“Paternidade consciente” é a que luta contra o patriarcado

Há por aí todo um discurso de renovação da paternidade, vindo de um movimento capitaneado por homens interessados em serem pais “melhores” para os seus filhos. É a “paternidade ativa”, “paternidade consciente”, “paternidade participativa”. E esse é um discurso muito válido e legítimo, mas vale aqui pontuar algumas coisas importantes para que isso possa ser aproveitado de forma realmente revolucionária nas relações parentais, reverberando em mudanças reais na estrutura familiar e consequentemente na educação das crianças, na vida das mulheres e na sociedade. “Paternidade consciente” é a que luta contra o patriarcado.

É muito óbvio que há um lacuna importantíssima de afetividade deixada pelos homens das gerações anteriores na criação dos filhos, muito em virtude da socialização masculina, que retira os homens desse lugar de contato com a sensibilidade e também da função “tradicional” do pai na relação familiar, onde sempre bastou que ele fosse o provedor. Ser “bom pai” era sinônimo de não deixar que a família passasse fome, sendo o homem então completamente desobrigado de estabelecer vínculos amorosos com as crianças, que só eram importantes à medida que simbolizavam o resultado da união com a mãe.

Então, com as recentes discussões sobre “masculinidade”, a via que os homens conseguem alcançar e reivindicar nesse processo é o direito de “sensibilizar-se”, de poderem ser emocionais, de chorar, abraçar, usar um belo cardigã rosa sem que sua virilidade seja questionada. E a “nova paternidade” quase sempre passa por buscar ser acessível, sensível às demandas emocionais da criança e presente. E isso não é ruim em absoluto, muito pelo contrário, é valiosíssimo que homens conscientizem-se da importância de estabelecer vínculos afetivos concretos com seus filhos, mas é valiosíssimo também que se discuta que só isso não é o suficiente e que na verdade isso é só a ponta do iceberg. Falar em “paternidade consciente” significa prioritariamente ter consciência sobre o processo e as demandas impostas pelo patriarcado na organização da nossa sociedade, e atuar ativamente pela sua desconstrução, já que sem isso é impossível para os homens exercer um papel realmente saudável e feliz na configuração parental.

O sistema patriarcal, sob qual todos nós nascemos e somos socializados nos coloca uma relação onde mulheres e crianças necessariamente são subordinadas ao homem, que exerce uma figura de autoridade e controle sobre os membros da família. Onde a mãe tem funções muito específicas, todas ligadas ao trabalho doméstico e reprodutivo (ainda que também seja uma trabalhadora no mercado), e o pai tem a função muito definida de sustentar e “proteger” o lar, que é “seu”, conferindo-lhe inclusive a prerrogativa do uso da força e da agressividade para manter sua influência e domínio. Então qualquer ação que pretenda-se realmente transformadora em relação a paternidade é aquela que propõe-se a romper completamente com essa lógica.

Portanto, não adianta nada você ser um pai bacana, carinhoso, que chega do trabalho e vai brincar com o filhão no sofá, ou é completamente disponível para seus filhos no final de semana para muita “presença” e diversão, se você é completamente alheio a todo o trabalho invisível de manutenção da vida dessa criança. Trabalho esse que é sua mulher (ou alguma mulher, certamente) que está executando. Se você, de alguma forma, permanece explorando a mãe dos seus filhos para mantê-lo lindos, limpos e cheirosos, para você só chegar e brilhar como o paizão legal, desculpa, mas você apenas colocou glitter no mesmo sistema de bosta de sempre, e está oferecendo o mesmo modelo habitual de homem misógino e machista, na versão velada premium, agora com muitos abraços ao invés de gritos.

É preciso presença de verdade. Isso significa envolver-se realmente em todas etapas de desenvolvimento das crianças. E convenhamos, isso não acontece em absoluto. Se você entrar hoje em quaisquer fóruns, cursos, palestras, que falem sobre gestação, parto, amamentação, puerpério, pediatria, alimentação, educação, vestuário, escola … quaisquer temas que sejam relacionados à criação de filhos, muito certamente 95% do público será feminino. Se for nas reuniões de escola, consultas médicas, apresentações escolares, parques, praças, supermercados, lojas de roupa, verá que são mulheres em toda parte cuidando das demandas das crianças. Escrevendo e consumindo informação o tempo inteiro, enquanto homens limitam-se a ser orientados e executar instruções, sentindo-se muito importantes por bancarem o pai esforçado que sabe trocar fralda. Mas onde eles estão se informando sobre tudo que é necessário sobre crianças para dividir essa carga mental com a mãe dos seus filhos? Estando ou não com ela?

Uma boa paternidade não pode limitar-se a ter muito orgulho de si por finalmente dizer “eu te amo” para os filhos. Por ter assumido. Por pagar pensão. Por não espancar. Por dar banho e colocar pra dormir. Eu sei que para homens parece muita coisa, mas por favor, vejam tudo que mulheres fazem, eu sei que vocês podem ser menos medíocres que isso.

Eu quero ver um dia, páginas falando sobre a “paternidade real” de homens reclamando que não têm mais tempo para tomar banho, que não vão ao banheiro sozinhos porque os filhos não os deixam em paz , homens exaustos reclamando de restrição de sono e sendo inquiridos nas entrevistas de RH sobre quem fica com os filhos enquanto trabalham. Quero ver homens remarcando compromissos pra levar o filho ao médico, ir na reunião da escola ou tendo que faltar porque a criança amanheceu com diarreia. Homens trocando informações sobre fralda de pano ou marca de descartáveis mais baratas. Trocando receitas pra tirar mancha de molho do sofá e riscado de canetinha da cortina. Pesquisando sobre aquela mancha esquisita que apareceu na sola do pé da criança. No grupo da escola ajudando a organizar a festinha de fim de ano.

E não um ou dois indivíduos, os alecrins dourados, mas todos os pais. Quero ver a guerra infinita acontecendo nos grupos de criação parental, com homens e mulheres, todos discutindo se devem ou não dar chupeta para as crianças ou se a Peppa Pig é uma má influência. Conversando com os amigos o tempo inteiro sobre as peripécias das crianças. Porque é isso o que acontece com quem realmente está envolvido, cuidando completamente dos seus filhos, de todas as etapas, ainda que dividindo as tarefas. É difícil, cansativo, chato, muitas vezes enlouquecedor, não é “divertido”. Se você se acha um “pai participativo” e não está exausto meu amigo, tem alguma coisa errada porque com certeza alguém está, e deve ser sua companheira ou qualquer outra mulher sendo explorada no caminho.

Para renovar a paternidade é preciso reordenar toda a lógica de organização doméstica com homens assumindo sua parte no trabalho. Não importa se estão empregados ou não. Assumir que ter um emprego é cansativo o suficiente para precisar não fazer mais nada é também admitir que não entende o quanto cuidar de uma casa custa, tanto em termos financeiros quanto laborais. É também admitir que acredita que sua companheira te deve alguma coisa, paga em casa limpa, comida pronta e roupa lavada, em troca do sustento que você oferece. E isso é suco de patriarcado. Um péssimo modelo parental, que mantém a noção de hierarquia de homens sobre mulheres.

E finalmente, para construir essa presença parental realmente transformadora é preciso comprometer-se com a construção de um mundo mais decente que esse. Isso significa não só romper com os privilégios sobre as mulheres por ter nascido homem, como envolver-se ativamente no desmantelamento desse sistema hierárquico, repudiando, constrangendo e exigindo medidas contra abandono parental, violência doméstica, pedofilia, estupro e tudo que envolve a exploração sexual da mulher. Quero ver esses pais defendendo espaços de livre circulação para crianças, creches gratuitas, de qualidade, em quantidade. Homens reivindicando as pautas de humanização do parto defendendo um nascimento digno para seus filhos e o fim da violência obstétrica para suas companheiras.

A “nova paternidade” precisa caminhar além e mais conscientemente rumo a uma sociedade livre de toda exploração, seja de gênero, raça ou classe. Explorações essas que homens invariavelmente colhem vantagens de alguma espécie. “Amor” é muito importante, que bom que homens estão cientes da necessidade de despertar pra isso. Mas agora é preciso mergulhar no cuidado. Até porque dizem por aí que quem ama, cuida. Não é mesmo? Então comecem por aí. Amem, responsabilizem-se e cuidem.

O que é masculinidade?

Não se nasce homem, torna-se. E nesse fazer, aquele menino, um ser dotado de inúmeras potencialidades, é podado, transformado. O que é masculinidade, afinal?

E o que consta nos manuais da “Escola Patriarcal de Formação de Homens”? Regras que ditam como ele deve ser (ou demonstrar ser, a qualquer custo), comportar-se, sentir. Instruções tão detalhadas e que são passadas tão cedo e tão sistematicamente que em pouco tempo o comportamento torna-se um padrão a ponto de chegarmos a achar que “meninos são assim”. A ponto de acreditarmos que existe um “energia masculina” ou uma “energia feminina”.

Forte, rápido, agressivo, implacável, corajoso, heróico, destemido, objetivo, resolvedor, esperto, ativo, conquistador, sexual, extrovertido, dominante, controlador. Meninos aprendem desde cedo que o homem manda e os outros obedecem. Que o homem produz, ou faz produzir. Que ele tem a prerrogativa de usar o grito, a intimidação, a imposição, a manipulação, a chantagem, a força. Tudo para conseguir o que quer. Que ele, a saber de sua condição de raça e classe, pode inclusive dominar outros homens. Conquistar o mundo. Que o corpo das mulheres o pertence e ele pode pegar a hora que ele quiser. E principalmente, meninos aprendem que um homem não é uma mulher. Em hipótese alguma ele pode comportar-se, gostar, sentir coisas que “são de mulher”. Porque ser mulher é ser o elo fraco. E aprendem a odiar e rejeitar tudo que é relacionado ao “feminino”.

E essa informação é muito importante.

Não existe a ideia de masculinidade sem o seu oposto complementar que é a ideia de feminilidade. A fortaleza simbólica do homem só existe em contraste à pretensa fragilidade da mulher e foi a masculinidade que criou a feminilidade para que esse contraponto fosse feito.

Dessa forma, o que é a mulher? Ela representa exatamente tudo aquilo que o homem não é. O outro. O não-homem. É sua via negativa. O homem é o sol, a mulher a lua. O homem é a luz, a mulher a escuridão. Ela é a passividade, a fragilidade, a sensibilidade, a empatia o cuidado, a interioridade, domesticidade, empatia, cuidado, reserva, discrição, o sutil, suave, a organização, a beleza, doçura. A candura, os tons pastéis, o perfumado, sensual, sedutor, lascivo. Que é feito para ser conquistado. Meninas aprendem que mulheres cuidam. Mulheres nutrem. Mulheres criam. Mulheres reproduzem. E principalmente aprendem que devem conquistar um homem provando a ele seu valor, para finalmente terem lugar no mundo. E devem dar filhos ao homem. Cuidar dele, honrá-lo, servi-lo. Para serem protegidas. São aquelas que existem para serem salvas. E que aprendem a admirar e defender tudo que é “masculino”.o “homem masculino” não foge do conflito

Qual a primeira “ofensa” que um menino recebe para aprender a como deve portar-se enquanto homem? “não seja como uma menininha”. Isso está dizendo a ele: não seja fraco senão ou será dominado.

“Mulher” é um xingamento. Perceba aliás como a quase totalidade dos palavrões e ofensas verbais tem a ver com atacar a virilidade masculina com comparações a mulheres. E como a homofobia é um filhote da misoginia pois o homem gay, é tido como o homem “feminino”, e o maior crime que um homem pode cometer é associar-se ao “feminino” de qualquer forma.

“Meninos não choram”, “meninos não fazem drama”, “seja homem!”, “seja forte”, “vai lá e dá uma porrada nele”, “homem não tem medo”, “não seja covarde”, “é fracote agora?”, “vai deixar barato?”, “ai, se fosse homem não deixava falar assim com você”, “vai encarar?”, “ihh, ta de blusa rosa agora, é viadinho”, “toma esse copo azul, que rosa é coisa de menina”, “flores é coisa de menina”, “pôneis são coisas de menina”, “bonecas são coisas de menina”, “brincar de comidinha é coisa de menina”, “cara, pra que tanto tempo se arrumando, virou viado agora?”, “tem que gostar de esporte de macho”, “cinza, cor de macho”, “comida de macho”, “filme de macho, com muito tiro”, “jogo de macho”, “roupa de macho”, “não me abraça não cara, tá me estranhando?”, “tá me olhando assim porquê, tá me estranhando?”, “ihhh olha lá de mão dada com outro cara, é viado”, “olha lá que mulezinha gostosa, bora assoviar”, “pow, você deixou ela te dizer não? volta lá e cata ela”, “dá bebida pra ela”, “conta aí, como foi lá com a mina, comeu? tirou foto?”, “ihh ta arrumando a casa igual mulherzinha agora?”, “larga isso aí que sua mãe que é mulher cuida”, “pede pra tua irmã cuidar ué, ela é mulher”, “vai ser jogador de futebol e pegador de mulher”, “pára de frescura, virou viado agora”, “ihh vai chorar? não é macho não?”, “aguenta porra! vira homem!”, “tem que chegar em cima e sair pegando as mulé”, “mulher gosta é de homem cafajeste”, “mulher boa é mulher com a boca ocupada”, “resolve logo na porrada não é na conversa não”, “tu não manda na tua mulher não?”, “mulher só pensa em dinheiro, são todas aproveitadoras”, “você conta a verdade pra sua mulher? é otário mesmo”, “mete a porrada logo!”, “quem tem que cuidar do filho é a mãe”, “quem tem que cuidar da casa é a mulher?, “tá lavando louça da madame? é mané mesmo”, “olha ali, cresceu rápido, o corpo já tá todo formado”, “sentou no vaso e colocou o pé no chão já aguenta” , “você tem que pensar em você”, “você pode ser o que você quiser”, “não deixa nenhuma mulher atrapalhar você”, “o casamento só vai atrapalhar sua vida”, “se tiver filhos vai ter que pagar pensão”, “você pode ter um futuro brilhante”, “se nada der certo, assalto um banco”, “olha lá, maior safada, aposto que todo mundo já comeu, não vale nada não”, “cara, olha a roupa dela, ta pedindo uma apertada”, “é piranha”, “essa é pra casar”, “já vem com pacote”, “mulher direita não faz isso”, “se me deixar eu mato”.

Assim nasce o homem. Como é que meninos tão rapidamente tornam-se um grupo cuja principal característica é a agressividade, violência e dominação, não só da outra metade da população mas de todo o ecossistema, sempre numa relação predatória? Que faz com que sejam majoritariamente os agressores de mulheres e crianças, os violadores, os abusadores, os atiradores em massa. Que faz com que sejam majoritariamente os que deflagram guerras e conflitos de toda ordem. Que disseminam a tortura, o medo, a destruição.

Homens estão no comando do mundo há 6 mil anos. Um mundo cuja lógica é a dominação através da força, do massacre, da invasão e da guerra.

