Coisas que meninas devem saber para sobreviver em um mundo de predadores sexuais

Há uma série de coisas que meninas devem saber para sobreviver em um mundo de predadores sexuais. Orientar mulheres e meninas para lidar com assédio é mais complexo do que parece porque pouco refletimos sobre como somos socializadas para o jogo amoroso, e sobre como aprendemos a nos colocar sempre em posição de vulnerabilidade no momento da aproximação amorosa, principalmente nas relações heterossexuais. Temos muita dificuldade de perceber como é embaçado esse limite que aprendemos a traçar em relação ao abuso masculino sobre nós, que recai muitas vezes desde a mais tenra infância. Nós mulheres somos criadas com mensagens muito contraditórias sobre como agir e o que devemos aceitar, principalmente sobre homens e relacionamentos.

Aprendemos que nossa aparência é a coisa mais importante sobre nós mesmas e que precisamos de validação constante a ponto de dedicarmos todo nosso tempo em função de estar “bem”, que para mulheres é igual a estar bonita. Competimos umas com as outras por essa aprovação e interpretamos qualquer discordância como uma questão de “recalque” ou “inveja” da nossa “beleza”. Somos altamente críticas em relação a nós e as outras mulheres. E em algum nível todas ansiamos pela aprovação masculina na forma de olhares, curtidas, cumprimentos e elogios. Não percebemos como isso é usado para nos manipular, como isso nos gera insegurança e como abre caminho para que qualquer homem em qualquer lugar se ache no direito de opinar nosso corpo, controlar a maneira como nós devemos nos parecer, e nos humilhar.

Aprendemos a mensagem contraditória de que precisamos ser “recatadas”, “castas”, “difíceis”, ao mesmo tempo que somos incentivadas o tempo inteiro para, desde muito jovens, nos mostrarmos sedutoras. Roupas, maquiagens, danças, caras, bocas e trejeitos, são ensinados às meninas para que elas já se posicionem socialmente como sexualizáveis. Nossa cultura é pedófila e não esconde isso. Para homens, relacionamento com mulheres é sobre ter sexo, a maior quantidade possível. Para mulheres, relacionamento com homens é sobre amor, casamento e filhos.

E assim, meninos aprendem que devem “caçar” meninas, e meninas aprendem que devem sorrir para o caçador e se oferecer em sacrifício. Dessa forma, como criar nossas meninas para que se defendam? Como ensiná-las a diferenciar uma relação potencialmente saudável de uma abusiva, se nós mesmas temos essa dificuldade e vivemos caindo em armadilhas? O que devemos ensiná-las para que possam traçar limites entre interesse genuíno e assédio?

1. Padrões de beleza são reais e inatingíveis e existem para controlar meninas e mulheres

Mostre para sua filha que os padrões de beleza que ela vê nas revistas, na TV, e agora na internet são completamente artificiais. Que mulheres só tem aquela aparência graças a muita maquiagem, muita edição de imagem e filtro. E que ter aquela aparência glamorosa faz parte da profissão delas e que portanto há toda uma equipe que trabalha direta ou indiretamente pela manutenção daquele tipo de visual. Que essas mulheres são vitrines ambulantes subsidiadas por uma indústria cuja função é estimular outras a consumirem enlouquecidamente todo tipo de produto de beleza. Que vendem uma ideia inalcançável de como mulheres devem se parecer justamente com o objetivo de mantê-las sempre angustiadas e insatisfeitas com a própria imagem, pagando qualquer preço para se tornarem como o padrão.

Explique que especialmente meninas como ela, que não entendem muito bem como é a engrenagem do consumo que move o mundo, podem ser especialmente suscetíveis a este tipo de apelo. Porque parece que só mulheres que se parecem de uma determinada forma são amadas, queridas, admiradas e desejadas. Tem suas fotos curtidas, comentários elogiosos. Meninas “feias” ou foram do “padrão” são punidas, ofendidas, rejeitadas. A sociedade é cruel e isso tem uma função: fazer uma pressão enorme na cabeça de meninas, para que se tornem mulheres inseguras e infelizes, que odeiam o próprio corpo. Que odeiam a si mesmas. E mulheres inseguras ficam vulneráveis, frágeis, suscetíveis e isso é um prato cheio para abusos. Destruir a auto-estima de uma menina é o primeiro passo para dominar a mulher que ela vai ser tornar.

E tem um segredo que é preciso saber: no final do dia, quando o trabalho acaba, mesmo as musas mais belas, longe das câmeras, são como nós. Mulheres comuns. Que também não se acham boas o suficiente. Que também não se acham bonitas o bastante.

E quem se beneficia enquanto meninas e mulheres desenvolvem depressão, anorexia, bulimia, ansiedade, gastam toda sua energia, tempo e dinheiro (muito dinheiro)? A quem serve manter mulheres sempre com a auto-estima arrasada, pensando em diversos momento do seu dia sobre como não são boas o bastante? Belas o suficiente? Aos homens. Homens que dominam todo um mercado, que lucram com isso. Homens, que mantém mulheres ocupadas em obter sua aprovação a todo custo e usam isso a seu favor para dominá-las, julgá-las, classificá-las, escolhê-las como em um leilão, como se mulheres não fossem pessoas.

Ensine a sua menina que o que ela tem de mais precioso a proteger nesse momento é o amor por si mesma, completa. Que o que ela tem de mais importante a aprender é a amar-se e amar outras mulheres. E eu sei que essa é uma tarefa muito difícil porque implica uma desconstrução que está muito arraigada. Recusar o troféu de mais bela pelo qual fomos ensinadas a morrer, pelo qual adoecemos e gastamos nosso tempo e dinheiro. Mas precisamos começar a quebrar esse paradigma essencial porque só quando mulheres deixarem de ser definidas pela sua aparência deixarão de ser tratadas como coisas. Abandonaremos finalmente a condição de objeto para nos tornarmos pessoas.

2. Atratividade física não é o elemento mais importante sobre uma pessoa e é o motivo errado para começar um relacionamento

Insista com sua filha para desconstruir a ideia de que a beleza é o elemento mais importante que alguém possui. Incentive-a a olhar e a se aproximar de outras pessoas para além da aparência física e a não permitir que ela seja abordada baseada unicamente neste parâmetro. Explique a ela que se o único fator pelo qual alguém a busca é por sua beleza, a atratividade do seu corpo, a sua sensualidade ou a sua presumida disponibilidade sexual, ela está sendo subestimada e não valorizada e merece alguém melhor, porque ela é uma pessoa completa, que é muito mais que um rosto ou um corpo atraente.

Ensine a sua filha que em um bom relacionamento as pessoas devem se enxergar e interagir por completo. Que para além de carícias e sexo, um casal conversa, se diverte, compartilha coisas da vida, se respeita, e se apoia. Que eles são amigos. E que portanto a personalidade, o caráter, os valores, da pessoa com quem ela vai se envolver é muito mais crucial que a aparência, e que da mesma forma ela deve esperar despertar interesse pelos mesmos indicadores, buscando compatibilidade. Que se ela não pode esperar se tornar uma boa amiga da pessoa que a busca romantica ou mesmo sexualmente então está fadada a entrar em uma situação pautada por hierarquia e controle, porque ela será tratada como um objeto que alguém possui. E ela deve esperar, ao invés disso, alguém com quem seja capaz de constituir uma relação genuína de afeto, respeito, cumplicidade e parceria. Não importa se é um encontro de duas horas ou um namoro de meses. Ela deve esperar consideração e respeito sempre. Que se sexo está se tornando mais importante que a integridade e saúde física e mental das pessoas envolvidas então tem algum coisa muito, mas muito errada.

3. Atração sexual é uma coisa normal e saudável e não tem a ver apenas com atratividade física

Converse com sua filha sobre paquera. Explique a ela que na idade adequada é normal que pessoas sintam-se atraídas umas pelas outras, queiram estar juntas, queiram fazer sexo. Que infelizmente, na nossa sociedade hoje, somos orientados a mover esse nosso interesse por paradigmas puramente estéticos, ou de status. Homens são guiados para buscar a mulher “gostosa”, mulheres são guiadas a buscar um “príncipe” que é, antes de tudo, “lindo”. Mas que aparência física não é definidora de atração sexual ou interesse romântico e a maneira como nos guiamos nossos afetos é condicionamento puro.

Nosso olhar, nosso querer, é formatado para admirar determinados padrões, e todos eles tem agenda, foram feitos para nos colocar num determinado lugar, cumprindo uma determinada função na lógica de uma sociedade que é patriarcal, capitalista e racista. Aprendemos, por exemplo, que mulheres “bonitas” são as brancas, magras, de traços claros europeizados, aprendemos que mulheres morenas e de corpo mais voluptuoso são as “gostosas”, as “sensuais”, que mulheres de traços latinos são “calientes”. Essas imagens existem para atender a um chamado racista, que vende uma imagem higienizada e angelical de pessoas brancas que são destinadas a perpetuação do núcleo familiar tradicional, de controle e de manutenção de patrimônio dentro de um dado grupo racial e uma imagem sexualizada de pessoas racializadas, que são desumanizadas e tidas como destinadas ao sexo e ao fetiche. Isso faz por exemplo, que qualquer pessoa que não tenha traços físicos eurocêntricos seja considerada “feia” ou “exótica”, faz com que meninas negras sejam invariavelmente preteridas e cultivem pela vida uma imensa dificuldade em ter parceiros e formar relacionamentos e que meninas brancas sejam entendidas como “esposa ideal”.

Outro bom exemplo é o das meninas que aprendem desde sempre a direcionar sua atenção sexual e afetiva para homens mais velhos. Esse incentivo inclusive é familiar que as orienta a buscar “um homem e não um moleque”, “um bom homem trabalhador que vai cuidar dela”. Como resultado, desde muito jovens, não sentem atração por pessoas da sua idade, que estão vivendo as mesmas experiências, e viram presas fáceis de abusadores. Mal entrando na adolescência, meninas já são consideradas “carne fresca no mercado” e são aliciada por homens muito mais velhos. E são incentivadas a ficarem lisonjeadas com esse assédio e aceitar esse abuso como reafirmação da sua feminilidade. A menina ouvirá que é “especial”, que “não é como as outras garotas”, que “é muito madura para sua idade”, que “é muito desenvolvida”, “já é uma mulher”, “já sabe o que quer”, e todo tipo de coisas. E isso tudo serão mentiras contadas para acessar seu corpo sexualmente, manipular e controlar.

Meninas aprendem que podem somente sentir-se atraídas por pessoas do sexo oposto, que isso é uma norma imutável, que é o “normal”, o “esperado”, o “certo”, e que qualquer coisa fora disso é a maior transgressão que ela pode cometer porque está recusando seu destino de fêmea, encontrar um macho, ser escolhida, casar e procriar. Não tutele os afetos da sua menina. Deixe que ela saiba que tem o direito de experimentar e descobrir o que realmente lhe interessa viver em termos de relacionamentos e sexualidade. Diga a ela que não existe “normal” e muito menos “anormal”. Que a organização dos relacionamentos na nossa sociedade é heterocentrada pois tem a função de manter os corpos das pessoas sob controle num modelo familiar margarina que não existe na realidade. Que o objetivo final é manter mulheres sob completa exploração do seu trabalho reprodutivo.

Manter a ilusão de uma sociedade eminentemente heterossexual é fundamental para manter a lógica capitalista que precisa de casais se reproduzindo e criando trabalhadores para serem explorados. É fundamental para a lógica patriarcal onde homens mantém a dominação sobre mulheres sobretudo sob o manto do “amor” e do cuidado da família. Permita que sua filha tenha liberdade nos seus afetos. Explique a ela a lógica por trás do pensamento lesbofóbico (e homofóbico) que é de impedir que pessoas possam decidir livremente como organizar suas vidas e escolher suas parcerias.

Então, diga a ela pra não se render a primeira faísca de paixão que cruzar seu coração, porque paixão não é sentença, não existe amor eterno, isso passa, nossos afetos são condicionados para nos empurrarem para grandes armadilhas e se ela mantiver a cabeça no lugar por tempo suficiente vai ter a chance de encontrar alguém para uma história que vai valer a pena ter vivido. Alguém da idade dela, que pensa parecido, tem os mesmos valores, e que mesmo que tudo acabe, poderá ser uma pessoa amiga pra uma vida inteira.

E que sim, é muito difícil se sentir “feia”, “gorda”, “estranha”, “inadequada”, “diferente”, mas que vale muito pena estar com alguém para quem isso não faz diferença, ou que na verdade nem é uma questão, porque não é para esse lugar que essa pessoa está olhando. Ela está olhando pra você e vendo o que você é: uma pessoa. E está amando isso e tendo atração sexual por isso, não só por seu corpo, mas por seu sorriso, suas ideias, o que você é na vida, de verdade. Diga a ela que nada diferente disso vale a pena ser vivido. Ela é uma pessoa, e deve ser amada e querida por isso e apenas isso. E ela pode amar pessoas de volta. Repita isso mil vezes para ela, até entrar fundo, até ela não ter dúvidas. E diga a ela que você sente muito que as coisas sejam assim e que você sente muito também por ter que orientá-la a travar uma batalha tão difícil e vital: requerer a própria humanidade nessa sociedade tão cruel.

4. O flerte surge da admiração mútua, o assédio surge da objetificação do outro

Quem admira o outro não quer o outro para si. Quem admira observa o outro com atenção, se inspira, cuida, respeita. Entendemos o valor daquilo que admiramos por este ser como é, não queremos modificá-lo, ou submetê-lo a nossa vontade. Desejar, por outro lado, significa querer ter algo para si, tomar posse e costumamos desejar coisas. Objetos. Mulheres não são admiradas na nossa sociedade, são objetos de desejo. Aprendemos a apreciar isso, a entender que ser tomada e possuída, que pertencer a alguém é um sinal de amor, e isso é uma armadilha que resulta em violência e em morte.

Por outro lado homens não aprendem a amar mulheres. Não aprendem a vê-las como ser humanos íntegros, dotados de qualidades e defeitos e dignos de respeito e admiração. Aprendem a vê-las como corpos sexuais que lhes devem diversão e prazer. Pergunte a um homem sobre mulheres que ele admira. Pergunte-lhe quem são, quais seus nomes. Peça para citar apenas 3. Dificilmente algum conseguirá cumprir esse desafio. Agora pergunte-lhes sobre mulheres que eles desejam, que eles gostariam de ter (isso mesmo, ter), e a lista será imensa. Homens aprendem que mulheres são coisas que eles adquirem, que passa a ser uma coisa sua, uma propriedade privada da qual ele pode dispor como bem entende.

Ensine sua filha a perceber a diferença entre a abordagem de alguém que a admira como pessoa e alguém que a deseja como um objeto. Essa é a diferença importante entre flerte e assédio. O flerte, a interação em que vamos demonstrando interesse pelo outro e conhecendo-o, é um recurso legítimo de aproximação entre duas pessoas que queiram relacionar-se. O assédio é um mecanismo onde necessariamente um impõe seu desejo sobre o outro, intimida, coage, manipula, chantageia, suborna, compra, o seu corpo, sua presença, seu sexo. É sobre poder, não sobre enamorar-se. É sobre homens que se acham no direito de tomar mulheres, desde legislando sobre sua aparência através de insultos como nas cantadas de rua (“me dá seu telefone, gostosa!”. Sobre a recusa do “não” e a insistência absoluta, que faz mulheres confundirem desrespeito com apaixonamento. É sobre subestimar a vontade do outro e querer domá-lo de qualquer forma. É sobre achar que toda mulher tem um preço, que é possível comprar consentimento. Que mulheres não sabem o que querem, ou o que estão fazendo “jogo duro”. É a “sedução” a qualquer custo. É sobre intimidação, perseguição, violência. Estupro. É sobre manipulação, chantagem emocional. É sempre mesma lógica: não há respeito pela vontade do outro porque o outro não tem vontade, não é uma pessoa, é algo a ser obtido.

Incentive sua filha a repudiar qualquer tipo de assédio, em qualquer lugar que seja. Incentive sua filha a rejeitar pessoas que avaliem corpo dela como se ela fosse um animal pronto para o abate. A afastar-se de pessoas que ignoram suas recusas. Que acreditam que insistência é prova de afeto. Explique que um homem que quer conquistá-la a qualquer custo não a ama, ele apenas sentiu-se desafiado na sua virilidade pela recusa e quer domar sua vontade. Nada de bom pode sair daí, não somos objetos á disposição para apreciação do desejo alheio.

Explique para sua menina que consentimento não tem a ver com dizer “sim”, porque muitas e muitas vezes dizemos “sim” sem estar com vontade. E aceitar algo sem vontade não é consentimento, é concessão. E, em um mundo patriarcal, inúmeros são os mecanismos que homens utilizam para dobrar nossa vontade: manipulação, chantagem emocional, coação, suborno, compra, ameaças, violência.

