conquistados à duras penas por suas mães, igualmente invisíveis com suas questões.

Queria que todas as crianças tivessem seus direitos respeitados e não só aquelas que interessam à sociedade, as brancas endinheiradas. Que crianças negras tivessem direito de verdade à infância e que não fossem vistas como adultas tão logo cheguem à pré-adolescência, já sendo considerados aptas para morrer na mão do Estado, ou parir.

Queria que homens não violassem, não agredissem, não explorassem corpos infantis. Que assumissem suas crianças e cuidassem delas de verdade. E que todo esse discurso de que crianças são seres “sagrados”, são “anjos”, são “seres inocentes” não fosse uma mera falácia para ficar bem na foto.

Eu queria que todos se mobilizassem para pensar a maternidade compulsória, um debate tão necessário, e não usasse isso como desculpa esfarrapada para destilar discurso de ódio contra crianças.

Parem de tratar crianças como se elas fossem um problema apenas porque somos uma sociedade embrutecida, cruel, dura, incapaz de cultivar valores de empatia, generosidade e solidariedade com quem ainda não é útil ao sistema. Parem de tratar crianças como se elas fossem um estorvo, um fardo, apenas porque ninguém além das mulheres é levado a responsabilizar-se pela criação delas. E isso interrompe a vida das mulheres sim, mas não porque há algum problema com as crianças e sim porque há um problema com toda uma sociedade que isenta-se da formação dos seus próprio cidadãos, que trata crianças como números, como exército de reserva.

Uma sociedade com valores tão deturpados não está preparada para amar crianças de verdade. Para respeitá-las. Para entendê-las. Para querer oferecer o melhor possível para cada uma delas. Para vê-las em toda sua potência, força e beleza. Somos uma sociedade de valores tão individuais e utilitaristas formada por adultos que também tiveram sua infância roubada, e precisamos ser capazes de quebrar esse ciclo sem fim de violências. Em algum momento precisaremos dar um basta. Não são as crianças que são um problema, são os adultos que em algum momento esquecem da criança que já foram. Elas são a potencial solução para esse mundo tão complicado que vivemos e nós somos incapazes de reconhecer e investir nisso.

Pelo direito de criar nossos filhos

Pode não parecer, mas lutamos pelo direito de criar nossos filhos com dignidade. A sociedade é estruturada de forma que cada um de nós seja a engrenagem de uma super-estrutura exploratória que funciona para beneficiar plenamente uma parcela muito específica e diminuta da população, a saber: homens brancos ricos. Logo, se você não é um homem branco rico, certamente está sendo explorado em algum ponto dessa cadeia, seja em função do seu sexo, sua raça, sua classe, ou tudo junto.

Nosso bem-estar enquanto indivíduos e enquanto comunidade não é algo que seja uma finalidade na nossa vida da forma como ela é organizada. Ou seja: na realidade não nascemos para “ser felizes” e sim para manter em funcionamento um sistema que faz homens brancos e ricos felizes e cada vez mais poderosos. As necessidades subjetivas de felicidade e bem-estar que nos são permitidas almejar e alcançar (e que são necessárias até como um mecanismo de regulação social, senão nos revoltaríamos) são insufladas de maneira artificial e calculadas para nos manter pacíficos, iludidos e alimentando uma roda de consumo que garante o lucro de quem nos explora.

Dito e entendido isto, precisamos ser bem honestos na seguinte questão: o sistema não liga para as crianças, que são propriedade das suas famílias até atingirem uma idade em que possam ser utilizadas na estrutura. E neste contexto, as famílias são as unidades funcionais para criar e manter os indivíduos mais ou menos em bom estado para serem usufruídos em sua capacidade produtiva e reprodutiva, e cujo funcionamento gira basicamente em torno da exploração do trabalho de uma mulher.

O sistema capitalista-patriarcal não se importa se crianças estão nascendo em sofrimento, se passam fome, se são agredidas ou abusadas. Ele apenas se encarrega para que nasça o maior número de crianças possível para que sempre exista um exército de reserva em carestia que é usado para continuar gerando riqueza. E isso através de inúmeros mecanismos diferentes como a heterossexualidade compulsória, a maternidade compulsória, o controle dos corpos femininos, a cultura do estupro, a cultura da pedofilia, machismo, racismo, etc.

É por isso que toda mulher cresce aprendendo que a felicidade vem de ter “amor” ou algo que valha, que manifesta-se em casar-se, ter filhos e cuidar de uma casa e de um marido; e que todo homem cresce aprendendo que a felicidade vem de ter “dinheiro”, sucesso e afins, que manifesta-se em trabalhar, trabalhar, trabalhar. Para que, como resultado final, mulheres mantenham-se sempre cumprindo sua função de gestar e cuidar dos filhos e manter um lar que vai dar assistência para que um homem mantenha-se trabalhando para o capital em potência máxima. Todos sendo explorados. É a máquina perfeita. E os discursos em torno disso vão se adaptando, remodelando-se com o tempo, mas todos os rios desaguam no mesmo mar, não se engane. Nós crescemos aprendendo isso, e nós estamos ensinando isso aos nossos filhos — querendo ou não.

Logo, criar TODAS as crianças felizes, saudáveis, protegidas, capazes de construir um mundo melhor não é prioridade de ninguém que detenha o poder. As pesquisas, descobertas científicas, tecnologias e teorias sobre o melhor desenvolvimento de bebês existem para garantir uma melhor criação apenas das crianças que importam: aquelas que se tornarão adultos que comporão as partes mais acima da grande pirâmide de exploração a qual pertencemos. Criar filhos com alguma dignidade é um privilégio reservado a quem pode pagar. E quem pode pagar, historicamente, tem raça e classe muito bem definidos. Em resumo, moradia adequada, segurança alimentar, acesso a informação, tempo, informação, rede de apoio, possibilidade de autoconhecimento, e tudo mais que uma criação decente de crianças demanda, é acessível basicamente pra uma bolha que contém pessoas brancas com dinheiro.

Afinal, para quem estamos falando de humanização do parto, com os sistemas de saúde pública completamente sucateados? Com o SUS sendo destruído? Para quem estamos fazendo campanha de amamentação prolongada se a licença-maternidade é de 120 dias? Para quem estamos pregando “criação com apego” se quase sempre o que a maior parte das famílias consegue fazer pelos filhos é manter o básico da estrutura de sobrevivência, colocar na escola com um beijo de bom dia, colocar na cama com um beijo de boa noite, torcendo pra ter dado tudo certo entre uma coisa e outra?

Como é que a gente fala de alimentação saudável sem falar de segurança alimentar? Sem falar de renda-mínima? Valor da cesta-básica? Agricultura familiar, aumento salário-mínimo? Como é que a gente fala de comer bem com quem passa fome? Como fala de criação sem violência sem discutir saúde mental, adições, pobreza, violência doméstica, cultura da pedofilia, desamparo estatal, ausência de proteção policial e legal?

Como é que discute antirracismo com os filhos sem falar de desigualdade social, distribuição de renda, políticas de cotas de alto a baixo, reparação histórica, taxação de grandes fortunas, redistribuição de terra e moradias? Sem falar em genocídio de pessoas pretas e pobres, encarceramento em massa?

Quando a gente toca em todas essas questões superficialmente, ou apenas do ponto de vista individual e subjetivo, sem partir da base, sem tocar na raiz dos problemas, para quem estamos falando afinal ? Quem são as pessoas que conseguem burlar estas questões estruturais básicas e ter acesso aos benefícios de um discurso progressista porque tem dinheiro para pagar por isso? E em que isso resulta senão no reforço da lógica de exploração que rege todas as nossas relações?

E fiz essa longa explanação até aqui para dizer que: não existe proposta sobre uma sociedade melhor, mais justa, que não passe pela necessidade de todos criarem seus filhos com dignidade, respeito e consciência crítica. Todos. E não somente as pessoas que chegaram até aqui carregadas historicamente por um acúmulo de privilégios. E para que todos tenham essas possibilidades, para que famílias não sejam apenas uma máquina de produzir gente a serviço da estrutura capitalista-patriarcal precisamos reivindicar estratégias que confiram condições materiais para as pessoas.

Sem condições materiais mínimas asseguradas: moradia, alimentação, segurança, educação, assistência médica, etc, não dá pra criar crianças com qualidade. Porque para garantir esse básico, temos que abrir mão do principal recurso necessário para realizar essa tarefa que é o nosso tempo. Quando se precisar estar 18 horas por dia dedicado a um trabalho laboral de manutenção da vida não interessa quanta informação nós recebemos, quantos livros lemos, quantos cursos fizemos, quantas teorias revolucionárias de criação nós conhecemos, não conseguiremos aplicar isso. Só vamos acumular a angústia e frustração.

E ocupar todo o nosso tempo também é uma estratégia do capitalismo. Precisamos ser mantidos ocupados e exaustos para que não consigamos sequer refletir sobre nossa situação. Para que a gente não pense sobre que tipo de organização de vida é essa em que estamos inseridos, que vamos sobrevivendo, passando pra frente toda a socialização que aprendemos, no automático, deixando exploração, violência e sofrimento como legado. Nosso tempo é completamente ocupado, roubado de nós para que a gente não tenha tempo nenhum de refletir quem somos, de onde viemos, para onde vamos.

A ninguém interessa uma geração de pessoas despertas, que esteja interessada em criar crianças críticas, conscientes. Que vão se tornar adultos potentes para rebelar-se. Pessoas conscientes são um problema e propor uma criação libertadora, anti-sexista, antirracista, anticapitalista é dos discursos contra-hegemônicos mais revolucionários que podem existir, e cabe a nós, pais, cuidadores, educadores, adultos interessados em plantar sementes para um futuro mais promissor, conquistar o direito fundamental e inalienável de poder criar nossos filhos com dignidade hoje. Já.

E portanto, nós temos o compromisso de ser mais ousados do que temos sido. Ou no mínimo menos ingênuos. ENXERGAR as artimanhas em que somos engendrados, denunciar, opor-se, reivindicar condições mais justas, humanas, Condições materiais. Concretas. Pensar em uma organização social que não se baseie em exploração. Que não dependa de lotes de crianças em sofrimento sendo produzidas a toque de caixa para poder prosperar. Criar uma sociedade melhor para nossos filhos só funciona se essa sociedade for melhor para todos os filhos de todas as pessoas. Porque enquanto uma criança ainda crescer com fome, sendo explorada, sendo abusada em algum lugar significa que ainda falhamos com ela e com o adultos que ela será. Que fatalmente perpetuará esse ciclo de indignidades. E vamos só afundar na ilusão de que estamos fazendo algo e continuaremos a entregar nossos filhos para esse mesmo mundo bosta com um futuro de cartas marcadas que tem cara de passado.

A felicidade de todos nós deveria ser nosso objetivo enquanto sociedade. E pra isso precisamos até entender o que consideramos felicidade. Enquanto nos for negado o direito de pensar por conta própria (roubando nosso tempo, direcionando nossos pensamentos e emoções) vamos seguir patinando. Mas acima de tudo precisamos entender que esse desafio não é dos nossos filhos, não é mais dos nossos pais. É todo nosso, e não podemos fugir. Pelo direito de criar nossos filhos e pelo direito de toda criança ser criada com respeito e dignidade.

A pedofilia é um projeto

A pedofilia é um projeto. Ela é definida como qualquer tipo de envolvimento de cunho sexual de adultos com crianças. Há hoje todo um “repudio” social à prática e aqui entram muitas aspas mesmo porque é preciso que, de uma vez por todas, a gente encare esse tema sob a perspectiva adequada: a pedofilia é uma estratégia masculina para garantir e manter seu poder sobre as mulheres.

E não é tão difícil de perceber isso. Basta saber para onde olhar.

Primeiro, vamos olhar os números, para entender a magnitude do que acontece.

Falando de Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde em 2018 foram registrados mais de 32 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes. De 0 a 9 anos, 75% das vítimas são meninas. De 10 a 19, as vítimas meninas somam 92%. As agressões (e por “agressões” entenda que a maioria é estupro) ocorrem prioritariamente em casa perpetradas pelo pai/padrasto ou um conhecido da família. E sim, os perpetradores são a maioria esmagadora, homens.

É uma média de 3 agressões por hora, o que significa que até você terminar de ler esse texto há uma chance muito grande de uma menina ter sido acossada sexualmente em casa pelo pai ou alguém muito próximo, em algum lugar do Brasil.

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E isso analisando dados específicos. Quando começamos a cruzar informações fica tudo muito mais nebuloso. Muitos já devem ter ouvido falar da “famosa” estatística de que no Brasil há um caso de estupro notificado a cada 11 minutos (que com a previsão de subnotificação poderia significar um estupro a cada minuto). O que não se falou é que 70% desses casos de estupro são de crianças e adolescentes. Segundo o 13º Anuário de Segurança Pública, com dados de 2018, de cada dez estupros, oito ocorrem contra meninas e mulheres e dois contra meninos e homens.

E isto estamos falando de tragédias domésticas.

Se consideramos os números de exploração sexual infantil então, os dados são alarmantes. Embora seja uma taxa bem difícil de levantar, um estudo de 2002, estimou que à época havia cerca de 10 milhões de crianças em situação de prostituição no mundo. Lembrando sempre que mulheres e meninas são 99% das vítimas de comércio sexual. E são alarmantes principalmente porque pesquisas consistentes quase inexistem, há um apagão de informação, subnotificação, omissão e silêncio. Sabemos por exemplo que crianças são 1/3 das vítimas de tráfico humano no mundo, sendo 70% delas, meninas. De todas as vítimas de tráfico humano mundial, aliás, meninas representam 20%. Com fins de exploração sexual para 59% dos casos. Isso sem falar nos números de pornografia infantil, que são explosivos.

E aqui falando apenas das práticas “ilegais” ou “forçadas”. Porque há as “legalizadas”. O casamento infantil é uma realidade no mundo inteiro e é a forma em que o Estado endossa a tomada de poder sobre corpo de crianças, de maneira absolutamente institucionalizada e naturalizada. Podemos então começar dizendo que no mundo hoje cerca de 21% das mulheres casaram antes de cumprir 18 anos. São 650 milhões de mulheres. E todo ano, 12 milhões de adolescentes menores de 18 anos contraem matrimônio. A idade de consentimento para casamento é uma discussão bastante recente, que muitos países não se interessam em fazer, ou tem legislações que são absolutamente coniventes com o abuso. Como permitir o união com menores após a emancipação feita pelos pais (que como resultado incentiva desde venda de menores até autorização para “salvar a honra” perdida por conta de estupro). E não há tantas diferenças assim com relação a cultura ou nível de desenvolvimento, Estados Unidos e Canadá estão tão mal posicionados no mundo, em termos de proteção a essas adolescentes, quanto o Afeganistão, Nigéria, Tanzânia e outros países da África.

Brasil é o quarto país do mundo em índice de casamento infantil e segundo o Censo 2010, pelo menos 88 mil meninos e meninas com idades de 10 a 14 anos estavam casados. Na faixa etária de 15 a 17 anos, eram 567 mil.

E tudo isso para dizer que a pedofilia seja de forma ilegal (quando há legislação protetiva) ou ilegal (quando amparado pela legislação) é uma atividade amplamente enraizada, disseminada e praticada em toda a nossa sociedade. Que a maioria esmagadora das vítimas são meninas e que a maioria esmagadora dos perpetradores são homens.

E aí cabe então agora entende como isso se estabelece e por quê isso acontece.