E não sou eu quem estou dizendo. São as estatísticas. Os fatos históricos. Fatos esses de onde mulheres sequer constam porque foram sistematicamente apagadas. A história é sempre contada pelos conquistadores, lembram?

Não há nada na concepção de masculinidade que não passe pela formação de um ente feito para dominar através da violência e da agressividade. Todos os símbolos, toda a liturgia.

Não há nada na concepção de feminilidade que não passe pela formação de um ente a ser dominado, submetido e subalternizado. Criado com a ideia de que deve ser eleito e conquistado, reproduzir e servir ao seu amo e senhor.

E tudo isso pra dizer que não existe “masculinidade tóxica”. É incoerente e politicamente improdutivo se aferrar a essa ideia. Há movimentos até legítimos de homens que estão finalmente querendo pensar e discutir a formação do seu comportamento então é importante entender que é impossível separar uma masculinidade boa de uma ruim quando tudo que tem a ver com o esse tema faz parte de um terrível sistema de violência e conquista.

A masculinidade não se torna “boa” só porque um homem que continua usufruindo seus privilégios de dominância social, agora também “chora” e usa um pulôver rosa. Porque ser “menos tóxico” não tem a ver com fazer concessões aderindo a estereótipos de gênero do campo do “feminino”. Isso não faz nem cócegas no sistema de hierarquia que a ideia de masculinidade e feminilidade sustentam. E isso em última instância, limpa a consciência de todos os envolvidos, fazendo homens e mulheres pensarem que “algo está sendo feito”, que “homens estão melhorando”, que “homens estão se esforçando”, quando no fim eles só estão afrouxando um pouco o nó da gravata que aperta o próprio pescoço. Agora eles podem ser exploradores de mulheres, que choram.

Para homens que realmente desejam engajar-se na proposta de serem pessoas melhores o único caminho viável é romper com a ideia de masculinidade. E isso implica em abrir mão da sua prerrogativa de dominação e uso sistemático da violência. Implica em repudiar e combater veementemente toda e qualquer ação que passe pela coação, coerção e uso da força como estratégia para transitar no mundo.

Isso significa ir contra os seus e denunciar a exploração de homens para com mulheres. Significa reequilibrar a distribuição de todas as históricas funções da esfera reprodutiva que estão convenientemente no campo do “feminino”, que revertem em benefícios para homens. Significa também repudiar a feminilidade enquanto construção do ideal de mulher perfeita, bela, recatada e do lar. Da mãe e esposa. Criadas para servir ao homem nos seus propósitos.

Isso é sobre desmontar a indústria do sexo que lucra trilhões através da objetificação e comercialização do corpo feminino. Desde maneiras “sutis” como a industria da moda e beleza até seu resultado final na pornografia e prostituição. É repudiar toda e qualquer exploração do corpo feminino. Combater o assédio, o estupro. Proteger as meninas. Combater o casamento infantil. Reconhecer toda a dívida histórica que vocês possuem para com as mulheres, todo o sangue derramado, trabalho usurpado, toda a dor e violência.

Rever a “masculinidade” é tomar consciência do que significa tornar-se homem na nossa sociedade e romper com isso. E combater, ativamente. Junto a todos os outros homens. Quebrar a roda. Isso é assumir compromisso com ser homens melhores. Abrir mão do privilégio que representa pertencer a uma classe que é ensinada a ser servida e atendida o tempo inteiro por outras mulheres.

Quando o feminismo fala em “igualdade”, isso não é sobre direitos civis, ou uma equiparação dom o privilégio masculino de conquistar e invadir. Não queremos ser como os homens são dentro desse sistema. “Igualdade” para mulheres é ter o reconhecimento que somos PESSOAS, que temos integridade, dignidade, inviolabilidade. Assim como cada homem tem, só por ter nascido homem.

Eu olho para o meu filho de 5 anos e me recuso a perdê-lo para esse sistema de moer consciências. Meu filho, meu menino não é assim. Crianças não são assim. Nós a tornamos. Nós usurpamos sua humanidade. Eu acredito em um mundo onde nossos filhos tenham o direito de crescerem livres de todos estes estereótipos que os convocam a dançar essa melodia mortal tocada pelo patriarcado. E como feminista, eu acredito na revolução. E acredito que a revolução está neles, mas também está em nós, mulheres. E sim, pode estar também nos homens.

Há um teórica feminista fantástica chamada Andrea Dworkin que escreveu um discurso essencial chamado “Eu quero uma trégua de 24 horas sem estupro”. E com uma trecho desse discurso que eu quero encerrar esse texto e convocar todos a pensarem.

“Eu vim aqui hoje porque eu não acredito que o estupro é inevitável ou natural. Se eu acreditasse, eu não teria razão para estar aqui. Se eu acreditasse, minha prática política seria diferente dessa. Vocês já se perguntaram por que nós não entramos em um combate armado contra vocês? Não é porque não há uma escassez de facas de cozinhas neste país. É porque nós acreditamos na humanidade de vocês, contra todas as evidências.

Nós não queremos fazer o trabalho de ajudar vocês a acreditarem em sua humanidade. Nós não podemos fazer mais isso. Nós sempre tentamos. E em troca, temos sido pagas com exploração e abusos sistemáticos. Vocês vão ter que fazer isso sozinhos de agora em diante e vocês sabem disso.”


Dica: sugiro demais que toda a família assista ao documentário “The Mask You Lived In”, do Netflix:.

Eu me chamo mãe

Eu me chamo mãe. E há muita, mas muita mesmo, confusão sobre o termo “mãe” na nossa sociedade. Afinal, quem seria a mãe? O que ela faz? O que a caracteriza? Seria gestar? Mas e as mães adotivas? Seria parir? E as mães de aluguel? Seria então amamentar? E as inúmeras mulheres que não amamentam? Mãe é quem cuida? E as mulheres que precisam terceirizar os cuidados? E as avós, as tias, as vizinhas, as babás, que estão ali pelo cuidado dessas crianças? O que determina afinal, quem é a mãe?

Vamos por partes. Primeiramente é preciso entender como se dá a cadeia do trabalho reprodutivo e demarcar bem demarcado a função específica da mulher nesse processo de reprodução da vida. Há aqui tarefas fisiológicas essenciais e irreproduzíveis que apenas e tão somente mulheres podem realizar, a saber: gestar, parir e em alguma medida, amamentar (já que esse processo já pode ser reproduzido com eficiência embora não com equivalência). E embora se possa dizer “mas sem os espermatozoides não há concepção”, sem óvulos também não há. Inclusive mulheres podem doar óvulos, homens doar esperma e a fertilização ser realizada sem a necessidade de contato sexual. Então o jogo começa empatado. Efetivamente é no útero da mulher que o show começa. Quem desempata esse game é a maravilhosa fábrica de produzir pessoas, chamada corpo feminino.

Essa é a parte biológica, imutável, da criação de crianças. O vínculo indissociável que toda e qualquer mulher possui com a maternidade. Por seu aparelho reprodutivo ela já nasce uma mãe em potencial.

No entanto, uma vez a criança gestada e parida, o fato é que qualquer um pode se encarregar dos seus cuidados.

QUALQUER PESSOA.

Seja homem, seja mulher.

Criar uma criança, amá-la, realizar todo o trabalho de cuidado físico, emocional, social, educação, sustento, não tem nenhum pré-requisito biológico. Não requer “dom”, “vocação”, não requer “instinto”, não requer absolutamente nada específico exceto comprometimento. Assim um casal pode criar uma criança. Dois homens podem criar uma criança. Duas mulheres podem criar uma criança. Uma aldeia inteira pode criar uma criança. Alguns desenhos até indicam que ela pode ser criada por lobos ou macacos embora eu duvide um pouco.

E no entanto, esse trabalho de cuidar é realizado quase que exclusivamente por mulheres. Sempre. Guarde essa informação.

E, veja só o nó, conceber, gestar/parir, e criar são tarefas interdependentes mas não necessariamente conectadas. Ou seja, dá sim pra uma pessoa conceber, outra gestar/parir, e outras criarem. Exemplo: quem é a mãe de uma criança que nasce de fertilização in vitro de doadores anônimos, na barriga de aluguel de uma terceira pessoa? É a doadora do óvulo? É a mulher que gestou? É a mulher que criou? E se ela for criada por homens, ela não tem mãe? Um deles é “pãe”? Se levarmos em conta a parte do “mãe é quem cuida” então, a coisa fica muito mais complicada. Quantas e quantas crianças não são criadas por diversas pessoas ao longo da vida? Passam por avós, tias, vizinhas. Ou passam tanto tempo com a babá, que ela vira o adulto de referência com muito mais força que a própria mãe.

O que é ser “mãe”?

Voltemos um pouco. Gestar e parir coloca mulheres no epicentro das possibilidades de continuação da espécie. Nós produzimos pessoas, apenas. Produzimos trabalhadores para serem explorados, produzimos herdeiros para explorar. Do servo ao senhor. Do burguês ao proletário. Produzimos fucking PESSOAS. Isso é forte e absurdamente poderoso. O que aconteceria se nós tivéssemos ciência do poder disso e nos recusássemos a realizar esse trabalho? O que aconteceria se mulheres se recusassem a assumir os cuidados das crianças? Se mulheres parissem e entregassem aos homens dizendo: “já fiz minha parte, agora boa sorte”?

Como evitar então que mulheres simplesmente se neguem a produzir mais crianças? Como evitar que elas parem de se engajar em todas as tarefas necessárias para entregar trabalhadores prontinhos pro sistema funcionar?Sistema capitalista, racista e patriarcal, a propósito, onde homens exploram mulheres em todas as esferas possíveis (e homens brancos ricos estão no topo da cadeia alimentar). Como evitar que mulheres tomem consciência que são domesticadas para realizar esse trabalho, enquanto homens apenas usufruem os benefícios?

Ganha um brinde quem disser: maternidade compulsória. Um sistema que se retroalimenta e que faz que toda e qualquer menina, assim que indicada como tal pela identificação de que possui uma vulva, seja imediatamente inserida numa lógica de funcionamento do mundo onde sua única finalidade é concretizar seu potencial biológico de gestar.

A MATERNIDADE, como conhecemos, é um sistema compulsório, simbólico e cultural que é estruturante e pilar fundante da dominação patriarcal, onde mulheres são doutrinadas e submetidas a realizar todo o trabalho de gestação e cuidado de novas pessoas para o funcionamento do mundo.

E é importante demarcar isso bem claro porque maternidade não é sobre amor. Não é sobre seus sentimentos em relação a criança que você cuida. O seu amor por ela tem a ver com o relacionamento que vocês desenvolvem com uma pitada bem generosa de socialização. A maternagem é uma marca quase impressa a ferro na psiquê de todas as meninas que são treinadas para o cuidado de terceiros desde a infância. Levadas a relacionar amor e cuidado. Levadas a acreditar que ter filhos é a melhor coisa que podem fazer da própria vida. Que é uma “missão”, um “dom”, uma “função da mulher”. Meninas são sistematicamente subestimadas e rejeitadas para que se convençam de que o amor maternal é a experiência mais sublime que podem experimentar.

E muitas mulheres só encontram algo parecido com “realização” ao ceder a essa profecia auto-realizável sobre suas vidas.

Ser “mãe” é único lugar de real “destaque” que é reservado para mulheres na sociedade. Por isso a maternidade é romantizada, exaltada. Por isso que ninguém fala sobre a realidade das mulheres-mães. Por isso que ela é justificada, divinizada. Porque sob o patriarcado, se mulheres não forem mães, elas não poderão ser mais nada. E mulheres que se recusam são demonizadas e perseguidas e culpabilizadas. E mulheres que maternam são “exaltadas” para que não percebam a armadilha em que foram atiradas ao mesmo tempo que tem seu comportamento fiscalizado para saber se não estão rebelando-se.

E todas as mulheres, TODAS, seguem pela vida com essa necessidade de serem “mães” arraigada, nunca conseguem se livrar completamente. Com senso de responsabilidade em serem cuidadoras de tudo e de todos. Toda mulher em algum momento já se autodeclarou mãe de alguma coisa ou alguém: “eu sou mãezona”, “é como se fosse um filho”, “adotei pra mim”. Ter um filho para chamar de seu. Seja parentes, companheiros, vizinhos, colegas de trabalho, amigos, plantas, pets, nada escapa.

Então, em um mundo onde homens exploram mulheres por causa do seu potencial exclusivo de produzir pessoas, e onde todas essas mulheres são condicionadas, coagidas e submetidas a cumprir esse destino, não faz nenhum sentido discutir quem é a “mãe”.

Toda mulher é “mãe”, não importa se ela teve, tem ou terá filhos, porque uma vez potenciais gestantes todas são treinadas para ocupar uma função em algum ponto da cadeia de trabalho reprodutivo, se necessário. E é por isso também que a categoria “mãe” é PROPOSITALMENTE confusa porque ela é feita para abarcar toda e qualquer mulher, a qualquer momento. E quanto mais tarefas dessa linha reprodutiva essa mulher acumula mais consolidada está a função de “mãe” para ela. Uma mulher que gestou, pariu, amamentou, cria seus filhos é aquela que sente todo o peso do pé do patriarcado no pescoço. É a mãe concretizada.

“Mãe” é toda mulher que é diretamente envolvida e responsabilizada em alguma etapa do trabalho reprodutivo de pessoas.

Dessa forma, em algum nível, a que gesta e pare é mãe. A que é responsabilizada pela tutela é mãe. A que é cria é mãe. Se você borra essa categoria, mesmo ela sendo propositalmente confusa, indistinta, você não consegue delimitar esse grupo a partir dessas funções que são compulsoriamente realizadas. E se você não delimita, você não consegue lutar por DIREITOS.

Não consegue discutir licença-parental, apoio puerperal, apoio à amamentação, não consegue denunciar a dupla/tripla jornada, não consegue discutir a divisão dessas tarefas de cuidado, falar sobre exclusão dos espaços, sobre discriminação no mercado de trabalho, sobre precarização, sobre pobreza, sobre abandono parental, sobre aborto, sobre políticas de contracepção, sobre violência sexual, sobre casamento, sobre exploração de útero de aluguel, sobre divisão de bens, sobre educação e proteção de crianças, sobre inúmeros temas que são problemas de mulheres envolvidas em trabalho reprodutivo: MÃES.

E é por isso que feminismo é sobre maternidade. Que maternidade é o tema-chave que deveria interessar a todas as mulheres (mãe e não-mães). Que está no epicentro da nossa opressão. Parar de falar o nome disso não vai fazer as questões desaparecerem, muito pelo contrário, isso é uma estratégia pra minar os esforços cada vez mais conscientes de mulheres que finalmente estão entendendo o recado do feminismo sobre isso e estão se organizando como CLASSE. Dividir para conquistar, lembram?

“Mãe” precisa ser entendida como uma categoria de análise fundamental para desmantelar o poder do patriarcardo (em confluência com o capitalismo e o colonialismo numa superstrutura). Essa é uma nomenclatura que deve ser fortalecida e discutida e não embaçada ou diluída. Isso é categoria política de mulheres sob exploração. Mulheres, repito. Apenas mulheres. Pessoas nascidas com aparelho reprodutor feminino. Porque são mulheres que possuem potencial de gestar e parir pessoas e isso é intransferível e é isso que nos “torna mulher” nesta sociedade. Com todas as suas implicações.