Consentimento não se negocia. Consentimento sem vontade é concessão e ela nunca deve fazer concessões sobre seu corpo, sobre seu sexo, sobre nada que arrisque sua integridade física, emocional e financeira. Homens irão em busca disso, vão desafiá-la, vão tentar dobrar sua vontade a qualquer custo sempre, porque eles não admitem a recusa de uma mulher. Entenda que isso acontece, e prepare-se para enfrentar. Todo o modelo de relacionamento entre homens é mulheres é formatado a partir da subalternidade e submissão feminina. Somos compulsoriamente levadas a aceitar e a dizer “sim” sobre tudo que tem a ver ou que vem de homens. E que a grande disputa é ter o direito de recusá-los. Recusar aceitar os seus gracejos, suas indiscrições, o seu julgamento sobre nossa aparência. Poder recusar sua presença, recusar sorrir para eles e agradá-los o tempo inteiro sem acusações ou retaliações.

5. O mundo ainda não é seguro para crianças e mulheres

Ensine sua criança a como agir para se defender ao perceber os primeiros sinais de assédio. Desde bebê . Explique o corpo é dela, que ninguém deve tocá-lo a não ser ela. Que nenhum adulto deve, e vá dando autonomia corporal a ela, o quanto antes for possível, de forma que apenas ela precise tocar em si mesma, mesmo para higienização. Mostre claramente quais partes podem e não podem ser tocadas. Nomeie-as com todos os nomes conhecidos, para que ela possa reconhecê-los em qualquer parte que ouvir. Fale sobre que tipo de carinhos são e quais não são permitidos. E não faça carinhos como beijinhos na boca que podem até ser toleráveis numa relação parental mas que podem deixar a criança confusa e abrir uma janela de oportunidade para abusadores. Divida o mundo das suas crias entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças e mostre sempre o que é e o que não é adequado para cada um desses universos assim como que tipo de interações são desejadas entre adultos (ou adolescentes) e crianças.

Assim que possível, explique para sua criança que predadores existem. Fale claramente sobre o tema, sobre o que eles fazem, como eles se aproximam, o que eles dizem. E ensine-as que qualquer um pode ser o abusador, inclusive alguém que ela ama e confia. Alguém de quem ela nunca desconfiaria. Ensine-a se relacionar criticamente com os adultos, explicando que eles não são perfeitos, nem sempre são modelos e que podem ser potencialmente perigosos e violentos para crianças.

Crie uma relação de confiança com seus filhos. Essa é a parte mais difícil porque prescinde em abrir mão do autoritarismo fácil, da educação pela violência e pelo medo. Implica em criar um canal constante de diálogo e principalmente escuta, de deixá-los seguros, sabedores que serão ouvidos, que acreditarão neles, que serão defendidos. Implica em tratar crianças como pessoas. Muitas e muitas mulheres passaram por situações horríveis porque sentiram medo de contar aos seus pais o que estava acontecendo. Porque foram desacreditadas. Porque foram manipuladas a pensar que ninguém acreditaria na palavra dela contra a palavra de um adulto, que ela seria punida, que ela também era cúmplice da situação, e ela não tinha um vínculo de confiança forte o bastante com os pais para saber que eles a apoiaram a qualquer custo.

Explique que infelizmente há cuidados que ela deverá tomar apenas por ser menina, como evitar andar sozinha, beber em demasiado sem alguém de confiança que possa protegê-la caso fique desorientada, evitar estar sozinha com homens de modo geral, e mais um monte de pequenas e grandes medidas que tornam a vida de uma mulher um verdadeiro inferno. E que nada disso é nossa culpa, é culpa dos homens, nós vivemos sim em uma sociedade que nos transforma em presas, sofremos terrorismo sexual e não podemos esquecer isso, nem ser ingênuas, nem achar que é exagero. As estatísticas estão aí mostrando a realidade. Então muitas vezes vai ser o seu medo que vai te proteger.

Oriente-a também sobre mecanismos institucionais para buscar ajuda, explique ela sempre pode ligar para o Disque 100, que ela pode levar a questão para a escola, que ela sempre tem a opção de buscar apoio em instâncias responsáveis e que nunca, de maneira nenhuma, deve tentar lidar sozinha com a situação.

E finalmente diga para sua menina que você estará lá por ela. E esteja. Que acreditará nela. E acredite. Que ela não deve se calar diante de abusos. E ajude a amplificar sua voz. Que ela deve procurar ajuda ao menor sinal de importunamento, seja direto ou sutil, e denunciar se estiver sendo importunada. E ampare-a. Que ela deve se proteger sempre. E proteja-a. E proteja-se. E diga a ela que ela não está sozinha nessa. Ela não está. Há muitas outras mulheres por aí, lutando para pavimentar uma estrada mais larga e iluminada para que todas as meninas possam caminhar. Juntas.

Vamos problematizar o Papai Noel?

O Natal está chegando. Será que vamos problematizar o Papai Noel? Algumas mães entram em crise existencial se perguntando se devem ou não deixar seus filhos acreditarem no bom velhinho, também conhecido como Papai Noel. O argumento — muito justo — é de que esta é uma tradição inventada para turbinar o consumo, que é uma mentira que contamos para as crianças, que isso pode aumentar aí o número de horas na terapia dos pequenos rebentos, entre outras questões filosóficas, políticas e sociais.

Veja bem, gostaria aqui de fazer uma observação sobre esta questão, até porque eu mesma, muito antes de ter filhos obviamente, imaginei que não ia deixar meu filho acreditar nesse velho capitalista que dá presentes para as crianças de posses enquanto milhares morrem de fome. Porém, tomei um saboroso tabefe da realidade que gostaria de compartilhar aqui.

Em primeiro lugar é importante ressaltar que nós mães — via de regra — não temos tanto poder assim para decidir no que nossos filhos vão ou não acreditar. Lá para os 3 anos de idade eles mergulham num mundo de fantasias do qual muitos não saem nem quando chegam na vida adulta. Então conforme-se, seu filho vai acreditar em coisas, muitas das quais você não terá controle. Monstros, heróis, zumbis… ele vai ter amigos imaginários, e não adianta você perder tempo tentando explicar para ele porque dinossauros são reais e dragões não.

Depois, as fantasias infantis hoje são turbinadas pelo convívio social, escola e principalmente a mídia. Então, a menos que você crie seu filho dentro de uma gaiola, ele vai ouvir falar desse tal de Papai Noel, vai ver desenho, comercial, os parentes vão falar, amigos da escola, vão perguntar a ele na rua se ele já escreveu a tal cartinha, mesmo que escrever cartas nem seja um hábito da geração dele. De um jeito ou de outro, ele vai saber que esse velho faz contrabando de brinquedos, e ele vai querer a parte dele em geleca, goste você ou não. Então, mesmo que você se faça de desentendida e nunca alimente essa ideia no seu filho, isso será construído no imaginário dele de alguma forma.

Aí é escolha sua se quer ou não desmontar isso, e em nome de quê. E vale pensar, qual custo vai ter pro seu filho, uma criança, ser o floquinho de neve especial que confronta todos os amigos e gera silêncio constrangedor ao dizer a frase “minha mãe disse que Papai Noel não existe, é ela que compra meus brinquedos”, e talvez ver os coleguinhas começarem a chorar, é claro. Aliás, qual o custo para o seu filho em ser o elemento que vai semear a dúvida e a discórdia entre todos os amiguinhos que vão perguntar o que ele ganhou de Natal e mostrar o que encontraram debaixo dentro do sapatinho que deixaram na janela.

Seu filho é uma criança. E o Papai Noel já é um mito moderno que está profundamente enraizado na nossa sociedade com todos os seus defeitos e qualidades. O argumento de que ele é uma “mentira” pouco se sustenta porque metade das coisas que crianças usualmente acreditam são “mentiras”, ou eufemismos, ou verdades editadas/suavizadas/adaptadas. E o que não for elas complementam com a própria imaginação. Acreditar no Papai Noel, da Fada do Dente, no Coelhinho da Páscoa (ou no Batman, Hulk e Elza do Frozen) não vai tornar o mundo dela pior ou melhor. Apenas vai mantê-la integrada na mitologia infantil do seu tempo.

Agora, a mitologia do Papai Noel é algo livre de problematizações? De jeito nenhum. Ele é o mito moderno dessa sociedade capitalista e consumista, mas é o que tem pra hoje. Todas as sociedades, em todos os tempos, construíram seus mitos e nenhum era lá grande coisa também. Mas existe um maneira mais “saudável” de trabalhar esse mito com as crianças e atravessar o Natal? Existe sim, quer ver?

  • evitar associar a ideia de que o presente é uma recompensa por “bom comportamento”: Crianças não tem que ser obedientes ou estudiosas ou seja lá o que for porque querem ganhar presentes e sim porque ser obediente e estudioso são virtudes importantes de serem cultivadas que são um recompensa em si e trazem benefícios de longo prazo. Você pode dizer para o seu filho por exemplo escrever uma carta (ou mandar um email, um whatsapp, sei lá) contando pro Papai Noel como foi o ano, o que ele mais gostou de fazer, o que ele espera para o ano que vem e agradecendo pelas coisas boas que ele viveu.
papai noel
Coitado do bom velhinho, gente.
  • você não precisa dizer ao seu filho que os brinquedos que o Papai Noel distribui são feitos por mágica e surgem do nada, fazendo parece que ele pode pedir qualquer coisa e colocando você em uma enrascada financeira. Você pode dizer que o Papai Noel é um fabricante e que você paga pelo brinquedo que ele vai produzir e entregar, portanto o presente tem que estar dentro das suas possibilidades. E vale aí explicar que esse é o motivo pelo qual algumas crianças não conseguem receber presentes: porque seus pais não têm condição de pagar. Não está nem muito longe da verdade e ainda dá uma pitada de consciência social que não faz mal a ninguém.
  • não obrigue seu filho a tirar aquelas fotos com o Papai Noel caso ele deteste ou tenha muito medo. Deixe que seja uma coisa espontânea porque ele realmente gosta do velho barbudo. E faça com que ele tire a foto de pé ao lado, ou no seu colo, nunca no do Papai Noel. Sério, não deixe seu filho sentar no colo de estranhos nem que seja para uma foto de 5 segundos.
problematizar o papai noel
Não faça isso com seus filhos, sério mesmo.
  • explique o sentido de presentar, o sentido do Natal, tanto do ponto de vista religioso quanto laico, mesmo que você não tenha nenhuma religião e esteja pouco se lixando para a data. O seu filho é um ser social, é importante que ele entenda o que acontece na sociedade na qual ele está sendo criado.
  • Aproveite a oportunidade para não repetir a pior tradição de Natal de todas: mulheres se matando de cozinhar enquanto homens coçam o saco e tomam cerveja. Essa é uma péssima mensagem sobre divisão do trabalho doméstico e papel social que as crianças recebem todo fim de ano. Coloca todo mundo pra fazer tudo. Ou então pede pizza.

Outra coisa importante a ser dita: a “decepção” que seu filho pode vir a sentir ao descobrir que Papai Noel não existe ou a percepção de que “meus pais mentiram para mim” estará diretamente ligada a maneira como você vai se envolver com a fantasia dele. Você não precisa ser a pessoa que vai introduzir a mitologia do Noel para o seu filho. Você pode ser a pessoa que funciona como facilitadora de uma crença que ele fatalmente vai elaborar por conta própria. Nesse sentido, quanto mais histórias e firulas e mecanismos de reafirmação do mito você inventar, maior a sensação de “ter sido enganado” que seu filho pode vir a ter. Ou pode ser que você mesma seja capaz de perceber o momento em que a “magia” perdeu o sentido e vá explicando que o Papai Noel é o que é, um mito.

E pode ser inclusive que seu filho passe em branco por tudo isso por muito tempo e quando ele vier a prestar atenção já vai estar com idade suficiente para concluir que a história é bastante mal contada já que quase ninguém tem chaminé no Brasil e renas voadoras aqui já teriam sido abatidas em pleno vôo.

De qualquer forma, se a criança for aficcionada por Natal, tiete de Papai Noel, fã número um das renas e dos duendes… boa sorte e aproveita também. Daqui a pouco passa. Os filhos crescem muito rápido e não demora estamos sentindo saudades de quando a vida era tão simples para eles que a maior preocupação que tinham era receber a visita do bom velhinho.

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Meu menino e o mar

Desde bebê seus olhos brilham de encantamento, quando engatinhava pela areia buscando as ondas. Eu seguro sua mão. Pequena. A água chega. Molha meus pés, nossos pés. Ele se joga. É o meu menino e o mar.

Ele não tem medo do mar. Segura firme em minhas mãos e deixas as ondas arrebentarem no seu corpo, engole a espuma, o sal, engasga e ri. Eu o amparo com o coração aos pulos mas não há nada a fazer, exceto deixá-lo descobrir. Ele se sustenta, busca o equilíbrio, vai aprendendo o mar.

Ele não tem medo mar. As ondam surgem gigantes e ele pede mais. Quer ir mais fundo, acha que já sabe nadar. Eu peço a ele que respeite aquele gigante. O que me resta senão ensiná-lo a temer a grandiosidade do oceano? Senão segurar forte em sua mão para que a correnteza não o leve? Senão mostrar como se manter de pé, como reconhecer o perigo, como não ir longe demais?

Eu o seguro firme mas deixo-o livre o bastante para experimentar a potência daquela arrebentação. Para que ele possa se deixar levar. Cair e levantar. Eu o ajudo a se manter de pé e peço para que se acalme quando seus olhos ardem, quando a respiração falta. Eu o tiro de lá para que não fique cansado demais.

Mas um dia ele será grande o bastante, forte o bastante. Maior que eu. Do tamanho do mar. E irá desbravar aquelas águas sem precisar de mim. Ele irá para o mar com a paixão que tem pela vida, por aquele sol, por aquele azul. Ele nadará, vencerá a correnteza e conhecerá mais. Um dia ele não será mais o meu menino. E dele será a vida. E o mar.

Todo choro deve ser consolado

Ora, mas vejam só, agora nós somos uma sociedade moderna que finalmente percebeu que não devemos espancar crianças, que acredita que todo choro deve ser consolado. Agora nós temos métodos mais modernos, arejados, “positivos”, “não violentos”. É o cantinho da calma, é a escuta ativa. Agora vai.

Aí corta para a historinha, totalmente real.

Estava eu aguardando meu marido e meu filho na saída do banheiro que também era a saída do cinema. Sentado na escada de saída do cinema estava um pai, placidamente, conversando em voz baixa, com toda a calma do mundo com seu filho. O menino era visivelmente bem jovem e depois eu descobri que ele tinha apenas 2 anos. E chorava copiosamente. Copiosamente. E o pai o mantinha (apenas com calmos comandos verbais) de pé junto a parede. De castigo.

Enquanto o castigo prosseguia o pai ia dando o sermão da montanha e eu, que acompanhava a cena mortificada com o canto do olho, pude me inteirar da história. A família estava no cinema, a mãe, o pai, um bebê de colo, o menino de 2 anos, e mais um irmão (possivelmente mais velho). O menino de 2 anos começou a se agitar e a chorar, e a querer o colo da mãe. O pai ofereceu o colo, o menino não quis. Queria o colo da mãe. E aí estava armada a celeuma. O garotinho pode ter se “comportado mal” (sabe-se lá o que isso quer dizer para um menino de 2 anos), e ganhou com isso a retirada do cinema e a punição de ficar em pé do lado de fora (tudo bem, ele poderia sentar se quisesse, pelo que entendi) até o filme terminar.

O menino pedia a mãe e ouvia como resposta: “não, sua mãe está lá dentro do cinema vendo filme com seus irmãos ela não vai vir te ver”. O menino pedia colo e ouvia: “não! eu quis te dar colo lá dentro e você não quis! Agora fica aí”. O menino, estoicamente, pedia pra ir pra outro lugar e ouvia: “não, vamos ficar aqui até o filme acabar”. Tudo pontuado por “pode chorar à vontade, não tem problema”. O menino tinha 2 anos e estava completamente desconsolado.

Olha, eu realmente acredito que aquele pai estivesse completamente bem intencionado no que estava fazendo e até estivesse orgulhoso de si mesmo se achando o rei da pedagogia porque estava ali ‘disciplinando’ o seu filhinho ao invés de simplesmente tê-lo espancado para ele calar a boca.

Mas

Nenhuma técnica, nenhuma filosofia de “disciplina” vai funcionar se você não acalmar seus demônios internos, meu amigo, minha amiga. E se você não partir de uma premissa elementar, básica mesmo: crianças são pessoas.

Se uma criança está chorando desconsoladamente, não seja a pessoa babaca que acha isso edificante. Console-a.

Há uma diferença aliás entre o choro de “birra”, que é frustração por não ter conseguido algo. O choro de raiva, o choro de tristeza. E quer saber? Todos eles precisam ser consolados. Consolar e acalmar uma criança não significa “ceder”, não significa “perder”. Significa que você está ali pelo seu filho e está mostrando pra ele que você se importa com os sentimentos dele e que você estará ao lado dele para ajudá-lo.

Aliás, que obsessão que pais tem por disciplina, autoridade, bla bla bla. Que queda de braço com crianças que ainda estão provando o próprio cocô. Deixa eu explicar aqui uma coisa que deveria ser óbvia: vocês têm esse empenho por disciplinar seus filhos mas isso é muito mais uma necessidade SUA de domesticar essa criança pra ela dar menos trabalho pra VOCÊ, do que uma coisa que você está fazendo por ela. E de mostrar serviço para sociedade que sutilmente dá status social para pais carrascos, que têm filhos “comportados”. Filhos que, embora crianças, ajam como adultos na cerimônia do chá da rainha da Inglaterra. Vai se saber a que custo psicológico.