Eu já falei um pouco aqui sobre cultura do estupro, sobre como homens e mulheres são socializados para normalizar abuso e violência sexual como ritual de sedução. Mas para esse raciocínio ficar completo é preciso entender que o pensamento pedófilo faz parte da socialização masculina e é o principal traço da nossa cultura. Meninos aprendem a desejam mulheres jovens e aprendem a manter esse desejo mesmo quando adultos. E é bem fácil perceber isso.

Antes, é preciso um parêntese de que esse constructo cultural, como conhecemos hoje, foi reforçado principalmente no último século com advento da TV e demais mídias de comunicação de massa. Tanto como um reflexo do pensamento predominante quanto como uma necessidade de driblar o tabu que passou a ser criado quando finalmente a infância foi reconhecida como uma parte vital do desenvolvimento humano, gerando verdadeiras batalhas para criar barreiras de proteção à infância. E isso tanto é verdade que as legislações que regulam a idade de casamento infantil são absolutamente recentes. Na regra, antes disso, a prática de venda ou troca de meninas em matrimônio (como um produto mesmo) eram um negócio familiar, e não havia absolutamente nenhum constrangimento em desposar meninas mal tivessem atingidas a idade púbere.

Pesquise com que idade sua avó ou bisavó tiveram seu primeiro filho e descubra por si mesma.

Então, alguns desses parâmetros que cito aqui, nos são muito próximos e atuais e refletem um estabelecimento de uma cultura da pedofilia organizada em parâmetros muito mais sofisticados em função das possibilidades tecnológicas e com função de preservar e reinserir a lógica naturalizada de homens acessarem livremente — e sem tabu — os corpos de meninas.

Por exemplo, nós mulheres somos proibidas de envelhecer, já notaram? O homem “maduro” é sábio, charmoso, experiente. Já a mulher entra em completo pânico ao ver o primeiro cabelo branco na têmpora pois sabe que está obsoleta no mercado. Está “velha”. Deixa de ser objeto de desejo, deixa de ser “fodível”, não consegue mais inserir-se nos mesmos espaços (inclusive mercado de trabalho), fica refém — e é cobrada por isso — de um sem número de procedimentos estéticos para “prolongar a juventude”. Porque toda mulher sabe que homens querem estar do lado de mulheres jovens.

E mais, o ideal de beleza que nos é exigido reflete não só a necessidade de manter um ar de “juventude”: o apelo (vendido pelas imagens padrão da mídia, publicidade, e indústria da beleza e moda) é de uma mulher pequena, frágil, de “pele suave”, depilação total, ausência de manchas, rosto corado, magra, sem nenhuma gordura, corada, jovial, sexy mas “angelical”.

Pensem. Quem tem essas características primárias? Quem tem pele lisa e sem manchas, ausência de pêlos, pouca gordura corporal, rosto e lábios corados? Quem tem estatura pequena e frágil? Com quem essa descrição parece?

Se você não sabe eu digo: crianças.

Mulheres adultas têm pêlos, acnes, gordura, cheiros, rugas, estrias, celulites, cicatrizes e tudo mais. Ou deveriam ter. Porque homens ostentam isso tudo sem pressão, a eles é permitido crescer e envelhecer. Mas mulheres são permanentemente pressionadas para manterem um corpo e um rosto adolescente se quiserem ser atraentes. Porque homens só legitimam a beleza pré-pubere. E essa imagem de que tipo de mulheres homens devem desejar é reforçada pela mídia e principalmente pela pornografia.

Jennifer Aniston. 20 anos e mesma cútis com algum botox a mais

Homens são incentivados a “trocar” sua esposa de 40 por “duas de 20”, efetivamente ostentam relacionamentos com mulheres 20, 30, 40, 50 anos mais novas. Muitas delas que começaram a se relacionar quando ainda eram menores de idade. O abuso é romantizado com o papo de que “amor não tem idade” ou a velha história de que “meninas amadurecem primeiro que meninos”, ou que “ela era diferente e mais madura pra idade”.

Toda a nossa mídia está recheada de meninas e adolescentes sendo aliciadas para performar o papel de “ninfetas”, de “lolitas” sedutoras dos pobres homens que não podem ver uma “cabrita”. A rivalidade entre mulheres mais velhas e mais jovens é absurdamente estimulada a ponto de adolescentes serem culpabilizadas pelos assédios que sofrem de homens adultos casados que não respeitam seus relacionamentos. Meninas e jovens que são terrivelmente sexualizadas e estimuladas a buscar reconhecimento e aceitação social a partir do reconhecimento de sua beleza e da aprovação masculina que surge na forma de assédio. Não precisa ir muito longe, uma busca no instagram revela o perfil de diversas crianças e adolescentes absolutamente pornificadas.

Mc Melody, 12 anos

Nossa sociedade acolhe homens abusadores e pedófilos. A lista de homens famosos acusados de envolver-se sexualmente com menores é incalculável. Celebridades que nunca tiveram uma vírgula de sua reputação sendo afetada. E nem terão. Escândalo após escândalo, seguimos anestesiados diante do volume de casos, achando que tanta violência são causadas por “monstros”, simplesmente porque é difícil demais admitir que o que vemos é uma regra e não uma exceção: homens são criados para serem predadores sexuais de meninas.

E não pára por aí, a tentativa de institucionalização da pedofilia é real, consistente e faz avanços. Existem inclusive várias e várias tentativas organizadas de normalizar a pedofilia como uma orientação sexual, todo um ativismo pedófilo, antiquíssimo, que teve seu auge no final da década de 70/80, sofreu algumas derrotas ao longo da décadas de 90/2000 e agora está ressurgindo disseminado pelas redes travestido de “diversidade”. Existem leis como a Alienação Parental que foi toda formulada por uma teoria rejeitada em diversos países e sem nenhuma comprovação científica, criada por uma figura comprovadamente pedófila, que como resultado da aplicação tem mantido crianças em situação de abuso na guarda dos seus perpetradores. Em 2005 no Brasil, ainda vigorava uma lei que permitia que estupradores escapassem da cadeia caso casassem com suas vítimas.

A pedofilia não é uma “doença”, essa é mais uma tentativa de patologizar o comportamento masculino e causar empatia e uma falsa sensação de segurança nas mulheres, dando a impressão que só “alguns” homens são perigosos, que são pessoas “adoecidas”, que “sofrem” e podem “curar-se”. Mas se a pedofilia é uma doença de alguns, alguém me explica todos os números apresentados acima? Me explica como a idade média do primeiro assédio de qualquer mulher é anterior aos 10 anos de idade? Por homens adultos? O hábito de homens serem os iniciadores sexuais de suas filhas é uma prática tão naturalizada em algumas regiões do Norte do Brasil, por exemplo, que surgiu a lenda do “boto” que engravidava meninas pra justifica a alta taxa de gravidezes incestuosas. Essa “doença” é uma pandemia global? Porque nem coronavírus atinge tanta gente.

Apenas observem os homens. Seus hábitos, seus focos de desejo, seus fetiches, o que produzem em termo de cultura, o que pensam e dizem sobre meninas. Homens aprendem a desejar sexualmente essas crianças e adolescentes e alimentam toda uma industria de comercialização de corpos jovens, enquanto forçam mulheres a nunca parecerem velhas demais, enquanto violam meninas e as seduzem chamando de “amor”.

E tudo isso por qual motivo?

Bom, essa resposta é “fácil” e relativamente curta. Para manter o sistema de dominação de homens sobre mulheres ativo e operante.

Existe maneira mais eficiente de dominar uma mulher e tomá-la para si, ao seu serviço, do que capturando-a ainda menina? Do que submetendo-a sexualmente? Engravidando-a e a retirando da vida pública? Onde ela não poderá estudar, trabalhar, ser ativa, disputar espaço, pois estará completamente mergulhada nas tarefas de cuidados de casa e filhos? Sempre dependente economicamente porque não terá como acumular nenhuma riqueza própria, formar nenhum patrimônio?

Pensem na vida das avós de vocês. “50 anos de casamento”. Pergunte-as pelo que elas passaram, o que aturaram, o quanto serviram caladas, a que foram submetidas. Essa realidade não dissipou-se, ela é absolutamente real ainda para muitas e muitas de nós. Hoje, neste momento.

A exploração sexual infantil é um subproduto do casamento infantil porque o mundo patriarcal é um mundo que sempre entregou mulheres para o abate assim que atingissem a puberdade. E ainda entrega, mas agora de diferentes maneiras.

E o objetivo é sempre o mesmo: manter mulheres sob uma lógica de submissão e subalternidade, reproduzindo filhos e mantendo a roda do capitalismo girando. As estratégias se especializam, mas o objetivo do patriarcado não muda.

E é por isso que qualquer coisa que passe por combater práticas de pedofilia precisam levar em conta a engrenagem de como as relações entre homens e mulheres está estruturada. Então não passa apenas por dar “educação sexual”, ou mesmo de criar leis punitivistas, ou legislação protetiva. É preciso implodir a lógica de dominação sexual de homens para meninas e mulheres. Precisamos ver a pedofilia como ela é: uma estratégia de guerra de homens contra mulheres, inserida no coração do patriarcado. Uma maneira de manter mulheres acossadas com suas crianças, eternamente com medo de violência sexual. Crianças e mulheres por mais “educadas” que estejam pra reconhecer os agressores não dão conta de defender-se porque a realidade é que as agressões e as ameças e a violência está por toda parte. Basta olhar.

Precisamos de um pacto social verdadeiro pela proteção das nossas crianças, que implica no reconhecimento do homem como sujeito perpetrador da violência física e sexual contra mulheres e crianças. E que responsabilize, cobre, exija uma compromisso de todos que dizem repudiar essa realidade patriarcal.

Que homens que dizem se importar e indignam-se com tanta dor causada tenham coragem de rebelar-se, trair o patriarcado que significa trair todos os outros homens que compactuam com esse sistema de opressão. Não basta e não é justo pedir que mulheres deem conta de eternamente defender-se e as suas crias, de entregar suas vidas ao inimigo. Precisamos desmantelar essa máquina, entendendo como ela funciona, sem paliativos e principalmente sem ingenuidade. Porque é a vida de meninas, todas as meninas, que está em risco constante.

Até quando amamentação será um assunto dos homens?

Agosto Dourado e voltamos às campanhas e ao debate em torno da amamentação. Debate esse que gira invariavelmente em torno da “conscientização” das mulheres sobre a importância de amamentar seus filhos, e aí entram vários argumentos sobre benefícios de saúde para o bebê e também para a mãe, e também um universo bastante rico de informações no sentido de orientar mulheres para realizar essa tarefa. E isso seria muito bonito se a amamentação na nossa sociedade não fosse um privilegio de classes mais abastadas e também mais do mesmo na lógica patriarcal da exploração do corpo da mulher. Até quando amamentação será um assunto dos homens?

E para entendermos melhor essas afirmações tão polêmicas que eu trago assim logo de cara, é importante a gente conhecer pelo menos um pouco sobre a história da amamentação desde sempre.

A importância do leite humano como alimento imprescindível para sobrevivência de bebês sempre foi compreendida desde a pré-história quando perceberam que oferecer alimentos alternativos era infrutífero. No entanto nem sempre foi considerado importante que a amamentação fosse realizada pela mãe da criança

Apenas na antiguidade acredita-se que mães amamentavam seus filhos livremente, e corrobora com isso muito da mitologia que conhecemos até hoje, onde Deusas de diferentes panteões aparecem realizando essa prática, além de registros diversos. Já no Império Romano (que acabou em 476 DC) há registros do uso da figura da “nutriz”, que era uma mulher — escrava — cuja função era amamentar crianças. A famosa “ama-de-leite”.

Por séculos, existiu a “indústria da nutriz”, onde todos (pobres e ricos) se utilizavam da mão-de-obra de uma outra mulher (primeiro escravizada depois “contratada”) para amamentar os filhos. Com a Revolução Industrial, onde todo mundo foi parar nas fábricas, criação dos centros urbanos como conhecemos, atomização da família e principalmente o avanço das tecnologias de nutrição infantil a indústria do leite em pó veio acabar com esse nicho de mercado, transformando as nutrizes em “babás” e fazendo desabar as taxas de amamentação ao redor de todo mundo. Agora mulheres eram convencidas de que até leite condensado era melhor que o seu próprio leite e que ela deveria ser “livre” (para trabalhar na fábrica e enriquecer a indústria, no caso).

Aí vem a pergunta que não quer calar, e que quase ninguém lembra de fazer: por que mulheres pararam de alimentar seus próprios bebês, entregando a outras mulheres, se esta é uma atividade relativamente natural e consequente ao parir? Simples, porque HOMENS assim o decidiram já que:

a) lactantes demoravam a engravidar novamente e ter muitos filhos era estratégico, porque a mortalidade infantil era altíssima e crianças eram patrimônio dos pais (trabalhadores braçais, se meninos, ou parideiras para vender em casamento, se meninas).
b) no início do advento do cristianismo, lactantes eram constrangidas a não fazer sexo e os homens queriam transar.

Então a amamentação de crianças pela mãe era um péssimo negócio para homens já que sua esposa ficava envolvida numa tarefa que poderia durar anos, sem produzir novos bebês e com pouca disponibilidade – e permissão religiosa – para transar.

Atualmente, pesquisas comprovam a amamentação como estratégica para o melhor desenvolvimento dos bebês e a tarefa passa a ser reincorporada como uma boa prática, agora a encargo das próprias mães.

E aí você pensa, uau, finalmente! Evoluímos hein! Só que claro que não, se a gente olha para nossa história para aprender alguma coisa, a lição que temos aqui é: alimentação de bebês sempre foi uma coisa pensada e decidida por homens e imposta às mulheres sobre diferentes artifícios. Mulheres nunca tiveram autonomia sobre seus corpos, e, principalmente, a importância e a maneira como é realizada alimentação infantil sempre esteve ligado muito mais a fatores econômicos do que pensados realmente no bem-estar de crianças e mulheres.

E é nessa hora que eu te convido a pensar junto comigo, sem emoção, sobre esse tema.

O que acontece agora é que os principais problemas foram superados: lactantes já podem transar sem culpa e também não vão engravidar por isso. E homens entenderam que bebês bem amamentados se tornam adultos mais fortes, inteligentes, saudáveis e com mais longevidade. Entenderam que isso é um bom investimento a longo prazo.

E do mesmo jeito que mulheres foram convencidas que deveriam entregar seus filhos para nutrizes e depois que deveriam dar leite em pó para seus bebês, agora estão sendo convencidas sobre como ela deve assumir a tarefa da amamentação . Porque é um “ato de amor”, um “dever”, que é “bom pra sociedade”. Dizendo (muito sutilmente, claro) que se você não amamenta, você não ama seu filho, não quer o melhor para ele. Romantização na veia. A velha fórmula não muda.

E aí, é preciso ver com clareza qual a mulher escolhida pelo sistema capitalista para que amamente essas crianças que serão os adultos premiados do futuro. Quais são os bebês selecionados para uma existência mais saudável e com menos risco de adoecimento. E para descobrir eu sugiro um experimento simples: coloquem a hastag #smam em qualquer mídia social e observem bem as fotos. O que você vê? Mulheres brancas com acesso a bens econômicos e culturais.

Porque a amamentação e saúde de bebê para longo prazo, não é para todas as pessoas. Muito menos para a camada mais pobre da classe trabalhadora, quase toda formada de pessoas racializadas e pobres. Essa população precisa estar economicamente ativa alimentando a indústria do leite em pó, enquanto um outro grupo mais privilegiado, que tem raça e tem classe definido vai poder fazer valer o uso de todas as recomendações preconizadas pela OMS.