Não caiam em armadilhas de inclusividade excludente. A sociedade patriarcal sabe muito bem definir, apontar, encontrar e responsabilizar a “mãe”, quando lhe é conveniente. Quem é mãe sabe que é, e sabe como é, ainda mais quanto mais for atravessada por outras opressões como raça e classe.

E é por isso eu me chamo “mãe”. Porque esse nome foi marcado na minha testa pelo patriarcado quando eu nasci. Não me chame de outra coisa, porque vai ser no reconhecimento dessa categoria que vamos implodi-la. Então vai ter feminismo materno sim e a revolução será pela via da derrubada desse pilar da maternidade compulsória. Só as mulheres conscientes do lugar a que foram levadas por sua capacidade reprodutiva e organizadas como categoria POLÍTICA é que poderão fazer isso.

Seguimos. A militância é materna.

Coisas que meninas devem saber para sobreviver em um mundo de predadores sexuais

Há uma série de coisas que meninas devem saber para sobreviver em um mundo de predadores sexuais. Orientar mulheres e meninas para lidar com assédio é mais complexo do que parece porque pouco refletimos sobre como somos socializadas para o jogo amoroso, e sobre como aprendemos a nos colocar sempre em posição de vulnerabilidade no momento da aproximação amorosa, principalmente nas relações heterossexuais. Temos muita dificuldade de perceber como é embaçado esse limite que aprendemos a traçar em relação ao abuso masculino sobre nós, que recai muitas vezes desde a mais tenra infância. Nós mulheres somos criadas com mensagens muito contraditórias sobre como agir e o que devemos aceitar, principalmente sobre homens e relacionamentos.

Aprendemos que nossa aparência é a coisa mais importante sobre nós mesmas e que precisamos de validação constante a ponto de dedicarmos todo nosso tempo em função de estar “bem”, que para mulheres é igual a estar bonita. Competimos umas com as outras por essa aprovação e interpretamos qualquer discordância como uma questão de “recalque” ou “inveja” da nossa “beleza”. Somos altamente críticas em relação a nós e as outras mulheres. E em algum nível todas ansiamos pela aprovação masculina na forma de olhares, curtidas, cumprimentos e elogios. Não percebemos como isso é usado para nos manipular, como isso nos gera insegurança e como abre caminho para que qualquer homem em qualquer lugar se ache no direito de opinar nosso corpo, controlar a maneira como nós devemos nos parecer, e nos humilhar.

Aprendemos a mensagem contraditória de que precisamos ser “recatadas”, “castas”, “difíceis”, ao mesmo tempo que somos incentivadas o tempo inteiro para, desde muito jovens, nos mostrarmos sedutoras. Roupas, maquiagens, danças, caras, bocas e trejeitos, são ensinados às meninas para que elas já se posicionem socialmente como sexualizáveis. Nossa cultura é pedófila e não esconde isso. Para homens, relacionamento com mulheres é sobre ter sexo, a maior quantidade possível. Para mulheres, relacionamento com homens é sobre amor, casamento e filhos.

E assim, meninos aprendem que devem “caçar” meninas, e meninas aprendem que devem sorrir para o caçador e se oferecer em sacrifício. Dessa forma, como criar nossas meninas para que se defendam? Como ensiná-las a diferenciar uma relação potencialmente saudável de uma abusiva, se nós mesmas temos essa dificuldade e vivemos caindo em armadilhas? O que devemos ensiná-las para que possam traçar limites entre interesse genuíno e assédio?

1. Padrões de beleza são reais e inatingíveis e existem para controlar meninas e mulheres

Mostre para sua filha que os padrões de beleza que ela vê nas revistas, na TV, e agora na internet são completamente artificiais. Que mulheres só tem aquela aparência graças a muita maquiagem, muita edição de imagem e filtro. E que ter aquela aparência glamorosa faz parte da profissão delas e que portanto há toda uma equipe que trabalha direta ou indiretamente pela manutenção daquele tipo de visual. Que essas mulheres são vitrines ambulantes subsidiadas por uma indústria cuja função é estimular outras a consumirem enlouquecidamente todo tipo de produto de beleza. Que vendem uma ideia inalcançável de como mulheres devem se parecer justamente com o objetivo de mantê-las sempre angustiadas e insatisfeitas com a própria imagem, pagando qualquer preço para se tornarem como o padrão.

Explique que especialmente meninas como ela, que não entendem muito bem como é a engrenagem do consumo que move o mundo, podem ser especialmente suscetíveis a este tipo de apelo. Porque parece que só mulheres que se parecem de uma determinada forma são amadas, queridas, admiradas e desejadas. Tem suas fotos curtidas, comentários elogiosos. Meninas “feias” ou foram do “padrão” são punidas, ofendidas, rejeitadas. A sociedade é cruel e isso tem uma função: fazer uma pressão enorme na cabeça de meninas, para que se tornem mulheres inseguras e infelizes, que odeiam o próprio corpo. Que odeiam a si mesmas. E mulheres inseguras ficam vulneráveis, frágeis, suscetíveis e isso é um prato cheio para abusos. Destruir a auto-estima de uma menina é o primeiro passo para dominar a mulher que ela vai ser tornar.

E tem um segredo que é preciso saber: no final do dia, quando o trabalho acaba, mesmo as musas mais belas, longe das câmeras, são como nós. Mulheres comuns. Que também não se acham boas o suficiente. Que também não se acham bonitas o bastante.

E quem se beneficia enquanto meninas e mulheres desenvolvem depressão, anorexia, bulimia, ansiedade, gastam toda sua energia, tempo e dinheiro (muito dinheiro)? A quem serve manter mulheres sempre com a auto-estima arrasada, pensando em diversos momento do seu dia sobre como não são boas o bastante? Belas o suficiente? Aos homens. Homens que dominam todo um mercado, que lucram com isso. Homens, que mantém mulheres ocupadas em obter sua aprovação a todo custo e usam isso a seu favor para dominá-las, julgá-las, classificá-las, escolhê-las como em um leilão, como se mulheres não fossem pessoas.

Ensine a sua menina que o que ela tem de mais precioso a proteger nesse momento é o amor por si mesma, completa. Que o que ela tem de mais importante a aprender é a amar-se e amar outras mulheres. E eu sei que essa é uma tarefa muito difícil porque implica uma desconstrução que está muito arraigada. Recusar o troféu de mais bela pelo qual fomos ensinadas a morrer, pelo qual adoecemos e gastamos nosso tempo e dinheiro. Mas precisamos começar a quebrar esse paradigma essencial porque só quando mulheres deixarem de ser definidas pela sua aparência deixarão de ser tratadas como coisas. Abandonaremos finalmente a condição de objeto para nos tornarmos pessoas.

2. Atratividade física não é o elemento mais importante sobre uma pessoa e é o motivo errado para começar um relacionamento

Insista com sua filha para desconstruir a ideia de que a beleza é o elemento mais importante que alguém possui. Incentive-a a olhar e a se aproximar de outras pessoas para além da aparência física e a não permitir que ela seja abordada baseada unicamente neste parâmetro. Explique a ela que se o único fator pelo qual alguém a busca é por sua beleza, a atratividade do seu corpo, a sua sensualidade ou a sua presumida disponibilidade sexual, ela está sendo subestimada e não valorizada e merece alguém melhor, porque ela é uma pessoa completa, que é muito mais que um rosto ou um corpo atraente.

Ensine a sua filha que em um bom relacionamento as pessoas devem se enxergar e interagir por completo. Que para além de carícias e sexo, um casal conversa, se diverte, compartilha coisas da vida, se respeita, e se apoia. Que eles são amigos. E que portanto a personalidade, o caráter, os valores, da pessoa com quem ela vai se envolver é muito mais crucial que a aparência, e que da mesma forma ela deve esperar despertar interesse pelos mesmos indicadores, buscando compatibilidade. Que se ela não pode esperar se tornar uma boa amiga da pessoa que a busca romantica ou mesmo sexualmente então está fadada a entrar em uma situação pautada por hierarquia e controle, porque ela será tratada como um objeto que alguém possui. E ela deve esperar, ao invés disso, alguém com quem seja capaz de constituir uma relação genuína de afeto, respeito, cumplicidade e parceria. Não importa se é um encontro de duas horas ou um namoro de meses. Ela deve esperar consideração e respeito sempre. Que se sexo está se tornando mais importante que a integridade e saúde física e mental das pessoas envolvidas então tem algum coisa muito, mas muito errada.

3. Atração sexual é uma coisa normal e saudável e não tem a ver apenas com atratividade física

Converse com sua filha sobre paquera. Explique a ela que na idade adequada é normal que pessoas sintam-se atraídas umas pelas outras, queiram estar juntas, queiram fazer sexo. Que infelizmente, na nossa sociedade hoje, somos orientados a mover esse nosso interesse por paradigmas puramente estéticos, ou de status. Homens são guiados para buscar a mulher “gostosa”, mulheres são guiadas a buscar um “príncipe” que é, antes de tudo, “lindo”. Mas que aparência física não é definidora de atração sexual ou interesse romântico e a maneira como nos guiamos nossos afetos é condicionamento puro.

Nosso olhar, nosso querer, é formatado para admirar determinados padrões, e todos eles tem agenda, foram feitos para nos colocar num determinado lugar, cumprindo uma determinada função na lógica de uma sociedade que é patriarcal, capitalista e racista. Aprendemos, por exemplo, que mulheres “bonitas” são as brancas, magras, de traços claros europeizados, aprendemos que mulheres morenas e de corpo mais voluptuoso são as “gostosas”, as “sensuais”, que mulheres de traços latinos são “calientes”. Essas imagens existem para atender a um chamado racista, que vende uma imagem higienizada e angelical de pessoas brancas que são destinadas a perpetuação do núcleo familiar tradicional, de controle e de manutenção de patrimônio dentro de um dado grupo racial e uma imagem sexualizada de pessoas racializadas, que são desumanizadas e tidas como destinadas ao sexo e ao fetiche. Isso faz por exemplo, que qualquer pessoa que não tenha traços físicos eurocêntricos seja considerada “feia” ou “exótica”, faz com que meninas negras sejam invariavelmente preteridas e cultivem pela vida uma imensa dificuldade em ter parceiros e formar relacionamentos e que meninas brancas sejam entendidas como “esposa ideal”.

Outro bom exemplo é o das meninas que aprendem desde sempre a direcionar sua atenção sexual e afetiva para homens mais velhos. Esse incentivo inclusive é familiar que as orienta a buscar “um homem e não um moleque”, “um bom homem trabalhador que vai cuidar dela”. Como resultado, desde muito jovens, não sentem atração por pessoas da sua idade, que estão vivendo as mesmas experiências, e viram presas fáceis de abusadores. Mal entrando na adolescência, meninas já são consideradas “carne fresca no mercado” e são aliciada por homens muito mais velhos. E são incentivadas a ficarem lisonjeadas com esse assédio e aceitar esse abuso como reafirmação da sua feminilidade. A menina ouvirá que é “especial”, que “não é como as outras garotas”, que “é muito madura para sua idade”, que “é muito desenvolvida”, “já é uma mulher”, “já sabe o que quer”, e todo tipo de coisas. E isso tudo serão mentiras contadas para acessar seu corpo sexualmente, manipular e controlar.

Meninas aprendem que podem somente sentir-se atraídas por pessoas do sexo oposto, que isso é uma norma imutável, que é o “normal”, o “esperado”, o “certo”, e que qualquer coisa fora disso é a maior transgressão que ela pode cometer porque está recusando seu destino de fêmea, encontrar um macho, ser escolhida, casar e procriar. Não tutele os afetos da sua menina. Deixe que ela saiba que tem o direito de experimentar e descobrir o que realmente lhe interessa viver em termos de relacionamentos e sexualidade. Diga a ela que não existe “normal” e muito menos “anormal”. Que a organização dos relacionamentos na nossa sociedade é heterocentrada pois tem a função de manter os corpos das pessoas sob controle num modelo familiar margarina que não existe na realidade. Que o objetivo final é manter mulheres sob completa exploração do seu trabalho reprodutivo.

Manter a ilusão de uma sociedade eminentemente heterossexual é fundamental para manter a lógica capitalista que precisa de casais se reproduzindo e criando trabalhadores para serem explorados. É fundamental para a lógica patriarcal onde homens mantém a dominação sobre mulheres sobretudo sob o manto do “amor” e do cuidado da família. Permita que sua filha tenha liberdade nos seus afetos. Explique a ela a lógica por trás do pensamento lesbofóbico (e homofóbico) que é de impedir que pessoas possam decidir livremente como organizar suas vidas e escolher suas parcerias.

Então, diga a ela pra não se render a primeira faísca de paixão que cruzar seu coração, porque paixão não é sentença, não existe amor eterno, isso passa, nossos afetos são condicionados para nos empurrarem para grandes armadilhas e se ela mantiver a cabeça no lugar por tempo suficiente vai ter a chance de encontrar alguém para uma história que vai valer a pena ter vivido. Alguém da idade dela, que pensa parecido, tem os mesmos valores, e que mesmo que tudo acabe, poderá ser uma pessoa amiga pra uma vida inteira.

E que sim, é muito difícil se sentir “feia”, “gorda”, “estranha”, “inadequada”, “diferente”, mas que vale muito pena estar com alguém para quem isso não faz diferença, ou que na verdade nem é uma questão, porque não é para esse lugar que essa pessoa está olhando. Ela está olhando pra você e vendo o que você é: uma pessoa. E está amando isso e tendo atração sexual por isso, não só por seu corpo, mas por seu sorriso, suas ideias, o que você é na vida, de verdade. Diga a ela que nada diferente disso vale a pena ser vivido. Ela é uma pessoa, e deve ser amada e querida por isso e apenas isso. E ela pode amar pessoas de volta. Repita isso mil vezes para ela, até entrar fundo, até ela não ter dúvidas. E diga a ela que você sente muito que as coisas sejam assim e que você sente muito também por ter que orientá-la a travar uma batalha tão difícil e vital: requerer a própria humanidade nessa sociedade tão cruel.

4. O flerte surge da admiração mútua, o assédio surge da objetificação do outro

Quem admira o outro não quer o outro para si. Quem admira observa o outro com atenção, se inspira, cuida, respeita. Entendemos o valor daquilo que admiramos por este ser como é, não queremos modificá-lo, ou submetê-lo a nossa vontade. Desejar, por outro lado, significa querer ter algo para si, tomar posse e costumamos desejar coisas. Objetos. Mulheres não são admiradas na nossa sociedade, são objetos de desejo. Aprendemos a apreciar isso, a entender que ser tomada e possuída, que pertencer a alguém é um sinal de amor, e isso é uma armadilha que resulta em violência e em morte.