O que pais devem transmitir aos filhos são valores, o que devem ensinar são bons hábitos, o que devem explicar são as regras para se viver em sociedade e ajudá-los a se adequar, o que devem demonstrar são bons exemplos e o que devem ser são companheiros, pessoas em que essas crianças possam confiar, possam amar devotadamente como já fazem, sem sofrer por isso. Sem sofrer porque ama alguém que o magoa.

O pai que estava mantendo o filho aos prantos fora do cinema, certamente estava muito convencido de que estava ensinando uma lição ótima para aquela criança. Se ele olhasse para ela como uma pessoa, se olhasse para suas necessidades, entenderia que: a) ela ainda era pequena demais para assistir um filme de sei lá quantas horas entendendo tudo que estava acontecendo e mantendo a atenção, portanto obviamente ia se sentir entediada; b) sentindo-se entendiada, ou com sono, ou com frio, ou com qualquer outro sentimento que ela talvez nem soubesse identificar ainda, obviamente que ela iria buscar a mãe, que é a sua principal fonte de aconchego; c) o colo que era dela estava ocupado por um outro bebê e sabe-se lá se ela estava lidando bem com isso. O que esse pai poderia fazer? Consolar o filho, tirá-lo do cinema e levá-lo para a piscina de bolinhas, para tomar um sorvete, para fazer qualquer outra coisa. Mas não, “olha uma criança que não se comporta como eu preciso: vamos “discipliná-la!”.

E o que a criança estava vendo ali? O que ela está aprendendo com essa lição? Que as necessidades dela não são importantes diante das necessidades dos pais e dos irmãos. Que ela não tem a quem pedir ajuda e consolo quando se sentir sozinha. Que ela deve aprender a se virar sozinha sem o apoio do pai. Que o único recurso que ela tem para tentar comunicar as emoções dela (chorar) não são ouvidas. Não demora muito aliás ela vai parar de chorar e vai se comportar, papai, não se preocupe. E você vai sentir que tudo deu “muito certo”. Mais uma criança domada na conta do terapeuta.

E sabe o que mais que essa criança aprendeu? A ser autoritário. A ignorar o sentimento das outras pessoas. A ser intransigente. A ser frio. Porque é isso que ela estava vendo ali. É o comportamento que ela estava assimilando. De que você não precisa se preocupar com os sentimentos do outro.

Quer outra regra de ouro na hora de se relacionar com os seus filhos? Pense sempre “que mensagem eu estou passando”. Que não é o que você DIZ, mas é o que você FAZ. É isso que ela está apreendendo. E é nessa chave que você vai definindo que tipo de orientações e interdições (porque sim, educar é também se o primeiro a realizar interdições nos desejos dos filhos) você vai realizar.

E avaliem sempre se a criança está em uma idade que ela tem condições de assimilar o que você está tentando ensinar. Não existe uma “janela de oportunidade” que se você não ensinar coisa x na idade y nunca mais a criança aprende. Socialização é um processo complexo e múltiplo e vamos aprendendo a vida inteira e nos moldando. Fica difícil aprender quando crescemos porque somos esse saco ambulante de traumas justamente porque nossos pais exigiram de nós quando crianças elaborações e comportamentos que não éramos capazes de corresponder.

E olha, na dúvida do que fazer, dê afeto. Afeto sempre afeta e todo choro deve ser consolado.

Como proteger nossos filhos da cultura do estupro?

Como proteger nossos filhos da cultura do estupro? Esta é uma pergunta que assombra toda e qualquer pessoa comprometida com a criação dos filhos.

Todo homem é um estuprador em potencial, dizem. Essa frase é incomoda para homens e um choque para muitas mulheres. Principalmente para mães de meninos. Como assim aquele menino tão doce que ela aninha no colo é um potencial estuprador de mulheres? Pois é. Isso não quer dizer que todo homem estupra. Mas quer dizer que qualquer homem poderia estuprar uma mulher. Porque homens estupram. Não tem uma etiqueta na testa com selo de decência para sabermos quais oferecem segurança e quais não oferecem.

Quando pensamos em estupro, pensamos no ato violento, forçado, coercitivo. E então muitos homens respiram aliviados por sentirem-se fora dessa equação. No entanto se pensarmos nas fronteiras embaçadas de consentimento que nos são ensinadas, o número de homens que cometeu alguma violência sexual é infinitamente maior do que imaginamos. Quantos não roubam beijos, acariciam mulheres de maneira inconsentida? Quantos homens não fazem sexo com sua parceira sem estar realmente preocupado se ela está com vontade, ou mesmo se ela também está aproveitando a experiência?

Que mulher nunca transou com o marido ou namorado sem estar com nenhuma vontade, por senso de “obrigação”? Pela ameaça velada de traição “se não transar com você vou ter que transar outra”? Ou porque o “não estou com vontade” foi solenemente ignorado e homens permaneceram insistindo tanto que ela acabou cedendo para ter sossego? A ponto de originar a clássica piada sobre a desculpa da “dor de cabeça” para não transar. Ou a de ficar “escolhendo a cor que vai pintar o teto” enquanto faz sexo. Isso não é engraçado. Isso é muito violento. Mulheres terem que inventar que estão doentes ou indispostas para que seus companheiros desistam de querer um sexo que ela não está com vontade de realizar é cruel demais. Um sexo que muitas vezes aquela mulher não quer fazer simplesmente porque é ruim. É um sexo onde ela não tem nenhum prazer, não é uma experiência que ela aproveite. Que ela finge ter um orgasmo para ver se aquilo acaba de uma vez e ela pode voltar pra ver novela. Um sexo que é visto como um mal necessário a alguma estabilidade e paz na união que ela está, que “não custa nada”.

“É rapidinho”, “depois você vai gostar”, “não custa nada”, eles dizem.

Vejam que perverso:

Homens aprenderam que sexo é para eles, é sobre eles. Que apenas eles têm prazer dessa experiência. Que seu corpo tem “necessidades”. Que é “instinto”. Que ele é um animal sexual cujas gônadas vão explodir se ele não transar. Que ele não pode se conter. Que eles devem conquistar e foder o maior número de mulheres possível porque é isso que prova que ele é macho e viril.

Mulheres aprenderam que sexo é uma coisa “suja”, que boas mulheres sequer gostam de sexo, aprenderam que homens é que devem “fazer a mulher gozar”, como se apenas eles soubessem os segredos sobre o corpo de uma mulher. Mulheres aprenderam que não sentem desejo. Que são frígidas. Que gozar é difícil. Que não devem tocar-se. Que é normal o sexo ser ruim. Que devem fazer sexo com o menor número de homens possível, porque isso é prova que ela tem dignidade moral. E mulheres aprenderam que só são valorizadas se forem dignas. Se forem “direitas”, se forem “puras”. Porque o sexo macula.

O sexo é uma coisa mundana. E o homem é que é do “mundo”. Mulheres são do confinamento do lar, da domesticidade.

Homens aprenderam que mulheres valorosas não devem gostar de sexo. Ou melhor, mulheres podem até gostar depois que conhecerem “o homem certo”. Então homens tem a noção distorcida de que mulheres acham que não gostam de sexo e nunca querem sexo porque ainda ninguém lhes mostrou como sexo é bom. E que por isso recusam. Por isso O recusam. Então ele deve insistir, insistir, insistir, até ela ceder. Porque no final, ela vai gostar.

Mulheres aprenderam que não devem demonstrar que querem sexo, mesmo que queiram muito. Porque mulheres que cedem na primeira tentativa já sabem que sexo é bom. Portanto já tiveram sexo com outro homem. Já gostam. Não são mais “puras”, já não tem mais tanta moral e dignidade. Perderam o “valor”. Porque o “valor” de uma mulher está exatamente localizado entre suas pernas na nossa sociedade. Não à toa mulheres são, por séculos, coagidas e punidas por não manterem suas “virgindades”. Não à toa, até hoje, um hímen intacto faz fortuna em leilões.

Dessa forma, quanto mais rápido mulheres cedem, mais isso indica que elas tiveram muitos parceiros, porque talvez ela goste muito mesmo dessa coisa de sexo e vá transar com qualquer um. E mulheres não podem transar com quem quiserem, porque vai que ela engravida, como saber quem é o pai? Como garantir que o homem que está espalhando sua semente está criando um herdeiro que é seu?

Então mulheres aprenderam que devem sempre dizer não, numa tentativa de “valorizar-se” e que deve deixar o homem “conquistá-la”, que nada mais é do que tentar persuadi-la a ter sexo com ele, e quem sabe nesse meio tempo descobrir que ela é uma mulher digna o bastante para ele querer ter uma família com ela. Se a fórmula funcionar bem e ela conseguir sustentar esse jogo por tempo o suficiente, homens podem inclusive casar com ela no recurso último de finalmente transarem. E assim mulheres obtém o que elas aprenderam que é importante — e que não é sexo — mas “ter um lar e um marido”.

Portanto a boa mulher sempre nega sexo, o bom homem sempre insiste apesar do não. A vontade da mulher que gera um consentimento verdadeiro é relegado a segundo plano. A recusa da mulher é sempre desconsiderada porque faz parte do jogo da conquista. Mulheres não tem direito real de dizer não às investidas sexuais masculinas.

Essa lógica tem um nome. É cultura do estupro.

E como isso opera, na prática? Antigamente, essa ideia desdobrava-se simplesmente com homens capturando mulheres e estuprando-as abertamente, para satisfazer seus “instintos primitivos”. Ou comprando-as dos seus pais em casamento quando queriam aliar a necessidade de sexo com a obrigação social de constituir família, deixar herdeiros e outros arranjos de ordem puramente comercial.

Modernamente o homem não compra mais a mulher em casamento, cultiva-se a ideia de “amor romântico” mas permanece a lógica comercial nas relações de que ele deve conquistá-la através de exibicionismo financeiro, seja porque mulheres são fúteis e gostam mesmo “é de dinheiro”. Seja porque mulheres aprendem que um “homem bom” é aquele que demonstra solvência financeira para prover uma família. Então a lógica da negociação sexual que não passa pela violência direta ou velada pula direto para a estratégia de compra. Presentes, jantares, jóias, viagens.

Antes da violência pura e simples, tenta-se comprar o consentimento com o nome de “conquista”.

Pense em todos os contos de fada que você já leu. Quem é o príncipe? O homem rico que dá a mulher uma vida de “princesa”. E o que é ter uma vida de “princesa”? Uma vida de luxo, riqueza e ostentação. O príncipe é desobrigado de ser um cara minimamente decente. O príncipe da Branca de Neve dá o primeiro beijo nela quando ela está desacordada (!!!), o príncipe da Bela e a Fera… é uma fera, literalmente. O príncipe da Cinderela dá uma festa pra escolher um mulher como se fosse fazer compras no supermercado. Nem nome esses personagens tem. Nem muito bonitos eles precisam ser também (a Fera que o diga), mas o que todos eles têm em comum? São estupidamente ricos.

Pense em todos os filmes românticos que você já viu. Nos livros que você já leu. O homem ideal, ideal mesmo, é sempre rico e bem sucedido, ou pelo menos muito promissor. Ele não precisa ser bonito necessariamente. E ela sempre é estonteantemente bela. A ideia de “romance” e “conquista” começa a acontecer quando o homem começa a dar coisas ou levar a mulher para fazer coisas (jantares, festas, etc). Já é pré-estabelecido no ritual da paquera que homens pagam a conta ao passo que mulheres devem comparecer estupidamente bonitas para agradar e alimentar o desejo masculino. Ele paga o motel já que ela… fez sexo?

Aprendemos a ser “sensuais”, “sedutoras”. A manter a chama do desejo e a imaginação masculina sempre ligada nessa voltagem da caçada. Por que homens não aprendem que precisam ser sensuais? Por que não existem signos de sensualidade para homens? Porque o homem não precisa se preocupar com o desejo feminino de maneira nenhuma. Não é importante.

Mulheres casam e ficam reféns dos seus maridos caso não tenham autonomia financeira. Porque o trabalho doméstico e de cuidado com os filhos não é visto como trabalho e a mulher muitas vezes está presa em casa sem nenhuma possibilidade de gerar a própria renda e homens lhes cobram sexo como se elas lhe devessem um favor. Que ela faz porque “ele coloca tudo dentro de casa”. Como se comer a comida que ele compra e que ela cozinha todos os dias precisasse ser paga. E sexo paga. E homens cobram. Muitos homens não querem que mulheres trabalhem ou tenham sua própria renda porque mantém essa lógica de dominação nos seus lares. Querem sua escrava sexual particular.

Normalizou-se uma lógica de coerção financeira para a negociação sexual onde como sempre a vontade da mulher em fazer sexo é secundária. Ela é um corpo sendo negociado. Sexo é deslocado do lugar de uma coisa que é feita por duas pessoas que se desejam e querem obter prazer daquilo, para ser um “serviço” que mulheres podem prestar aos homens.

“Mulheres são interesseiras” eles aprendem, “só querem o seu dinheiro”. “Homens só pensam em sexo”, elas aprendem, “fazem qualquer coisa por isso”. “Por que não? Não custa nada.”

A prostituição não é um trabalho mas talvez seja realmente uma das práticas mais antigas do mundo porque mulheres sempre foram mais vulneráveis financeiramente e são coagidas de inúmeras formas a fazer sexo com homens desde tempos imemoriais. Já que a vontade dela, a necessidade dela, o desejo dela, o orgasmo dela, o querer dela, é desprezível, e desprezado. A prostituta ocupa o lugar de fornecer o sexo com o menor esforço possível antes de se apelar para o uso da violência física.

E no desdobramento mais violento homens simplesmente tomam mulheres à força. Porque “no fundo ela quer”, ela está “fazendo cu doce”. Homens aproveitam-se de mulheres bêbadas, homens dopam mulheres, homens aproveitam-se de mulheres dormindo, mulheres inconsciente, mulheres em coma. E saem rindo e pensando “tenho certeza que ela está gostando”.

Estupro é sobre poder porque homens nesse momento expressam toda sua misoginia e todo seu ódio e sentem prazer na subjugação do corpo feminino e no seu sofrimento explícito. Mas estupro é também sobre sexo porque homens aprendem que o consentimento feminino não é importante e que ele pode obter sexo de qualquer mulher, a qualquer momento, usando qualquer recurso, caso queira. Muitos homens sequer se dão conta de que aquilo que estão fazendo com aquela mulher é estupro, “porque ela não gritou”.

Isso é tão extremo que muitos homens que não conseguem obter sexo passam a odiar tanto mulheres que se declaram celibatários voluntários. Também conhecidos como Incels. E se reúnem online para planejar, noite e dia, o massacre de mulheres que acreditam que nunca fariam sexo com eles espontaneamente. E depois saem metralhando escolas e cinemas.

Na pornografia você vê mulheres sofrendo violências terríveis que são mostradas como sendo um ato sexual. São penetradas violentamente, são espancadas, são humilhadas, são xingadas. E as atrizes, apesar da dor física, emocional e psicológica que estão sentindo estão ali coagidas e sendo pagas para fingir que gostam. Homens aprendem que mesmo com violência, elas gostam.

Pornografia é estupro filmado. É como meninos e meninas aprendem que sexo se parece.

Cultura do estupro.

Todo homem é um estuprador em potencial. É no que a sociedade transforma os nossos meninos. É a mensagem que é passada para eles o tempo inteiro. Que o consentimento, que a vontade feminina, não é importante. Que eles devem obter sexo custe o que custar, porque é isso que homens fazem.

Ensinem suas meninas a dizerem sim quando quiserem dizer sim, a conhecerem o próprio corpo, o próprio desejo, permitir que sejam seres sexuados e que possam relacionar-se de maneira saudável com isso. Que elas não entrem nesses jogos perversos e desnecessários de conquista. Ensine a ela que se tudo o que um menino quer dela é obter sexo, ela fará se estiver com desejo, com vontade honesta. Que ela fará porque quer obter prazer da experiência. Sempre, não apenas às vezes. Não apenas em um evento mágico e aleatório. Mulheres podem e devem ter orgasmos em 100% dos seus intercursos sexuais assim como homens conseguem. E que elas possam fazer sexo ou ter qualquer contato físico, seja um beijo, seja um aperto de mão, no exato momento em que tiverem vontade. Seja na primeira vez que se conheceram, seja no décimo encontro. E que se aquele rapaz que ela está saindo não puder esperar e respeitar isso, então ele simplesmente não vale a pena.

Diga a sua menina para dizer não quando quiser dizer não. Que consentimento não se compra. Que custa sim. Que um beijo sem vontade custa. Que receber toques no seu corpo quando não se está com desejo custa. Que transar sem estar excitada de verdade custa muito. Que ela é o corpo dela. Que ela não deve desassociar-se. Afastar a mente do corpo de tal forma que ele possa ser usado por um homem como se fosse uma casca vazia. Diga a sua menina que ela não tem preço e que ela é uma pessoa.

Diga a seu menino que ele é uma pessoa inteira e que a vida não gira em torno das proezas que o pênis dele realiza. Que ele não é apenas um ser sexuado e que seu valor não pode ser medido em função do número de mulheres que ele transou. Porque sexo é uma coisa íntima, privada, e não é dá conta de ninguém. Não é um troféu que ele deve ostentar. Mulheres não são troféus. Sexo não é olimpíada onde ele ganha medalhas pelo número de coitos obtidos. Ele não precisa provar nada para ninguém. Que o peso da virilidade é pesado demais. Vamos tentar desassociar essa ideia da competitividade sexual entre os homens que querem provar sua macheza a todo custo.