Ou você espera que uma mulher proletária, salário mínimo, chefe de família, quase sempre com mais de um filho, com nenhuma rede de apoio, com apenas 120 dias de licença maternidade, amamente por 6? Como? Com uma lei que te dá dois intervalos de apenas meia hora durante o período laboral para a amamentar? Com oferta mínima de creches para deixar o bebê? Com pediatras que orientam introdução alimentar aos 4 meses de idade com danoninho?

Como nós vamos falar sobre “livre demanda” com essa mulher? Quando ela passa facilmente 12 horas fora de casa? Sobre “confusão de bicos”? Quando diversas outras pessoas se encarregam de alimentar o bebê nesse período e ela perde completamente o controle do processo? Vamos dizer para ela “ordenhar” e “conservar” o leite? De que mulher estamos falando que consegue fazer isso? Aquela mulher que trabalha na fábrica, que trabalha o dia inteiro em pé na loja do shopping, que trabalha atrás de um balcão, no painel de um atendimento telemarketing?

E aí você pode argumentar: “mas os países com maior taxa de aleitamento são países muito pobres da África ou do Oriente Médio”. São sim, e quando você vai olhá-los na lupa quase sempre descobre que quase todos são países minúsculos que serviram como laboratório das campanhas da ONU. Ou você acha que se realmente houvesse vontade política de incentivar o aleitamento nós teríamos apenas 34 países (incluindo o Brasil) cumprindo a recomendação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de conceder ao menos 14 semanas de licença à mãe com remuneração não inferior a dois terços dos seus ganhos mensais?

Com quem estamos falando quando dizemos que o recomendado é que o bebê seja amamentado até os dois anos de idade? Quem é essa mulher que consegue fazer isso? Quais condições de VIDA são necessárias para isso que não flertam com privilégio de raça e classe? Ou que sejam apenas uma conjunção de perrengue e sorte?

Quão cruel é jogar essas campanhas no colo de uma mulher pobre que se chicoteia intimamente porque “não conseguiu amamentar” quando ela não teve informação, apoio e teve que voltar a trabalhar para sustentar a família? Por que ficamos falando apenas sobre amor e saúde e nunca sobre sobrevivência?

Ou vamos admitir finalmente que realmente não interessa nem um pouco a saúde de crianças pretas, pardas, pobres. Que ninguém se importa se elas se alimentam de mingau de fubá, se ficam subnutridas, adoecidas, se morrem. Porque pobre é exército de reserva mesmo, e o que mais tem no mundo são pessoas pobres, não é mesmo? E ninguém se importa com a subjetividade da mulher proletária, dane-se que ela sabe que Mucilon não é o melhor para o seu bebê, porque veja, finalmente ela está informada, mas é só aquilo que ela consegue prover, com culpa, com medo. Já que essa mulher está o tempo inteiro lidando com viver ou morrer, literalmente, e está o tempo inteiro fazendo redução de danos. Nunca escolhas.

Mais uma vez a decisão sobre quem amamenta e que bebês serão nutridos está nas mãos dos homens, e mulheres estão fora do debate e das decisões e políticas que impactam diretamente a autonomia do seu corpo e a saúde dos seus filhos.

Para um política verdadeiramente honesta sobre o tema, a amamentação é focada em saúde para todos os bebês e não só os que são estratégicos ao capital. E mulheres são chamadas ao debate e não chantageadas emocionalmente. E recebem todas as condições materiais para que possam realizar a tarefa para o qual estão sendo convocadas.

E por condições materiais eu falo da ampliação da licença maternidade para o mínimo de 6 meses segundo as recomendações da OMS assim como um “auxílio-lactação” pelo mesmo período para que toda mulher pobre, sem renda, não precise entregar seu filho com 30 dias na mão de terceiros e ir trabalhar. É preciso falar em ampliação da assistência de creches para que se possa deixar outros filhos durante o dia, enquanto dá assistência ao recém-nascido. É preciso uma ampla rede de assistência ao parto e ao puerpério, com profissionais de apoio à amamentação fazendo visitas domiciliares, orientando e acompanhando essa mãe. É preciso ampliação da licença parental, para que haja uma outra pessoa apoiando essa mulher nas demandas domésticas. E aí sim, dadas as condições para que qualquer mulher, de qualquer raça ou classe, que queira, possa amamentar, podemos falar em orientação, conscientização, incentivo, apoio.

E isso falando apenas de uma via completamente reformista.

Pensando de maneira revolucionária, pra começar, mulheres precisam retirar essa decisão da mão dos homens. Que ainda que não o façam diretamente hoje, a conduzem através das pesquisas científicas, das invenções industriais, das leis, das normas e diretrizes de saúde, das campanhas. Homens que instrumentalizam mulheres desde sempre para prestação de serviço ao sistema patriarcal e capitalista.

Precisamos tomar esse debate para nós e fazê-lo nos nossos termos, pensando juntas qual o papel que como mulheres e mães queremos, podemos e precisamos realizar, num grande pacto social. Isso significa construir coletivamente sobre qual o custo (mental, emocional, psicológico, financeiro, físico), da amamentação para nós. Pensar no lugar do nosso corpo nisso tudo. Combater essa estratégia de romantização da amamentação que é uma clara estratégia para culpabilizar e responsabilizar mulheres pela nutrição de seus bebês.

E pensarmos, juntas, nós, mulheres. Porque são muitas as questões e poucas as respostas construídas através do acúmulo do nosso olhar e das nossas experiências de mulher: e fazer isso desapaixonadamente, sem coerções emocionais.

Como a nutrição adequada de bebês deve ser gerida por nós enquanto sociedade? E como nós, mulheres, seres que somos capazes de realizar essa tarefa, queremos estar neste contexto? Esse é um lugar completamente diferente e libertário para pensar amamentação. Algo inédito e que ainda não foi feito de verdade: do ponto de vista das mulheres.

E sim, mulheres podem amar amamentar, está liberado também. Porque para muitas é uma experiência bonita e repleta de beleza num vínculo muito especial com a criança. E mais uma vez isso não tem a ver com maternidade. Mulheres amamentam, seus filhos e os filhos de outras mulheres. A experiência subjetiva de cada uma é particular e incomunicável.

O importante é a consciência de que potência não é obrigatoriedade. Que amamentar não é ato de amor, é ato de política pública de saúde. Que tem uma função estratégica importantíssima: garantir cidadãos de plena saúde e vigor para construir a sociedade. E ser nutrida deve ser um direito universal de todas as crianças, e não só das que podem pagar por isso. E amamentar deve ser um direito das mulheres, que devem conduzir esse debate como pessoas estratégicas nessa função, como sujeitos e não como objetos eternamente instrumentalizados para cumprir os objetivos dos homens nesse mundo capitalista e patriarcal.

“Paternidade consciente” é a que luta contra o patriarcado

Há por aí todo um discurso de renovação da paternidade, vindo de um movimento capitaneado por homens interessados em serem pais “melhores” para os seus filhos. É a “paternidade ativa”, “paternidade consciente”, “paternidade participativa”. E esse é um discurso muito válido e legítimo, mas vale aqui pontuar algumas coisas importantes para que isso possa ser aproveitado de forma realmente revolucionária nas relações parentais, reverberando em mudanças reais na estrutura familiar e consequentemente na educação das crianças, na vida das mulheres e na sociedade. “Paternidade consciente” é a que luta contra o patriarcado.

É muito óbvio que há um lacuna importantíssima de afetividade deixada pelos homens das gerações anteriores na criação dos filhos, muito em virtude da socialização masculina, que retira os homens desse lugar de contato com a sensibilidade e também da função “tradicional” do pai na relação familiar, onde sempre bastou que ele fosse o provedor. Ser “bom pai” era sinônimo de não deixar que a família passasse fome, sendo o homem então completamente desobrigado de estabelecer vínculos amorosos com as crianças, que só eram importantes à medida que simbolizavam o resultado da união com a mãe.

Então, com as recentes discussões sobre “masculinidade”, a via que os homens conseguem alcançar e reivindicar nesse processo é o direito de “sensibilizar-se”, de poderem ser emocionais, de chorar, abraçar, usar um belo cardigã rosa sem que sua virilidade seja questionada. E a “nova paternidade” quase sempre passa por buscar ser acessível, sensível às demandas emocionais da criança e presente. E isso não é ruim em absoluto, muito pelo contrário, é valiosíssimo que homens conscientizem-se da importância de estabelecer vínculos afetivos concretos com seus filhos, mas é valiosíssimo também que se discuta que só isso não é o suficiente e que na verdade isso é só a ponta do iceberg. Falar em “paternidade consciente” significa prioritariamente ter consciência sobre o processo e as demandas impostas pelo patriarcado na organização da nossa sociedade, e atuar ativamente pela sua desconstrução, já que sem isso é impossível para os homens exercer um papel realmente saudável e feliz na configuração parental.

O sistema patriarcal, sob qual todos nós nascemos e somos socializados nos coloca uma relação onde mulheres e crianças necessariamente são subordinadas ao homem, que exerce uma figura de autoridade e controle sobre os membros da família. Onde a mãe tem funções muito específicas, todas ligadas ao trabalho doméstico e reprodutivo (ainda que também seja uma trabalhadora no mercado), e o pai tem a função muito definida de sustentar e “proteger” o lar, que é “seu”, conferindo-lhe inclusive a prerrogativa do uso da força e da agressividade para manter sua influência e domínio. Então qualquer ação que pretenda-se realmente transformadora em relação a paternidade é aquela que propõe-se a romper completamente com essa lógica.

Portanto, não adianta nada você ser um pai bacana, carinhoso, que chega do trabalho e vai brincar com o filhão no sofá, ou é completamente disponível para seus filhos no final de semana para muita “presença” e diversão, se você é completamente alheio a todo o trabalho invisível de manutenção da vida dessa criança. Trabalho esse que é sua mulher (ou alguma mulher, certamente) que está executando. Se você, de alguma forma, permanece explorando a mãe dos seus filhos para mantê-lo lindos, limpos e cheirosos, para você só chegar e brilhar como o paizão legal, desculpa, mas você apenas colocou glitter no mesmo sistema de bosta de sempre, e está oferecendo o mesmo modelo habitual de homem misógino e machista, na versão velada premium, agora com muitos abraços ao invés de gritos.

É preciso presença de verdade. Isso significa envolver-se realmente em todas etapas de desenvolvimento das crianças. E convenhamos, isso não acontece em absoluto. Se você entrar hoje em quaisquer fóruns, cursos, palestras, que falem sobre gestação, parto, amamentação, puerpério, pediatria, alimentação, educação, vestuário, escola … quaisquer temas que sejam relacionados à criação de filhos, muito certamente 95% do público será feminino. Se for nas reuniões de escola, consultas médicas, apresentações escolares, parques, praças, supermercados, lojas de roupa, verá que são mulheres em toda parte cuidando das demandas das crianças. Escrevendo e consumindo informação o tempo inteiro, enquanto homens limitam-se a ser orientados e executar instruções, sentindo-se muito importantes por bancarem o pai esforçado que sabe trocar fralda. Mas onde eles estão se informando sobre tudo que é necessário sobre crianças para dividir essa carga mental com a mãe dos seus filhos? Estando ou não com ela?

Uma boa paternidade não pode limitar-se a ter muito orgulho de si por finalmente dizer “eu te amo” para os filhos. Por ter assumido. Por pagar pensão. Por não espancar. Por dar banho e colocar pra dormir. Eu sei que para homens parece muita coisa, mas por favor, vejam tudo que mulheres fazem, eu sei que vocês podem ser menos medíocres que isso.

Eu quero ver um dia, páginas falando sobre a “paternidade real” de homens reclamando que não têm mais tempo para tomar banho, que não vão ao banheiro sozinhos porque os filhos não os deixam em paz , homens exaustos reclamando de restrição de sono e sendo inquiridos nas entrevistas de RH sobre quem fica com os filhos enquanto trabalham. Quero ver homens remarcando compromissos pra levar o filho ao médico, ir na reunião da escola ou tendo que faltar porque a criança amanheceu com diarreia. Homens trocando informações sobre fralda de pano ou marca de descartáveis mais baratas. Trocando receitas pra tirar mancha de molho do sofá e riscado de canetinha da cortina. Pesquisando sobre aquela mancha esquisita que apareceu na sola do pé da criança. No grupo da escola ajudando a organizar a festinha de fim de ano.

E não um ou dois indivíduos, os alecrins dourados, mas todos os pais. Quero ver a guerra infinita acontecendo nos grupos de criação parental, com homens e mulheres, todos discutindo se devem ou não dar chupeta para as crianças ou se a Peppa Pig é uma má influência. Conversando com os amigos o tempo inteiro sobre as peripécias das crianças. Porque é isso o que acontece com quem realmente está envolvido, cuidando completamente dos seus filhos, de todas as etapas, ainda que dividindo as tarefas. É difícil, cansativo, chato, muitas vezes enlouquecedor, não é “divertido”. Se você se acha um “pai participativo” e não está exausto meu amigo, tem alguma coisa errada porque com certeza alguém está, e deve ser sua companheira ou qualquer outra mulher sendo explorada no caminho.

Para renovar a paternidade é preciso reordenar toda a lógica de organização doméstica com homens assumindo sua parte no trabalho. Não importa se estão empregados ou não. Assumir que ter um emprego é cansativo o suficiente para precisar não fazer mais nada é também admitir que não entende o quanto cuidar de uma casa custa, tanto em termos financeiros quanto laborais. É também admitir que acredita que sua companheira te deve alguma coisa, paga em casa limpa, comida pronta e roupa lavada, em troca do sustento que você oferece. E isso é suco de patriarcado. Um péssimo modelo parental, que mantém a noção de hierarquia de homens sobre mulheres.

E finalmente, para construir essa presença parental realmente transformadora é preciso comprometer-se com a construção de um mundo mais decente que esse. Isso significa não só romper com os privilégios sobre as mulheres por ter nascido homem, como envolver-se ativamente no desmantelamento desse sistema hierárquico, repudiando, constrangendo e exigindo medidas contra abandono parental, violência doméstica, pedofilia, estupro e tudo que envolve a exploração sexual da mulher. Quero ver esses pais defendendo espaços de livre circulação para crianças, creches gratuitas, de qualidade, em quantidade. Homens reivindicando as pautas de humanização do parto defendendo um nascimento digno para seus filhos e o fim da violência obstétrica para suas companheiras.

A “nova paternidade” precisa caminhar além e mais conscientemente rumo a uma sociedade livre de toda exploração, seja de gênero, raça ou classe. Explorações essas que homens invariavelmente colhem vantagens de alguma espécie. “Amor” é muito importante, que bom que homens estão cientes da necessidade de despertar pra isso. Mas agora é preciso mergulhar no cuidado. Até porque dizem por aí que quem ama, cuida. Não é mesmo? Então comecem por aí. Amem, responsabilizem-se e cuidem.

O que é masculinidade?

Não se nasce homem, torna-se. E nesse fazer, aquele menino, um ser dotado de inúmeras potencialidades, é podado, transformado. O que é masculinidade, afinal?

E o que consta nos manuais da “Escola Patriarcal de Formação de Homens”? Regras que ditam como ele deve ser (ou demonstrar ser, a qualquer custo), comportar-se, sentir. Instruções tão detalhadas e que são passadas tão cedo e tão sistematicamente que em pouco tempo o comportamento torna-se um padrão a ponto de chegarmos a achar que “meninos são assim”. A ponto de acreditarmos que existe um “energia masculina” ou uma “energia feminina”.