Por outro lado homens não aprendem a amar mulheres. Não aprendem a vê-las como ser humanos íntegros, dotados de qualidades e defeitos e dignos de respeito e admiração. Aprendem a vê-las como corpos sexuais que lhes devem diversão e prazer. Pergunte a um homem sobre mulheres que ele admira. Pergunte-lhe quem são, quais seus nomes. Peça para citar apenas 3. Dificilmente algum conseguirá cumprir esse desafio. Agora pergunte-lhes sobre mulheres que eles desejam, que eles gostariam de ter (isso mesmo, ter), e a lista será imensa. Homens aprendem que mulheres são coisas que eles adquirem, que passa a ser uma coisa sua, uma propriedade privada da qual ele pode dispor como bem entende.

Ensine sua filha a perceber a diferença entre a abordagem de alguém que a admira como pessoa e alguém que a deseja como um objeto. Essa é a diferença importante entre flerte e assédio. O flerte, a interação em que vamos demonstrando interesse pelo outro e conhecendo-o, é um recurso legítimo de aproximação entre duas pessoas que queiram relacionar-se. O assédio é um mecanismo onde necessariamente um impõe seu desejo sobre o outro, intimida, coage, manipula, chantageia, suborna, compra, o seu corpo, sua presença, seu sexo. É sobre poder, não sobre enamorar-se. É sobre homens que se acham no direito de tomar mulheres, desde legislando sobre sua aparência através de insultos como nas cantadas de rua (“me dá seu telefone, gostosa!”. Sobre a recusa do “não” e a insistência absoluta, que faz mulheres confundirem desrespeito com apaixonamento. É sobre subestimar a vontade do outro e querer domá-lo de qualquer forma. É sobre achar que toda mulher tem um preço, que é possível comprar consentimento. Que mulheres não sabem o que querem, ou o que estão fazendo “jogo duro”. É a “sedução” a qualquer custo. É sobre intimidação, perseguição, violência. Estupro. É sobre manipulação, chantagem emocional. É sempre mesma lógica: não há respeito pela vontade do outro porque o outro não tem vontade, não é uma pessoa, é algo a ser obtido.

Incentive sua filha a repudiar qualquer tipo de assédio, em qualquer lugar que seja. Incentive sua filha a rejeitar pessoas que avaliem corpo dela como se ela fosse um animal pronto para o abate. A afastar-se de pessoas que ignoram suas recusas. Que acreditam que insistência é prova de afeto. Explique que um homem que quer conquistá-la a qualquer custo não a ama, ele apenas sentiu-se desafiado na sua virilidade pela recusa e quer domar sua vontade. Nada de bom pode sair daí, não somos objetos á disposição para apreciação do desejo alheio.

Explique para sua menina que consentimento não tem a ver com dizer “sim”, porque muitas e muitas vezes dizemos “sim” sem estar com vontade. E aceitar algo sem vontade não é consentimento, é concessão. E, em um mundo patriarcal, inúmeros são os mecanismos que homens utilizam para dobrar nossa vontade: manipulação, chantagem emocional, coação, suborno, compra, ameaças, violência.

Consentimento não se negocia. Consentimento sem vontade é concessão e ela nunca deve fazer concessões sobre seu corpo, sobre seu sexo, sobre nada que arrisque sua integridade física, emocional e financeira. Homens irão em busca disso, vão desafiá-la, vão tentar dobrar sua vontade a qualquer custo sempre, porque eles não admitem a recusa de uma mulher. Entenda que isso acontece, e prepare-se para enfrentar. Todo o modelo de relacionamento entre homens é mulheres é formatado a partir da subalternidade e submissão feminina. Somos compulsoriamente levadas a aceitar e a dizer “sim” sobre tudo que tem a ver ou que vem de homens. E que a grande disputa é ter o direito de recusá-los. Recusar aceitar os seus gracejos, suas indiscrições, o seu julgamento sobre nossa aparência. Poder recusar sua presença, recusar sorrir para eles e agradá-los o tempo inteiro sem acusações ou retaliações.

5. O mundo ainda não é seguro para crianças e mulheres

Ensine sua criança a como agir para se defender ao perceber os primeiros sinais de assédio. Desde bebê . Explique o corpo é dela, que ninguém deve tocá-lo a não ser ela. Que nenhum adulto deve, e vá dando autonomia corporal a ela, o quanto antes for possível, de forma que apenas ela precise tocar em si mesma, mesmo para higienização. Mostre claramente quais partes podem e não podem ser tocadas. Nomeie-as com todos os nomes conhecidos, para que ela possa reconhecê-los em qualquer parte que ouvir. Fale sobre que tipo de carinhos são e quais não são permitidos. E não faça carinhos como beijinhos na boca que podem até ser toleráveis numa relação parental mas que podem deixar a criança confusa e abrir uma janela de oportunidade para abusadores. Divida o mundo das suas crias entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças e mostre sempre o que é e o que não é adequado para cada um desses universos assim como que tipo de interações são desejadas entre adultos (ou adolescentes) e crianças.

Assim que possível, explique para sua criança que predadores existem. Fale claramente sobre o tema, sobre o que eles fazem, como eles se aproximam, o que eles dizem. E ensine-as que qualquer um pode ser o abusador, inclusive alguém que ela ama e confia. Alguém de quem ela nunca desconfiaria. Ensine-a se relacionar criticamente com os adultos, explicando que eles não são perfeitos, nem sempre são modelos e que podem ser potencialmente perigosos e violentos para crianças.

Crie uma relação de confiança com seus filhos. Essa é a parte mais difícil porque prescinde em abrir mão do autoritarismo fácil, da educação pela violência e pelo medo. Implica em criar um canal constante de diálogo e principalmente escuta, de deixá-los seguros, sabedores que serão ouvidos, que acreditarão neles, que serão defendidos. Implica em tratar crianças como pessoas. Muitas e muitas mulheres passaram por situações horríveis porque sentiram medo de contar aos seus pais o que estava acontecendo. Porque foram desacreditadas. Porque foram manipuladas a pensar que ninguém acreditaria na palavra dela contra a palavra de um adulto, que ela seria punida, que ela também era cúmplice da situação, e ela não tinha um vínculo de confiança forte o bastante com os pais para saber que eles a apoiaram a qualquer custo.

Explique que infelizmente há cuidados que ela deverá tomar apenas por ser menina, como evitar andar sozinha, beber em demasiado sem alguém de confiança que possa protegê-la caso fique desorientada, evitar estar sozinha com homens de modo geral, e mais um monte de pequenas e grandes medidas que tornam a vida de uma mulher um verdadeiro inferno. E que nada disso é nossa culpa, é culpa dos homens, nós vivemos sim em uma sociedade que nos transforma em presas, sofremos terrorismo sexual e não podemos esquecer isso, nem ser ingênuas, nem achar que é exagero. As estatísticas estão aí mostrando a realidade. Então muitas vezes vai ser o seu medo que vai te proteger.

Oriente-a também sobre mecanismos institucionais para buscar ajuda, explique ela sempre pode ligar para o Disque 100, que ela pode levar a questão para a escola, que ela sempre tem a opção de buscar apoio em instâncias responsáveis e que nunca, de maneira nenhuma, deve tentar lidar sozinha com a situação.

E finalmente diga para sua menina que você estará lá por ela. E esteja. Que acreditará nela. E acredite. Que ela não deve se calar diante de abusos. E ajude a amplificar sua voz. Que ela deve procurar ajuda ao menor sinal de importunamento, seja direto ou sutil, e denunciar se estiver sendo importunada. E ampare-a. Que ela deve se proteger sempre. E proteja-a. E proteja-se. E diga a ela que ela não está sozinha nessa. Ela não está. Há muitas outras mulheres por aí, lutando para pavimentar uma estrada mais larga e iluminada para que todas as meninas possam caminhar. Juntas.

A sociedade prepara meninas para o abate.

Recentemente circulou um print por aí falando da prática de depilação com cera em meninas púberes. Uma excelente demonstração de como a sociedade prepara meninas para o abate.

sociedade prepara meninas para o abate.

E aí tem um milhão de críticas possíveis, sobre feminilização, escolha, pressão estética. Sobre como o padrão construído de como uma mulher deve se parecer é opressor e agressivo,

MAS

eu quero falar de meninas se tornando mulheres nesse mundo que odeia mulheres. Nesse mundo em que mulheres tem uma função muito clara: servir sexualmente aos homens.

Antes que comece o choro e o ranger de dentes sobre o debate da “escolha” e o argumento do “sentir-se bem”, eu queria sinalizar com algumas informações que não têm condições de ser esgotadas aqui e que portanto cada um deve fazer o seu caminho de procurar saber mais:

Primeiro ponto: o padrão estético de como um mulher deve parecer-se para ser considerada “bonita” mudou e muda constantemente, sempre de acordo com questões históricas, sociais e principalmente econômicas, sendo sempre ditada pelos homens, da classe dominante, reproduzido pelas suas mulheres e então disseminado para as classes subalternas. E aí é importante ressaltar que, historicamente esse “homem” que falo, pode ser representado pelo homem branco, anglo-saxão, que promoveu todo um processo de colonização em quase todos os continentes e impõe-se até hoje por diversos mecanismos.

E aí, como exemplo, eu posso citar como em algum momento o o padrão de beleza foi o de mulheres corpulentas. E isso por quê? Porque antigamente só quem se alimentava com fartura eram pessoas ricas e portanto ser gordo era sinal de pertencimento a uma elite. Unhas compridas e manicuradas por exemplo, originalmente eram um símbolo de beleza porque demarcava status de mulheres que não precisavam fazer trabalhos domésticos. E podemos ir ad infinitum analisando como cada elemento da nossa cultura que define o que é ser “bela” e portanto desejada e aceita (já que mulheres só são validadas socialmente se forem belas), tem um componente sexista, classista, e racista (por motivos óbvios). E dessa forma temos hoje como modelo de beleza “oficial” se persegue a qualquer custo: ser branca, magra, cabelos lisos, olhos e peles claras, traços faciais finos, poucos pelos.

Esse padrão é disseminado nas artes, literatura, música, moda e no último século levado às últimas consequências pela industria cinematográfica, TV, publicidade e agora internet. Que é dominada por homens e tem uma influência absurda nas mulheres, na maneira como elas se enxergam, como formam a imagem de como devem ser e se parecer, e de como influenciam os meninos sobre que tipo de mulheres devem desejar. Além do fato de como meninas nascem e têm sua estima como pessoa inteira, digna, íntegra, sendo destruída paulatinamente, e deixando apenas a aparência física e a docilidade como valores elogiáveis e aceitáveis. Acho que toda mulher sabe como teve toda sua potencialidade minada durante a vida e como o único que principal elogio que receber é “está linda”.

Então vamos ao segundo ponto. Hoje, os padrões de beleza que são criados atendem também a ensejos do mercado. É uma associação nefasta entre capitalismo e patriarcado que busca disseminar esses padrões em forma de demanda , criando nicho. E transformando a indústria da beleza em uma das que mais tem faturamento no mundo. Então como isso funcionou no caso da depilação por exemplo? Embora seja uma prática encontrada em culturas na antiguidade, a prática para mulheres disseminou-se como é hoje no século passado (1920 por aí) por editoriais de moda e beleza em revistas, associado a ideias como “higiene”. Ou seja, há pouco mais de cem anos, ter ou não pelos não era uma questão de beleza e muito menos higiene para as mulheres. Essa ideia foi criada e disseminada pela indústria e pela mídia (do mesmo jeito que inventaram o dia do namorados ou o dia das mães).

É importante notar e ressaltar de novo que todos esses padrões são criados por HOMENS, porque são eles que estão no comando de tudo, das empresas, da mídia, dos governos, das artes, da ciência. E que eles se beneficiam porque submetem mulheres ao que precisam e agora ainda lucram com isso. E mulheres pagam um preço alto por não reproduzir esses ditames. Se você não é magra, se você não depila, se você não se maquia, se não usa salto-alto, você será rechaçada, rejeitada, humilhada, não conseguirá arranjar parceiro, não conseguirá arranjar trabalho. Mulheres sentem-se mal, deprimidas, odeiam seus próprios corpos quando eles não estão em conformidade com o que a sociedade patriarcal dita. E são punidas. E ainda são convencidas que estão “escolhendo” se submeter. Que estão escolhendo gastar seu tempo, seu dinheiro, sua saúde emocional, fazendo mil procedimentos diferentes para ficaram dentro do que se definiu como sendo “bom”.

E aí vamos então ao terceiro e mais importante e principal ponto. A principal característica da nossa sociedade HOJE é que ela é extremamente pornificada. É a indústria pornográfica (comandada por homens) uma das que mais movimenta dinheiro e que dita qual o padrão que a mulher deve parecer. Qual o padrão de mulher desejável. E que mulher é essa?

É uma mulher pequena. Magra. De aparência frágil. Sem nenhum pelo. Vulva pequena e rosada.

O padrão de mulher que a indústria pornográfica vende como sendo a mulher desejável, a mulher comível, é a de uma criança.

E mulheres estão cada vez mais tentando transformar sua aparência, na aparência de uma criança. Extremamente magras. Nenhum pelo em parte nenhuma do corpo principalmente genital. Vulva e anus rosados. Pele sem nenhuma marca, sem nenhuma mancha. Lábios rosados e mais protuberantes. Olhos saltados. Cílios alongados. Crianças têm essa aparência, não mulheres adultas. Mulheres adultas estão sendo impulsionadas a emular um comportamento cada vez mais infantil e erotizado e impedidas de envelhecer. E crianças estão sendo erotizadas, adultizadas, pornificadas, e aliciadas.

O padrão de beleza da nossa atualizado é pornificado e pedófilo. Precisamos proteger nossas crianças. Estamos lutando para dar uma infância as nossas meninas, para que elas tenham direito de crescer, estudar, decidir o que querem fazer das suas vidas. Ainda assim o número de casamentos infantis no mundo é uma coisa assustadora. O número de abuso infantil, e violações de toda ordem é uma coisa alarmante. Precisamos acordar desse pesadelo e proteger nossas meninas. Elas nasceram em uma sociedade que as prepara para o matadouro. Que de um jeito ou de outro tenta valer sua lei de que mulheres foram feitas para a apreciação sexual masculina. Há pouco mais de cem anos era praxe que meninas se casassem logo depois que tivessem sua primeira menstruação. A maioria de nós teve avós que se casaram crianças e tiveram diversos filhos, vivendo uma vida pra criar crianças e cuidar do lar e do marido. E agora estamos permitindo que essas meninas voltem para o mesmo lugar, colocando-as na prateleira para exposição e assédio masculino tão logo entram na puberdade. Achamos que é escolha. Não é escolha. Isso é o que patriarcado sempre fez conosco, mas agora com um golpe de mestre, deixa que nós mesmas façamos o trabalho sujo com a ilusão de “empoderamento”. Isso não é empoderamento. Empoderamento é o que os homens tem.