Diga ao seu menino que ele deve acatar o não quando ouvir o não. Que consentimento não se compra. Que o sexo é algo que deve servir para satisfação de todos os envolvidos. Que se a pessoa que estiver com ele não tiver dado o consentimento expresso da vontade e do desejo dela em estar envolvida no ato, ele está cometendo uma violência. Que o universo não gira em torno do desejo dele. Que nenhum desejo é soberano à custa da violência sobre o outro.

Vamos desmistificar a ideia da “conquista”. Esse conceito parece romântico mas embute uma noção extremamente perigosa. Para todo conquistador existe um conquistado. E esta é uma relação de dominação, de subjugação do outro. Vamos ensinar as nossas crianças que sexo é fruto do desejo surgido através do feliz encontro entre duas pessoas. É decorrência de sentimentos que naturalmente surgem quando sentimos atração, temos compatibilidade e vamos nos relacionando com o outro. Que sexo não é o objetivo final do relacionamento entre um homem e um mulher, mas sim uma relação de afeto, companheirismo e amizade. Onde esse casal faz sexo um com o outro porque se deseja e porque é bom. E onde o sexo não é uma obrigação e sua falta não será o fim, porque uma relação contém inúmeros outros elementos igualmente ou muito mais importantes.

Vamos ensinar homens a verdadeiramente amar mulheres. Querê-las como amigas, companheiras, parceiras. Querer unirem-se a elas porque as admiram, e não porque elas são um corpo a mais para que eles consumam sexualmente. Só assim vamos conseguir algum avanço nesta sociedade onde sim, todo homem é um estuprador em potencial, vivemos imersos em uma cultura do estupro, então precisamos conversar sobre sexo com nossas crianças, mas precisamos deslocar toda a lógica que rege a maneira como nos relacionamos com o tema. Precisamos conversar sobre amor.

O que o sucesso da criação com apego revela sobre a sociedade que vivemos

O que o sucesso da criação com apego revela sobre a sociedade que vivemos? A teoria do apego é uma teoria criada por um psicólogo britânico que reza sobre técnicas para criação de filhos calcada em proximidade física, criação de vínculo e não violência. Ainda que muitíssimo correto, tudo que é dito por essa cartilha deveria ser da alçada do capitão óbvio, e o seu sucesso estrondoso esconde, ou melhor evidencia, algo que não queremos encarar conscientemente: o quanto vivemos em uma sociedade que não se importa com crianças.

O quão estranho é uma pessoa ter que ser “ensinada” que ela deve tratar seu filho com “apego” (também conhecido como carinho) e ouvir as necessidades dele?

Porque no fim, a criação com apego se trata justamente disso, você ter que explicar a adultos que eles não podem ceder aos piores instintos que cuidar de uma criança pode despertar: o egoísmo, a tirania, a megalomania, a impaciência, a violência, já que você de repente detém completo poder sobre a vida de um outro ser humano, completamente vulnerável, e que lhe tem total devoção. A síndrome do pequeno poder impera, confessemos.

E então, o que a teoria do apego diz na verdade é: você não é dono do seu filho. Ele é uma pessoa, tem necessidades, e precisa de você. E convenhamos que nada, absolutamente nada, do que é pregado é revolucionário, o que torna tudo muito mais triste e deprimente. Deixar um bebê mamar quando tem fome e pelo tempo que ele precisa, deixar ele dormir com você enquanto ele se sente inseguro para dormir sozinho, confortá-lo quando chora, dar colo, não espancá-lo, deveria ser evidente já que crianças são seres dependentes, vulneráveis, carentes e que não tem nenhum portfólio sobre como viver nesse mundo. E que decadência civilizatória ter que falar isso. Ter que explicar aos pais que eles devem amar e respeitar o próprio filho.

Admitamos que vivemos em uma sociedade que odeia crianças. O amor que dispensamos a elas é o que dispensamos a um souvenir. Bebês são ótimos na foto fazendo fofurices, mas queremos que durmam rápido e a noite toda como adultos, que comam sozinhos o quanto antes, desfraldem em duas semanas, não chorem, não se irritem. Parem dar trabalho. Uma sociedade onde fazem sucesso as “Encantadoras de Bebês”, com a solução mágica que deixa claro uma realidade terrível: vemos as particularidades e necessidades de um bebê como um problema que precisa de passe mágica para ser resolvido.

E quando eu falo “sociedade”, que fique claro, eu falo dessa que vivemos: patriarcal e capitalista que enfia todos nós dentro de uma lógica massacrante, individualista e consumista onde mulheres devem ser produtivas, lindas, fazer a roda do consumo girar e ao mesmo tempo também devem continuar domésticas e reproduzindo a espécie. Afinal precisamos de mão de obra. Homens e mulheres são engolidas pela rotina produtiva e a necessidade de sobreviver e quase não tem tempo de cuidar com qualidade dos seus filhos.

Crianças não são produtivas. Não são mão de obra aproveitável até entrarem na vida adulta, então não são consideradas tão importantes. Na verdade só servem para gerar mercado consumidor. Alguém já parou para pensar como a chegada de um bebê é embalada como um grande produto? Enxoval, chá disso, chá daquilo, festa na maternidade, e depois do nascimento, mãe e criança são atiradas no ostracismo e o recém-nascido vira um empecilho a ser resolvido. Buscamos o tempo todo soluções mirabolantes para que os bebês parem de se comportar como bebês e sejam independentes o mais rápido possível.

Chegamos ao ponto em que precisamos de técnicas”, de livros e cursos e vídeos para dizer o óbvio: crianças são pessoas. São seres em desenvolvimento em situação de completa vulnerabilidade e necessitam de compreensão, paciência e empatia. São seres que precisam de carinho e cuidado. Dar colo e aconchego ao filho virou uma “técnica”. Somos uma civilização em que amor, carinho e respeito por crianças precisa de prescrição.

Educar filhos é sobre escolher batalhas e não deixar feridos

Educar filhos é sobre escolher batalhas e não deixar feridos. A menina devia ter uns 2 ou 3 anos no máximo. Estávamos no meio do saguão da Receita Federal. Ela chorava desconsolada junto ao pai que estava ajoelhado na sua frente e impenetrável exigia que a criança pegasse um objeto que ela tinha atirado para longe num rompante de raiva.

A mãe, ao lado, observava impassível a cena. Decerto havia uma lógica naquilo tudo e talvez uma lógica correta dentro daquilo que aqueles pais acreditavam. Era preciso educar a criança, não importa onde, não importa como, não importa quanto tempo levasse. Ela atirou um objeto em um momento de birra e deveria portanto ajustar seu comportamento imediatamente, apresentando sua compreensão do ato, as mais sinceras desculpas e a correção do destempero. E os pais estavam ali naquela árdua missão. Certo? Todos concordamos?

Bom, sei lá. Às vezes eu acho que mesmo no meio das nossas boas intenções podemos ser projetos de ditadores com nossos filhos. Somos obcecados em mostrar e estabelecer nossa autoridade e sim isso é importante para nos posicionarmos como referência mas tampouco é a única estratégia, ou mesmo a mais acertada. Muitas vezes o que essa possibilidade faz é despertar a megalomania que há em nós. Queremos ser mais que pais. Queremos ser chefes. Comandantes. Que os filhos PRECISAM respeitar. PRECISAM obedecer. Porque somos os PAIS. E isto nos investiu com o poder sagrado sobre a vida dos filhos.

Mas toda essa reflexão me veio também porque a menininha lá chorava desconsoladamente, as vezes estendia os braços pedindo colo… Ela visivelmente já não estava entendendo mais nada, não sabia porque o pai ainda estava ali abaixado com cara de bravo e não a deixava sair. O que ela queria mesmo era um abraço, um picolé, ver Patati Patatá. Era uma menina de no máximo 3 anos, que teve um arroubo emocional.

Adultos fazem isso o tempo todo, gritam, saem batendo portas. É difícil mesmo se controlar às vezes e a maioria passa a vida tentando sem sucesso. Eu não acho que essa sociedade de adultos exaltados de hoje é formada por pessoas que foram crianças “sem limites”. Crianças cujos pais não tentaram controlá-las sob a desculpa de que as estavam ensinando. Ao contrário, a maioria de nós foi adestrada à base de muita violência física, verbal e psicológica, e isso resultou num total de muitos nadas porque crescemos e formamos essa sociedade de pessoas destemperadas, pouco afeitas ao diálogo e que naturalizam agressão.

Enfim, talvez, naquela situação, fosse mais fácil pegar a criança no colo, consolá-la, tentar ensinar outras maneiras de lidar com a raiva. Não estou dizendo também que devemos simplesmente ser permissivos com tudo que os filhos fazem. Mas é preciso escolher as batalhas na maioria das vezes e é preciso manter o foco para não ser engolido pela necessidade de mostrar autoridade a qualquer custo. É possível ensinar de muitas maneiras, acolhendo, dando o exemplo, algumas vezes sendo mais enérgico, mas sem esquecer o que estamos fazendo ali: tentando ensinar a essas pequenas criaturinhas estratégias para sobreviver nessa selva chamada planeta Terra. Ensiná-las a serem empáticas, a conhecerem suas emoções e lidar com elas. No ritmo e no tempo que elas consigam fazer isso. Repito, muita gente chega na vida adulta e ainda não conseguiu fazer metade do que se exige das crianças.

Até por isso, se dê algum desconto também. Porque você pode inclusive nem ser a melhor pessoa para essa tarefa: educar uma criança. Acontece. Pais acham que só porque geraram um filho se graduaram em psicologia, pedagogia, sociologia, pediatria, tudo junto. O conjunto de habilidades e conhecimentos necessários para se criar uma criança não brota por mágica com o nascimento da mesma. A necessidade de preparar-se para a parentalidade é uma realidade, nós simplesmente desconhecemos o funcionamento de bebês, crianças e adolescentes até nos deparamos com a necessidade de lidar com eles (e fazê-los sobreviver).

E estamos longe de saber alguma coisa né? Na maioria das vezes estamos tateando muito mais agarrados em convicções do que em certezas. Reproduzimos aquilo que achamos que deu certo na nossa socialização, que quase sempre é um desastre completo. Não que a gente se dê conta disso também. Vamos levando adiante. Pensamos “eu não matei, não roubei, não fui preso, devo ser uma boa pessoa, obrigada mamãe e papai”. Mas só você sabe o peso emocional que você carrega para se manter de pé todos os dias. A carência que você tem de recursos para lidar com a vida. E é isso. Seguimos reproduzindo a espécie. E sim, você simplesmente pode estar bastante coisa errada por aí, e seus pais podem ter feito bastante coisa errada com você. Culpa sua? Não. Culpa deles? Sim e não, também. Todo mundo está fazendo o seu melhor e os consultórios de terapia consertando os estragos para quem consegue ter acesso a eles.

E tudo isso para dizer que educação sem acolhimento não resolve muita coisa, no fim. E acolhimento não é aceitar tudo, abrir mão de ensinar valores, ética, as regras sociais. Acolhimento é perceber que seu filho está chorando desconsoladamente e naquele momento precisa de um abraço, não de uma bronca. A gente não devia deixar ninguém chorar desconsoladamente em nome de nada. Muito menos aos nossos filhos. Se a gente não tem muita certeza do que está ensinando, se somos todos meio cegos tateando para tentar sobreviver neste mundo, que ao menos seja de mãos dadas. Acolhendo uns aos outros. Que seu filho tenha a lembrança de que você foi a pessoa que o ensinou a ser uma “pessoa de bem”, mas também a pessoa que esteve ao seu lado e o ajudou a ser mais feliz.

E que com filhos a gente está o tempo todo escolhendo as batalhas que vai travar, porque tudo é desgastante. E nem tudo vale a pena, às vezes é só desgaste mesmo. É fácil perder o foco do que se está fazendo e dos motivos pelos quais estamos fazendo algo aos filhos. A gente tenta ensinar muita coisa que nem a gente aprendeu direito. Acho até que a gente consegue ensinar mais quando admite pra si mesmo que sabe muito pouco e que também tem vontade de sentar no chão e espernear junto para ver se alguém se compadece e resolve o seu problema.

Não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”

Acho que uma das partes mais complicadas de se criar filhos hoje em dia é conseguir passar os valores de que não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”. Uma vez me perguntaram se eu deixaria meu filho sair com vestidos, unhas pintadas e coisas que são atribuídas às meninas. Eu fui bastante honesta na resposta: que dependeria. Se ele estivesse indo para algum lugar onde suas roupas fora do padrão de gênero não fossem causar grandes transtornos a ele, deixaria sim. Mas se fosse algum lugar onde ele pudesse ser fortemente rechaçado ou rejeitado, talvez eu não o expusesse, tão jovem (ele tem 3 anos e meio) a uma situação que ele não entenderia, não saberia lidar e ainda poderia magoá-lo profundamente.

E como eu lido com o desejo, muito natural, do meu filho usar coisas ditas “femininas”? Pessoalmente, eu nem ligo. Até porque ele não vê as coisas divididas dessa forma. Roupas são roupas, cores são cores, brinquedos são brinquedos. Com o tempo, inevitavelmente, ele vai ser apresentado a essas classificações arbitrárias e aí teremos um novo desafio que é diminuir o peso disso, para que ele continue se relacionando da maneira menos danosa possível com os estereótipos de gênero.

E por que meu filho não sabe o que são “coisas de meninas” e “coisas de meninos”? Porque até agora ninguém ensinou. Ele chegou até aqui sem ouvir a famigerada frase “isso não é para você”, ou “ isso é de menina”, ou “meninos fazem assim”, e sai por aí feliz na bicicleta cor-de-rosa que herdou da prima sem nenhum trauma ou dor na consciência. Assim como brinca com ela com as bonecas e com os carrinhos e com todos os brinquedos possíveis à disposição.

E aí é importante dizer que sim, é perfeitamente possível atravessar boa parte da primeira infância da educação de um filho sem ter que entrar no mérito do que teoricamente pertence ao mundo das meninas e o que pertence ao mundo dos meninos. Esse tipo de informação e instrução não representa nada além de uma limitação do universo. O que crianças precisam entender é que há coisas que são adequadas e permitidas a ela e outras que não são, que só são adequadas e permitidas quando elas crescerem. E isso já resolve muita coisa. O mundo para elas, na verdade é muito mais dividido em “coisas de crianças” e “coisas de adultos” que qualquer outra coisa. E essa é uma noção muito importante, inclusive para a segurança delas.

E que resolve muita coisa. “posso jogar Resident Evil?”, “não, isso é coisa de adultos”, “posso beber esse vinho?”, “não, você ainda é pequeno”, “posso mexer nessa faca?”, “melhor crescer mais um pouco”. Acredito inclusive que consigo manter essa lógica com adaptações até ele completar 18 anos.

Até porque, há uma infinidade de outras informações mais relevantes que uma criança deve saber desde bebê que não passam por dividir o mundo em azul e rosa. Tipo, o nome das partes do corpo. Inclusive, e principalmente dos genitais. Deve saber que não pode deixar ninguém encostar a não ser quem é o responsável por dar banho nele e higienizar. Deve saber que ele não deve encostar nos genitais de ninguém, mesmo que peçam. Que beijo na boca é coisa de adulto. Que crianças e adultos não ficam sem roupas juntos. Que ele deve pedir permissão para abraçar outras crianças caso queira e que se elas não quiserem, ele não deve insistir. Por exemplo.

E é isso, não se preocupe em antecipar-se, o seu filho vai entender os códigos. É fácil notar que o mundo é binário e ele vai se identificar ou não com um determinado grupo, e aí cabe a você apoiá-lo para que se sinta confortável e consiga expressar sua autenticidade. Porque em algum momento ele vai ser cobrado para que defenda as leis do gênero em que nasceu inserido. E se ele conseguir chegar nesse momento consciente de que essas regras não tem o menor sentido, de que ele não precisa se submeter, vai ter força para, quem sabe, realizar os enfrentamentos necessários para gente combater tanta coisa ruim que os estereótipos de gêneros nos trazem, tanto machismo estrutural. Quem sabe? São sementes que a gente planta, tentativas que nós fazemos.

Eu, como mãe feminista, realmente não tenho nenhuma garantia de que meu filho não vai ser machista. Eu não tenho ilusões de que ele será imune. Mas enquanto eu puder mostrar a ele como o mundo pode ser bem mais fácil, para todos, quando a gente não se submete a este chicote do gênero, vamos lá. É um dia de cada vez. Quem sabe a revolução não será materna?

Como meu filho aprendeu que era um menino

Sempre me perguntam como eu ensino meu filho sobre gênero. Uma boa resposta é a história sobre como meu filho aprendeu que era um menino. É muito fácil constatar que ensinamentos sobre estereótipos de gênero são absolutamente desnecessários para crianças.

Até os 3 anos meu filho não sabia “oficialmente” que era um menino. Nunca tinha surgido uma oportunidade ou a necessidade que eu lhe desse essa informação.

Vamos pensar um pouco: que diferença faz para uma criança, principalmente uma muito jovem, se ela é menino ou menina?