Forte, rápido, agressivo, implacável, corajoso, heróico, destemido, objetivo, resolvedor, esperto, ativo, conquistador, sexual, extrovertido, dominante, controlador. Meninos aprendem desde cedo que o homem manda e os outros obedecem. Que o homem produz, ou faz produzir. Que ele tem a prerrogativa de usar o grito, a intimidação, a imposição, a manipulação, a chantagem, a força. Tudo para conseguir o que quer. Que ele, a saber de sua condição de raça e classe, pode inclusive dominar outros homens. Conquistar o mundo. Que o corpo das mulheres o pertence e ele pode pegar a hora que ele quiser. E principalmente, meninos aprendem que um homem não é uma mulher. Em hipótese alguma ele pode comportar-se, gostar, sentir coisas que “são de mulher”. Porque ser mulher é ser o elo fraco. E aprendem a odiar e rejeitar tudo que é relacionado ao “feminino”.

E essa informação é muito importante.

Não existe a ideia de masculinidade sem o seu oposto complementar que é a ideia de feminilidade. A fortaleza simbólica do homem só existe em contraste à pretensa fragilidade da mulher e foi a masculinidade que criou a feminilidade para que esse contraponto fosse feito.

Dessa forma, o que é a mulher? Ela representa exatamente tudo aquilo que o homem não é. O outro. O não-homem. É sua via negativa. O homem é o sol, a mulher a lua. O homem é a luz, a mulher a escuridão. Ela é a passividade, a fragilidade, a sensibilidade, a empatia o cuidado, a interioridade, domesticidade, empatia, cuidado, reserva, discrição, o sutil, suave, a organização, a beleza, doçura. A candura, os tons pastéis, o perfumado, sensual, sedutor, lascivo. Que é feito para ser conquistado. Meninas aprendem que mulheres cuidam. Mulheres nutrem. Mulheres criam. Mulheres reproduzem. E principalmente aprendem que devem conquistar um homem provando a ele seu valor, para finalmente terem lugar no mundo. E devem dar filhos ao homem. Cuidar dele, honrá-lo, servi-lo. Para serem protegidas. São aquelas que existem para serem salvas. E que aprendem a admirar e defender tudo que é “masculino”.o “homem masculino” não foge do conflito

Qual a primeira “ofensa” que um menino recebe para aprender a como deve portar-se enquanto homem? “não seja como uma menininha”. Isso está dizendo a ele: não seja fraco senão ou será dominado.

“Mulher” é um xingamento. Perceba aliás como a quase totalidade dos palavrões e ofensas verbais tem a ver com atacar a virilidade masculina com comparações a mulheres. E como a homofobia é um filhote da misoginia pois o homem gay, é tido como o homem “feminino”, e o maior crime que um homem pode cometer é associar-se ao “feminino” de qualquer forma.

“Meninos não choram”, “meninos não fazem drama”, “seja homem!”, “seja forte”, “vai lá e dá uma porrada nele”, “homem não tem medo”, “não seja covarde”, “é fracote agora?”, “vai deixar barato?”, “ai, se fosse homem não deixava falar assim com você”, “vai encarar?”, “ihh, ta de blusa rosa agora, é viadinho”, “toma esse copo azul, que rosa é coisa de menina”, “flores é coisa de menina”, “pôneis são coisas de menina”, “bonecas são coisas de menina”, “brincar de comidinha é coisa de menina”, “cara, pra que tanto tempo se arrumando, virou viado agora?”, “tem que gostar de esporte de macho”, “cinza, cor de macho”, “comida de macho”, “filme de macho, com muito tiro”, “jogo de macho”, “roupa de macho”, “não me abraça não cara, tá me estranhando?”, “tá me olhando assim porquê, tá me estranhando?”, “ihhh olha lá de mão dada com outro cara, é viado”, “olha lá que mulezinha gostosa, bora assoviar”, “pow, você deixou ela te dizer não? volta lá e cata ela”, “dá bebida pra ela”, “conta aí, como foi lá com a mina, comeu? tirou foto?”, “ihh ta arrumando a casa igual mulherzinha agora?”, “larga isso aí que sua mãe que é mulher cuida”, “pede pra tua irmã cuidar ué, ela é mulher”, “vai ser jogador de futebol e pegador de mulher”, “pára de frescura, virou viado agora”, “ihh vai chorar? não é macho não?”, “aguenta porra! vira homem!”, “tem que chegar em cima e sair pegando as mulé”, “mulher gosta é de homem cafajeste”, “mulher boa é mulher com a boca ocupada”, “resolve logo na porrada não é na conversa não”, “tu não manda na tua mulher não?”, “mulher só pensa em dinheiro, são todas aproveitadoras”, “você conta a verdade pra sua mulher? é otário mesmo”, “mete a porrada logo!”, “quem tem que cuidar do filho é a mãe”, “quem tem que cuidar da casa é a mulher?, “tá lavando louça da madame? é mané mesmo”, “olha ali, cresceu rápido, o corpo já tá todo formado”, “sentou no vaso e colocou o pé no chão já aguenta” , “você tem que pensar em você”, “você pode ser o que você quiser”, “não deixa nenhuma mulher atrapalhar você”, “o casamento só vai atrapalhar sua vida”, “se tiver filhos vai ter que pagar pensão”, “você pode ter um futuro brilhante”, “se nada der certo, assalto um banco”, “olha lá, maior safada, aposto que todo mundo já comeu, não vale nada não”, “cara, olha a roupa dela, ta pedindo uma apertada”, “é piranha”, “essa é pra casar”, “já vem com pacote”, “mulher direita não faz isso”, “se me deixar eu mato”.

Assim nasce o homem. Como é que meninos tão rapidamente tornam-se um grupo cuja principal característica é a agressividade, violência e dominação, não só da outra metade da população mas de todo o ecossistema, sempre numa relação predatória? Que faz com que sejam majoritariamente os agressores de mulheres e crianças, os violadores, os abusadores, os atiradores em massa. Que faz com que sejam majoritariamente os que deflagram guerras e conflitos de toda ordem. Que disseminam a tortura, o medo, a destruição.

Homens estão no comando do mundo há 6 mil anos. Um mundo cuja lógica é a dominação através da força, do massacre, da invasão e da guerra.

E não sou eu quem estou dizendo. São as estatísticas. Os fatos históricos. Fatos esses de onde mulheres sequer constam porque foram sistematicamente apagadas. A história é sempre contada pelos conquistadores, lembram?

Não há nada na concepção de masculinidade que não passe pela formação de um ente feito para dominar através da violência e da agressividade. Todos os símbolos, toda a liturgia.

Não há nada na concepção de feminilidade que não passe pela formação de um ente a ser dominado, submetido e subalternizado. Criado com a ideia de que deve ser eleito e conquistado, reproduzir e servir ao seu amo e senhor.

E tudo isso pra dizer que não existe “masculinidade tóxica”. É incoerente e politicamente improdutivo se aferrar a essa ideia. Há movimentos até legítimos de homens que estão finalmente querendo pensar e discutir a formação do seu comportamento então é importante entender que é impossível separar uma masculinidade boa de uma ruim quando tudo que tem a ver com o esse tema faz parte de um terrível sistema de violência e conquista.

A masculinidade não se torna “boa” só porque um homem que continua usufruindo seus privilégios de dominância social, agora também “chora” e usa um pulôver rosa. Porque ser “menos tóxico” não tem a ver com fazer concessões aderindo a estereótipos de gênero do campo do “feminino”. Isso não faz nem cócegas no sistema de hierarquia que a ideia de masculinidade e feminilidade sustentam. E isso em última instância, limpa a consciência de todos os envolvidos, fazendo homens e mulheres pensarem que “algo está sendo feito”, que “homens estão melhorando”, que “homens estão se esforçando”, quando no fim eles só estão afrouxando um pouco o nó da gravata que aperta o próprio pescoço. Agora eles podem ser exploradores de mulheres, que choram.

Para homens que realmente desejam engajar-se na proposta de serem pessoas melhores o único caminho viável é romper com a ideia de masculinidade. E isso implica em abrir mão da sua prerrogativa de dominação e uso sistemático da violência. Implica em repudiar e combater veementemente toda e qualquer ação que passe pela coação, coerção e uso da força como estratégia para transitar no mundo.

Isso significa ir contra os seus e denunciar a exploração de homens para com mulheres. Significa reequilibrar a distribuição de todas as históricas funções da esfera reprodutiva que estão convenientemente no campo do “feminino”, que revertem em benefícios para homens. Significa também repudiar a feminilidade enquanto construção do ideal de mulher perfeita, bela, recatada e do lar. Da mãe e esposa. Criadas para servir ao homem nos seus propósitos.

Isso é sobre desmontar a indústria do sexo que lucra trilhões através da objetificação e comercialização do corpo feminino. Desde maneiras “sutis” como a industria da moda e beleza até seu resultado final na pornografia e prostituição. É repudiar toda e qualquer exploração do corpo feminino. Combater o assédio, o estupro. Proteger as meninas. Combater o casamento infantil. Reconhecer toda a dívida histórica que vocês possuem para com as mulheres, todo o sangue derramado, trabalho usurpado, toda a dor e violência.

Rever a “masculinidade” é tomar consciência do que significa tornar-se homem na nossa sociedade e romper com isso. E combater, ativamente. Junto a todos os outros homens. Quebrar a roda. Isso é assumir compromisso com ser homens melhores. Abrir mão do privilégio que representa pertencer a uma classe que é ensinada a ser servida e atendida o tempo inteiro por outras mulheres.

Quando o feminismo fala em “igualdade”, isso não é sobre direitos civis, ou uma equiparação dom o privilégio masculino de conquistar e invadir. Não queremos ser como os homens são dentro desse sistema. “Igualdade” para mulheres é ter o reconhecimento que somos PESSOAS, que temos integridade, dignidade, inviolabilidade. Assim como cada homem tem, só por ter nascido homem.

Eu olho para o meu filho de 5 anos e me recuso a perdê-lo para esse sistema de moer consciências. Meu filho, meu menino não é assim. Crianças não são assim. Nós a tornamos. Nós usurpamos sua humanidade. Eu acredito em um mundo onde nossos filhos tenham o direito de crescerem livres de todos estes estereótipos que os convocam a dançar essa melodia mortal tocada pelo patriarcado. E como feminista, eu acredito na revolução. E acredito que a revolução está neles, mas também está em nós, mulheres. E sim, pode estar também nos homens.

Há um teórica feminista fantástica chamada Andrea Dworkin que escreveu um discurso essencial chamado “Eu quero uma trégua de 24 horas sem estupro”. E com uma trecho desse discurso que eu quero encerrar esse texto e convocar todos a pensarem.

“Eu vim aqui hoje porque eu não acredito que o estupro é inevitável ou natural. Se eu acreditasse, eu não teria razão para estar aqui. Se eu acreditasse, minha prática política seria diferente dessa. Vocês já se perguntaram por que nós não entramos em um combate armado contra vocês? Não é porque não há uma escassez de facas de cozinhas neste país. É porque nós acreditamos na humanidade de vocês, contra todas as evidências.

Nós não queremos fazer o trabalho de ajudar vocês a acreditarem em sua humanidade. Nós não podemos fazer mais isso. Nós sempre tentamos. E em troca, temos sido pagas com exploração e abusos sistemáticos. Vocês vão ter que fazer isso sozinhos de agora em diante e vocês sabem disso.”


Dica: sugiro demais que toda a família assista ao documentário “The Mask You Lived In”, do Netflix:.

Eu me chamo mãe

Eu me chamo mãe. E há muita, mas muita mesmo, confusão sobre o termo “mãe” na nossa sociedade. Afinal, quem seria a mãe? O que ela faz? O que a caracteriza? Seria gestar? Mas e as mães adotivas? Seria parir? E as mães de aluguel? Seria então amamentar? E as inúmeras mulheres que não amamentam? Mãe é quem cuida? E as mulheres que precisam terceirizar os cuidados? E as avós, as tias, as vizinhas, as babás, que estão ali pelo cuidado dessas crianças? O que determina afinal, quem é a mãe?

Vamos por partes. Primeiramente é preciso entender como se dá a cadeia do trabalho reprodutivo e demarcar bem demarcado a função específica da mulher nesse processo de reprodução da vida. Há aqui tarefas fisiológicas essenciais e irreproduzíveis que apenas e tão somente mulheres podem realizar, a saber: gestar, parir e em alguma medida, amamentar (já que esse processo já pode ser reproduzido com eficiência embora não com equivalência). E embora se possa dizer “mas sem os espermatozoides não há concepção”, sem óvulos também não há. Inclusive mulheres podem doar óvulos, homens doar esperma e a fertilização ser realizada sem a necessidade de contato sexual. Então o jogo começa empatado. Efetivamente é no útero da mulher que o show começa. Quem desempata esse game é a maravilhosa fábrica de produzir pessoas, chamada corpo feminino.

Essa é a parte biológica, imutável, da criação de crianças. O vínculo indissociável que toda e qualquer mulher possui com a maternidade. Por seu aparelho reprodutivo ela já nasce uma mãe em potencial.

No entanto, uma vez a criança gestada e parida, o fato é que qualquer um pode se encarregar dos seus cuidados.

QUALQUER PESSOA.

Seja homem, seja mulher.

Criar uma criança, amá-la, realizar todo o trabalho de cuidado físico, emocional, social, educação, sustento, não tem nenhum pré-requisito biológico. Não requer “dom”, “vocação”, não requer “instinto”, não requer absolutamente nada específico exceto comprometimento. Assim um casal pode criar uma criança. Dois homens podem criar uma criança. Duas mulheres podem criar uma criança. Uma aldeia inteira pode criar uma criança. Alguns desenhos até indicam que ela pode ser criada por lobos ou macacos embora eu duvide um pouco.

E no entanto, esse trabalho de cuidar é realizado quase que exclusivamente por mulheres. Sempre. Guarde essa informação.

E, veja só o nó, conceber, gestar/parir, e criar são tarefas interdependentes mas não necessariamente conectadas. Ou seja, dá sim pra uma pessoa conceber, outra gestar/parir, e outras criarem. Exemplo: quem é a mãe de uma criança que nasce de fertilização in vitro de doadores anônimos, na barriga de aluguel de uma terceira pessoa? É a doadora do óvulo? É a mulher que gestou? É a mulher que criou? E se ela for criada por homens, ela não tem mãe? Um deles é “pãe”? Se levarmos em conta a parte do “mãe é quem cuida” então, a coisa fica muito mais complicada. Quantas e quantas crianças não são criadas por diversas pessoas ao longo da vida? Passam por avós, tias, vizinhas. Ou passam tanto tempo com a babá, que ela vira o adulto de referência com muito mais força que a própria mãe.

O que é ser “mãe”?

Voltemos um pouco. Gestar e parir coloca mulheres no epicentro das possibilidades de continuação da espécie. Nós produzimos pessoas, apenas. Produzimos trabalhadores para serem explorados, produzimos herdeiros para explorar. Do servo ao senhor. Do burguês ao proletário. Produzimos fucking PESSOAS. Isso é forte e absurdamente poderoso. O que aconteceria se nós tivéssemos ciência do poder disso e nos recusássemos a realizar esse trabalho? O que aconteceria se mulheres se recusassem a assumir os cuidados das crianças? Se mulheres parissem e entregassem aos homens dizendo: “já fiz minha parte, agora boa sorte”?

Como evitar então que mulheres simplesmente se neguem a produzir mais crianças? Como evitar que elas parem de se engajar em todas as tarefas necessárias para entregar trabalhadores prontinhos pro sistema funcionar?Sistema capitalista, racista e patriarcal, a propósito, onde homens exploram mulheres em todas as esferas possíveis (e homens brancos ricos estão no topo da cadeia alimentar). Como evitar que mulheres tomem consciência que são domesticadas para realizar esse trabalho, enquanto homens apenas usufruem os benefícios?