Não caiam na falácia da escolha. Façam um movimento de analisar os motivos reais que nos levam a reproduzir determinados comportamentos, que nos levam a agir como agimos. Se fosse escolha e fosse tão bom, homens em massa estariam fazendo o mesmo e usufruindo, afinal eles constroem o mundo pra eles. Mas eles estão escolhendo opções de conforto sobre a própria aparência, o mundo que eles construíram pra eles é um mundo em que não precisam da aprovação de ninguém para sentir-se validado. Homens estão escolhendo consumir mulheres, explorar mulheres, homens estão escolhendo meninas porque elas são mais frágeis, inexperientes, imaturas. Homens escolhem meninas porque são presas fáceis para o abate e nós não podemos facilitar o trabalho deles.

Eu amo meu filho e amo ser mãe, o que eu odeio é o patriarcado

Há uma frase inclusive muito famosa que é especialmente reveladora que diz “amo meu filho, mas odeio ser mãe”. Isso não faz nenhum sentido para mim. Eu amo meu filho e amo ser mãe, o que eu odeio é o patriarcado.

O que isso significa na realidade a frase “amo meu filho, mas odeio ser mãe”? Porque inclusive essa frase é uma contradição em termos. Você ama seu filho por causa da relação que tem com ele que é a relação de maternagem. Você não ama o bebê da vizinha. Não é um amor universal por todos os bebês do mundo. É um amor exclusivo, característico que você sente por essa criança por ela ser quem é: seu filho. Então, na real, não dá pra “amar seu filho” mas “odiar ser mãe”, porque uma coisa está intrínseca na outra, não existe sem a outra.

Mas eu estou dizendo a maternidade na nossa sociedade então é uma coisa boa e que as mulheres estão reclamando demais, porque o amor compensa tudo? Nem pensar uma blasfêmia dessa. O que eu estou dizendo é que se você ama seu filho, você ama ser mãe porque você só é mãe porque tem esse filho. É uma relação intrínseca. É a existência de um filho que torna uma mulher, mãe. Então no fim, não é a maternidade que você odeia. Você odeia tudo que a sociedade te tornou e maneira como ela te trata em função de te obrigar a ter filhos e criá-los absolutamente sozinha e da maneira que se espera. E aí, vamos dar nome aos bois: você odeia o patriarcado. Mais especificamente aos homens. Porque são eles que fizeram isso.

Vamos responsabilizar a quem é de direito.

São os homens que, no controle das leis, nunca se preocuparam em criar legislações específicas de proteção e amparo para mulheres gestantes e mães. São os homens que, no controle das empresas, disseminam a cultura de discriminação de mulheres que tem filhos. São os homens que objetificam os seios femininos a ponto de você ter constrangimento em amamentar em público e são eles que projetam os espaços públicos e nunca se preocupam em criar espaço para mães e suas crianças. São homens que no controle das políticas públicas não constroem uma rede eficiente de creches e escola que atenda a necessidade de trabalho e descanso das mulheres.

São homens que estão no comando dos centros de pesquisa desenvolvendo métodos contraceptivos cuja responsabilidade do uso cai no colo das mulheres e nunca métodos que eles mesmos podem usar. São eles que se recusam a usar camisinha. São eles que fazem e votam as leis que não permitem a interrupção de uma gravidez indesejada.

São homens que abandonam em massa seus filhos ou exercem uma paternidade de ocasião, não dividem tarefas domésticas, exploram suas mulheres e as deixam completamente sobrecarregadas. São homens que praticam violência sistemática contra mulheres e crianças as deixando sob um regime de completo terror e desamparo.

São homens que fazem — ou não fazem — as leis que deveriam proteger mulheres e crianças. São eles que as aplicam — ou não aplicam. O desamparo da mulher-mãe tem nome e endereço.

Se cada homem cumprisse essa obrigação mínima, no aconchego do seu lar, de fazer apenas e tão somente a sua parte, o fardo da criação já diminuiria imensamente sobre as mulheres. Se cada homem constrangesse outro homem que pratica abandono parental, que agride, que maltrata, violenta, abusa, sequestra, mata sua mulher e seus filhos, se fizessem esse mínimo, mulheres sentiriam-se mais seguras, livres, menos reféns do medo.

Escutem as mães. Escutem o que elas dizem. Quando uma mãe fala sobre sua maternidade e diz que “um sorriso paga tudo”, ou que “não existe felicidade maior”, ela não está só tentando minimizar uma situação que é de sofrimento (embora também), ela está dizendo: “olha, mas há coisas boas nessa experiência a ponto de valer a pena”. Porque mesmo homens, quando efetivamente resolvem assumir para si realmente a criação dos seus filhos, relatam encontrar esse lugar de satisfação emocional.

Não podemos ignorar a dimensão subjetiva da experiência que é a parentalidade, porque no fim, a subjetividade é essa força motriz que nos impulsa enquanto humanidade. Com maternidade compulsória ou sem maternidade compulsória, com socialização ou sem socialização, o fato é que mulheres pariram, parem e parirão ainda por um bom tempo. E essa experiência também é um lugar que oferece recompensas emocionais para muitas e muitas delas.

O que a maternidade precisa é ser retirada desse lugar instrumentalizado. A mulher precisa ser retirada desse lugar de reprodutora de mão-de-obra pro capitalismo, de capataz do patriarcado. Para que uma maternagem menos sacrificante não seja quase um privilegio de classe, onde todas as demandas faltantes no processo de criar um filho são resolvidas por se ter dinheiro.

O discurso da “maternidade real” e todo o discurso que está sendo criado sobre maternidade não está sendo efetivo para construir pontes entre a sociedade no geral e mulheres-mães e principalmente para a proteção das crianças. Que acabam sendo eleitas as grandes culpadas, afinal, elas insistem em nascer e existir. São vistas como pequenas maldições que as mulheres precisam “aguentar”. O discurso de ódio contra crianças na nossa sociedade já é consistente demais para que as próprias mulheres venham engrossar o coro.

Precisamos nomear o problema da maternidade: o problema são os homens. Não são as mulheres, não são as mães, não são as crianças. A maneira como tratamos esse tema só nos leva a um lugar onde mulheres-mães vão sendo cada vez mais isoladas, onde são vitimizadas, ostracizadas, postuladas como “coitadas”. Onde crianças vão sendo vilanizadas, como se elas fossem pequenos gremlins que só suas mães aturam. Como se o problema da maternidade fosse ter que criar essas crianças que são… veja só! crianças! com suas demandas específicas de um ser em desenvolvimento. Como se não houvesse beleza e encantamento nesse processo para quem está envolvido. Como se algumas vezes, no final do dia, realmente um sorriso não pagasse tudo.

Criar crianças, preparar seres humanos para conviver em sociedade (que é afinal do se trata a parentalidade, não?), é uma tarefa de muita beleza e muita dor. Mas essa dor só é tão intensa porque a sociedade para a qual as criamos, e na qual estamos inseridas, é esse caldeirão de injustiça, exploração e caos que vemos todos os dias. Então vamos nos organizar para atacar o problema na sua raiz, que certamente não são as mulheres, ou as crianças, mas sim, como sempre, esse sistema capitalista-heteropatriarcal.

Como proteger nossos filhos da cultura do estupro?

Como proteger nossos filhos da cultura do estupro? Esta é uma pergunta que assombra toda e qualquer pessoa comprometida com a criação dos filhos.

Todo homem é um estuprador em potencial, dizem. Essa frase é incomoda para homens e um choque para muitas mulheres. Principalmente para mães de meninos. Como assim aquele menino tão doce que ela aninha no colo é um potencial estuprador de mulheres? Pois é. Isso não quer dizer que todo homem estupra. Mas quer dizer que qualquer homem poderia estuprar uma mulher. Porque homens estupram. Não tem uma etiqueta na testa com selo de decência para sabermos quais oferecem segurança e quais não oferecem.

Quando pensamos em estupro, pensamos no ato violento, forçado, coercitivo. E então muitos homens respiram aliviados por sentirem-se fora dessa equação. No entanto se pensarmos nas fronteiras embaçadas de consentimento que nos são ensinadas, o número de homens que cometeu alguma violência sexual é infinitamente maior do que imaginamos. Quantos não roubam beijos, acariciam mulheres de maneira inconsentida? Quantos homens não fazem sexo com sua parceira sem estar realmente preocupado se ela está com vontade, ou mesmo se ela também está aproveitando a experiência?

Que mulher nunca transou com o marido ou namorado sem estar com nenhuma vontade, por senso de “obrigação”? Pela ameaça velada de traição “se não transar com você vou ter que transar outra”? Ou porque o “não estou com vontade” foi solenemente ignorado e homens permaneceram insistindo tanto que ela acabou cedendo para ter sossego? A ponto de originar a clássica piada sobre a desculpa da “dor de cabeça” para não transar. Ou a de ficar “escolhendo a cor que vai pintar o teto” enquanto faz sexo. Isso não é engraçado. Isso é muito violento. Mulheres terem que inventar que estão doentes ou indispostas para que seus companheiros desistam de querer um sexo que ela não está com vontade de realizar é cruel demais. Um sexo que muitas vezes aquela mulher não quer fazer simplesmente porque é ruim. É um sexo onde ela não tem nenhum prazer, não é uma experiência que ela aproveite. Que ela finge ter um orgasmo para ver se aquilo acaba de uma vez e ela pode voltar pra ver novela. Um sexo que é visto como um mal necessário a alguma estabilidade e paz na união que ela está, que “não custa nada”.

“É rapidinho”, “depois você vai gostar”, “não custa nada”, eles dizem.

Vejam que perverso:

Homens aprenderam que sexo é para eles, é sobre eles. Que apenas eles têm prazer dessa experiência. Que seu corpo tem “necessidades”. Que é “instinto”. Que ele é um animal sexual cujas gônadas vão explodir se ele não transar. Que ele não pode se conter. Que eles devem conquistar e foder o maior número de mulheres possível porque é isso que prova que ele é macho e viril.

Mulheres aprenderam que sexo é uma coisa “suja”, que boas mulheres sequer gostam de sexo, aprenderam que homens é que devem “fazer a mulher gozar”, como se apenas eles soubessem os segredos sobre o corpo de uma mulher. Mulheres aprenderam que não sentem desejo. Que são frígidas. Que gozar é difícil. Que não devem tocar-se. Que é normal o sexo ser ruim. Que devem fazer sexo com o menor número de homens possível, porque isso é prova que ela tem dignidade moral. E mulheres aprenderam que só são valorizadas se forem dignas. Se forem “direitas”, se forem “puras”. Porque o sexo macula.

O sexo é uma coisa mundana. E o homem é que é do “mundo”. Mulheres são do confinamento do lar, da domesticidade.

Homens aprenderam que mulheres valorosas não devem gostar de sexo. Ou melhor, mulheres podem até gostar depois que conhecerem “o homem certo”. Então homens tem a noção distorcida de que mulheres acham que não gostam de sexo e nunca querem sexo porque ainda ninguém lhes mostrou como sexo é bom. E que por isso recusam. Por isso O recusam. Então ele deve insistir, insistir, insistir, até ela ceder. Porque no final, ela vai gostar.

Mulheres aprenderam que não devem demonstrar que querem sexo, mesmo que queiram muito. Porque mulheres que cedem na primeira tentativa já sabem que sexo é bom. Portanto já tiveram sexo com outro homem. Já gostam. Não são mais “puras”, já não tem mais tanta moral e dignidade. Perderam o “valor”. Porque o “valor” de uma mulher está exatamente localizado entre suas pernas na nossa sociedade. Não à toa mulheres são, por séculos, coagidas e punidas por não manterem suas “virgindades”. Não à toa, até hoje, um hímen intacto faz fortuna em leilões.

Dessa forma, quanto mais rápido mulheres cedem, mais isso indica que elas tiveram muitos parceiros, porque talvez ela goste muito mesmo dessa coisa de sexo e vá transar com qualquer um. E mulheres não podem transar com quem quiserem, porque vai que ela engravida, como saber quem é o pai? Como garantir que o homem que está espalhando sua semente está criando um herdeiro que é seu?

Então mulheres aprenderam que devem sempre dizer não, numa tentativa de “valorizar-se” e que deve deixar o homem “conquistá-la”, que nada mais é do que tentar persuadi-la a ter sexo com ele, e quem sabe nesse meio tempo descobrir que ela é uma mulher digna o bastante para ele querer ter uma família com ela. Se a fórmula funcionar bem e ela conseguir sustentar esse jogo por tempo o suficiente, homens podem inclusive casar com ela no recurso último de finalmente transarem. E assim mulheres obtém o que elas aprenderam que é importante — e que não é sexo — mas “ter um lar e um marido”.

Portanto a boa mulher sempre nega sexo, o bom homem sempre insiste apesar do não. A vontade da mulher que gera um consentimento verdadeiro é relegado a segundo plano. A recusa da mulher é sempre desconsiderada porque faz parte do jogo da conquista. Mulheres não tem direito real de dizer não às investidas sexuais masculinas.

Essa lógica tem um nome. É cultura do estupro.

E como isso opera, na prática? Antigamente, essa ideia desdobrava-se simplesmente com homens capturando mulheres e estuprando-as abertamente, para satisfazer seus “instintos primitivos”. Ou comprando-as dos seus pais em casamento quando queriam aliar a necessidade de sexo com a obrigação social de constituir família, deixar herdeiros e outros arranjos de ordem puramente comercial.

Modernamente o homem não compra mais a mulher em casamento, cultiva-se a ideia de “amor romântico” mas permanece a lógica comercial nas relações de que ele deve conquistá-la através de exibicionismo financeiro, seja porque mulheres são fúteis e gostam mesmo “é de dinheiro”. Seja porque mulheres aprendem que um “homem bom” é aquele que demonstra solvência financeira para prover uma família. Então a lógica da negociação sexual que não passa pela violência direta ou velada pula direto para a estratégia de compra. Presentes, jantares, jóias, viagens.

Antes da violência pura e simples, tenta-se comprar o consentimento com o nome de “conquista”.

Pense em todos os contos de fada que você já leu. Quem é o príncipe? O homem rico que dá a mulher uma vida de “princesa”. E o que é ter uma vida de “princesa”? Uma vida de luxo, riqueza e ostentação. O príncipe é desobrigado de ser um cara minimamente decente. O príncipe da Branca de Neve dá o primeiro beijo nela quando ela está desacordada (!!!), o príncipe da Bela e a Fera… é uma fera, literalmente. O príncipe da Cinderela dá uma festa pra escolher um mulher como se fosse fazer compras no supermercado. Nem nome esses personagens tem. Nem muito bonitos eles precisam ser também (a Fera que o diga), mas o que todos eles têm em comum? São estupidamente ricos.

Pense em todos os filmes românticos que você já viu. Nos livros que você já leu. O homem ideal, ideal mesmo, é sempre rico e bem sucedido, ou pelo menos muito promissor. Ele não precisa ser bonito necessariamente. E ela sempre é estonteantemente bela. A ideia de “romance” e “conquista” começa a acontecer quando o homem começa a dar coisas ou levar a mulher para fazer coisas (jantares, festas, etc). Já é pré-estabelecido no ritual da paquera que homens pagam a conta ao passo que mulheres devem comparecer estupidamente bonitas para agradar e alimentar o desejo masculino. Ele paga o motel já que ela… fez sexo?