Uma vez, ele tinha cerca de dois anos e estava vendo um desenho aleatório na TV onde tinha um casal de gatos. Os animais eram desenhados de maneira absolutamente igual sendo diferenciados somente por um efusivo batom vermelho e um par de longos cílios (recurso usado para demarcar qual seria a fêmea). Num determinado momento, só a fêmea ficou enquadrada na tela e meu filho disse “olha o gatinho”. Meu primeiro impulso foi corrigir e dizer “é uma gatinha, ela é menina”, mas me contive. O que eu ia dizer para ele ali? Que aquela gata era fêmea porque usava batom? Que era porque tinha cílios compridos e olhos oblíquos para simular sensualidade? É isso que define uma fêmea? Batom nos lábios? Que diabos isso queria dizer? E a ausência de sentido dessa explicação fez com que meu alerta vermelho acendesse para que eu não colocasse meus pés na longa estrada do reforço dos estereótipos de feminilidade e aí eu me calei. Ele tinha 2 anos, em nada, absolutamente nada, a informação que eu ia dar espontaneamente sobre ser um menino ou uma menina, ou mesmo se os amiguinhos com que ele brincava eram meninos ou meninas faria diferença para ele.

Já nessa época eu comecei a instruí-lo sobre o próprio corpo, com noções de prevenção de abuso, ensinando o nome de todas as partes corpo, quais deveriam ter mais atenção, ser mais protegidas. Isso aumentou a consciência corporal dele e o um dia, no banho, veio a pergunta inevitável: “mamãe, cadê o seu piupiu?”. “Eu não tenho piupiu, tenho “perereca” (nos meus sonhos engajados eu planejava dizer que mulheres tem “vulva” bla bla bla, mas foi o que saiu). Meu filho fez alguns instantes de silêncio e a questão definidora, que importa, surgiu: “por que?”. “Porque eu sou uma menina. Meninas tem perereca e meninos tem piupiu”. “O papai tem piupiu?”, ele perguntou. “O papai tem piu piu.”, respondi. “O papai tem piupiu, ele é menino. A mamãe tem peleleca (sic), ela é menina!”, ele aferiu.

A partir daí seguiu-se um período entre engraçado e constrangedor porque ele passou um tempo perguntando para pessoas mais próximas se elas tinham “pinto” ou “perereca” e checando a informação sobre ser menino ou menina. E aos poucos ele passou a observar também outros caracteres secundários como presença de barba ou seios.

Isto não significa, tampouco, que eu o estava criando “sem gênero”, ou coisa parecida, isso é impossível. Crianças são bastante perceptivas e muito rapidamente ele percebeu que ele mesmo era um menino, e que o grupo de pessoas que era classificado como “menino”, a qual ele pertencia, tinha códigos próprios de comportamento e vestimenta, assim como o grupo que era classificado como “menina”. Ele aos poucos (para o bem e para o mal) vai percebendo qual é a sua “turma”.

Eu, da minha parte, sempre busquei comprar todo tipo de brinquedos e sempre privilegiei critérios como conforto e qualidade para escolha de suas roupas, por exemplo, mas — obviamente — acabo comprando suas roupas prioritariamente na seção masculina (embora ela vista feliz várias camisetas das primas). Quando a gente se esforça (e realmente demanda muito esforço, muita desconstrução pessoal) para socializar uma criança minimizando os impactos dos estereótipos de gênero, é meio assim.

Na real, a gente entende que não existe nem uma pergunta para qual a resposta seja: “porque você é menino / menina”, assim como nenhuma orientação específica a ser dada . Exceto para questões biológicas específicas. Por exemplo: “por que eu faço xixi sentada?”, “porque você é menina, tem uma vulva, e anatomicamente é mais confortável fazer assim, meninos podem fazer das duas maneiras, em pé e sentado, porque eles têm um pênis que facilita anatomicamente”. É isso. Todo o resto (“meninos não choram”, “meninas não gritam”, “meninos não brincam de boneca”, etc, etc) são estereótipos, completamente ausentes de sentido lógico, que não seja condicionar o comportamento dessas crianças para dominação/submissão.

Meu filho agora está com 6 anos e há coisas que — até agora — ele conseguiu passar em branco. O mundo dele é muito mais dividido em um mundo de crianças e adultos que de meninos e meninas. Cores, por exemplo. As preferidas dele são azul e vermelho, e ele acha rosa uma cor linda. Ele gosta de Pokemon tanto quando da Barbie Sereia (e acha o cabelo delas “lindo”). Tem vários heróis e heroínas. E uma vez eu perguntei “me diz uma coisa que seja uma coisa de menina?”, e ele respondeu: “não tem nada, só a perereca”. Eu ri. Tá eu também chorei. Porque isso é uma vitória pessoal que eu trago — até aqui. Amanhã eu não sei. É uma batalha diária. A vida está aí, socialização não é algo que a gente consiga controlar completamente. Existe o meu menino, e existe o mundo. E o mundo é patriarcal e ardiloso.

Mas nós podemos sim, ensinar a nossas crianças que elas são meninos e meninas, por um detalhe anatômico que não faz a menor diferença pra elas porque são crianças. E podemos sim poupá-las o máximo possível da socialização de gênero, minimizar este impacto enquanto conseguirmos. Deixar pelo menos a infância delas mais leve, mais rica de experiências. Porque o que gênero ensina é sobre opressão, não é sobre liberdade. É sobre meninos serem fortes e meninas serem fracas. Sobre meninos odiarem rosa — e odiarem meninas. É sobre meninas serem princesas lindas, frágeis, à espera de um menino que vai querer casar com elas. Sobre meninos serem agressivos uns com os outros. Gênero ensina sobre quem manda e quem obedece. Ensina hierarquia. E crianças são apenas crianças. Nada disso faz sentido ou faz falta pra elas. Somos nós adultos que, irrefletidamente, fazemos um esforço continuado nessa domesticaçao. Capatazes que somos, do patriarcado. Adultizando crianças, querendo transformá-las em homens e mulheres em miniatura, em hábitos, vestuário, e comportamentos.

Sexo e gênero são coisas bastante distintas que tem — propositadamente — se confundido na mente de todas. Precisamos demarcar essa diferença. Porque nosso sexo não deveria nos condicionar a nada. Não condiciona como somos, o que gostamos, sentimos, queremos. E gênero é uma opressão. É sobre cumprir um papel social baseado no seu sexo. Estereótipos de gênero são uma prisão. Vamos criar nossas crianças livres para serem o que precisarem ser para estarem felizes. É mais simples do que parece, basta tentar.

20 coisas fundamentais para se dizer a meninas

Há coisas fundamentais para se dizer a meninas durante sua socialização que certamente farão muita diferença sobre a maneira como elas irão para um mundo patriarcal que espera delas uma postura de subalternidade e submissão aos homens. Vamos ver?

1. Não existem “coisas de menina” e “coisas de menino”

Você sabia que antigamente azul é que era uma cor de menina? E que o rosa é que era uma cor de menino? Cores são apenas cores. Adultos é que inventam classificações arbitrárias que de repente mudam. Você tem o direito de escolher o que gosta e o que não gosta, entre roupas, brinquedos, o seu jeito de ser. Não é porque você não gosta das “coisas de menina”, ou prefere as tais “coisas de menino” que tem alguma coisa errada. Ao contrário. É perfeitamente normal gostar de tudo um pouco com tantas opções legais que têm por aí. Você pode correr, pular, se sujar, gritar, gargalhar, subir em coisas. Você é rápida, é esperta, e é forte. Você também pode ser uma princesa, ou uma heroína, ou o que a sua imaginação permitir. Ou brincar de casinha e comidinha. E se os meninos quiserem brincar disso com você também, que bacana! Quando todos brincam juntos é sempre muito mais legal. Também não existe “brinquedo de menina” e “brinquedo de menino”. Você pode brincar com bola, videogames, carrinhos e aeronaves. Pode brincar com super-heróis, jogos de tabuleiro, jogos de montar. Ler gibis de ação e aventura. Bonecas, jogos de cozinha, pintura também são super divertidos. Você pode gostar do que quiser, ser como quiser, e está tudo bem. Você é apenas uma menina e deve experimentar o mundo.

2. Crianças não namora

Você não tem namoradinhos. Criança não namoram. Crianças brincam e estudam. Você não precisa se preocupar com seu comportamento ou sua aparência para que alguém “goste de você e queira namorar com você”. Você não precisa ceder se algum amigo seu disser que “quer namorar com você” ou que é seu “namorado. Crianças são amigas umas das outras. Apenas isso. E adultos, de maneira nenhuma “namoram” crianças. Namoro é coisa de adultos. Há pessoas adultas que namoram e pessoas adultas que não namoram, inclusive. Quando você crescer vai gostar de alguém e vai poder namorar, se você quiser. Alguém que também goste de você exatamente como você é, te respeite, te admire e queira estar com você.

3. Ninguém pode tocar o corpo de ninguém sem consentimento

Seu corpo é apenas seu e não deve ser tocado por ninguém sem seu consentimento expresso. Você não precisa receber nem dar abraços ou beijos se não quiser. Se alguém tocar o seu corpo sem pedir sua permissão se afaste e diga “eu não quero que você me toque. Ninguém pode tocar no meu corpo sem a minha permissão”. E conte tudo para um adulto da sua confiança que possa ajudá-la com isso. E não se preocupe se o outro vai ficar “triste”. Fazer algo que você não quer só para agradar também é uma forma de abuso psicológico com você mesma. Nunca diga “sim” quando você não tem certeza absoluta do que deseja. E sempre peça permissão antes de tocar o corpo de alguém, principalmente o de outra menina. Para qualquer coisa. “Posso pegar sua mão?”, “Posso te abraçar?”. Sempre peça. E se a resposta for não: é não. Não insista.

4. Você tem o direito de dizer “não”. Use-o sem moderação.

Recusar é tão ou mais importante quando consentir. Se algo a incomoda ou a deixa desconfortável, diga ‘não’. E se alguém não estiver respeitando o seu ‘não’ se afaste e comunique outros adultos. Você não precisa se preocupar em agradar pessoas. Não precisa concordar ou consentir com algo para preservar os sentimentos de ninguém. Os seus sentimentos e a sua segurança física e emocional devem sempre vir em primeiro lugar. Você não precisa aceitar ou concordar com tudo o que dizem que você deve fazer, ser ou sentir. Principalmente se estas orientações levarem você a situações desagradáveis. Na dúvida, diga não e se proteja.

5. Proteja-se e defenda-se sempre

A primeira coisa que você levar em consideração em qualquer relação que você esteja é a sua própria integridade física e emocional. Se alguém fere seu corpo ou fere seus sentimentos, defenda-se, proteja-se, avise outras pessoas, afaste-se. Não importa se essa pessoa é um amigo, é um professor, é um de seus pais. Não aceite chantagens emocionais. Você é forte, não precisa de um homem protegendo você, e é importante que você saiba a proteger a si mesma. Que aprenda a reconhecer ocasiões mais inseguras, seja capaz de criar um círculo de confiança e estratégias de proteção para si mesma. Que cultive uma desconfiança saudável das pessoas e situações. Afaste-se sempre de pessoas autoritárias, controladoras, ciumentas e abusivas. Sempre. Nada disso é amor. Infelizmente este é um mundo muito perigoso para meninas. É um mundo onde pessoas são atacadas, assediadas, violentadas, apenas por serem mulheres. Você é uma menina forte, inteligente e sempre será amada por ser quem você é. Não aceite ser tratada por menos do que você merece. E você é uma menina fantástica que merece ser tratada com total respeito por todos. Fortaleça seu coração e aprenda a lutar.

6. Nada justifica o uso da violência

Violência é apenas violência. É injustificável. Não sinaliza que alguém é forte e sim que é incapaz de resolver qualquer questão de forma honrada, respeitosa e civilizada. É sinal de fraqueza e não de fortaleza. Se você sentir raiva, o que é normal, pode extravasar por outros mecanismos. Ferir outras pessoas é absolutamente inadmissível. E nunca, em hipótese nenhuma, admita que ninguém cometa nenhum tipo de violência contra você. Nem física, nem verbal, nem psicológica. Mesmo que chamem de amor. Mesmo que peçam desculpa. a dor existe, ela é real e você não precisa suportar nada. Defenda-se. Procure ajuda. Proteja-se sempre.

7. Você é uma criança e não uma “mocinha”

Sabemos que ser criança neste mundo é muito complicado. E que ser menina tem uma carga bastante difícil de lidar. Que os adultos cobram que você aja como um “mocinha” e exigem de você posturas que você nem entende direito o que significa. Que querem que você tenha responsabilidades, que aprenda desde cedo a arrumar, limpar, que você muitas vezes já é obrigada a cuidar de crianças menores. Que você é levada a ter um comportamento de pessoa adulta, inclusive nas roupas e acessórios que te dão. Saiba que isso é errado. Você é uma criança e tem direito a viver sua infância como uma. Tem direito a brincar despreocupadamente sem ter que cuidar de nada nem de ninguém. Tem direito a ter seu corpo de criança protegido. Este é o momento de você aproveitar, experimentando o mundo e descobrindo aos poucos o que você é, sua personalidade, seu temperamento, o que gosta ou não. Você não tem que ser nada agora exceto uma aprendiz atenta, não tem que atender expectativa de ninguém. Você ainda está crescendo, não deixe que cobranças sem sentido roubem sua infância.

8. Você deve cuidar de si mesma em primeiro lugar

É importante saber escolher, comprar e cozinhar os próprios alimentos. Cuidar da limpeza da própria roupa. Saber como manter limpa a casa onde vive. É importante saber como cuidar-se. Ninguém tem nenhuma obrigação de fazer isso por você e se um dia você estiver numa relação onde compartilha uma mesma casa essas responsabilidades devem ser divididas, portanto você deve saber executar a sua parte. Mas lembre-se sempre que cuidar de si mesma é sua principal responsabilidade e sua prioridade. Você não tem nenhuma obrigação exclusiva com o cuidado doméstico ou cuidado de outras pessoas. Você não tem responsabilidade de cuidar de ninguém além de sim mesma e qualquer relação de cuidar com a qual você vier a se comprometer pela vida deve ser muito bem ponderada e avaliada para que você esteja doando-se de maneira muito consciente, sem sentimento de culpa ou obrigação envolvido, e principalmente sem ser explorada no processo.

9. Não é a sua aparência que define quem você é

Este é um mundo que faz com que meninas se tornem muito infelizes caso não sejam vistas como “bonitas” e um tremendo esforço sempre será feito para te convencer que ser “bela” é o que há de mais importante sobre você. Só que você não é definida por como se parece. Se uma pessoa se aproximar ou se afastar de você apenas pela maneira como você aparenta e não pela maneira como você é, então ela não serve de verdade para você. Você é uma pessoa inteligente, engraçada, esperta, forte e verdadeiramente especial. E é isso que é o que verdadeiramente importa sobre você. Se alguém não é capaz de ver, valorizar e te desejar pelos motivos certos, então essa pessoa não serve para te amar. E a validação dela não significa nada. Você não existe em função de “embelezar” os ambientes onde esteja. Você não precisa se preocupar em estar o tempo todo sendo vista, analisada e catalogada… Você é uma pessoa completa e não precisa da aprovação de ninguém sobre você. Você é muito mais que algo para ser visto, admirado e elogiado em função da beleza. Você é uma pessoa completa.

10. O universo não gira ao redor do umbigo dos meninos

Muitas vezes você vai ter a impressão que tudo que existe de legal e importante no mundo é sobre e feito para meninos. São eles que estão no centro de todas as coisas que você assiste, escuta, aprende na escola. E sim, por muito tempo e ainda hoje são os meninos que protagonizam tudo mas eles não são o centro do universo. Eles não são o mais importante, meninos são apenas meninos e o mundo não gira em torno deles, por mais que possa parecer. O seu mundo deve girar em torno de você mesma porque ainda é muito difícil ser uma menina na nossa sociedade, e tudo que você vai conhecer vai tentar te convencer que você deve colocar meninos no centro e em primeiro lugar. Que meninos são mais importantes que meninas, que eles são mais fortes, especiais. Nada disso é verdade. Seja você o centro da sua vida.

11. Você não precisa disfarçar seus sentimentos

Expresse seus sentimentos. Todos eles. Principalmente os considerados “ruins”. Você tem o direito de ficar brava. Sentir-se com raiva. Todos têm sentimentos intensos e você não precisa sentir culpa por isso. Você tem o direito de expressar sua indignação. Você pode brigar sim, e falar alto, contestar, protestar. Você não precisa perdoar nada, nem ninguém se ainda não se sentir preparada. Inclusive não precisa perdoar se não quiser. Nem precisa buscar a conciliação o tempo todo. Há momentos, inclusive, em que será justamente esta energia que vai te proteger de relações abusivas. Permita-se enfurecer porque é sua fúria que vai ter proteger.

12. Você não precisa disfarçar sua personalidade

Seja educada. Educação, polidez e gentileza são virtudes importantes para todos os seres humanos conviverem em sociedade. Mas você não precisa ser simpática, ou sorridente, ou delicada, ou doce, ou cordata, ou mesmo amável se você não quiser. Você não existe em função de atender as expectativas das outras pessoas. Você não precisa agradar a todas as pessoas e principalmente você não precisa concordar com tudo que os meninos pensam apenas para parecer atrativa para eles. Você não precisa fingir que está sentindo algo que não sente, que gostou de algo que não gosta, que aceita algo que não concorda. Permita-se ser você.