Ganha um brinde quem disser: maternidade compulsória. Um sistema que se retroalimenta e que faz que toda e qualquer menina, assim que indicada como tal pela identificação de que possui uma vulva, seja imediatamente inserida numa lógica de funcionamento do mundo onde sua única finalidade é concretizar seu potencial biológico de gestar.

A MATERNIDADE, como conhecemos, é um sistema compulsório, simbólico e cultural que é estruturante e pilar fundante da dominação patriarcal, onde mulheres são doutrinadas e submetidas a realizar todo o trabalho de gestação e cuidado de novas pessoas para o funcionamento do mundo.

E é importante demarcar isso bem claro porque maternidade não é sobre amor. Não é sobre seus sentimentos em relação a criança que você cuida. O seu amor por ela tem a ver com o relacionamento que vocês desenvolvem com uma pitada bem generosa de socialização. A maternagem é uma marca quase impressa a ferro na psiquê de todas as meninas que são treinadas para o cuidado de terceiros desde a infância. Levadas a relacionar amor e cuidado. Levadas a acreditar que ter filhos é a melhor coisa que podem fazer da própria vida. Que é uma “missão”, um “dom”, uma “função da mulher”. Meninas são sistematicamente subestimadas e rejeitadas para que se convençam de que o amor maternal é a experiência mais sublime que podem experimentar.

E muitas mulheres só encontram algo parecido com “realização” ao ceder a essa profecia auto-realizável sobre suas vidas.

Ser “mãe” é único lugar de real “destaque” que é reservado para mulheres na sociedade. Por isso a maternidade é romantizada, exaltada. Por isso que ninguém fala sobre a realidade das mulheres-mães. Por isso que ela é justificada, divinizada. Porque sob o patriarcado, se mulheres não forem mães, elas não poderão ser mais nada. E mulheres que se recusam são demonizadas e perseguidas e culpabilizadas. E mulheres que maternam são “exaltadas” para que não percebam a armadilha em que foram atiradas ao mesmo tempo que tem seu comportamento fiscalizado para saber se não estão rebelando-se.

E todas as mulheres, TODAS, seguem pela vida com essa necessidade de serem “mães” arraigada, nunca conseguem se livrar completamente. Com senso de responsabilidade em serem cuidadoras de tudo e de todos. Toda mulher em algum momento já se autodeclarou mãe de alguma coisa ou alguém: “eu sou mãezona”, “é como se fosse um filho”, “adotei pra mim”. Ter um filho para chamar de seu. Seja parentes, companheiros, vizinhos, colegas de trabalho, amigos, plantas, pets, nada escapa.

Então, em um mundo onde homens exploram mulheres por causa do seu potencial exclusivo de produzir pessoas, e onde todas essas mulheres são condicionadas, coagidas e submetidas a cumprir esse destino, não faz nenhum sentido discutir quem é a “mãe”.

Toda mulher é “mãe”, não importa se ela teve, tem ou terá filhos, porque uma vez potenciais gestantes todas são treinadas para ocupar uma função em algum ponto da cadeia de trabalho reprodutivo, se necessário. E é por isso também que a categoria “mãe” é PROPOSITALMENTE confusa porque ela é feita para abarcar toda e qualquer mulher, a qualquer momento. E quanto mais tarefas dessa linha reprodutiva essa mulher acumula mais consolidada está a função de “mãe” para ela. Uma mulher que gestou, pariu, amamentou, cria seus filhos é aquela que sente todo o peso do pé do patriarcado no pescoço. É a mãe concretizada.

“Mãe” é toda mulher que é diretamente envolvida e responsabilizada em alguma etapa do trabalho reprodutivo de pessoas.

Dessa forma, em algum nível, a que gesta e pare é mãe. A que é responsabilizada pela tutela é mãe. A que é cria é mãe. Se você borra essa categoria, mesmo ela sendo propositalmente confusa, indistinta, você não consegue delimitar esse grupo a partir dessas funções que são compulsoriamente realizadas. E se você não delimita, você não consegue lutar por DIREITOS.

Não consegue discutir licença-parental, apoio puerperal, apoio à amamentação, não consegue denunciar a dupla/tripla jornada, não consegue discutir a divisão dessas tarefas de cuidado, falar sobre exclusão dos espaços, sobre discriminação no mercado de trabalho, sobre precarização, sobre pobreza, sobre abandono parental, sobre aborto, sobre políticas de contracepção, sobre violência sexual, sobre casamento, sobre exploração de útero de aluguel, sobre divisão de bens, sobre educação e proteção de crianças, sobre inúmeros temas que são problemas de mulheres envolvidas em trabalho reprodutivo: MÃES.

E é por isso que feminismo é sobre maternidade. Que maternidade é o tema-chave que deveria interessar a todas as mulheres (mãe e não-mães). Que está no epicentro da nossa opressão. Parar de falar o nome disso não vai fazer as questões desaparecerem, muito pelo contrário, isso é uma estratégia pra minar os esforços cada vez mais conscientes de mulheres que finalmente estão entendendo o recado do feminismo sobre isso e estão se organizando como CLASSE. Dividir para conquistar, lembram?

“Mãe” precisa ser entendida como uma categoria de análise fundamental para desmantelar o poder do patriarcardo (em confluência com o capitalismo e o colonialismo numa superstrutura). Essa é uma nomenclatura que deve ser fortalecida e discutida e não embaçada ou diluída. Isso é categoria política de mulheres sob exploração. Mulheres, repito. Apenas mulheres. Pessoas nascidas com aparelho reprodutor feminino. Porque são mulheres que possuem potencial de gestar e parir pessoas e isso é intransferível e é isso que nos “torna mulher” nesta sociedade. Com todas as suas implicações.

Não caiam em armadilhas de inclusividade excludente. A sociedade patriarcal sabe muito bem definir, apontar, encontrar e responsabilizar a “mãe”, quando lhe é conveniente. Quem é mãe sabe que é, e sabe como é, ainda mais quanto mais for atravessada por outras opressões como raça e classe.

E é por isso eu me chamo “mãe”. Porque esse nome foi marcado na minha testa pelo patriarcado quando eu nasci. Não me chame de outra coisa, porque vai ser no reconhecimento dessa categoria que vamos implodi-la. Então vai ter feminismo materno sim e a revolução será pela via da derrubada desse pilar da maternidade compulsória. Só as mulheres conscientes do lugar a que foram levadas por sua capacidade reprodutiva e organizadas como categoria POLÍTICA é que poderão fazer isso.

Seguimos. A militância é materna.

Criar crianças antirracistas é garantir que vidas negras importam

Criar crianças antirracistas é garantir que vidas negras importam. E para ensinar crianças sobre antirracismo é preciso contar-lhes histórias. Contar sobre como, ao longo de toda a trajetória da nossa civilização, grupos de pessoas — quase sempre brancas — sistematicamente invadiram outros territórios e dominaram os povos ali nativos, os assassinaram, e espoliaram.

Precisamos contar como esses grupos foram acumulando riquezas saqueadas e aumentando seu poder de invasão e domínio, sempre privilegiando seus iguais. Uma prática ancestral, imemorial, e definidora quando falamos da formação do que conhecemos como Brasil.

Precisamos explicar aos nossos filhos como fomos invadidos por um povo de homens brancos ricos, que chegaram e exterminaram milhares e milhares de pessoas que aqui viviam suas vidas. Sobre como eles perseguiram e escravizaram os habitantes que sobreviveram, e aqui se instalaram e começaram a apropriar-se de tudo, com fúria, à custa de muito sangue derramado. Precisamos explicar como esse lugar se tornou refúgio de uma monarquia acossada que veio para cá fugida e quis transformar essa terra no seu albergue particular. Como fizemos parte e aperfeiçoamos o tráfico sistemático de pessoas negras trazidas do continente africano para trabalho escravo, pessoas que eram vendidas como coisas, como objetos na banca do camelô da praça e vilipendiadas.

Temos que contar as nossas crianças como durante séculos, milhares e milhares e milhares de seres humanos foram tratados como coisas, comercializados, explorados até a última gota de suor e como, em algum momento, esse modelo de economia esgotou-se e eles foram “libertos”. E explicar a farsa da abolição da escravatura e deixar que crianças entendam como, há pouco mais de 100 anos, uma incalculável população de pessoas negras, homens, mulheres, crianças, foram jogadas na rua. Sem casa, sem comida, sem emprego, sem patrimônio, sem estudo. Para permanecerem, a partir daí, eternamente coagidas economicamente por pessoas brancas, oprimidas por uma estrutura criadas para mantê-las eternamente em posição de subalternidade racial, em subempregos, sempre vistas como seres sem distinção ou dignidade.

E precisamos dizer também como todas as mulheres indígenas e escravizadas foram sistematicamente estupradas, como foram abusadas por seus senhores, que nossa nação “feliz e miscigenada” é fruto da dor e da violência sexual sofrida pelas nossas ancestrais.

Não basta “falar sobre racismo” para crianças ou “reconhecer o seu privilégio branco” sem explicar os motivos pelos quais o racismo existe. Sem explicar a estrutura que é sustentada pela segregação racial que existe para manter pessoas brancas em situação de vantagem econômica, social, financeira e em posição de manter sua hierarquia sobre pessoas negras, para que elas continuem servindo, continuem fazendo o trabalho pesado, subutilizado, que os brancos não querem realizar.

É preciso apontar que pessoas negras hoje, como resultado de tudo que pessoas brancas fizeram, compõem a maioria das pessoas pobres, periféricas, menos escolarizadas, imersas em situação de violência, exploração, marginalidade, violência sexual, abandono parental. Que sofrem exclusão institucional, são a maioria da massa carcerária, a maioria da massa evadida das escolas, a maioria da massa que está subempregada. Que jovens negros são executados compulsoriamente pela polícia. Que estão à margem dos sistemas de justiça. Que elas apenas passaram a ser vistas como “pessoas”, há pouco mais de 100 anos, tendo que correr atrás de tudo que lhe foi roubado, herança, história, cultura, patrimônio, ancestralidade. Que muitas dessas pessoas não sabem nem definir quem foram seus tataravós porque eles foram retirados à força do seu lugar de origem, separados da sua família e jogados em uma senzala. Que isso tudo acontece porque pessoas negras foram raptadas, traficadas, foram assassinadas, foram escravizadas, por anos e anos. Tudo isso feito por pessoas brancas.

Então não adianta falar sobre racismo para crianças se você também não fala em privilégio e principalmente se você não fala em reparação. Se você acredita em meritocracia. Se você fala de tudo o que acontece com a população negra como se isso não fosse um problema que, mesmo que você, indivíduo, não tenha causado diretamente, hoje se beneficia. Se você conhece seus ancestrais, se sua família tem um patrimônio, se você tem herança a receber, é porque seus antepassados brancos, em algum lugar, estiveram escravizando uma pessoa negra. E hoje você colhe os frutos dessa exploração. Você acumula para si os resultados de anos de sangue negro derramado.

E sim, é preciso que as crianças brancas que estão aí hoje entendam isso. Que mais que entender-se com sendo detentores de inúmeros privilégios, que mais que serem capazes de não reproduzir preconceitos raciais, elas sejam capazes de recuar. Educar crianças para combater o racismo é mais que mostrar que pessoas negras existem, mostrando fotos de revista ou programas de TV, é sobre alertá-las que é preciso tirar o joelho do pescoço das pessoas negras. Porque nascemos com esse joelho posto, lhes tirando o ar.

Ensinar crianças sobre democracia racial é sobre a compreensão de toda a violência que pessoas brancas impuseram e impõem à pessoas negras. É sobre reconhecimento de todo o privilégio que advém dessa violência estrutural. E é sobre reparação. Sobre apoiar e lutar sobre essa reparação. Sobre recuar nos seus direitos adquiridos à custa do sangue dessas pessoas para permitir que pessoas negras acessem os espaços dos quais foram historicamente alijados, sobre eleger pessoas negras para ocupar espaços de poder, sobre consumir de pessoas negras, sobre defender pessoas negras da violência estatal.

Você vai ser capaz de tirar o seu filho do banco protegido do carro e caminhar com ele pelas ruas onde a população negra se atropela pedindo comida? Ou vai mostrar pessoas negras pela janela? Você vai ser capaz de abrir mão de colocar o seu filho nas “melhores escolas” e nos “melhores ambientes”, com “pessoas da classe dele”, para que ele possa “vencer na vida”, em nome dele frequentar lugares mais democráticos, plurais? Você vai ser capaz de manter seu filho em universidades particulares que você pode pagar em nome de abrir espaço na disputa das melhores escolas públicas? Você vai ser capaz de abrir espaço nos concursos públicos? Vai abrir mão de explorar a mão de obra doméstica de pessoas negras? Vai deixar seu filho brincando com as pessoas da “comunidade”? Se você não atravessa sua prática com essa compreensão de como cada pessoa negra chegou até aqui dentro desse sistema e não consegue dar passagem, não adianta nada usar camiseta com frases bonitas e hashtags.

Se você no fundo olha pra todo menino negro maltrapilho como um potencial trombadinha, se você olha para toda menina negra como uma serviçal, se você é incapaz de reconhecer beleza e potência neles. Se você mesma os rejeita, acusa e pune na primeira oportunidade. Enquanto pessoas brancas que estão dispostas a repensar seus privilégios não assumirem esse nível de consciência sobre as origens e desdobramentos dessa questão, vamos apenas ficar em articulações momentâneas que passam em poucos dias dando lugar apenas a novas ondas de indignação quando uma outra pessoa branca comete uma nova atrocidade.

Antirracismo é uma prática diária. É uma vigilância constância sobre o pensamento colonialista com que cada pessoa branca é socializada no sentido de manter todos os privilégios rapinados por seus ancestrais com violência e morte. É a recusa de privilégios travestidos de direitos.É retirar esses privilégios dos próprios filhos em detrimento de um sistema justo. Escancarar as vísceras desse sistema e assumir a responsabilidade por como chegamos até aqui. É assumir para si, definitivamente, o compromisso de que vidas negras importam.

Coisas que meninas devem saber para sobreviver em um mundo de predadores sexuais

Há uma série de coisas que meninas devem saber para sobreviver em um mundo de predadores sexuais. Orientar mulheres e meninas para lidar com assédio é mais complexo do que parece porque pouco refletimos sobre como somos socializadas para o jogo amoroso, e sobre como aprendemos a nos colocar sempre em posição de vulnerabilidade no momento da aproximação amorosa, principalmente nas relações heterossexuais. Temos muita dificuldade de perceber como é embaçado esse limite que aprendemos a traçar em relação ao abuso masculino sobre nós, que recai muitas vezes desde a mais tenra infância. Nós mulheres somos criadas com mensagens muito contraditórias sobre como agir e o que devemos aceitar, principalmente sobre homens e relacionamentos.

Aprendemos que nossa aparência é a coisa mais importante sobre nós mesmas e que precisamos de validação constante a ponto de dedicarmos todo nosso tempo em função de estar “bem”, que para mulheres é igual a estar bonita. Competimos umas com as outras por essa aprovação e interpretamos qualquer discordância como uma questão de “recalque” ou “inveja” da nossa “beleza”. Somos altamente críticas em relação a nós e as outras mulheres. E em algum nível todas ansiamos pela aprovação masculina na forma de olhares, curtidas, cumprimentos e elogios. Não percebemos como isso é usado para nos manipular, como isso nos gera insegurança e como abre caminho para que qualquer homem em qualquer lugar se ache no direito de opinar nosso corpo, controlar a maneira como nós devemos nos parecer, e nos humilhar.