Aprendemos a ser “sensuais”, “sedutoras”. A manter a chama do desejo e a imaginação masculina sempre ligada nessa voltagem da caçada. Por que homens não aprendem que precisam ser sensuais? Por que não existem signos de sensualidade para homens? Porque o homem não precisa se preocupar com o desejo feminino de maneira nenhuma. Não é importante.

Mulheres casam e ficam reféns dos seus maridos caso não tenham autonomia financeira. Porque o trabalho doméstico e de cuidado com os filhos não é visto como trabalho e a mulher muitas vezes está presa em casa sem nenhuma possibilidade de gerar a própria renda e homens lhes cobram sexo como se elas lhe devessem um favor. Que ela faz porque “ele coloca tudo dentro de casa”. Como se comer a comida que ele compra e que ela cozinha todos os dias precisasse ser paga. E sexo paga. E homens cobram. Muitos homens não querem que mulheres trabalhem ou tenham sua própria renda porque mantém essa lógica de dominação nos seus lares. Querem sua escrava sexual particular.

Normalizou-se uma lógica de coerção financeira para a negociação sexual onde como sempre a vontade da mulher em fazer sexo é secundária. Ela é um corpo sendo negociado. Sexo é deslocado do lugar de uma coisa que é feita por duas pessoas que se desejam e querem obter prazer daquilo, para ser um “serviço” que mulheres podem prestar aos homens.

“Mulheres são interesseiras” eles aprendem, “só querem o seu dinheiro”. “Homens só pensam em sexo”, elas aprendem, “fazem qualquer coisa por isso”. “Por que não? Não custa nada.”

A prostituição não é um trabalho mas talvez seja realmente uma das práticas mais antigas do mundo porque mulheres sempre foram mais vulneráveis financeiramente e são coagidas de inúmeras formas a fazer sexo com homens desde tempos imemoriais. Já que a vontade dela, a necessidade dela, o desejo dela, o orgasmo dela, o querer dela, é desprezível, e desprezado. A prostituta ocupa o lugar de fornecer o sexo com o menor esforço possível antes de se apelar para o uso da violência física.

E no desdobramento mais violento homens simplesmente tomam mulheres à força. Porque “no fundo ela quer”, ela está “fazendo cu doce”. Homens aproveitam-se de mulheres bêbadas, homens dopam mulheres, homens aproveitam-se de mulheres dormindo, mulheres inconsciente, mulheres em coma. E saem rindo e pensando “tenho certeza que ela está gostando”.

Estupro é sobre poder porque homens nesse momento expressam toda sua misoginia e todo seu ódio e sentem prazer na subjugação do corpo feminino e no seu sofrimento explícito. Mas estupro é também sobre sexo porque homens aprendem que o consentimento feminino não é importante e que ele pode obter sexo de qualquer mulher, a qualquer momento, usando qualquer recurso, caso queira. Muitos homens sequer se dão conta de que aquilo que estão fazendo com aquela mulher é estupro, “porque ela não gritou”.

Isso é tão extremo que muitos homens que não conseguem obter sexo passam a odiar tanto mulheres que se declaram celibatários voluntários. Também conhecidos como Incels. E se reúnem online para planejar, noite e dia, o massacre de mulheres que acreditam que nunca fariam sexo com eles espontaneamente. E depois saem metralhando escolas e cinemas.

Na pornografia você vê mulheres sofrendo violências terríveis que são mostradas como sendo um ato sexual. São penetradas violentamente, são espancadas, são humilhadas, são xingadas. E as atrizes, apesar da dor física, emocional e psicológica que estão sentindo estão ali coagidas e sendo pagas para fingir que gostam. Homens aprendem que mesmo com violência, elas gostam.

Pornografia é estupro filmado. É como meninos e meninas aprendem que sexo se parece.

Cultura do estupro.

Todo homem é um estuprador em potencial. É no que a sociedade transforma os nossos meninos. É a mensagem que é passada para eles o tempo inteiro. Que o consentimento, que a vontade feminina, não é importante. Que eles devem obter sexo custe o que custar, porque é isso que homens fazem.

Ensinem suas meninas a dizerem sim quando quiserem dizer sim, a conhecerem o próprio corpo, o próprio desejo, permitir que sejam seres sexuados e que possam relacionar-se de maneira saudável com isso. Que elas não entrem nesses jogos perversos e desnecessários de conquista. Ensine a ela que se tudo o que um menino quer dela é obter sexo, ela fará se estiver com desejo, com vontade honesta. Que ela fará porque quer obter prazer da experiência. Sempre, não apenas às vezes. Não apenas em um evento mágico e aleatório. Mulheres podem e devem ter orgasmos em 100% dos seus intercursos sexuais assim como homens conseguem. E que elas possam fazer sexo ou ter qualquer contato físico, seja um beijo, seja um aperto de mão, no exato momento em que tiverem vontade. Seja na primeira vez que se conheceram, seja no décimo encontro. E que se aquele rapaz que ela está saindo não puder esperar e respeitar isso, então ele simplesmente não vale a pena.

Diga a sua menina para dizer não quando quiser dizer não. Que consentimento não se compra. Que custa sim. Que um beijo sem vontade custa. Que receber toques no seu corpo quando não se está com desejo custa. Que transar sem estar excitada de verdade custa muito. Que ela é o corpo dela. Que ela não deve desassociar-se. Afastar a mente do corpo de tal forma que ele possa ser usado por um homem como se fosse uma casca vazia. Diga a sua menina que ela não tem preço e que ela é uma pessoa.

Diga a seu menino que ele é uma pessoa inteira e que a vida não gira em torno das proezas que o pênis dele realiza. Que ele não é apenas um ser sexuado e que seu valor não pode ser medido em função do número de mulheres que ele transou. Porque sexo é uma coisa íntima, privada, e não é dá conta de ninguém. Não é um troféu que ele deve ostentar. Mulheres não são troféus. Sexo não é olimpíada onde ele ganha medalhas pelo número de coitos obtidos. Ele não precisa provar nada para ninguém. Que o peso da virilidade é pesado demais. Vamos tentar desassociar essa ideia da competitividade sexual entre os homens que querem provar sua macheza a todo custo.

Diga ao seu menino que ele deve acatar o não quando ouvir o não. Que consentimento não se compra. Que o sexo é algo que deve servir para satisfação de todos os envolvidos. Que se a pessoa que estiver com ele não tiver dado o consentimento expresso da vontade e do desejo dela em estar envolvida no ato, ele está cometendo uma violência. Que o universo não gira em torno do desejo dele. Que nenhum desejo é soberano à custa da violência sobre o outro.

Vamos desmistificar a ideia da “conquista”. Esse conceito parece romântico mas embute uma noção extremamente perigosa. Para todo conquistador existe um conquistado. E esta é uma relação de dominação, de subjugação do outro. Vamos ensinar as nossas crianças que sexo é fruto do desejo surgido através do feliz encontro entre duas pessoas. É decorrência de sentimentos que naturalmente surgem quando sentimos atração, temos compatibilidade e vamos nos relacionando com o outro. Que sexo não é o objetivo final do relacionamento entre um homem e um mulher, mas sim uma relação de afeto, companheirismo e amizade. Onde esse casal faz sexo um com o outro porque se deseja e porque é bom. E onde o sexo não é uma obrigação e sua falta não será o fim, porque uma relação contém inúmeros outros elementos igualmente ou muito mais importantes.

Vamos ensinar homens a verdadeiramente amar mulheres. Querê-las como amigas, companheiras, parceiras. Querer unirem-se a elas porque as admiram, e não porque elas são um corpo a mais para que eles consumam sexualmente. Só assim vamos conseguir algum avanço nesta sociedade onde sim, todo homem é um estuprador em potencial, vivemos imersos em uma cultura do estupro, então precisamos conversar sobre sexo com nossas crianças, mas precisamos deslocar toda a lógica que rege a maneira como nos relacionamos com o tema. Precisamos conversar sobre amor.

Não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”

Acho que uma das partes mais complicadas de se criar filhos hoje em dia é conseguir passar os valores de que não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”. Uma vez me perguntaram se eu deixaria meu filho sair com vestidos, unhas pintadas e coisas que são atribuídas às meninas. Eu fui bastante honesta na resposta: que dependeria. Se ele estivesse indo para algum lugar onde suas roupas fora do padrão de gênero não fossem causar grandes transtornos a ele, deixaria sim. Mas se fosse algum lugar onde ele pudesse ser fortemente rechaçado ou rejeitado, talvez eu não o expusesse, tão jovem (ele tem 3 anos e meio) a uma situação que ele não entenderia, não saberia lidar e ainda poderia magoá-lo profundamente.

E como eu lido com o desejo, muito natural, do meu filho usar coisas ditas “femininas”? Pessoalmente, eu nem ligo. Até porque ele não vê as coisas divididas dessa forma. Roupas são roupas, cores são cores, brinquedos são brinquedos. Com o tempo, inevitavelmente, ele vai ser apresentado a essas classificações arbitrárias e aí teremos um novo desafio que é diminuir o peso disso, para que ele continue se relacionando da maneira menos danosa possível com os estereótipos de gênero.

E por que meu filho não sabe o que são “coisas de meninas” e “coisas de meninos”? Porque até agora ninguém ensinou. Ele chegou até aqui sem ouvir a famigerada frase “isso não é para você”, ou “ isso é de menina”, ou “meninos fazem assim”, e sai por aí feliz na bicicleta cor-de-rosa que herdou da prima sem nenhum trauma ou dor na consciência. Assim como brinca com ela com as bonecas e com os carrinhos e com todos os brinquedos possíveis à disposição.

E aí é importante dizer que sim, é perfeitamente possível atravessar boa parte da primeira infância da educação de um filho sem ter que entrar no mérito do que teoricamente pertence ao mundo das meninas e o que pertence ao mundo dos meninos. Esse tipo de informação e instrução não representa nada além de uma limitação do universo. O que crianças precisam entender é que há coisas que são adequadas e permitidas a ela e outras que não são, que só são adequadas e permitidas quando elas crescerem. E isso já resolve muita coisa. O mundo para elas, na verdade é muito mais dividido em “coisas de crianças” e “coisas de adultos” que qualquer outra coisa. E essa é uma noção muito importante, inclusive para a segurança delas.

E que resolve muita coisa. “posso jogar Resident Evil?”, “não, isso é coisa de adultos”, “posso beber esse vinho?”, “não, você ainda é pequeno”, “posso mexer nessa faca?”, “melhor crescer mais um pouco”. Acredito inclusive que consigo manter essa lógica com adaptações até ele completar 18 anos.

Até porque, há uma infinidade de outras informações mais relevantes que uma criança deve saber desde bebê que não passam por dividir o mundo em azul e rosa. Tipo, o nome das partes do corpo. Inclusive, e principalmente dos genitais. Deve saber que não pode deixar ninguém encostar a não ser quem é o responsável por dar banho nele e higienizar. Deve saber que ele não deve encostar nos genitais de ninguém, mesmo que peçam. Que beijo na boca é coisa de adulto. Que crianças e adultos não ficam sem roupas juntos. Que ele deve pedir permissão para abraçar outras crianças caso queira e que se elas não quiserem, ele não deve insistir. Por exemplo.

E é isso, não se preocupe em antecipar-se, o seu filho vai entender os códigos. É fácil notar que o mundo é binário e ele vai se identificar ou não com um determinado grupo, e aí cabe a você apoiá-lo para que se sinta confortável e consiga expressar sua autenticidade. Porque em algum momento ele vai ser cobrado para que defenda as leis do gênero em que nasceu inserido. E se ele conseguir chegar nesse momento consciente de que essas regras não tem o menor sentido, de que ele não precisa se submeter, vai ter força para, quem sabe, realizar os enfrentamentos necessários para gente combater tanta coisa ruim que os estereótipos de gêneros nos trazem, tanto machismo estrutural. Quem sabe? São sementes que a gente planta, tentativas que nós fazemos.

Eu, como mãe feminista, realmente não tenho nenhuma garantia de que meu filho não vai ser machista. Eu não tenho ilusões de que ele será imune. Mas enquanto eu puder mostrar a ele como o mundo pode ser bem mais fácil, para todos, quando a gente não se submete a este chicote do gênero, vamos lá. É um dia de cada vez. Quem sabe a revolução não será materna?

Como meu filho aprendeu que era um menino

Sempre me perguntam como eu ensino meu filho sobre gênero. Uma boa resposta é a história sobre como meu filho aprendeu que era um menino. É muito fácil constatar que ensinamentos sobre estereótipos de gênero são absolutamente desnecessários para crianças.

Até os 3 anos meu filho não sabia “oficialmente” que era um menino. Nunca tinha surgido uma oportunidade ou a necessidade que eu lhe desse essa informação.

Vamos pensar um pouco: que diferença faz para uma criança, principalmente uma muito jovem, se ela é menino ou menina?

Uma vez, ele tinha cerca de dois anos e estava vendo um desenho aleatório na TV onde tinha um casal de gatos. Os animais eram desenhados de maneira absolutamente igual sendo diferenciados somente por um efusivo batom vermelho e um par de longos cílios (recurso usado para demarcar qual seria a fêmea). Num determinado momento, só a fêmea ficou enquadrada na tela e meu filho disse “olha o gatinho”. Meu primeiro impulso foi corrigir e dizer “é uma gatinha, ela é menina”, mas me contive. O que eu ia dizer para ele ali? Que aquela gata era fêmea porque usava batom? Que era porque tinha cílios compridos e olhos oblíquos para simular sensualidade? É isso que define uma fêmea? Batom nos lábios? Que diabos isso queria dizer? E a ausência de sentido dessa explicação fez com que meu alerta vermelho acendesse para que eu não colocasse meus pés na longa estrada do reforço dos estereótipos de feminilidade e aí eu me calei. Ele tinha 2 anos, em nada, absolutamente nada, a informação que eu ia dar espontaneamente sobre ser um menino ou uma menina, ou mesmo se os amiguinhos com que ele brincava eram meninos ou meninas faria diferença para ele.

Já nessa época eu comecei a instruí-lo sobre o próprio corpo, com noções de prevenção de abuso, ensinando o nome de todas as partes corpo, quais deveriam ter mais atenção, ser mais protegidas. Isso aumentou a consciência corporal dele e o um dia, no banho, veio a pergunta inevitável: “mamãe, cadê o seu piupiu?”. “Eu não tenho piupiu, tenho “perereca” (nos meus sonhos engajados eu planejava dizer que mulheres tem “vulva” bla bla bla, mas foi o que saiu). Meu filho fez alguns instantes de silêncio e a questão definidora, que importa, surgiu: “por que?”. “Porque eu sou uma menina. Meninas tem perereca e meninos tem piupiu”. “O papai tem piupiu?”, ele perguntou. “O papai tem piu piu.”, respondi. “O papai tem piupiu, ele é menino. A mamãe tem peleleca (sic), ela é menina!”, ele aferiu.