13. Ame as suas amigas 

Amigas são o bem mais precioso que uma menina pode ter. Elas vão ser suas companheiras, compartilhar alegrias, tristezas, aventuras. Vocês poderão contar umas com as outras e vão viver coisas muito parecidas. Mas fique atenta porque vão de todo modo tentar te convencer que outras meninas e mulheres podem ser rivais. Vão te dizer que meninas são mais invejosas, fofoqueiras, falsas, ou fúteis. Vão criar em você um sentimento de “não ser como as outras”. Não caia nessa armadilha. Meninas são pessoas e são as melhores pessoas que você terá ao seu lado, sempre. São as pessoas que vão salvar sua vida. Não vale a pena competir pela atenção dos meninos, tire-os do centro das suas preocupações. Nenhum menino pode ser tão especial quanto a amizade das suas amigas. Homens chegam e vão embora na vida de mulheres. As amigas estarão lá por você para sempre.

14. Escolha mulheres

Existem mulheres maravilhosas por aí, que pesquisam, produzem, constroem, inventam, criam, cantam, dançam, interpretam, dirigem, coordenam, constroem, empreendem… mulheres estão por toda parte, fazendo de tudo, e se você tiver a chance, sempre escolha mulheres. Compre , assista, leia, contrate o trabalho de outras mulheres. Vote em mulheres, opte por mulheres. Não acredite se te disserem que algo feito por uma mulher é inferior, ou imperfeito. Não entre em competição desnecessária com mulheres. Coopere com elas. Una-se a elas. Privilegiar outras mulheres é fortalecer uma rede que vai fortalecer a você mesma. Metade do mundo é feito de mulheres, o que acontece se começarmos a escolher umas às outras?

15. O casamento pode ser uma armadilha para mulheres

Eu sei que tudo que você vê e tudo que te falam fazem você pensar que o casamento é a melhor coisa que pode acontecer na vida de uma menina e que quando ela se apaixona e se casa finalmente sua vida tem um “final feliz”. Mas na realidade relacionamentos são coisas complicadas, que exigem maturidade de todos os envolvidos para funcionar. E na nossa sociedade, quase sempre, o casamento é uma maneira de prender mulheres na função do cuidado da casa e dos filhos sem muita ajuda dos homens. O casamento também pode afastar uma menina se sonhos muito particulares que ela tenha porque ela será cobrada muito fortemente a dedicar-se integralmente ao “lar”. Então tenha em mente que tipo de vida e que tipo de realizações você deseja para si e como essas coisas vão combinar com uma vida compartilhada com outra pessoa, principalmente se essa pessoa for um homem. E lembre-se, não é se apaixonar, casar e ter filhos que precisa definir o objetivo da sua vida, por mais que queiram te convencer disso. Isso são coisas que acontecem ou não entre várias outras coisas que podem acontecer ou não na vida de uma pessoa. E sequer são as coisas mais importantes. O seu destino não é ser escolhida por alguém, o seu destino é escolher a você mesma e fazer o melhor que conseguir com isso.

16. A maternidade pode ser um fardo

Na nossa sociedade a maternidade pode ser (e quase sempre é) um fardo pesado para a mulher. Ser mãe não é a coisa mais importante da sua vida, não é algo que vá te completar em nada. Você vai ver e ouvir por aí que a maternidade é uma coisa sagrada, e que mães são seres especiais, mas isso é uma mentira. Ser mãe é um trabalho. E um trabalho dificílimo de realizar e que exige uma dedicação intensa e extrema e o envolvimento de várias outras pessoas. Quase não há apoio social nem institucional para as mães e o meninos não recebem a mesma pressão para assumir sua parte na responsabilidade de criar seus filhos deixando a mulher sobrecarregada. Crianças são uma responsabilidade de toda a sociedade e nenhuma mulher consegue dar conta de um filho sozinha sem abrir mão de muita coisa da própria vida. Somente com apoio é possível aproveitar bem a parte boa de ter filhos que é poder ajudar na formação de uma outra pessoa, vê-la crescer e poder curtir o amor que surge entre uma mãe e seu filho que é uma coisa bastante especial.

17. Você pode amar quem você quem quiser

Pode ser que você cresça e goste de meninos, pode ser que você cresça e goste de meninas, pode ser que você goste dos dois. E não tem nenhum problema com isso. Basicamente, de quem você gosta ou deixa de gostar, com quem você se relaciona ou não, é um assunto particular seu. Respeite seus sentimentos e desejos e não os reprima. Ainda vivemos em um mundo que tem dificuldade de aceitar todas as formas de amor. E mais, vivemos em um mundo que quer fazer parecer que meninos e meninas se amarem é a única forma de amor possível, aceitável e “normal” de existir, e isso simplesmente não é verdade. Você é uma pessoa. E pessoas se apaixonam por outras pessoas. Precisamos entender e respeitar isso. Portanto saiba que para nós não importa realmente com quem você vai se relacionar desde que isso resulte numa história bacana que faça você feliz. E lembre-se de levar essa regra com você: com quem as pessoas se relacionam não é um problema seu. Nunca desrespeite ninguém por causa disso e nem permita que outros a sua volta o façam.

18. Conheça seu corpo. E ame-o.

Conheça seu corpo. Cada pedaço dele, completamente. Ame seu rosto, sua pele, o formato do seu corpo. Não queira transformar nada. Se puder trabalhar algo dentro de você, trabalhe a aceitação. Você é ótima do jeito que você é. Sem subterfúgios. Saiba como funciona seu sistema reprodutivo, a maravilhosa máquina de gestar que você carrega. Entenda seu ciclo hormonal. Seus período fértil. Aprenda a conhecer como os hormônios te afetam, seu humor, sua libido. Nós mulheres somos cíclicas. E isso é lindo. Há todo um ciclo perfeito em funcionamento, onde cada etapa te transforma até culminar no momento da sua menstruação. É seu sangue. Seu organismo operando. Não tenha nojo do seu corpo. De nada dele. Aprenda a admirar-se no espelho. Conheça sua vulva, intimamente. Seu clitóris. Não tenha vergonha de explorar você — e apenas você — o que o seu corpo pode lhe proporcionar. 

19. Você merece ser amada

Sim, eu sei que ninguém ensina como se ama uma menina. Porque sempre parece que todos os outros são melhores, mais bonitos, mais importantes, mais valorizados. Que você só recebe atenção quando atende a um determinado tipo de expectativa que exige um preço muito alto para acatar. E que você parece sempre ter sempre que se esforçar para agradar, cuidar, resolver problemas. Isso não tem a ver com você. O mundo infelizmente manda sinais por todo o lado de que mulheres são meros objetos decorativos desimportantes. Meninas sempre são mostradas como fracas, dependentes, o trabalho das mulheres não tem visibilidade. Mas você merece ser amada. E eu não estou falando de desejo. De desejo sexual pelo seu corpo. Estou falando de amor. Amor incondicional. Que é aquele amor que não condiciona. Que te aceita exatamente do jeito que você é. Toda mulher merece ser amada assim e não deve aceitar menos que isso. Não tenha medo de ser inteira, completa, e exigir amor, cuidado, apoio, carinho, compreensão, ao invés de apenas dar. Nunca esqueça disso. Nunca aceite menos que isso.

20. Este ainda não é um mundo bom para as mulheres

Este é um mundo em que meninas ainda não são tratadas tão bem quanto os meninos. Portanto você deve estar sempre atenta para não sofrer injustiças e nem perder direitos. Deve estar vigilante para não sofrer abusos e violências. Há mulheres maravilhosas por aí brigando todo dia para tornar esse mundo um lugar melhor para meninas como você viverem. Mas por enquanto ainda é preciso tomar muito cuidado. Eu sei que o mundo não vai te tratar como você merece. Que vai tentar te obrigar a entrar num padrão de aparência física. De comportamento. Que vai tentar esmagar sua auto-estima, dizer que você não é boa o suficiente, o tempo inteiro. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer de que você é inferior aos meninos, menos especial, inteligente e poderosa que eles e que você deve obedecê-los e admirá-los. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer que as outras meninas são suas inimigas, que você deve combatê-las para agradar outros garotos. Mas eu sei também que você é uma menina única. Que você não é como todo mundo e que sua grande batalha e mostrar ao que você veio. Quem você é de verdade. Sem padrões. Sem manual de instrução a seguir. E eu sei que isso pode ser especialmente difícil porque você terá que lutar. Você nasceu uma menina e terá que lutar o tempo inteiro para ser quem você é. Saiba que você não está sozinha na sua batalha. Há outras meninas por aí, como você, preparadas. Vamos juntas.

20 coisas que você deve começar a dizer ao seu menino

Há algumas coisas que você deve começar a dizer ao seu menino durante sua socialização que certamente farão muita diferença sobre a maneira como eles irão para um mundo patriarcal que espera delas uma postura de dominação e violência contra mulheres. Vamos ver?

1. Não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”

Você sabia que antigamente rosa era uma cor de menino e que o azul é que era uma cor de menina? Cores são apenas cores. Adultos é que inventam classificações arbitrárias que de repente mudam. Você tem o direito de escolher o que gosta e o que não gosta, entre roupas, brinquedos, o seu jeito de ser. Não é porque você não gosta das “coisas de menino”, ou prefere as tais “coisas de meninas” que tem alguma coisa errada. Ao contrário. É perfeitamente normal gostar de tudo um pouco com tantas opções legais que têm por aí. Se meninas gostam de bola, gibis, videogames, carrinhos e aeronaves, são boas em jogos de tabuleiro, jogos de montar, por que você não pode se divertir com bonecas, jogos de cozinha, pintura e tudo mais? E brincar de casinha, comidinha ou princesas é super legal sim. Se você pode brincar com tudo, por que brincar só com a metade? Não faz sentido não é mesmo? O bacana é poder todo mundo brincar junto. Meninas podem correr, pular, se sujar. Elas não são mais lentas ou mais frágeis. Excluir meninas das brincadeiras só faz com que não se aproveite toda a diversão possível. Meninos e meninas são crianças e não há diferença nenhuma entre vocês que seja importante.

2. Crianças não namoram

Você não tem” namoradinhas”. Crianças não namoram. Crianças brincam e estudam. E você não precisa se sentir coagido quando disserem que você tem que conquistar as meninas da escola. Adultos podem ser muito inconvenientes. Você não precisa ceder se alguma coleguinha disser que “quer namorar com você” ou que é sua “namorada”. Crianças são amigas umas das outras. Apenas isso. E adultos, de maneira nenhuma “namoram” crianças. Namoro é coisa entre adultos. Há pessoas adultas que namoram e pessoas adultas que não namoram, inclusive. Quando você crescer vai gostar de alguma pessoa e vai poder namorar com ela. Uma pessoa de cada vez. Porque namorar é ter compromisso com o sentimento da outra pessoa e isso deve ser sempre respeitado.

3. Ninguém pode tocar o corpo de ninguém sem consentimento

Seu corpo é apenas seu e não deve ser tocado por ninguém sem seu consentimento expresso. Você não precisa receber nem dar abraços ou beijos se não quiser. Se alguém tocar o seu corpo sem pedir sua permissão se afaste e diga “eu não quero que você me toque. Ninguém pode tocar no meu corpo sem a minha permissão”. E conte tudo para um adulto da sua confiança. E sempre peça permissão antes de tocar o corpo de alguém, principalmente o de outra menina. Para qualquer coisa. “Posso pegar sua mão?”, “Posso te abraçar?”. Sempre peça. E se a resposta for não, é não. Não insista.

4. Quando alguém diz “não”, é não. Sempre.

Quando uma menina diz “não”, ela realmente está querendo dizer “não”. Se ela ficar em silêncio e não disser nada, também considere como um “não”. Se ela disser “talvez”, na dúvida, igualmente será um “não”. Não insista. Sempre garanta que as meninas estejam confortáveis e que estejam consentindo nas suas ações para com elas. É ruim quando não podemos fazer algo que queremos, eu sei. Mas acredite, a frustração passa e você sobreviverá. Meninas não devem nada a você só porque você quer e elas tem o direito de proteger-se. Respeite se elas tiverem medo ou desconfiança. Isso não é sobre você é sobre a experiência de mundo delas. Escute-as, aprenda e respeite se elas forem incapazes de confiar em você. Não é pessoal.

5. Defenda meninas

Meninas não são mais fracas, ou mais frágeis, ou incapazes de proteger-se mas tem um mundo absolutamente violento contra elas. E precisam de apoio porque alguns meninos crescem e tornam-se homens verdadeiros predadores , perseguindo-as, machucando-as de muitas maneiras. Então fique alerta, se você vir alguma menina em dificuldades, seja qual for, ajude-a. Isso vai significar muitas vezes ir contra os seus amigos. Pode significar muitas vezes que você vai estar sozinho contra o seu próprio grupo. Mas significa também que você não estará compactuando com toda a violência que homens comentem contra meninas e mulheres. Defenda meninas pelo motivo certo. Não porque “você é homem” e deve protegê-las porque elas são “frágeis”, mas porque você é uma pessoa que sabe que esse grupo está vulnerável a ataques e precisa de toda ajuda possível.

6. A violência não é um recurso válido

Violência é apenas violência. É injustificável. E não só violência física, mas também a verbal, psicológica. Não sinaliza que você é forte e sim que você é incapaz de resolver qualquer questão de forma honrada, respeitosa e civilizada. É sinal de fraqueza e não de fortaleza. Eu sei que as pessoas ao seu redor estão o tempo inteiro querendo que você se mostre “forte” e “bravo”, e que parecem admirar quem é agressivo e violento, mas isto está profundamente errado. Não devemos nunca admitir que ferir outras pessoas é uma hipótese viável. Violência só traz sofrimento. Se você sentir raiva, o que é normal, pode extravasar por outros mecanismos, mas a sua raiva não te dá o direito de agir violentamente. E agir sem violência não te torna um “covarde”, te torna uma pessoa boa. E também nunca admita que ninguém cometa nenhum tipo de violência contra você. Nem física, nem verbal, nem psicológica. Defenda-se. Procure ajuda. Proteja-se sempre.

7. Você é um menino, não um homem

Sabemos que ser criança neste mundo é muito complicado. E que ser menino tem uma carga bastante difícil de lidar. Que os adultos cobram que você aja como um “homem” e exigem de você posturas que você nem entende direito o que significa. Mas se você se sentir ameaçado ou coagido, seja por qualquer motivo, não guarde segredo. Conte conosco. Nós sempre acreditaremos em você e vamos ter proteger. Nós não queremos que você “aja como um homem”, isto é uma bobagem. Queremos que você seja criança, experimentando o mundo e descobrindo aos poucos o que você é, sua personalidade, seu temperamento, o que gosta ou não. Você não tem que ser nada agora exceto um aprendiz atento, não tem que atender expectativa de ninguém. Você ainda está crescendo, não deixe que esta cobrança sem sentido te defina.

8. Saiba cuidar de si mesmo

É importante saber escolher, comprar e cozinhar os próprios alimentos. Cuidar da limpeza da própria roupa. Saber como manter limpa a casa onde vive. É importante saber como cuidar-se. Ninguém tem nenhuma obrigação de fazer isso por você e se um dia você estiver numa relação de casamento essas responsabilidades devem ser divididas, portanto você deve saber executar a sua parte. Eu sei que você pode se sentir tentado a achar que meninas é que são responsáveis pelas tarefas cotidianas e domésticas, porque é muito do que você vê em toda parte. Mas isso não é correto e nem justo. Talvez você encontre meninas que acreditem que é obrigação delas fazer as coisas por você. Não permita isso, isso é exploração. A verdadeira autonomia tem a ver com você ser capaz de cuidar completamente de si sem transferir essa responsabilidade para ninguém, muito menos para mulher alguma. Responsabilize-se e aprenda a cuidar de si mesmo.

9. Meninas não são definidas por como se parecem

Meninas são inteligente, espertas, engraçadas, amigas, divertidas. Tem todas as qualidades e defeitos que qualquer pessoa tem. Meninas são pessoas. Amigas, companheiras de aventuras. A aparência delas não é importante. Ser bonito ou ser feio não é a principal qualidade de ninguém. E a aparência de uma menina não é um assunto que lhe diga respeito. Assim como as roupas que ela veste. Meninas não existem para serem objetos decorativos do ambiente. Se ela é alta, baixa, gorda, magra, branca, negra, realmente não é da sua conta. Nada disso define quem uma menina é. Eu sei que você será bombardeado com imagens e estímulos que vão te fazer cobiçar meninas de um determinado padrão, e que você vai aprender que o corpo delas é o mais importante a ser desejado. Mas focar nisso fará apenas que você deixe de se concentrar na parte mais importante de qualquer pessoa que é sua personalidade, inteligência, ideias, e a maneira como essa pessoa consegue fazer você se sentir com o jeito que ela tem. Meninas são pessoas e não coisas. Respeite-as sempre como o ser humano completo que elas são.