Aprendemos a mensagem contraditória de que precisamos ser “recatadas”, “castas”, “difíceis”, ao mesmo tempo que somos incentivadas o tempo inteiro para, desde muito jovens, nos mostrarmos sedutoras. Roupas, maquiagens, danças, caras, bocas e trejeitos, são ensinados às meninas para que elas já se posicionem socialmente como sexualizáveis. Nossa cultura é pedófila e não esconde isso. Para homens, relacionamento com mulheres é sobre ter sexo, a maior quantidade possível. Para mulheres, relacionamento com homens é sobre amor, casamento e filhos.

E assim, meninos aprendem que devem “caçar” meninas, e meninas aprendem que devem sorrir para o caçador e se oferecer em sacrifício. Dessa forma, como criar nossas meninas para que se defendam? Como ensiná-las a diferenciar uma relação potencialmente saudável de uma abusiva, se nós mesmas temos essa dificuldade e vivemos caindo em armadilhas? O que devemos ensiná-las para que possam traçar limites entre interesse genuíno e assédio?

1. Padrões de beleza são reais e inatingíveis e existem para controlar meninas e mulheres

Mostre para sua filha que os padrões de beleza que ela vê nas revistas, na TV, e agora na internet são completamente artificiais. Que mulheres só tem aquela aparência graças a muita maquiagem, muita edição de imagem e filtro. E que ter aquela aparência glamorosa faz parte da profissão delas e que portanto há toda uma equipe que trabalha direta ou indiretamente pela manutenção daquele tipo de visual. Que essas mulheres são vitrines ambulantes subsidiadas por uma indústria cuja função é estimular outras a consumirem enlouquecidamente todo tipo de produto de beleza. Que vendem uma ideia inalcançável de como mulheres devem se parecer justamente com o objetivo de mantê-las sempre angustiadas e insatisfeitas com a própria imagem, pagando qualquer preço para se tornarem como o padrão.

Explique que especialmente meninas como ela, que não entendem muito bem como é a engrenagem do consumo que move o mundo, podem ser especialmente suscetíveis a este tipo de apelo. Porque parece que só mulheres que se parecem de uma determinada forma são amadas, queridas, admiradas e desejadas. Tem suas fotos curtidas, comentários elogiosos. Meninas “feias” ou foram do “padrão” são punidas, ofendidas, rejeitadas. A sociedade é cruel e isso tem uma função: fazer uma pressão enorme na cabeça de meninas, para que se tornem mulheres inseguras e infelizes, que odeiam o próprio corpo. Que odeiam a si mesmas. E mulheres inseguras ficam vulneráveis, frágeis, suscetíveis e isso é um prato cheio para abusos. Destruir a auto-estima de uma menina é o primeiro passo para dominar a mulher que ela vai ser tornar.

E tem um segredo que é preciso saber: no final do dia, quando o trabalho acaba, mesmo as musas mais belas, longe das câmeras, são como nós. Mulheres comuns. Que também não se acham boas o suficiente. Que também não se acham bonitas o bastante.

E quem se beneficia enquanto meninas e mulheres desenvolvem depressão, anorexia, bulimia, ansiedade, gastam toda sua energia, tempo e dinheiro (muito dinheiro)? A quem serve manter mulheres sempre com a auto-estima arrasada, pensando em diversos momento do seu dia sobre como não são boas o bastante? Belas o suficiente? Aos homens. Homens que dominam todo um mercado, que lucram com isso. Homens, que mantém mulheres ocupadas em obter sua aprovação a todo custo e usam isso a seu favor para dominá-las, julgá-las, classificá-las, escolhê-las como em um leilão, como se mulheres não fossem pessoas.

Ensine a sua menina que o que ela tem de mais precioso a proteger nesse momento é o amor por si mesma, completa. Que o que ela tem de mais importante a aprender é a amar-se e amar outras mulheres. E eu sei que essa é uma tarefa muito difícil porque implica uma desconstrução que está muito arraigada. Recusar o troféu de mais bela pelo qual fomos ensinadas a morrer, pelo qual adoecemos e gastamos nosso tempo e dinheiro. Mas precisamos começar a quebrar esse paradigma essencial porque só quando mulheres deixarem de ser definidas pela sua aparência deixarão de ser tratadas como coisas. Abandonaremos finalmente a condição de objeto para nos tornarmos pessoas.

2. Atratividade física não é o elemento mais importante sobre uma pessoa e é o motivo errado para começar um relacionamento

Insista com sua filha para desconstruir a ideia de que a beleza é o elemento mais importante que alguém possui. Incentive-a a olhar e a se aproximar de outras pessoas para além da aparência física e a não permitir que ela seja abordada baseada unicamente neste parâmetro. Explique a ela que se o único fator pelo qual alguém a busca é por sua beleza, a atratividade do seu corpo, a sua sensualidade ou a sua presumida disponibilidade sexual, ela está sendo subestimada e não valorizada e merece alguém melhor, porque ela é uma pessoa completa, que é muito mais que um rosto ou um corpo atraente.

Ensine a sua filha que em um bom relacionamento as pessoas devem se enxergar e interagir por completo. Que para além de carícias e sexo, um casal conversa, se diverte, compartilha coisas da vida, se respeita, e se apoia. Que eles são amigos. E que portanto a personalidade, o caráter, os valores, da pessoa com quem ela vai se envolver é muito mais crucial que a aparência, e que da mesma forma ela deve esperar despertar interesse pelos mesmos indicadores, buscando compatibilidade. Que se ela não pode esperar se tornar uma boa amiga da pessoa que a busca romantica ou mesmo sexualmente então está fadada a entrar em uma situação pautada por hierarquia e controle, porque ela será tratada como um objeto que alguém possui. E ela deve esperar, ao invés disso, alguém com quem seja capaz de constituir uma relação genuína de afeto, respeito, cumplicidade e parceria. Não importa se é um encontro de duas horas ou um namoro de meses. Ela deve esperar consideração e respeito sempre. Que se sexo está se tornando mais importante que a integridade e saúde física e mental das pessoas envolvidas então tem algum coisa muito, mas muito errada.

3. Atração sexual é uma coisa normal e saudável e não tem a ver apenas com atratividade física

Converse com sua filha sobre paquera. Explique a ela que na idade adequada é normal que pessoas sintam-se atraídas umas pelas outras, queiram estar juntas, queiram fazer sexo. Que infelizmente, na nossa sociedade hoje, somos orientados a mover esse nosso interesse por paradigmas puramente estéticos, ou de status. Homens são guiados para buscar a mulher “gostosa”, mulheres são guiadas a buscar um “príncipe” que é, antes de tudo, “lindo”. Mas que aparência física não é definidora de atração sexual ou interesse romântico e a maneira como nos guiamos nossos afetos é condicionamento puro.

Nosso olhar, nosso querer, é formatado para admirar determinados padrões, e todos eles tem agenda, foram feitos para nos colocar num determinado lugar, cumprindo uma determinada função na lógica de uma sociedade que é patriarcal, capitalista e racista. Aprendemos, por exemplo, que mulheres “bonitas” são as brancas, magras, de traços claros europeizados, aprendemos que mulheres morenas e de corpo mais voluptuoso são as “gostosas”, as “sensuais”, que mulheres de traços latinos são “calientes”. Essas imagens existem para atender a um chamado racista, que vende uma imagem higienizada e angelical de pessoas brancas que são destinadas a perpetuação do núcleo familiar tradicional, de controle e de manutenção de patrimônio dentro de um dado grupo racial e uma imagem sexualizada de pessoas racializadas, que são desumanizadas e tidas como destinadas ao sexo e ao fetiche. Isso faz por exemplo, que qualquer pessoa que não tenha traços físicos eurocêntricos seja considerada “feia” ou “exótica”, faz com que meninas negras sejam invariavelmente preteridas e cultivem pela vida uma imensa dificuldade em ter parceiros e formar relacionamentos e que meninas brancas sejam entendidas como “esposa ideal”.

Outro bom exemplo é o das meninas que aprendem desde sempre a direcionar sua atenção sexual e afetiva para homens mais velhos. Esse incentivo inclusive é familiar que as orienta a buscar “um homem e não um moleque”, “um bom homem trabalhador que vai cuidar dela”. Como resultado, desde muito jovens, não sentem atração por pessoas da sua idade, que estão vivendo as mesmas experiências, e viram presas fáceis de abusadores. Mal entrando na adolescência, meninas já são consideradas “carne fresca no mercado” e são aliciada por homens muito mais velhos. E são incentivadas a ficarem lisonjeadas com esse assédio e aceitar esse abuso como reafirmação da sua feminilidade. A menina ouvirá que é “especial”, que “não é como as outras garotas”, que “é muito madura para sua idade”, que “é muito desenvolvida”, “já é uma mulher”, “já sabe o que quer”, e todo tipo de coisas. E isso tudo serão mentiras contadas para acessar seu corpo sexualmente, manipular e controlar.

Meninas aprendem que podem somente sentir-se atraídas por pessoas do sexo oposto, que isso é uma norma imutável, que é o “normal”, o “esperado”, o “certo”, e que qualquer coisa fora disso é a maior transgressão que ela pode cometer porque está recusando seu destino de fêmea, encontrar um macho, ser escolhida, casar e procriar. Não tutele os afetos da sua menina. Deixe que ela saiba que tem o direito de experimentar e descobrir o que realmente lhe interessa viver em termos de relacionamentos e sexualidade. Diga a ela que não existe “normal” e muito menos “anormal”. Que a organização dos relacionamentos na nossa sociedade é heterocentrada pois tem a função de manter os corpos das pessoas sob controle num modelo familiar margarina que não existe na realidade. Que o objetivo final é manter mulheres sob completa exploração do seu trabalho reprodutivo.

Manter a ilusão de uma sociedade eminentemente heterossexual é fundamental para manter a lógica capitalista que precisa de casais se reproduzindo e criando trabalhadores para serem explorados. É fundamental para a lógica patriarcal onde homens mantém a dominação sobre mulheres sobretudo sob o manto do “amor” e do cuidado da família. Permita que sua filha tenha liberdade nos seus afetos. Explique a ela a lógica por trás do pensamento lesbofóbico (e homofóbico) que é de impedir que pessoas possam decidir livremente como organizar suas vidas e escolher suas parcerias.

Então, diga a ela pra não se render a primeira faísca de paixão que cruzar seu coração, porque paixão não é sentença, não existe amor eterno, isso passa, nossos afetos são condicionados para nos empurrarem para grandes armadilhas e se ela mantiver a cabeça no lugar por tempo suficiente vai ter a chance de encontrar alguém para uma história que vai valer a pena ter vivido. Alguém da idade dela, que pensa parecido, tem os mesmos valores, e que mesmo que tudo acabe, poderá ser uma pessoa amiga pra uma vida inteira.

E que sim, é muito difícil se sentir “feia”, “gorda”, “estranha”, “inadequada”, “diferente”, mas que vale muito pena estar com alguém para quem isso não faz diferença, ou que na verdade nem é uma questão, porque não é para esse lugar que essa pessoa está olhando. Ela está olhando pra você e vendo o que você é: uma pessoa. E está amando isso e tendo atração sexual por isso, não só por seu corpo, mas por seu sorriso, suas ideias, o que você é na vida, de verdade. Diga a ela que nada diferente disso vale a pena ser vivido. Ela é uma pessoa, e deve ser amada e querida por isso e apenas isso. E ela pode amar pessoas de volta. Repita isso mil vezes para ela, até entrar fundo, até ela não ter dúvidas. E diga a ela que você sente muito que as coisas sejam assim e que você sente muito também por ter que orientá-la a travar uma batalha tão difícil e vital: requerer a própria humanidade nessa sociedade tão cruel.

4. O flerte surge da admiração mútua, o assédio surge da objetificação do outro

Quem admira o outro não quer o outro para si. Quem admira observa o outro com atenção, se inspira, cuida, respeita. Entendemos o valor daquilo que admiramos por este ser como é, não queremos modificá-lo, ou submetê-lo a nossa vontade. Desejar, por outro lado, significa querer ter algo para si, tomar posse e costumamos desejar coisas. Objetos. Mulheres não são admiradas na nossa sociedade, são objetos de desejo. Aprendemos a apreciar isso, a entender que ser tomada e possuída, que pertencer a alguém é um sinal de amor, e isso é uma armadilha que resulta em violência e em morte.

Por outro lado homens não aprendem a amar mulheres. Não aprendem a vê-las como ser humanos íntegros, dotados de qualidades e defeitos e dignos de respeito e admiração. Aprendem a vê-las como corpos sexuais que lhes devem diversão e prazer. Pergunte a um homem sobre mulheres que ele admira. Pergunte-lhe quem são, quais seus nomes. Peça para citar apenas 3. Dificilmente algum conseguirá cumprir esse desafio. Agora pergunte-lhes sobre mulheres que eles desejam, que eles gostariam de ter (isso mesmo, ter), e a lista será imensa. Homens aprendem que mulheres são coisas que eles adquirem, que passa a ser uma coisa sua, uma propriedade privada da qual ele pode dispor como bem entende.

Ensine sua filha a perceber a diferença entre a abordagem de alguém que a admira como pessoa e alguém que a deseja como um objeto. Essa é a diferença importante entre flerte e assédio. O flerte, a interação em que vamos demonstrando interesse pelo outro e conhecendo-o, é um recurso legítimo de aproximação entre duas pessoas que queiram relacionar-se. O assédio é um mecanismo onde necessariamente um impõe seu desejo sobre o outro, intimida, coage, manipula, chantageia, suborna, compra, o seu corpo, sua presença, seu sexo. É sobre poder, não sobre enamorar-se. É sobre homens que se acham no direito de tomar mulheres, desde legislando sobre sua aparência através de insultos como nas cantadas de rua (“me dá seu telefone, gostosa!”. Sobre a recusa do “não” e a insistência absoluta, que faz mulheres confundirem desrespeito com apaixonamento. É sobre subestimar a vontade do outro e querer domá-lo de qualquer forma. É sobre achar que toda mulher tem um preço, que é possível comprar consentimento. Que mulheres não sabem o que querem, ou o que estão fazendo “jogo duro”. É a “sedução” a qualquer custo. É sobre intimidação, perseguição, violência. Estupro. É sobre manipulação, chantagem emocional. É sempre mesma lógica: não há respeito pela vontade do outro porque o outro não tem vontade, não é uma pessoa, é algo a ser obtido.

Incentive sua filha a repudiar qualquer tipo de assédio, em qualquer lugar que seja. Incentive sua filha a rejeitar pessoas que avaliem corpo dela como se ela fosse um animal pronto para o abate. A afastar-se de pessoas que ignoram suas recusas. Que acreditam que insistência é prova de afeto. Explique que um homem que quer conquistá-la a qualquer custo não a ama, ele apenas sentiu-se desafiado na sua virilidade pela recusa e quer domar sua vontade. Nada de bom pode sair daí, não somos objetos á disposição para apreciação do desejo alheio.

Explique para sua menina que consentimento não tem a ver com dizer “sim”, porque muitas e muitas vezes dizemos “sim” sem estar com vontade. E aceitar algo sem vontade não é consentimento, é concessão. E, em um mundo patriarcal, inúmeros são os mecanismos que homens utilizam para dobrar nossa vontade: manipulação, chantagem emocional, coação, suborno, compra, ameaças, violência.