A partir daí seguiu-se um período entre engraçado e constrangedor porque ele passou um tempo perguntando para pessoas mais próximas se elas tinham “pinto” ou “perereca” e checando a informação sobre ser menino ou menina. E aos poucos ele passou a observar também outros caracteres secundários como presença de barba ou seios.

Isto não significa, tampouco, que eu o estava criando “sem gênero”, ou coisa parecida, isso é impossível. Crianças são bastante perceptivas e muito rapidamente ele percebeu que ele mesmo era um menino, e que o grupo de pessoas que era classificado como “menino”, a qual ele pertencia, tinha códigos próprios de comportamento e vestimenta, assim como o grupo que era classificado como “menina”. Ele aos poucos (para o bem e para o mal) vai percebendo qual é a sua “turma”.

Eu, da minha parte, sempre busquei comprar todo tipo de brinquedos e sempre privilegiei critérios como conforto e qualidade para escolha de suas roupas, por exemplo, mas — obviamente — acabo comprando suas roupas prioritariamente na seção masculina (embora ela vista feliz várias camisetas das primas). Quando a gente se esforça (e realmente demanda muito esforço, muita desconstrução pessoal) para socializar uma criança minimizando os impactos dos estereótipos de gênero, é meio assim.

Na real, a gente entende que não existe nem uma pergunta para qual a resposta seja: “porque você é menino / menina”, assim como nenhuma orientação específica a ser dada . Exceto para questões biológicas específicas. Por exemplo: “por que eu faço xixi sentada?”, “porque você é menina, tem uma vulva, e anatomicamente é mais confortável fazer assim, meninos podem fazer das duas maneiras, em pé e sentado, porque eles têm um pênis que facilita anatomicamente”. É isso. Todo o resto (“meninos não choram”, “meninas não gritam”, “meninos não brincam de boneca”, etc, etc) são estereótipos, completamente ausentes de sentido lógico, que não seja condicionar o comportamento dessas crianças para dominação/submissão.

Meu filho agora está com 6 anos e há coisas que — até agora — ele conseguiu passar em branco. O mundo dele é muito mais dividido em um mundo de crianças e adultos que de meninos e meninas. Cores, por exemplo. As preferidas dele são azul e vermelho, e ele acha rosa uma cor linda. Ele gosta de Pokemon tanto quando da Barbie Sereia (e acha o cabelo delas “lindo”). Tem vários heróis e heroínas. E uma vez eu perguntei “me diz uma coisa que seja uma coisa de menina?”, e ele respondeu: “não tem nada, só a perereca”. Eu ri. Tá eu também chorei. Porque isso é uma vitória pessoal que eu trago — até aqui. Amanhã eu não sei. É uma batalha diária. A vida está aí, socialização não é algo que a gente consiga controlar completamente. Existe o meu menino, e existe o mundo. E o mundo é patriarcal e ardiloso.

Mas nós podemos sim, ensinar a nossas crianças que elas são meninos e meninas, por um detalhe anatômico que não faz a menor diferença pra elas porque são crianças. E podemos sim poupá-las o máximo possível da socialização de gênero, minimizar este impacto enquanto conseguirmos. Deixar pelo menos a infância delas mais leve, mais rica de experiências. Porque o que gênero ensina é sobre opressão, não é sobre liberdade. É sobre meninos serem fortes e meninas serem fracas. Sobre meninos odiarem rosa — e odiarem meninas. É sobre meninas serem princesas lindas, frágeis, à espera de um menino que vai querer casar com elas. Sobre meninos serem agressivos uns com os outros. Gênero ensina sobre quem manda e quem obedece. Ensina hierarquia. E crianças são apenas crianças. Nada disso faz sentido ou faz falta pra elas. Somos nós adultos que, irrefletidamente, fazemos um esforço continuado nessa domesticaçao. Capatazes que somos, do patriarcado. Adultizando crianças, querendo transformá-las em homens e mulheres em miniatura, em hábitos, vestuário, e comportamentos.

Sexo e gênero são coisas bastante distintas que tem — propositadamente — se confundido na mente de todas. Precisamos demarcar essa diferença. Porque nosso sexo não deveria nos condicionar a nada. Não condiciona como somos, o que gostamos, sentimos, queremos. E gênero é uma opressão. É sobre cumprir um papel social baseado no seu sexo. Estereótipos de gênero são uma prisão. Vamos criar nossas crianças livres para serem o que precisarem ser para estarem felizes. É mais simples do que parece, basta tentar.

20 coisas fundamentais para se dizer a meninas

Há coisas fundamentais para se dizer a meninas durante sua socialização que certamente farão muita diferença sobre a maneira como elas irão para um mundo patriarcal que espera delas uma postura de subalternidade e submissão aos homens. Vamos ver?

1. Não existem “coisas de menina” e “coisas de menino”

Você sabia que antigamente azul é que era uma cor de menina? E que o rosa é que era uma cor de menino? Cores são apenas cores. Adultos é que inventam classificações arbitrárias que de repente mudam. Você tem o direito de escolher o que gosta e o que não gosta, entre roupas, brinquedos, o seu jeito de ser. Não é porque você não gosta das “coisas de menina”, ou prefere as tais “coisas de menino” que tem alguma coisa errada. Ao contrário. É perfeitamente normal gostar de tudo um pouco com tantas opções legais que têm por aí. Você pode correr, pular, se sujar, gritar, gargalhar, subir em coisas. Você é rápida, é esperta, e é forte. Você também pode ser uma princesa, ou uma heroína, ou o que a sua imaginação permitir. Ou brincar de casinha e comidinha. E se os meninos quiserem brincar disso com você também, que bacana! Quando todos brincam juntos é sempre muito mais legal. Também não existe “brinquedo de menina” e “brinquedo de menino”. Você pode brincar com bola, videogames, carrinhos e aeronaves. Pode brincar com super-heróis, jogos de tabuleiro, jogos de montar. Ler gibis de ação e aventura. Bonecas, jogos de cozinha, pintura também são super divertidos. Você pode gostar do que quiser, ser como quiser, e está tudo bem. Você é apenas uma menina e deve experimentar o mundo.

2. Crianças não namora

Você não tem namoradinhos. Criança não namoram. Crianças brincam e estudam. Você não precisa se preocupar com seu comportamento ou sua aparência para que alguém “goste de você e queira namorar com você”. Você não precisa ceder se algum amigo seu disser que “quer namorar com você” ou que é seu “namorado. Crianças são amigas umas das outras. Apenas isso. E adultos, de maneira nenhuma “namoram” crianças. Namoro é coisa de adultos. Há pessoas adultas que namoram e pessoas adultas que não namoram, inclusive. Quando você crescer vai gostar de alguém e vai poder namorar, se você quiser. Alguém que também goste de você exatamente como você é, te respeite, te admire e queira estar com você.

3. Ninguém pode tocar o corpo de ninguém sem consentimento

Seu corpo é apenas seu e não deve ser tocado por ninguém sem seu consentimento expresso. Você não precisa receber nem dar abraços ou beijos se não quiser. Se alguém tocar o seu corpo sem pedir sua permissão se afaste e diga “eu não quero que você me toque. Ninguém pode tocar no meu corpo sem a minha permissão”. E conte tudo para um adulto da sua confiança que possa ajudá-la com isso. E não se preocupe se o outro vai ficar “triste”. Fazer algo que você não quer só para agradar também é uma forma de abuso psicológico com você mesma. Nunca diga “sim” quando você não tem certeza absoluta do que deseja. E sempre peça permissão antes de tocar o corpo de alguém, principalmente o de outra menina. Para qualquer coisa. “Posso pegar sua mão?”, “Posso te abraçar?”. Sempre peça. E se a resposta for não: é não. Não insista.

4. Você tem o direito de dizer “não”. Use-o sem moderação.

Recusar é tão ou mais importante quando consentir. Se algo a incomoda ou a deixa desconfortável, diga ‘não’. E se alguém não estiver respeitando o seu ‘não’ se afaste e comunique outros adultos. Você não precisa se preocupar em agradar pessoas. Não precisa concordar ou consentir com algo para preservar os sentimentos de ninguém. Os seus sentimentos e a sua segurança física e emocional devem sempre vir em primeiro lugar. Você não precisa aceitar ou concordar com tudo o que dizem que você deve fazer, ser ou sentir. Principalmente se estas orientações levarem você a situações desagradáveis. Na dúvida, diga não e se proteja.

5. Proteja-se e defenda-se sempre

A primeira coisa que você levar em consideração em qualquer relação que você esteja é a sua própria integridade física e emocional. Se alguém fere seu corpo ou fere seus sentimentos, defenda-se, proteja-se, avise outras pessoas, afaste-se. Não importa se essa pessoa é um amigo, é um professor, é um de seus pais. Não aceite chantagens emocionais. Você é forte, não precisa de um homem protegendo você, e é importante que você saiba a proteger a si mesma. Que aprenda a reconhecer ocasiões mais inseguras, seja capaz de criar um círculo de confiança e estratégias de proteção para si mesma. Que cultive uma desconfiança saudável das pessoas e situações. Afaste-se sempre de pessoas autoritárias, controladoras, ciumentas e abusivas. Sempre. Nada disso é amor. Infelizmente este é um mundo muito perigoso para meninas. É um mundo onde pessoas são atacadas, assediadas, violentadas, apenas por serem mulheres. Você é uma menina forte, inteligente e sempre será amada por ser quem você é. Não aceite ser tratada por menos do que você merece. E você é uma menina fantástica que merece ser tratada com total respeito por todos. Fortaleça seu coração e aprenda a lutar.

6. Nada justifica o uso da violência

Violência é apenas violência. É injustificável. Não sinaliza que alguém é forte e sim que é incapaz de resolver qualquer questão de forma honrada, respeitosa e civilizada. É sinal de fraqueza e não de fortaleza. Se você sentir raiva, o que é normal, pode extravasar por outros mecanismos. Ferir outras pessoas é absolutamente inadmissível. E nunca, em hipótese nenhuma, admita que ninguém cometa nenhum tipo de violência contra você. Nem física, nem verbal, nem psicológica. Mesmo que chamem de amor. Mesmo que peçam desculpa. a dor existe, ela é real e você não precisa suportar nada. Defenda-se. Procure ajuda. Proteja-se sempre.

7. Você é uma criança e não uma “mocinha”

Sabemos que ser criança neste mundo é muito complicado. E que ser menina tem uma carga bastante difícil de lidar. Que os adultos cobram que você aja como um “mocinha” e exigem de você posturas que você nem entende direito o que significa. Que querem que você tenha responsabilidades, que aprenda desde cedo a arrumar, limpar, que você muitas vezes já é obrigada a cuidar de crianças menores. Que você é levada a ter um comportamento de pessoa adulta, inclusive nas roupas e acessórios que te dão. Saiba que isso é errado. Você é uma criança e tem direito a viver sua infância como uma. Tem direito a brincar despreocupadamente sem ter que cuidar de nada nem de ninguém. Tem direito a ter seu corpo de criança protegido. Este é o momento de você aproveitar, experimentando o mundo e descobrindo aos poucos o que você é, sua personalidade, seu temperamento, o que gosta ou não. Você não tem que ser nada agora exceto uma aprendiz atenta, não tem que atender expectativa de ninguém. Você ainda está crescendo, não deixe que cobranças sem sentido roubem sua infância.

8. Você deve cuidar de si mesma em primeiro lugar

É importante saber escolher, comprar e cozinhar os próprios alimentos. Cuidar da limpeza da própria roupa. Saber como manter limpa a casa onde vive. É importante saber como cuidar-se. Ninguém tem nenhuma obrigação de fazer isso por você e se um dia você estiver numa relação onde compartilha uma mesma casa essas responsabilidades devem ser divididas, portanto você deve saber executar a sua parte. Mas lembre-se sempre que cuidar de si mesma é sua principal responsabilidade e sua prioridade. Você não tem nenhuma obrigação exclusiva com o cuidado doméstico ou cuidado de outras pessoas. Você não tem responsabilidade de cuidar de ninguém além de sim mesma e qualquer relação de cuidar com a qual você vier a se comprometer pela vida deve ser muito bem ponderada e avaliada para que você esteja doando-se de maneira muito consciente, sem sentimento de culpa ou obrigação envolvido, e principalmente sem ser explorada no processo.

9. Não é a sua aparência que define quem você é

Este é um mundo que faz com que meninas se tornem muito infelizes caso não sejam vistas como “bonitas” e um tremendo esforço sempre será feito para te convencer que ser “bela” é o que há de mais importante sobre você. Só que você não é definida por como se parece. Se uma pessoa se aproximar ou se afastar de você apenas pela maneira como você aparenta e não pela maneira como você é, então ela não serve de verdade para você. Você é uma pessoa inteligente, engraçada, esperta, forte e verdadeiramente especial. E é isso que é o que verdadeiramente importa sobre você. Se alguém não é capaz de ver, valorizar e te desejar pelos motivos certos, então essa pessoa não serve para te amar. E a validação dela não significa nada. Você não existe em função de “embelezar” os ambientes onde esteja. Você não precisa se preocupar em estar o tempo todo sendo vista, analisada e catalogada… Você é uma pessoa completa e não precisa da aprovação de ninguém sobre você. Você é muito mais que algo para ser visto, admirado e elogiado em função da beleza. Você é uma pessoa completa.

10. O universo não gira ao redor do umbigo dos meninos

Muitas vezes você vai ter a impressão que tudo que existe de legal e importante no mundo é sobre e feito para meninos. São eles que estão no centro de todas as coisas que você assiste, escuta, aprende na escola. E sim, por muito tempo e ainda hoje são os meninos que protagonizam tudo mas eles não são o centro do universo. Eles não são o mais importante, meninos são apenas meninos e o mundo não gira em torno deles, por mais que possa parecer. O seu mundo deve girar em torno de você mesma porque ainda é muito difícil ser uma menina na nossa sociedade, e tudo que você vai conhecer vai tentar te convencer que você deve colocar meninos no centro e em primeiro lugar. Que meninos são mais importantes que meninas, que eles são mais fortes, especiais. Nada disso é verdade. Seja você o centro da sua vida.

11. Você não precisa disfarçar seus sentimentos

Expresse seus sentimentos. Todos eles. Principalmente os considerados “ruins”. Você tem o direito de ficar brava. Sentir-se com raiva. Todos têm sentimentos intensos e você não precisa sentir culpa por isso. Você tem o direito de expressar sua indignação. Você pode brigar sim, e falar alto, contestar, protestar. Você não precisa perdoar nada, nem ninguém se ainda não se sentir preparada. Inclusive não precisa perdoar se não quiser. Nem precisa buscar a conciliação o tempo todo. Há momentos, inclusive, em que será justamente esta energia que vai te proteger de relações abusivas. Permita-se enfurecer porque é sua fúria que vai ter proteger.