10. O universo não gira ao redor do seu umbigo

O mundo vai fazer você pensar que está no centro do universo. Tudo o que você lerá, assistirá, ouvirá falar, tem a ver com pessoas como você. Outros meninos. Suas conquistas, suas descobertas. Você verá outros homens em cargos importantes, vivendo aventuras, protagonizando por toda parte. Sim, é muito fácil acreditar que tudo é sobre você, seus sentimentos e suas possibilidades. Mas não é. Mulheres não possuem o mesmo status que os homens porque elas foram proibidas por muito tempo de fazer as mesmas coisas que os homens sempre fizeram. E com muita luta elas buscam ocupar espaços na sociedade em que vivemos. Então entenda que você não é melhor, nem especial, nem mais importante. Você apenas possui uma coisa chamada privilégio, que faz com que você seja tratado de forma melhor por todos simplesmente porque nasceu um menino.

11. Você não precisa disfarçar seus sentimentos

Nós somos responsáveis por lidar com nossas próprias emoções e nosso grande desafio é conseguir nos conhecer para que elas não nos levem a tomar más decisões. Somos pessoas, falhamos, estamos aqui aprendendo uns com os outros a sermos pessoas melhores. Não tenha medo de expor seus sentimentos. Converse, entenda o que é tristeza, alegria, raiva, dor, angústia, medo, aprenda a reconhecer isso dentro de si. Seja autêntico e honesto consigo mesmo. Você não tem que provar nada para ninguém escondendo ou fingindo seus sentimentos. Você não precisa substituir sua dor, sua confusão, tristeza, pela raiva cega apenas porque esse é o único sentimento desejado em meninos. Deixe sua sensibilidade, delicadeza, amabilidade e gentileza transparecerem, não significa que você é nada, apenas que é uma pessoa empática e muito bacana. Fragilidade não é defeito. Sensibilidade também não. Muito pelo contrário. Nos dias de hoje, essas características são fundamentais pra gente viver juntos em sociedade.

12. Você não precisa disfarçar sua personalidade

Seja educado. Educação, polidez e gentileza são virtudes importantes para todos os seres humanos conviverem em sociedade. Mas você não precisa fingir ser mais extrovertido, ou firme, ou ativo, ou viril do que você é. Você não tem que atender as expectativas de ninguém mostrando ser alguém que você não é. Você não precisa “agir como um homem”, afinal o que isso significa? Você é um menino. Uma criança. Uma pessoa em formação. Você não precisa se preocupar com nada além de aprender sobre o mundo, se divertir, brincar, e não tem que provar nada para ninguém. Você é amado exatamente do jeito que é e será amado sempre. Ninguém espera que você seja nada além de uma pessoa feliz que consiga viver na sociedade respeitando suas regras.

13. Saiba escolher seus amigos

Este é um mundo especialmente difícil para um menino viver em grupo. Os outros garotos vão impor regras de comportamento bastante equivocadas para que você seja aceito entre eles. Eles podem pedir que você maltrate outras pessoas, especialmente meninas. Vão incentivar você a provar sua “macheza” demonstrando uma abordagem profundamente abusiva para com o corpo e o espaço delas. Eles vão incitar você a humilhar e até agredir outros meninos que não se mostrarem tão “machos”. Vão querer que você demonstre “força” sendo agressivo com os outros e vão premiar esse comportamento fazendo você se sentir muito querido e admirado. Este é um preço que não vale a pena pagar, acredite. Saiba escolher amigos que prezem pelos mesmos valores que você e não tenha medo de afastar-se daqueles que comportam-se com agressividade e violência. Existe sim o que é o certo e o que é o errado. E maltratar pessoas certamente é uma coisa errada, por mais que isso seja exaltado em certos grupos. E não tenha medo de confrontar comportamentos dos seus amigos que você sabe que são inadequados. Afinal, de que lado você quer estar? Que tipo de garoto você quer ser?

14. Priorize mulheres

Existem mulheres por aí, que pesquisam produzem, constroem, inventam, criam, cantam, interpretam, escrevem. Eu sei que você está completamente acostumado a só ver homens por toda parte como protagonistas a ponto de acreditar que o mundo somente foi realizado por eles. Eu sei que tudo que você aprende sobre meninas é que elas são inferiores a você, mas isso é não é a verdade. A história é contada pelos vencedores e todo o legado das mulheres foi usurpado. Suas conquistas e descobertas foram apropriadas ou simplesmente escondidas. Muito do mundo que conhecemos foi realizado também graças a muitas mulheres que nos antecederam tendo o triplo de dificuldade que qualquer homem porque tiveram que enfrentar muita resistência. Portanto seja um aliado, priorize mulheres. Compre, assista , leia, contrate o trabalho de outras mulheres. Não acredite se te disserem que algo feito por uma mulher é inferior, ou imperfeito. Não boicote, desvalorize ou subestime o trabalho de mulheres. Coopere com elas.

15. Tenha responsabilidade emocional

Você vai ser estimulado a se relacionar com o maior número de pessoas que conseguir e ao mesmo tempo, como se isso provasse que você é uma pessoa muito poderosa. E a pressão pode ser tão forte que você se sentirá frustrado e rejeitado caso não consiga concretizar esse tipo de comportamento. Não caia no erro de assumir o papel de caçador e tratar os outros como se fossem uma caça. Permita-se viver boas histórias. Histórias que você gostaria de recordar com carinho no futuro. Relacionamentos são coisas complicadas que exigem dedicação, comprometimento e honestidade. Não tenha medo de ser verdadeiro e expor seus sentimentos. Seja honesto sempre. Aprenda a lidar com o fato de que algumas pessoas vão querer estar com você e outras simplesmente não vão querer, e tudo bem por isso. Ninguém te deve nada. Não te devem carinho, atenção, afeto. Não te devem cuidado. Não são sua propriedade. Ninguém tem obrigação de gostar de você ou de estar com você. E você deve respeitar e aceitar isso. E deve também respeitar o sentimento de quem se afeiçoar a você, não usando isso a seu favor. O nome disso é responsabilidade emocional.

16. A paternidade é um compromisso intransferível

Criar uma criança para este mundo é uma das coisas mais importantes que uma pessoa pode fazer. Embora você possa ter a percepção que cuidar de bebês é um assunto de mulheres, esta é uma tarefa também de homens. E se um dia você quiser viver a experiência de ter um filho saiba que esse é um compromisso irrevogável e intrasferível, da qual não podemos fugir. Ser pai é para sempre e um filho é uma coisa muito séria, é um ser vulnerável que estará contando com sua presença, apoio, cuidado e amor. E essa experiência pode ser incrível sim porque é realmente uma grande responsabilidade criar pessoas para este mundo.

17. Você pode amar quem você quiser

Pode ser que você cresça e goste de meninas, pode ser que você cresça e goste de meninos, pode ser que você goste dos dois. E não tem nenhum problema com isso. Basicamente, de quem você gosta ou deixa de gostar, com quem você se relaciona ou não, é um assunto particular seu. Respeite seus sentimentos e desejos e não os reprima. Ainda vivemos em um mundo que tem dificuldade de aceitar todas as formas de amor. E mais, vivemos em um mundo que quer fazer parecer que meninos e meninas se amarem é a única forma de amor possível, aceitável e “normal” de existir, e isso simplesmente não é verdade. Você é uma pessoa. E pessoas se apaixonam por outras pessoas. Precisamos entender e respeitar isso. Portanto saiba que para nós não importa realmente com quem você vai se relacionar desde que isso resulte numa história bacana que faça você feliz. E lembre-se de levar essa regra com você: com quem as pessoas se relacionam não é um problema seu. Nunca desrespeite ninguém por causa disso e nem permita que outros a sua volta o façam.

18. Entenda como os corpos funcionam

Conheça seu corpo. Cada pedaço dele, completamente. Aprenda como ele funciona. Aprenda onde dói, onde formiga, onde faz cócegas, onde relaxa, onde é muito bom. E aprenda sobre o corpo das meninas. O que há de igual e o que há de diferente. Saiba que meninas quando crescem possuem tantos pelos quanto você e que isso é tão natural nelas quanto é em você. Meninas tem cheiros, fluidos, gases, como você. Mais semelhanças que diferenças. Aliás, conheça a fundo as diferenças. Saiba como funciona seu sistema reprodutivo, e como funciona o sistema reprodutivo delas. Saiba que meninas são cíclicas, menstruam, entenda como e porquê isso acontece e como isso é fantástico. E saiba que acima de tudo que o corpo, qualquer corpo, não te pertence, é inviolável e merece absoluto respeito. Você vai sempre ser ensinado que o sexo é uma parte muito importante da sua vida e que você deve se preocupar com isso talvez mais do que você gostaria. Respeite a si mesmo, seu tempo, seus processos

19. Aprenda a amar mulheres

Eu sei, ninguém te ensinou como se ama meninas. Em toda parte você só escuta que elas são chatas, inferiores, frágeis. Que são fúteis, burras, só se interessam por coisas superficiais. O que você vê na televisão é que elas só servem para decorar o ambiente sendo belas. Que elas não servem para ser admiradas como pessoas, mas sim como um objeto bonito. Que elas se dividem entre as que vão te amar e servir e as que vão te rejeitar e fazer sofrer. Que elas devem cuidar de você não importa o que você faça. Eu sei que é difícil amar essa imagem que te vendem de como as meninas são. Você aprende que mulher é um xingamento não é? Te chamam de “menininha” quando querem te diminuir. Só que nada disso é verdade. Meninas são pessoas. E pessoas maravilhosas, inteligentes, cheias de particularidades fascinantes. E você deve amá-las incondicionalmente. Não por sua beleza, ou por desejo ao seu corpo, ou por ser cuidado, ou para ter alguém para te servir. Mas por elas serem… pessoas. Como você. Cheias de particularidades. Defeitos e qualidades. Pessoas que serão suas amigas, companheiras de trabalho, de diversão, e de aventuras. Te ensinar a odiar mulheres é um projeto que você deve recusar. Desconfie de qualquer proposta que coloca mulheres numa posição inferior.

20. Este ainda não é um mundo bom para as mulheres

Este é um mundo em que meninas ainda não são tratadas tão bem quanto os meninos são tratados. Portanto você deve estar sempre atento para não cometer injustiças e nem retirar direitos das meninas. Deve estar vigilante para não cometer abusos e violências. Há mulheres maravilhosas por aí brigando todo dia para tornar esse mundo um lugar melhor para meninas viverem. Não colabore para uma cultura que as obriga a cumprir um padrão de aparência física e comportamento só para agradar você e não seja mais um a tentar esmagar a autoestima delas, fazendo-as pensar que não são boas o suficiente. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer de que você é superior às meninas, mais especial, inteligente e poderoso. E que meninas devem obedecê-lo, admirá-lo e servi-lo. Que você verá meninas competindo pela sua atenção e isso vai fazer você se sentir único. Mas resista aos seus privilégios da maneira que puder porque são eles que tornam o mundo um lugar muito perigoso para meninas. Muitos meninos crescem e se tornam homens que perseguem, assassinam, violam, e fazem muito mal para as mulheres. Você não precisa se tornar parte desse problema. Você é um menino bom. Você pode se tornar um homem bom.

Do risco de se perder dos filhos quando a adolescência chega

Há sempre o risco de se perder dos filhos quando a adolescência chega. Este é um período extremamente delicado para toda a família. Para o adolescente, que está passando por uma série transformações físicas, emocionais e sociais, para os pais que têm aprender como desenvolver um relacionamento com uma pessoa completamente diferente daquela criança que estavam acostumados a lidar.

Fatalmente nessa fase, é comum acontecer algum afastamento entre pais e filhos. Os jovens se isolam porque querem autonomia, querem se desgarrar do sentimento de dependência dos pais e projetar uma imagem de auto-suficiência. Ou sentem-se incompreendidos. Ou simplesmente querem ficar consigo mesmos. Ou tudo isso junto.

Os pais, que estavam acostumados com uma criança que minimamente obedecia suas ordens, muitas vezes não sabem lidar com os surtos de independência e autonomia da cria. De repente se deparam com um mini adulto, cheio de vontades, questionando, rejeitando suas intervenções e arrumando problemas. Uma criaturinha que antes se conhecia como a palma mão e que de repente não quer mais ninguém por perto, se isola, fica voltado para coisas que você não conhece ou não se interessa.

Ou então a criança vai se tornando um adolescente “exemplar”, “que não dá trabalho”, simplesmente porque não apresenta demandas, se vira sozinho e “é responsável”, e os pais acreditam que não há necessidade de zelar por eles porque eles “estão bem”. E ainda, simplesmente os pais não se interessam mais tanto pela pessoa adulta que o filho vai se tornando. Que não é mais uma criança fofa e graciosa que os idolatrava cegamente. E dão sua participação na educação do jovem meio que por concluída.

É compreensível que haja também um certo alívio por finalmente ver terminada fase de maior dependência funcional e ser possível algum descanso para os pais, já que minimamente aquela pessoa que dependia de você para tudo, agora se banha, come sozinha, e veste-se sem ajuda. E aí na correria da sobrevivência, muitas vezes é difícil abrir mão da aparente calmaria para ficar investigando como está a performance do filho no planeta adolescência.

É muito difícil sim.

Por outro lado você tem o adolescente. Que até pouquíssimo tempo mal limpava a bunda sozinho. Está crescendo, o corpo está mudando. Talvez fisicamente já esteja quase tão desenvolvido como um adulto. E isto o confunde. O mundo (inclusive os pais) muitas vezes o cobra como se fosse um adulto, mas o restringe como se fosse uma criança. Isto o angustia. A mídia não ajuda. Essa criança acha que cresceu, que sabe muito. Mas ela se sente terrivelmente só e perdida. É um ser híbrido. Que não recebe mais o mesmo carinho, atenção e ponderação que recebia quando era criança. Mas também não recebe o mesmo status, deferência e consideração dos adultos.

Este ser intermediário, chamado adolescente, é um poço de medos e alegrias. Começa a conquistar o mundo sem ainda ter tantas responsabilidades. E tem o mundo lá fora. Esperando tanto dele. Tem as outras pessoas e suas expectativas. Tem os padrões toscos de feminilidade e masculinidade. Um adolescente é o retrato do medo da rejeição. É um bicho trocando de casca, absolutamente frágil. Ele não sabe ainda o que está se tornando. Está vulnerável, tem medo de não ser querido. Medo de decepcionar pais. Medo de não ser aceito pelos amigos. Medo de não estar se tornando um novo bicho bom e belo, com uma carapaça forte o bastante para seguir sobrevivendo.

Seu filho adolescente precisa de você. Talvez tanto ou mais do que quando era um bebê indefeso. Ele precisa saber que ainda é amado mesmo mudando. Que será amado não importa o que ele se torne.

É tão fácil se perder dos nossos filhos quando eles são adolescentes. Eles fogem dos pais e se refugiam longe. É tão fácil não estabelecer diálogo, não criar intimidade, não participar do seu mundo. Ver o tempo passar e de repente ter um adulto completamente desconhecido ali morando na mesma casa. Que sequer consegue ser seu amigo. Que sequer consegue sentir-se pertencendo àquele núcleo familiar.

As experiências que temos na adolescência são tão determinantes para a nossa vida. Tão indicativas sobre nossos vícios e virtudes. As influências que recebemos são tão decisivas. O professor que nos encanta e faz com que apaixonemos pelo curso que vamos fazer na faculdade. A primeira paixão. Os amigos que fazemos ou não conseguimos estabelecer.

Quanto medo, insegurança, depressão, baixa-estima, vícios, se instalam justamente nessa época da vida?

Quantos relacionamentos abusivos, assédios?

Quantos suicídios? Distúrbios alimentares?

Adolescentes não são mais crianças. Seus corpos estão mudando, eles têm desejos, capacidade de performar de maneira autônoma para cuidar de suas necessidades básicas pessoais. Tampouco adolescentes são adultos. Eles não tem experiências, parâmetros, conhecimento, amadurecimento emocional. E estes jovens estão absurdamente sozinhos. Desorientados. Desassistidos. Buscando respostas no Google para suas dúvidas e temores.

Há um certo vácuo geracional criado pela rápida disseminação das tecnologias de comunicação nos últimos anos. Os pais de adolescentes de hoje são ainda bastante analógicos e podem não ter uma noção clara dos desafios enfrentados pelos filhos que são bem diferentes dos desafios que eles enfrentaram. É um mundo nudes, exposição de intimidades, bullying virtual, hackeamento. Um mundo em que a rede de amigos é virtual e é na casa de centenas de pessoas. Em que com um clique um mundo de informação instrumentaliza esse adolescente sobre o tema que ele tiver interesse. Para o bem e para o mal. Possibilidades ilimitadas.

Os pais precisam estar próximos mais do que nunca. E vigilantes também. Atentos. Participativos. Ajudando esse jovem a transitar no mundo fortalecendo seus valores. Esse é um momento da educação parental em que todos os valores recebidos vão ser testados e reforçados ou renegados. É um momento em pais em filhos podem se aproximar e estabelecer uma relação de parceria definitiva ou se afastar. E não falo de se tornar “amigo” do seu filho adolescente, e sim de manter-se firme numa relação de carinho, aceitação e orientação, que permita que esse jovem saiba, acredite e aceite que os pais estão lá por ele.