Consentimento não se negocia. Consentimento sem vontade é concessão e ela nunca deve fazer concessões sobre seu corpo, sobre seu sexo, sobre nada que arrisque sua integridade física, emocional e financeira. Homens irão em busca disso, vão desafiá-la, vão tentar dobrar sua vontade a qualquer custo sempre, porque eles não admitem a recusa de uma mulher. Entenda que isso acontece, e prepare-se para enfrentar. Todo o modelo de relacionamento entre homens é mulheres é formatado a partir da subalternidade e submissão feminina. Somos compulsoriamente levadas a aceitar e a dizer “sim” sobre tudo que tem a ver ou que vem de homens. E que a grande disputa é ter o direito de recusá-los. Recusar aceitar os seus gracejos, suas indiscrições, o seu julgamento sobre nossa aparência. Poder recusar sua presença, recusar sorrir para eles e agradá-los o tempo inteiro sem acusações ou retaliações.

5. O mundo ainda não é seguro para crianças e mulheres

Ensine sua criança a como agir para se defender ao perceber os primeiros sinais de assédio. Desde bebê . Explique o corpo é dela, que ninguém deve tocá-lo a não ser ela. Que nenhum adulto deve, e vá dando autonomia corporal a ela, o quanto antes for possível, de forma que apenas ela precise tocar em si mesma, mesmo para higienização. Mostre claramente quais partes podem e não podem ser tocadas. Nomeie-as com todos os nomes conhecidos, para que ela possa reconhecê-los em qualquer parte que ouvir. Fale sobre que tipo de carinhos são e quais não são permitidos. E não faça carinhos como beijinhos na boca que podem até ser toleráveis numa relação parental mas que podem deixar a criança confusa e abrir uma janela de oportunidade para abusadores. Divida o mundo das suas crias entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças e mostre sempre o que é e o que não é adequado para cada um desses universos assim como que tipo de interações são desejadas entre adultos (ou adolescentes) e crianças.

Assim que possível, explique para sua criança que predadores existem. Fale claramente sobre o tema, sobre o que eles fazem, como eles se aproximam, o que eles dizem. E ensine-as que qualquer um pode ser o abusador, inclusive alguém que ela ama e confia. Alguém de quem ela nunca desconfiaria. Ensine-a se relacionar criticamente com os adultos, explicando que eles não são perfeitos, nem sempre são modelos e que podem ser potencialmente perigosos e violentos para crianças.

Crie uma relação de confiança com seus filhos. Essa é a parte mais difícil porque prescinde em abrir mão do autoritarismo fácil, da educação pela violência e pelo medo. Implica em criar um canal constante de diálogo e principalmente escuta, de deixá-los seguros, sabedores que serão ouvidos, que acreditarão neles, que serão defendidos. Implica em tratar crianças como pessoas. Muitas e muitas mulheres passaram por situações horríveis porque sentiram medo de contar aos seus pais o que estava acontecendo. Porque foram desacreditadas. Porque foram manipuladas a pensar que ninguém acreditaria na palavra dela contra a palavra de um adulto, que ela seria punida, que ela também era cúmplice da situação, e ela não tinha um vínculo de confiança forte o bastante com os pais para saber que eles a apoiaram a qualquer custo.

Explique que infelizmente há cuidados que ela deverá tomar apenas por ser menina, como evitar andar sozinha, beber em demasiado sem alguém de confiança que possa protegê-la caso fique desorientada, evitar estar sozinha com homens de modo geral, e mais um monte de pequenas e grandes medidas que tornam a vida de uma mulher um verdadeiro inferno. E que nada disso é nossa culpa, é culpa dos homens, nós vivemos sim em uma sociedade que nos transforma em presas, sofremos terrorismo sexual e não podemos esquecer isso, nem ser ingênuas, nem achar que é exagero. As estatísticas estão aí mostrando a realidade. Então muitas vezes vai ser o seu medo que vai te proteger.

Oriente-a também sobre mecanismos institucionais para buscar ajuda, explique ela sempre pode ligar para o Disque 100, que ela pode levar a questão para a escola, que ela sempre tem a opção de buscar apoio em instâncias responsáveis e que nunca, de maneira nenhuma, deve tentar lidar sozinha com a situação.

E finalmente diga para sua menina que você estará lá por ela. E esteja. Que acreditará nela. E acredite. Que ela não deve se calar diante de abusos. E ajude a amplificar sua voz. Que ela deve procurar ajuda ao menor sinal de importunamento, seja direto ou sutil, e denunciar se estiver sendo importunada. E ampare-a. Que ela deve se proteger sempre. E proteja-a. E proteja-se. E diga a ela que ela não está sozinha nessa. Ela não está. Há muitas outras mulheres por aí, lutando para pavimentar uma estrada mais larga e iluminada para que todas as meninas possam caminhar. Juntas.

A sociedade prepara meninas para o abate.

Recentemente circulou um print por aí falando da prática de depilação com cera em meninas púberes. Uma excelente demonstração de como a sociedade prepara meninas para o abate.

sociedade prepara meninas para o abate.

E aí tem um milhão de críticas possíveis, sobre feminilização, escolha, pressão estética. Sobre como o padrão construído de como uma mulher deve se parecer é opressor e agressivo,

MAS

eu quero falar de meninas se tornando mulheres nesse mundo que odeia mulheres. Nesse mundo em que mulheres tem uma função muito clara: servir sexualmente aos homens.

Antes que comece o choro e o ranger de dentes sobre o debate da “escolha” e o argumento do “sentir-se bem”, eu queria sinalizar com algumas informações que não têm condições de ser esgotadas aqui e que portanto cada um deve fazer o seu caminho de procurar saber mais:

Primeiro ponto: o padrão estético de como um mulher deve parecer-se para ser considerada “bonita” mudou e muda constantemente, sempre de acordo com questões históricas, sociais e principalmente econômicas, sendo sempre ditada pelos homens, da classe dominante, reproduzido pelas suas mulheres e então disseminado para as classes subalternas. E aí é importante ressaltar que, historicamente esse “homem” que falo, pode ser representado pelo homem branco, anglo-saxão, que promoveu todo um processo de colonização em quase todos os continentes e impõe-se até hoje por diversos mecanismos.

E aí, como exemplo, eu posso citar como em algum momento o o padrão de beleza foi o de mulheres corpulentas. E isso por quê? Porque antigamente só quem se alimentava com fartura eram pessoas ricas e portanto ser gordo era sinal de pertencimento a uma elite. Unhas compridas e manicuradas por exemplo, originalmente eram um símbolo de beleza porque demarcava status de mulheres que não precisavam fazer trabalhos domésticos. E podemos ir ad infinitum analisando como cada elemento da nossa cultura que define o que é ser “bela” e portanto desejada e aceita (já que mulheres só são validadas socialmente se forem belas), tem um componente sexista, classista, e racista (por motivos óbvios). E dessa forma temos hoje como modelo de beleza “oficial” se persegue a qualquer custo: ser branca, magra, cabelos lisos, olhos e peles claras, traços faciais finos, poucos pelos.

Esse padrão é disseminado nas artes, literatura, música, moda e no último século levado às últimas consequências pela industria cinematográfica, TV, publicidade e agora internet. Que é dominada por homens e tem uma influência absurda nas mulheres, na maneira como elas se enxergam, como formam a imagem de como devem ser e se parecer, e de como influenciam os meninos sobre que tipo de mulheres devem desejar. Além do fato de como meninas nascem e têm sua estima como pessoa inteira, digna, íntegra, sendo destruída paulatinamente, e deixando apenas a aparência física e a docilidade como valores elogiáveis e aceitáveis. Acho que toda mulher sabe como teve toda sua potencialidade minada durante a vida e como o único que principal elogio que receber é “está linda”.

Então vamos ao segundo ponto. Hoje, os padrões de beleza que são criados atendem também a ensejos do mercado. É uma associação nefasta entre capitalismo e patriarcado que busca disseminar esses padrões em forma de demanda , criando nicho. E transformando a indústria da beleza em uma das que mais tem faturamento no mundo. Então como isso funcionou no caso da depilação por exemplo? Embora seja uma prática encontrada em culturas na antiguidade, a prática para mulheres disseminou-se como é hoje no século passado (1920 por aí) por editoriais de moda e beleza em revistas, associado a ideias como “higiene”. Ou seja, há pouco mais de cem anos, ter ou não pelos não era uma questão de beleza e muito menos higiene para as mulheres. Essa ideia foi criada e disseminada pela indústria e pela mídia (do mesmo jeito que inventaram o dia do namorados ou o dia das mães).

É importante notar e ressaltar de novo que todos esses padrões são criados por HOMENS, porque são eles que estão no comando de tudo, das empresas, da mídia, dos governos, das artes, da ciência. E que eles se beneficiam porque submetem mulheres ao que precisam e agora ainda lucram com isso. E mulheres pagam um preço alto por não reproduzir esses ditames. Se você não é magra, se você não depila, se você não se maquia, se não usa salto-alto, você será rechaçada, rejeitada, humilhada, não conseguirá arranjar parceiro, não conseguirá arranjar trabalho. Mulheres sentem-se mal, deprimidas, odeiam seus próprios corpos quando eles não estão em conformidade com o que a sociedade patriarcal dita. E são punidas. E ainda são convencidas que estão “escolhendo” se submeter. Que estão escolhendo gastar seu tempo, seu dinheiro, sua saúde emocional, fazendo mil procedimentos diferentes para ficaram dentro do que se definiu como sendo “bom”.

E aí vamos então ao terceiro e mais importante e principal ponto. A principal característica da nossa sociedade HOJE é que ela é extremamente pornificada. É a indústria pornográfica (comandada por homens) uma das que mais movimenta dinheiro e que dita qual o padrão que a mulher deve parecer. Qual o padrão de mulher desejável. E que mulher é essa?

É uma mulher pequena. Magra. De aparência frágil. Sem nenhum pelo. Vulva pequena e rosada.

O padrão de mulher que a indústria pornográfica vende como sendo a mulher desejável, a mulher comível, é a de uma criança.

E mulheres estão cada vez mais tentando transformar sua aparência, na aparência de uma criança. Extremamente magras. Nenhum pelo em parte nenhuma do corpo principalmente genital. Vulva e anus rosados. Pele sem nenhuma marca, sem nenhuma mancha. Lábios rosados e mais protuberantes. Olhos saltados. Cílios alongados. Crianças têm essa aparência, não mulheres adultas. Mulheres adultas estão sendo impulsionadas a emular um comportamento cada vez mais infantil e erotizado e impedidas de envelhecer. E crianças estão sendo erotizadas, adultizadas, pornificadas, e aliciadas.

O padrão de beleza da nossa atualizado é pornificado e pedófilo. Precisamos proteger nossas crianças. Estamos lutando para dar uma infância as nossas meninas, para que elas tenham direito de crescer, estudar, decidir o que querem fazer das suas vidas. Ainda assim o número de casamentos infantis no mundo é uma coisa assustadora. O número de abuso infantil, e violações de toda ordem é uma coisa alarmante. Precisamos acordar desse pesadelo e proteger nossas meninas. Elas nasceram em uma sociedade que as prepara para o matadouro. Que de um jeito ou de outro tenta valer sua lei de que mulheres foram feitas para a apreciação sexual masculina. Há pouco mais de cem anos era praxe que meninas se casassem logo depois que tivessem sua primeira menstruação. A maioria de nós teve avós que se casaram crianças e tiveram diversos filhos, vivendo uma vida pra criar crianças e cuidar do lar e do marido. E agora estamos permitindo que essas meninas voltem para o mesmo lugar, colocando-as na prateleira para exposição e assédio masculino tão logo entram na puberdade. Achamos que é escolha. Não é escolha. Isso é o que patriarcado sempre fez conosco, mas agora com um golpe de mestre, deixa que nós mesmas façamos o trabalho sujo com a ilusão de “empoderamento”. Isso não é empoderamento. Empoderamento é o que os homens tem.

Não caiam na falácia da escolha. Façam um movimento de analisar os motivos reais que nos levam a reproduzir determinados comportamentos, que nos levam a agir como agimos. Se fosse escolha e fosse tão bom, homens em massa estariam fazendo o mesmo e usufruindo, afinal eles constroem o mundo pra eles. Mas eles estão escolhendo opções de conforto sobre a própria aparência, o mundo que eles construíram pra eles é um mundo em que não precisam da aprovação de ninguém para sentir-se validado. Homens estão escolhendo consumir mulheres, explorar mulheres, homens estão escolhendo meninas porque elas são mais frágeis, inexperientes, imaturas. Homens escolhem meninas porque são presas fáceis para o abate e nós não podemos facilitar o trabalho deles.

Vamos problematizar o Papai Noel?

O Natal está chegando. Será que vamos problematizar o Papai Noel? Algumas mães entram em crise existencial se perguntando se devem ou não deixar seus filhos acreditarem no bom velhinho, também conhecido como Papai Noel. O argumento — muito justo — é de que esta é uma tradição inventada para turbinar o consumo, que é uma mentira que contamos para as crianças, que isso pode aumentar aí o número de horas na terapia dos pequenos rebentos, entre outras questões filosóficas, políticas e sociais.

Veja bem, gostaria aqui de fazer uma observação sobre esta questão, até porque eu mesma, muito antes de ter filhos obviamente, imaginei que não ia deixar meu filho acreditar nesse velho capitalista que dá presentes para as crianças de posses enquanto milhares morrem de fome. Porém, tomei um saboroso tabefe da realidade que gostaria de compartilhar aqui.

Em primeiro lugar é importante ressaltar que nós mães — via de regra — não temos tanto poder assim para decidir no que nossos filhos vão ou não acreditar. Lá para os 3 anos de idade eles mergulham num mundo de fantasias do qual muitos não saem nem quando chegam na vida adulta. Então conforme-se, seu filho vai acreditar em coisas, muitas das quais você não terá controle. Monstros, heróis, zumbis… ele vai ter amigos imaginários, e não adianta você perder tempo tentando explicar para ele porque dinossauros são reais e dragões não.

Depois, as fantasias infantis hoje são turbinadas pelo convívio social, escola e principalmente a mídia. Então, a menos que você crie seu filho dentro de uma gaiola, ele vai ouvir falar desse tal de Papai Noel, vai ver desenho, comercial, os parentes vão falar, amigos da escola, vão perguntar a ele na rua se ele já escreveu a tal cartinha, mesmo que escrever cartas nem seja um hábito da geração dele. De um jeito ou de outro, ele vai saber que esse velho faz contrabando de brinquedos, e ele vai querer a parte dele em geleca, goste você ou não. Então, mesmo que você se faça de desentendida e nunca alimente essa ideia no seu filho, isso será construído no imaginário dele de alguma forma.

Aí é escolha sua se quer ou não desmontar isso, e em nome de quê. E vale pensar, qual custo vai ter pro seu filho, uma criança, ser o floquinho de neve especial que confronta todos os amigos e gera silêncio constrangedor ao dizer a frase “minha mãe disse que Papai Noel não existe, é ela que compra meus brinquedos”, e talvez ver os coleguinhas começarem a chorar, é claro. Aliás, qual o custo para o seu filho em ser o elemento que vai semear a dúvida e a discórdia entre todos os amiguinhos que vão perguntar o que ele ganhou de Natal e mostrar o que encontraram debaixo dentro do sapatinho que deixaram na janela.

Seu filho é uma criança. E o Papai Noel já é um mito moderno que está profundamente enraizado na nossa sociedade com todos os seus defeitos e qualidades. O argumento de que ele é uma “mentira” pouco se sustenta porque metade das coisas que crianças usualmente acreditam são “mentiras”, ou eufemismos, ou verdades editadas/suavizadas/adaptadas. E o que não for elas complementam com a própria imaginação. Acreditar no Papai Noel, da Fada do Dente, no Coelhinho da Páscoa (ou no Batman, Hulk e Elza do Frozen) não vai tornar o mundo dela pior ou melhor. Apenas vai mantê-la integrada na mitologia infantil do seu tempo.

Agora, a mitologia do Papai Noel é algo livre de problematizações? De jeito nenhum. Ele é o mito moderno dessa sociedade capitalista e consumista, mas é o que tem pra hoje. Todas as sociedades, em todos os tempos, construíram seus mitos e nenhum era lá grande coisa também. Mas existe um maneira mais “saudável” de trabalhar esse mito com as crianças e atravessar o Natal? Existe sim, quer ver?

  • evitar associar a ideia de que o presente é uma recompensa por “bom comportamento”: Crianças não tem que ser obedientes ou estudiosas ou seja lá o que for porque querem ganhar presentes e sim porque ser obediente e estudioso são virtudes importantes de serem cultivadas que são um recompensa em si e trazem benefícios de longo prazo. Você pode dizer para o seu filho por exemplo escrever uma carta (ou mandar um email, um whatsapp, sei lá) contando pro Papai Noel como foi o ano, o que ele mais gostou de fazer, o que ele espera para o ano que vem e agradecendo pelas coisas boas que ele viveu.
papai noel
Coitado do bom velhinho, gente.
  • você não precisa dizer ao seu filho que os brinquedos que o Papai Noel distribui são feitos por mágica e surgem do nada, fazendo parece que ele pode pedir qualquer coisa e colocando você em uma enrascada financeira. Você pode dizer que o Papai Noel é um fabricante e que você paga pelo brinquedo que ele vai produzir e entregar, portanto o presente tem que estar dentro das suas possibilidades. E vale aí explicar que esse é o motivo pelo qual algumas crianças não conseguem receber presentes: porque seus pais não têm condição de pagar. Não está nem muito longe da verdade e ainda dá uma pitada de consciência social que não faz mal a ninguém.
  • não obrigue seu filho a tirar aquelas fotos com o Papai Noel caso ele deteste ou tenha muito medo. Deixe que seja uma coisa espontânea porque ele realmente gosta do velho barbudo. E faça com que ele tire a foto de pé ao lado, ou no seu colo, nunca no do Papai Noel. Sério, não deixe seu filho sentar no colo de estranhos nem que seja para uma foto de 5 segundos.
problematizar o papai noel
Não faça isso com seus filhos, sério mesmo.
  • explique o sentido de presentar, o sentido do Natal, tanto do ponto de vista religioso quanto laico, mesmo que você não tenha nenhuma religião e esteja pouco se lixando para a data. O seu filho é um ser social, é importante que ele entenda o que acontece na sociedade na qual ele está sendo criado.
  • Aproveite a oportunidade para não repetir a pior tradição de Natal de todas: mulheres se matando de cozinhar enquanto homens coçam o saco e tomam cerveja. Essa é uma péssima mensagem sobre divisão do trabalho doméstico e papel social que as crianças recebem todo fim de ano. Coloca todo mundo pra fazer tudo. Ou então pede pizza.

Outra coisa importante a ser dita: a “decepção” que seu filho pode vir a sentir ao descobrir que Papai Noel não existe ou a percepção de que “meus pais mentiram para mim” estará diretamente ligada a maneira como você vai se envolver com a fantasia dele. Você não precisa ser a pessoa que vai introduzir a mitologia do Noel para o seu filho. Você pode ser a pessoa que funciona como facilitadora de uma crença que ele fatalmente vai elaborar por conta própria. Nesse sentido, quanto mais histórias e firulas e mecanismos de reafirmação do mito você inventar, maior a sensação de “ter sido enganado” que seu filho pode vir a ter. Ou pode ser que você mesma seja capaz de perceber o momento em que a “magia” perdeu o sentido e vá explicando que o Papai Noel é o que é, um mito.

E pode ser inclusive que seu filho passe em branco por tudo isso por muito tempo e quando ele vier a prestar atenção já vai estar com idade suficiente para concluir que a história é bastante mal contada já que quase ninguém tem chaminé no Brasil e renas voadoras aqui já teriam sido abatidas em pleno vôo.

De qualquer forma, se a criança for aficcionada por Natal, tiete de Papai Noel, fã número um das renas e dos duendes… boa sorte e aproveita também. Daqui a pouco passa. Os filhos crescem muito rápido e não demora estamos sentindo saudades de quando a vida era tão simples para eles que a maior preocupação que tinham era receber a visita do bom velhinho.

problematizar o papai noel
Aproveita e escreve sua cartinha também! Feliz Natal!

Meu menino e o mar

Desde bebê seus olhos brilham de encantamento, quando engatinhava pela areia buscando as ondas. Eu seguro sua mão. Pequena. A água chega. Molha meus pés, nossos pés. Ele se joga. É o meu menino e o mar.

Ele não tem medo do mar. Segura firme em minhas mãos e deixas as ondas arrebentarem no seu corpo, engole a espuma, o sal, engasga e ri. Eu o amparo com o coração aos pulos mas não há nada a fazer, exceto deixá-lo descobrir. Ele se sustenta, busca o equilíbrio, vai aprendendo o mar.

Ele não tem medo mar. As ondam surgem gigantes e ele pede mais. Quer ir mais fundo, acha que já sabe nadar. Eu peço a ele que respeite aquele gigante. O que me resta senão ensiná-lo a temer a grandiosidade do oceano? Senão segurar forte em sua mão para que a correnteza não o leve? Senão mostrar como se manter de pé, como reconhecer o perigo, como não ir longe demais?

Eu o seguro firme mas deixo-o livre o bastante para experimentar a potência daquela arrebentação. Para que ele possa se deixar levar. Cair e levantar. Eu o ajudo a se manter de pé e peço para que se acalme quando seus olhos ardem, quando a respiração falta. Eu o tiro de lá para que não fique cansado demais.

Mas um dia ele será grande o bastante, forte o bastante. Maior que eu. Do tamanho do mar. E irá desbravar aquelas águas sem precisar de mim. Ele irá para o mar com a paixão que tem pela vida, por aquele sol, por aquele azul. Ele nadará, vencerá a correnteza e conhecerá mais. Um dia ele não será mais o meu menino. E dele será a vida. E o mar.

Eu amo meu filho e amo ser mãe, o que eu odeio é o patriarcado

Há uma frase inclusive muito famosa que é especialmente reveladora que diz “amo meu filho, mas odeio ser mãe”. Isso não faz nenhum sentido para mim. Eu amo meu filho e amo ser mãe, o que eu odeio é o patriarcado.

O que isso significa na realidade a frase “amo meu filho, mas odeio ser mãe”? Porque inclusive essa frase é uma contradição em termos. Você ama seu filho por causa da relação que tem com ele que é a relação de maternagem. Você não ama o bebê da vizinha. Não é um amor universal por todos os bebês do mundo. É um amor exclusivo, característico que você sente por essa criança por ela ser quem é: seu filho. Então, na real, não dá pra “amar seu filho” mas “odiar ser mãe”, porque uma coisa está intrínseca na outra, não existe sem a outra.

Mas eu estou dizendo a maternidade na nossa sociedade então é uma coisa boa e que as mulheres estão reclamando demais, porque o amor compensa tudo? Nem pensar uma blasfêmia dessa. O que eu estou dizendo é que se você ama seu filho, você ama ser mãe porque você só é mãe porque tem esse filho. É uma relação intrínseca. É a existência de um filho que torna uma mulher, mãe. Então no fim, não é a maternidade que você odeia. Você odeia tudo que a sociedade te tornou e maneira como ela te trata em função de te obrigar a ter filhos e criá-los absolutamente sozinha e da maneira que se espera. E aí, vamos dar nome aos bois: você odeia o patriarcado. Mais especificamente aos homens. Porque são eles que fizeram isso.

Vamos responsabilizar a quem é de direito.

São os homens que, no controle das leis, nunca se preocuparam em criar legislações específicas de proteção e amparo para mulheres gestantes e mães. São os homens que, no controle das empresas, disseminam a cultura de discriminação de mulheres que tem filhos. São os homens que objetificam os seios femininos a ponto de você ter constrangimento em amamentar em público e são eles que projetam os espaços públicos e nunca se preocupam em criar espaço para mães e suas crianças. São homens que no controle das políticas públicas não constroem uma rede eficiente de creches e escola que atenda a necessidade de trabalho e descanso das mulheres.

São homens que estão no comando dos centros de pesquisa desenvolvendo métodos contraceptivos cuja responsabilidade do uso cai no colo das mulheres e nunca métodos que eles mesmos podem usar. São eles que se recusam a usar camisinha. São eles que fazem e votam as leis que não permitem a interrupção de uma gravidez indesejada.

São homens que abandonam em massa seus filhos ou exercem uma paternidade de ocasião, não dividem tarefas domésticas, exploram suas mulheres e as deixam completamente sobrecarregadas. São homens que praticam violência sistemática contra mulheres e crianças as deixando sob um regime de completo terror e desamparo.

São homens que fazem — ou não fazem — as leis que deveriam proteger mulheres e crianças. São eles que as aplicam — ou não aplicam. O desamparo da mulher-mãe tem nome e endereço.

Se cada homem cumprisse essa obrigação mínima, no aconchego do seu lar, de fazer apenas e tão somente a sua parte, o fardo da criação já diminuiria imensamente sobre as mulheres. Se cada homem constrangesse outro homem que pratica abandono parental, que agride, que maltrata, violenta, abusa, sequestra, mata sua mulher e seus filhos, se fizessem esse mínimo, mulheres sentiriam-se mais seguras, livres, menos reféns do medo.

Escutem as mães. Escutem o que elas dizem. Quando uma mãe fala sobre sua maternidade e diz que “um sorriso paga tudo”, ou que “não existe felicidade maior”, ela não está só tentando minimizar uma situação que é de sofrimento (embora também), ela está dizendo: “olha, mas há coisas boas nessa experiência a ponto de valer a pena”. Porque mesmo homens, quando efetivamente resolvem assumir para si realmente a criação dos seus filhos, relatam encontrar esse lugar de satisfação emocional.

Não podemos ignorar a dimensão subjetiva da experiência que é a parentalidade, porque no fim, a subjetividade é essa força motriz que nos impulsa enquanto humanidade. Com maternidade compulsória ou sem maternidade compulsória, com socialização ou sem socialização, o fato é que mulheres pariram, parem e parirão ainda por um bom tempo. E essa experiência também é um lugar que oferece recompensas emocionais para muitas e muitas delas.

O que a maternidade precisa é ser retirada desse lugar instrumentalizado. A mulher precisa ser retirada desse lugar de reprodutora de mão-de-obra pro capitalismo, de capataz do patriarcado. Para que uma maternagem menos sacrificante não seja quase um privilegio de classe, onde todas as demandas faltantes no processo de criar um filho são resolvidas por se ter dinheiro.

O discurso da “maternidade real” e todo o discurso que está sendo criado sobre maternidade não está sendo efetivo para construir pontes entre a sociedade no geral e mulheres-mães e principalmente para a proteção das crianças. Que acabam sendo eleitas as grandes culpadas, afinal, elas insistem em nascer e existir. São vistas como pequenas maldições que as mulheres precisam “aguentar”. O discurso de ódio contra crianças na nossa sociedade já é consistente demais para que as próprias mulheres venham engrossar o coro.

Precisamos nomear o problema da maternidade: o problema são os homens. Não são as mulheres, não são as mães, não são as crianças. A maneira como tratamos esse tema só nos leva a um lugar onde mulheres-mães vão sendo cada vez mais isoladas, onde são vitimizadas, ostracizadas, postuladas como “coitadas”. Onde crianças vão sendo vilanizadas, como se elas fossem pequenos gremlins que só suas mães aturam. Como se o problema da maternidade fosse ter que criar essas crianças que são… veja só! crianças! com suas demandas específicas de um ser em desenvolvimento. Como se não houvesse beleza e encantamento nesse processo para quem está envolvido. Como se algumas vezes, no final do dia, realmente um sorriso não pagasse tudo.

Criar crianças, preparar seres humanos para conviver em sociedade (que é afinal do se trata a parentalidade, não?), é uma tarefa de muita beleza e muita dor. Mas essa dor só é tão intensa porque a sociedade para a qual as criamos, e na qual estamos inseridas, é esse caldeirão de injustiça, exploração e caos que vemos todos os dias. Então vamos nos organizar para atacar o problema na sua raiz, que certamente não são as mulheres, ou as crianças, mas sim, como sempre, esse sistema capitalista-heteropatriarcal.

O dia que o Lias foi embora

Quando Lias apareceu eu e meu companheiro nos assustamos um pouco. Lias era o amigo imaginário do meu filho. Ele apareceu quando ele tinha uns 3 anos e meio mais ou menos e, bom, talvez por meu filho ter pouca imaginação ou imaginação demais, Lias era a própria mão dele, cuja voz ele fazia, como um ventríloquo.

De certa forma era engraçado, era literalmente o famoso “fala com a minha mão”. Meu filho conversava o tempo todo com o Lias, que no caso era a própria mão dele, e ele mesmo respondia com uma voz fina engraçada. E eu cheguei a imaginar explicações diversas para um comportamento tão excêntrico até que resolvi pesquisar um pouco e entendi que era um processo absolutamente normal da criança em crescimento, e que o melhor era não se meter e deixar ela lá vivendo o processo. E eu no caso só filmei algumas vezes pra usar no futuro porque afinal aquelas cenas dele falando com a mão eram boas demais pra deixar passar.

Amigos imaginários são um recurso que muitas crianças utilizam — e outras não — para começar a lidar com a realidade, com seus sentimentos e com sua individuação. A criança “treina” com o amigo invisível suas habilidades em aquisição de ir pro mundo e se relacionar com o entorno.

E dessa forma Lias, a mão, entrou pra família. E já estávamos acostumados a ver meu filho colocando a culpa nela de coisas que ele tinha feito, brincando, brigando com a própria mão e nos envolvendo em intermináveis diálogos com ela.

Até que Lias foi aparecendo cada vez menos, a ponto de sua ausência ser sentida. E um dia eu não resisti e perguntei “meu filho, cadê o Lias?”, e ele respondeu “o Lias não existe”. Assim, na lata, sem nem preparar meu coração.

O Lias não existe. Eu e meu companheiro nos entreolhamos e os olhos dele estavam brilhando de lágrimas assim como os meus. Como assim o Lias não existe? Se outro dia ele estava aqui, brigando comigo pedindo um beijo de boa noite? Como ele não existe se eu ainda lembro de você meu filho, se atrapalhando com os primeiros passos? Se eu ainda escuto seu choro, se eu ainda lembro suas primeiras palavras e de toda a comida que você jogava fora do caldeirão? E todas aquelas fraldas que você não usa mais? E as roupas que já não te servem?

Você está crescendo meu filho, e o Lias foi embora. E eu estou escrevendo pra dizer que parte de mim está feliz porque é muito duro para uma mulher esses primeiros 5 anos da vida do filho, quando ele está fazendo essa transição de deixar de ser um bebê. Mas também hoje me dou conta que acaba de repente e aí a gente olha dentro de si e percebe que sim, bem lá no fundo, tem um pouco de saudade de algumas coisas. Eu vou sentir saudades de conversar com sua mão, aliás, com o Lias. E do bebê engraçado que você foi e que agora é esse garotinho esperto e divertido. E de como foi uma experiência incrível para mim poder ver você deixar de ser um bebê. E eu sempre vou lembrar do Lias no meu coração, como um alerta para aproveitar a parte boa de poder ser mãe, porque tudo passa.