Não se afaste do seu filho só porque ele cresceu, ou já que ele cresceu. Esteja lá por ele. Ele precisa muitíssimo de você, acredite. Talvez, mais do que nunca. Não se perca dele. Mantenha-o aconchegado, acolhido, protegido pela certeza de que você o ama e o aceita.

Por mais difícil que seja.

Dos limites do tal limite

Precisamos falar dos limites do tal limite pelo qual adultos são tão obcecados em impor. Para crianças especialmente. “Tem que ter educação”, “tem que obedecer”, “tem que saber que lidar com o não”.

Crianças têm que atender expectativas que nem mesmo adultos conseguem corresponder.

Eu quero muito conhecer onde estão essas pessoas que sabem ouvir “não” com tanta resiliência. Que respeitam os limites. Todos. Os impostos pela sociedade, pelo Estado, pelo próprio corpo. Que suportam suas perdas com resignação, sem fazer birra. Mesmo que a birra não seja mais espernear no chão aos prantos.

Quero conhecer essas adultos que não gritam, não choram, não praguejam, não resmungam, não batem telefone nem porta na cara de ninguém, não xingam, não fazem textão no Facebook, não se exaltam de maneira nenhuma porque estão putos da vida com alguma coisa. Porque estão frustrados.

Me digam por favor a localização desse sagrado lugar onde vivem esses seres humanos controlados. Esse lugar onde ninguém discute, ninguém briga, ninguém se agride, ninguém se excede, ninguém estoura limite do cartão de crédito nem do cheque especial comprando baboseiras para compensar o próprio vazio. Ninguém se embriaga. Ninguém se dopa. Ninguém se empanturra de comida. Ninguém perde o sono. Ninguém perde a calma. Porque queriam algo de suas vidas ou para suas vidas e não conseguiram.

Convoquem, por favor, estes fantásticos adultos que sabem conviver tão bem com limites para uma demonstração. Um TEDx. Onde estão? Na internet? Estes que estão se digladiando, se expondo? Metendo o dedo uns na cara dos outros? Julgando a tudo e a todos?

Vamos, aliás, dar o Prêmio Paradoxo para aqueles que propõem ensinar limites excedendo justamente todo o limite possível que é espancando uma outra pessoa! Verdadeiros baluartes do controle emocional.

Quando você se engalfinha trocando insultos com outro adulto, onde estão os limites? Quando você expõe outras pessoas e as joga na berlinda do escrutínio público, onde estão os limites? Quando você entra numa guerra de ego com outro adulto usando uma criança como desculpa, onde estão os limites? Cadê os limites de quem chama crianças de mimadas, ranhentas, peido? Cadê os limites de quem ameaça jogar uma criança pela janela?

Somos ainda uma geração de pessoas que apanhou dos pais. Estamos tateando recursos para lidar com crianças que não seja através de castigo, violência, repressão. E somos a sociedade violenta que somos. É só olhar pela janela pra percebermos como a educação cheia dos tais limites que recebemos não vem dando muito certo. As pessoas, em sua maioria, estão todas angustiadas, deprimidas, confusas, infelizes, buscando compensações das mais diversas justamente para o fato de não saberem lidar com aquilo que tem e principalmente com o que não tem.

Não queremos “dar limites” para crianças, queremos justiçamento. Queremos ver crianças apanhando, sendo “corrigidas”, sendo tolhidas, sendo retiradas do caminho. Queremos mini-adultos, apáticos, submissos. Queremos passar adiante sem refletir essa educação para obediência cega, sem reflexão, porque queremos que as crianças não “incomodem”. Não deem trabalho. Não sejam crianças.

Tentamos a qualquer custo colocar crianças numa linha que nenhum adulto segue de verdade. Essas mesmas pessoas que lidam com sua própria frustração a base de excessos de todos os tipos, não consegue gerenciar a frustração de uma criança e orientá-la. Uma geração que acha que sabe ouvir não, mas não sabe. Sabe ditar regras. Porque no fundo todos querem se sentir muitíssimo importantes e são as crianças, que não podem se defender, as vítimas ideais dessa síndrome de pequeno poder.

Se todo o limite que essas pessoas estão clamando para as crianças existisse de verdade viveríamos em outra sociedade. Sem violência. Sem corrupção. Sem agressividade. Sem desigualdade social. Porque tudo isso, todas essas mazelas que nos massacram estão ligadas diretamente com o ato de RESPEITAR LIMITES. E são os adultos os responsáveis por esse caos.

Então, por favor, vamos ser menos hipócritas, e deixar as crianças em paz.

Crianças são pessoas

Você já parou para pensar que crianças são pessoas? Sei que essa pergunta parece meio despropositada mas nós costumamos pensar, agir e tratar crianças como se fossem uma categoria a parte, uma outra espécie situada mais ou menos entre humanos e animais. Não tão racionais quanto humanos, não tão irracionais quanto animais. E talvez muito mais próximo dos animais que dos humanos.

Não tratamos crianças como pessoas. Inclusive existe amplamente disseminada a ideia de “treinar” um bebê nas suas diversas habilidades (dormir, comer, usar o banheiro), usando técnicas que partem do mesmo princípio do adestramento de cães. Além de “ensinar” disciplina através de castigo e violência. Dessa última, inclusive, cães talvez escapem com mais facilidade.

Não lembramos de como éramos no início da vida. O que pensávamos exatamente, o que sentíamos. Tudo é muito nebuloso na memória. Então crianças são um território desconhecido cujas ações costumam ser interpretadas com a mesma régua usada para lidar com pessoas adultas. E isto é uma ótica completamente equivocada pois lhes atribuímos intenções que são incapazes de ter. Crianças não manipulam, desafiam, provocam, pelo menos não no sentido clássico que estamos acostumados a lidar. Elas estão o tempo todo fazendo experiências, testando o mundo, as pessoas, a realidade a sua volta.

Crianças são seres em formação que estão apreendendo e aprendendo o mundo.

Mais importante que uma criação com apego, cuja cartilha vai se tornando cada vez mais difícil de seguir, é preciso praticar uma criação com empatia. Com um olhar de empatia, um olhar que tenta os compreender sentimentos e emoções, e procura experimentar de forma objetiva e racional o que sente o outro indivíduo, conseguimos mudar completamente a forma de nos relacionar com os nossos filhos, e com qualquer criança. Mas para isso é necessário que primeiro se trate a criança como o que ela é: um indivíduo.

Assim, num exercício, perceba por exemplo que um recém-nascido é uma PESSOA que acaba de chegar num lugar absolutamente estranho. Ele passou várias semanas dentro da mãe, num universo aquático, cheio de sons, sabores, luzes. Era como um peixe que vivia no grande oceano chamado útero. Aquele era o mundo dele. Ele ouvia vozes, coração batendo, vísceras trabalhando. E de repente ele está em outro lugar, completamente diferente. Ele está em outro meio físico, não aquático, agora ele respira ar, precisa engolir alimento. Antes tudo funcionava automaticamente, imediatamente, organicamente. Agora, quando ele sente fome, frio, calor, dor, medo, ele não consegue fazer nada. Exceto gritar.

É como se hoje você estivesse sentado tranquilo e confortável no seu sofá e em seguida fosse transportado para um planeta alienígena selvagem, onde todos voassem e suas capacidades físicas não lhe trouxessem nenhuma possibilidade de adaptação imediata e você não soubesse como sobreviver e nem como se comunicar. Você também gritaria um bocado, acredite.

Um bebê não chora muito porque quer manipular alguém. Ou porque é mimado. Ou porque é mandão. Um bebê chora assim porque o mundo realmente é coisa demais de uma vez só. Se imagine nesse lugar. Tenha empatia. Ele quer se sentir seguro. Quer um ponto de referência. Ele não tem a menor idéia do que aconteceu com ele. Você sabe que ele nasceu. Ele não. O que pra você é um nascimento para o bebê é uma espécie de morte: morte do mundo seguro onde ele vivia para um mundo novo, hostil, e que ele está aprendendo a conhecer. Isto é aterrorizante, convenhamos.

E isso não se esgota apenas enquanto bebê. A criança vai se desenvolvendo muito rápido, descobrindo o mundo e se descobrindo. Imagina o que é de repente aprender a comer comida, mastigar, andar, falar. Nos 3 primeiros anos da vida de um bebê as mudanças são tão brutais, aceleradas, desnorteadoras. Se até os pais têm dificuldade de lidar com isso, imagina para a pessoa que está vivendo. Não dá pra exigir que ela tenha as mesmas habilidades, as mesmas capacidades, a mesma maturidade para lidar com as coisas que os adultos, teoricamente, deveriam ter. Elas são seres agitados, curiosos, imaginativos. Imagina como você se sentiria se nesse mesmo planeta alienígena que eu usei como exemplo, você estivesse aprendendo finalmente a voar? Você ficaria sentado quietinho em um canto, ou você iria querer explorar os ares? Conhecer as nuvens?

Crianças não são uma outra categorias de seres humanos que por estarem sob tutela e cuidado de adultos são hierarquicamente inferiores e devem se submeter a tudo. Eu sugiro inclusive um exercício interessante: de que se pensem em crianças como um “adulto” em habilitação. Que ainda está se desenvolvendo, aprendendo a usar todas as suas potencialidades, físicas, emocionais, laborais, para transitar pelo mundo. Assim como muitos adultos em reabilitação. E aí eu deixo a pergunta: você bateria em um adulto em reabilitação? O deixaria chorando, gritando, para “aprender” algo? Você forçaria um adulto em reabilitação a adquirir independência a todo custo, mesmo que ele não estivesse preparado? Você declararia repulsa a presença desse adulto em lugares públicos? Você diria “odeio adultos em reabilitação?”.

Esse adultismo que é a tônica da nossa sociedade nos torna prepotentes e um tanto cruéis. Todo mundo já foi criança. E um dia seremos idosos. Um outro jeito de ser criança de novo, caminhando mais uma vez para a fragilidade física. É um ciclo que todo ser humano passa, e é necessário um tanto de ajuda mútua para fazer essa travessia. Sobretudo, essa tal de empatia que tanto falamos. De pessoa para pessoas.

Essa vida não foi feita pra dar certo

Uma escola no Rio Grande do Sul promoveu uma festa para seus alunos adolescentes com o tema “E se nada der certo”. Mergulhados na proposta, os jovens compareceram fantasiados de profissionais da área operacional e serviços, como faxineiro, atendente, mecânico, e outros, comprovando que realmente essa vida não foi feita pra dar certo.

vida nao foi feita para dar certo

A tônica da crítica em torno desse acontecimento, girou, acertadamente, sobre como esta situação é um reflexo da mentalidade elitista da nossa sociedade que divide as pessoas (e suas vidas) de acordo com os símbolos de status que conseguem adquirir pra si, tendo como divisor de águas sua entrada no ensino superior, em cursos de primeiro escalão preferencialmente (a saber, direito, medicina, engenharias).

No entanto, seria injusto dizer que este pensamento é somente das elites. Toda a nossa sociedade, todas as classes sociais, equacionam sucesso a partir das variáveis: “estudos” →profissão → bom emprego → dinheiro = vida dando certo. Não é, portanto, uma questão pura e simples de ter dinheiro. Isso é sobre fazer um determinado percurso que necessariamente passa pelo ensino superior, pela cultura do diploma, pelo menosprezo pelo saber não escolarizado.

Também seria hipocrisia apontar dedos aos jovens classe-média da festa e também à escola, sem fazer uma própria mea-culpa. Eles não estão reproduzindo nenhum valor que não seja de toda nossa sociedade, que divide o mundo entre primeira e segunda classe. E ninguém quer ser cidadão de segunda classe. Poucos são os que estão agarrados aos estudos por puro amor ao saber. Diploma é ferramenta de ascensão social e é símbolo de status. E educamos nossos filhos para “entrar em uma boa universidade e ter um futuro”. Aqueles que podem o fazem. Os que não podem, o sonham. Mas todos querem.

E então o que eu gostaria de refletir aqui é: que modelo de vida estamos ensinando para os nossos filhos? O que acontece com eles quando eles atingem esse lugar, que ensinamos que é o ápice do sucesso e estabilidade e eles ainda se encontram infelizes, frustrados, deprimidos? Nós, pessoas cuidadoras, temos realmente esse direito, ou devemos ter esse dever, de passar para frente uma fórmula de felicidade que mal funciona para nós mesmos?

A vida não está dando certo. Não precisa muito esforço para entender, é só ligar a televisão. É só conversar abertamente com as pessoas. Sem performance. De coração aberto. Trabalhamos demais. Adquirimos coisas que não sabemos muito bem para que serve. Não conseguimos realizar muitas conexões emocionais profundas. Estamos isolados. Politicamente decepcionados, frustrados, deprimidos. Sentimos medo. Estamos cansados. Desamparados.

A vida não é como nossos pais disseram que seria. Não é como a televisão mostra. Quando olhamos pela janela, não vemos esse mundo que está na TV. Será que estamos preparando nossos filhos para viver nesse mundo que existe de fato? O que acontece com a pessoa cuja vida “não deu certo”? E com aquela que rejeita essa fórmula, simplesmente porque tudo que ela quer é ser atendente da loja da esquina e ir andando pro trabalho para ter mais tempo pra fazer qualquer outra coisa que não trabalhar? Porque o que ela gosta mesmo é de passar as tarde jogando videogame?

Somos doutrinados para admirar e valorizar uma vida voltada para o trabalho. E isso é uma manobra muito bem posta simplesmente para que continuemos produzindo e produzindo e produzindo. Até que um dia percebemos que todas as horas da nossa vida foram doadas para gerar riqueza para pessoas desconhecidas, que nos exploram e em nada valorizam. E não conhecemos direito as pessoas que moram na nossa casa porque não temos tempo para conversar com elas. E as vidas são tão diferentes e tão parecidas!

Sim, nós vivemos como nossos pais em certa medida. Mas plantamos a semente de expectativas que pouco tem solo para florescer e criamos filhos que se tornam adultos frustrados quando descobrem que são pessoas comuns, limitadas, falhas. E que vivem uma vida “medíocre”, como todas as outras pessoas do mundo. E não ensinamos a lidar com o fato de que tudo bem por isso. As pessoas não são especiais, embora secretamente todos acreditem nisso. E passem a vida buscando ser reconhecidas por isso.

E criamos, e fomos criados, para morrer tentando. Tentando ser o melhor ‘alguma coisa’. Isso está nos destruindo. E olhamos para nossa vida, que pode ser boa, mas enxergamos fracasso. E desviamos o olhar das pequenas grandes coisas cotidianas que adoçam o coração e fazem valer a pena prosseguir.

E essa não é uma apologia ao fim do trabalho. Esse é um chamado para a reflexão que a nossa sociedade deu muito errado. Não é esse tipo de vida e esse tipo de valores que vão trazer alguma felicidade para nós, nem individual, nem coletivamente.

Esta vida, como esta posta na nossa sociedade, não foi feita pra dar certo.

Porque se ela der certo, as pessoas parar de consumir tanto. Porque consumir é uma maneira de se compensar por todo o sacrifício que é feito para viver essa vida que é vendida na TV. Olhem pela janelas dos seus carros. Olhem pela janela do ônibus. É lá onde a vida está. Como é possível dizer as nossas crianças que se elas tiverem um profissão, um emprego, e “estabilidade”, a vida dela “deu certo”? Você realmente acredita nisso? Aposta nisso? Você que se preocupa tanto em “preparar” o seu filho, e o matricula em mil cursos para aprender habilidades técnicas (inglês, informática, idiomas), o está preparando para viver que tipo de vida exatamente? Onde estão essas pessoas felizes, satisfeitas, produtivas, transformadoras?

Colocamos nossos filhos boa parte da vida em escolas onde parte do conteúdo se perde por completa desvinculação com a vida cotidiana. Obrigamos adolescentes que mal aprenderam a ajeitar o absorvente na calcinha e a fazer a própria barba a decidirem por uma profissão que vão exercer pelo resto das suas vidas. Vendemos para estas meninas e meninos a ideia de que existe um único modelo de vida que funciona. E punimos com a “decepção paterna” caso eles rejeitem esse modelo. Se não estudam o que gostaríamos, se não trabalham com o que admiramos, se não querem fazer sexo com quem aprovaríamos.

O que estamos fazendo com nossos filhos? Temos realmente completa certeza de que este caminho é o que vai torná-los felizes? É isso que deveríamos esperar para eles, não? Queremos nossos filhos felizes, ou queremos que “suas vidas deem certo”?

Os modelos precisam ser questionados. Precisam ser discutidos. Precisamos entender que tipo de instrumentalização uma pessoa precisa de fato para enfrentar o cotidiano e sobreviver. Para transitar nessa sociedade de maneira transformadora, propositiva. Precisamos rever nossa escala de valores onde estar com quem se ama se torna menos importante que “ter sucesso”. Onde receber o reconhecimento de desconhecidos mobiliza mais o nosso empenho que o afeto dos nossos filhos. Onde reproduzimos um comportamento e ensinamos valores que nos transforma em pessoas individualistas, egoístas, solitárias. Onde nos separamos, nos desunimos, nos violentamos.

Precisamos parar de tentar fazer essa vida dar certo. Isso não vai acontecer. Vamos repensar o que é de fato importante e tentar construir um modelo em que fazer a vida dar certo não precise ser um objetivo. Uma sociedade em que não existam pessoas divididas em vidas que deram certo e vidas que deram errado.