12. Você não precisa disfarçar sua personalidade

Seja educada. Educação, polidez e gentileza são virtudes importantes para todos os seres humanos conviverem em sociedade. Mas você não precisa ser simpática, ou sorridente, ou delicada, ou doce, ou cordata, ou mesmo amável se você não quiser. Você não existe em função de atender as expectativas das outras pessoas. Você não precisa agradar a todas as pessoas e principalmente você não precisa concordar com tudo que os meninos pensam apenas para parecer atrativa para eles. Você não precisa fingir que está sentindo algo que não sente, que gostou de algo que não gosta, que aceita algo que não concorda. Permita-se ser você.

13. Ame as suas amigas 

Amigas são o bem mais precioso que uma menina pode ter. Elas vão ser suas companheiras, compartilhar alegrias, tristezas, aventuras. Vocês poderão contar umas com as outras e vão viver coisas muito parecidas. Mas fique atenta porque vão de todo modo tentar te convencer que outras meninas e mulheres podem ser rivais. Vão te dizer que meninas são mais invejosas, fofoqueiras, falsas, ou fúteis. Vão criar em você um sentimento de “não ser como as outras”. Não caia nessa armadilha. Meninas são pessoas e são as melhores pessoas que você terá ao seu lado, sempre. São as pessoas que vão salvar sua vida. Não vale a pena competir pela atenção dos meninos, tire-os do centro das suas preocupações. Nenhum menino pode ser tão especial quanto a amizade das suas amigas. Homens chegam e vão embora na vida de mulheres. As amigas estarão lá por você para sempre.

14. Escolha mulheres

Existem mulheres maravilhosas por aí, que pesquisam, produzem, constroem, inventam, criam, cantam, dançam, interpretam, dirigem, coordenam, constroem, empreendem… mulheres estão por toda parte, fazendo de tudo, e se você tiver a chance, sempre escolha mulheres. Compre , assista, leia, contrate o trabalho de outras mulheres. Vote em mulheres, opte por mulheres. Não acredite se te disserem que algo feito por uma mulher é inferior, ou imperfeito. Não entre em competição desnecessária com mulheres. Coopere com elas. Una-se a elas. Privilegiar outras mulheres é fortalecer uma rede que vai fortalecer a você mesma. Metade do mundo é feito de mulheres, o que acontece se começarmos a escolher umas às outras?

15. O casamento pode ser uma armadilha para mulheres

Eu sei que tudo que você vê e tudo que te falam fazem você pensar que o casamento é a melhor coisa que pode acontecer na vida de uma menina e que quando ela se apaixona e se casa finalmente sua vida tem um “final feliz”. Mas na realidade relacionamentos são coisas complicadas, que exigem maturidade de todos os envolvidos para funcionar. E na nossa sociedade, quase sempre, o casamento é uma maneira de prender mulheres na função do cuidado da casa e dos filhos sem muita ajuda dos homens. O casamento também pode afastar uma menina se sonhos muito particulares que ela tenha porque ela será cobrada muito fortemente a dedicar-se integralmente ao “lar”. Então tenha em mente que tipo de vida e que tipo de realizações você deseja para si e como essas coisas vão combinar com uma vida compartilhada com outra pessoa, principalmente se essa pessoa for um homem. E lembre-se, não é se apaixonar, casar e ter filhos que precisa definir o objetivo da sua vida, por mais que queiram te convencer disso. Isso são coisas que acontecem ou não entre várias outras coisas que podem acontecer ou não na vida de uma pessoa. E sequer são as coisas mais importantes. O seu destino não é ser escolhida por alguém, o seu destino é escolher a você mesma e fazer o melhor que conseguir com isso.

16. A maternidade pode ser um fardo

Na nossa sociedade a maternidade pode ser (e quase sempre é) um fardo pesado para a mulher. Ser mãe não é a coisa mais importante da sua vida, não é algo que vá te completar em nada. Você vai ver e ouvir por aí que a maternidade é uma coisa sagrada, e que mães são seres especiais, mas isso é uma mentira. Ser mãe é um trabalho. E um trabalho dificílimo de realizar e que exige uma dedicação intensa e extrema e o envolvimento de várias outras pessoas. Quase não há apoio social nem institucional para as mães e o meninos não recebem a mesma pressão para assumir sua parte na responsabilidade de criar seus filhos deixando a mulher sobrecarregada. Crianças são uma responsabilidade de toda a sociedade e nenhuma mulher consegue dar conta de um filho sozinha sem abrir mão de muita coisa da própria vida. Somente com apoio é possível aproveitar bem a parte boa de ter filhos que é poder ajudar na formação de uma outra pessoa, vê-la crescer e poder curtir o amor que surge entre uma mãe e seu filho que é uma coisa bastante especial.

17. Você pode amar quem você quem quiser

Pode ser que você cresça e goste de meninos, pode ser que você cresça e goste de meninas, pode ser que você goste dos dois. E não tem nenhum problema com isso. Basicamente, de quem você gosta ou deixa de gostar, com quem você se relaciona ou não, é um assunto particular seu. Respeite seus sentimentos e desejos e não os reprima. Ainda vivemos em um mundo que tem dificuldade de aceitar todas as formas de amor. E mais, vivemos em um mundo que quer fazer parecer que meninos e meninas se amarem é a única forma de amor possível, aceitável e “normal” de existir, e isso simplesmente não é verdade. Você é uma pessoa. E pessoas se apaixonam por outras pessoas. Precisamos entender e respeitar isso. Portanto saiba que para nós não importa realmente com quem você vai se relacionar desde que isso resulte numa história bacana que faça você feliz. E lembre-se de levar essa regra com você: com quem as pessoas se relacionam não é um problema seu. Nunca desrespeite ninguém por causa disso e nem permita que outros a sua volta o façam.

18. Conheça seu corpo. E ame-o.

Conheça seu corpo. Cada pedaço dele, completamente. Ame seu rosto, sua pele, o formato do seu corpo. Não queira transformar nada. Se puder trabalhar algo dentro de você, trabalhe a aceitação. Você é ótima do jeito que você é. Sem subterfúgios. Saiba como funciona seu sistema reprodutivo, a maravilhosa máquina de gestar que você carrega. Entenda seu ciclo hormonal. Seus período fértil. Aprenda a conhecer como os hormônios te afetam, seu humor, sua libido. Nós mulheres somos cíclicas. E isso é lindo. Há todo um ciclo perfeito em funcionamento, onde cada etapa te transforma até culminar no momento da sua menstruação. É seu sangue. Seu organismo operando. Não tenha nojo do seu corpo. De nada dele. Aprenda a admirar-se no espelho. Conheça sua vulva, intimamente. Seu clitóris. Não tenha vergonha de explorar você — e apenas você — o que o seu corpo pode lhe proporcionar. 

19. Você merece ser amada

Sim, eu sei que ninguém ensina como se ama uma menina. Porque sempre parece que todos os outros são melhores, mais bonitos, mais importantes, mais valorizados. Que você só recebe atenção quando atende a um determinado tipo de expectativa que exige um preço muito alto para acatar. E que você parece sempre ter sempre que se esforçar para agradar, cuidar, resolver problemas. Isso não tem a ver com você. O mundo infelizmente manda sinais por todo o lado de que mulheres são meros objetos decorativos desimportantes. Meninas sempre são mostradas como fracas, dependentes, o trabalho das mulheres não tem visibilidade. Mas você merece ser amada. E eu não estou falando de desejo. De desejo sexual pelo seu corpo. Estou falando de amor. Amor incondicional. Que é aquele amor que não condiciona. Que te aceita exatamente do jeito que você é. Toda mulher merece ser amada assim e não deve aceitar menos que isso. Não tenha medo de ser inteira, completa, e exigir amor, cuidado, apoio, carinho, compreensão, ao invés de apenas dar. Nunca esqueça disso. Nunca aceite menos que isso.

20. Este ainda não é um mundo bom para as mulheres

Este é um mundo em que meninas ainda não são tratadas tão bem quanto os meninos. Portanto você deve estar sempre atenta para não sofrer injustiças e nem perder direitos. Deve estar vigilante para não sofrer abusos e violências. Há mulheres maravilhosas por aí brigando todo dia para tornar esse mundo um lugar melhor para meninas como você viverem. Mas por enquanto ainda é preciso tomar muito cuidado. Eu sei que o mundo não vai te tratar como você merece. Que vai tentar te obrigar a entrar num padrão de aparência física. De comportamento. Que vai tentar esmagar sua auto-estima, dizer que você não é boa o suficiente, o tempo inteiro. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer de que você é inferior aos meninos, menos especial, inteligente e poderosa que eles e que você deve obedecê-los e admirá-los. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer que as outras meninas são suas inimigas, que você deve combatê-las para agradar outros garotos. Mas eu sei também que você é uma menina única. Que você não é como todo mundo e que sua grande batalha e mostrar ao que você veio. Quem você é de verdade. Sem padrões. Sem manual de instrução a seguir. E eu sei que isso pode ser especialmente difícil porque você terá que lutar. Você nasceu uma menina e terá que lutar o tempo inteiro para ser quem você é. Saiba que você não está sozinha na sua batalha. Há outras meninas por aí, como você, preparadas. Vamos juntas.

O que é maternidade compulsória?

Você sabe o que é maternidade compulsória? Você consegue separar, no seu imaginário sobre maternidade, o que é uma necessidade sua e o que é socialização, pressão social, necessidade de adequar-se? Difícil, não é? A ideia de que somos completas apenas se parirmos, que a maternidade é sagrada, que a mulher é cuidadora, que bebês são criaturas angelicais entre outros é uma coisa tão enraizada que dificilmente conseguimos discernir quais são nossos desejos legítimos em relação a maternidade e o que é uma projeção social sobre como nós deveríamos nos sentir. E esse fenômeno, que acontece com absolutamente todas, tem nome e função: é maternidade compulsória que serve a nos manter reféns de um sistema de exploração reprodução reprodutiva.

O que significa dizer que a maternidade é “compulsória”?

Compulsório é um adjetivo com origem no Latim compellere, que significa “levar a um lugar, levar à força” — palavra formada por com-, que quer dizer “junto” e pellere, que quer dizer “guiar, levar”. O significado de “compulsório” é entendido como algo que obriga ou compele a fazer alguma coisa. Compulsório é aquilo em que há obrigação ou possui caráter obrigatório (…). Compulsório é toda força interna ou externa a uma pessoa que impele a realização de alguma coisa — o termo é mais usado para se referir às forças de ação externa, se tornando a qualidade daquilo que é feito obrigatoriamente.

O termo compulsório vem da mesma raiz que a palavra compulsão, algo imposto ou mesmo que deve ser cumprida forçosamente ou obrigatoriamente, sendo também uma tendência interior enorme por fazer algo, como, por exemplo, a compulsão por comida.

Quando usamos o termo “maternidade compulsória” para definir como a maternidade se apresenta para as mulheres estamos literalmente falando de “maternidade obrigatória”. Estamos dizendo que toda mulher é “obrigada” a ter filhos. E isso acontece de maneira subjetiva, através da nossa socialização e de maneira bem objetiva, pela impossibilidade de mecanismos que eficazmente impeçam mulheres de engravidar.

A impossibilidade de evitar uma gravidez — o jeito objetivo

A única maneira de uma mulher evitar ter filhos é usando algum método anticoncepcional. Essa possibilidade coloca todo o peso da contracepção nas costas da mulher, visto que a maior parte dos métodos foram desenvolvidos para ela utilize. Homens não foram socializados para se preocupar com a paternidade. Isso faz com que se excluam completamente do processo de contracepção. São ensinados que isso é uma responsabilidade exclusiva da mulher se abstendo de se prevenir contra gravidezes indesejadas. Se houver alguma falha, ele a culpa e simplesmente vai embora. E pior, a mulher costuma internalizar essa culpa por acreditar que realmente era dever exclusivo dela evitar a ocorrência de uma gestação. O que essa mulher não sabe é que é simplesmente impossível evitar sozinha que uma gravidez aconteça, não existe nenhum método que ofereça a ela, isoladamente, uma margem total de segurança.

Mulheres não aprendem a conhecer o próprio corpo, o seu ciclo hormonal, a entender como funciona seu sistema reprodutivo, saber quando estão ovulando. Tampouco existe informação de qualidade sobre todos os métodos contraceptivos disponíveis, seus prós, contras, eficácia, custo, efeitos adversos, forma de utilizar. O mais comum é que mulheres comprem pílulas anticoncepcionais por conta própria, ou recebam uma prescrição à revelia do ginecologista (que tampouco costuma fazer exames ou investigações mais detalhadas). E isso falando da assistência particular e de mulheres minimamente mais informadas e de maior poder aquisitivo.

O SUS distribui um número relativamente variado de métodos contraceptivos como pílula, diafragma e DIU, mas a distribuição esbarra, mais uma vez, na desinformação sistêmica. Apesar dos métodos estarem acessíveis não há orientação eficiente de como utilizá-los. Dificilmente o tema do controle reprodutivo e do planejamento familiar é abordado corretamente nas escolas, sensibilizando os jovens para a importância do seu uso correto, e para o conhecimento do funcionamento do próprio corpo.

Muitas mulheres também simplesmente não sabem que não podem ou não devem tomar remédios a base de hormônios que são os mais acessíveis. Esses remédios afetam profundamente como o organismo feminino funciona trazendo muitas vezes alterações significativas e desconfortáveis, além de casos em que o uso representa risco de doenças graves.

Além do mais, nenhum método contraceptivo existente, usado isoladamente, oferece 100% de eficácia. Nenhum. E mais, os métodos mais comuns de prevenção, a saber: pílula, camisinha, coito interrompido possuem taxas significativas de falha. Significativas.

Nos métodos cirúrgicos, que oferecem a melhor taxa de sucesso (mas não 100%, ou seja, nem vasectomia, nem laqueadura são completamente seguros), o atendimento público é demorado e burocrático. Para conseguir a esterilização cirúrgica pelo SUS é necessário ter mais de 25 anos de idade, ou, no mínimo, dois filhos nascidos vivos. O SUS também exige que um prazo de 60 dias seja respeitado entre a manifestação da vontade de operar e o ato cirúrgico em si e — a cereja do bolo — a autorização expressa do cônjuge (caso exista) para que a esterilização aconteça. A outra alternativa a isso é pagar pelo menos R$ 5000 reais por uma laqueadura em um consultório particular.

maternidade compulsória

Na prática, a maneira mais segura para evitar filhos é usar métodos combinados de barreira física, hormonal ou cirúrgica, ou seja: camisinha + pílula, camisinha + diafragma, camisinha + laqueadura + tabelinha. Camisinha sempre. Até porque você não quer engravidar, tampouco pegar alguma doença sexualmente transmissível.

E aí começa outro problema: desde quando homens estão dispostos a usar camisinha? Homens fazem de tudo para a mulher “começar a se prevenir” para que eles possam se livrar da responsabilidade do uso do preservativo. Fazer um homem usar camisinha numa relação estável é quase motivo para crise, é “prova de desconfiança”. E essa cultura que responsabiliza completamente as mulheres pela contracepção é de uma crueldade sem tamanho visto que é impossível para a mulher realizar essa tarefa sozinha. E quando ela “falha”, é culpabilizada e o filho é visto como uma punição social por causa do “erro” que cometeu, afinal “quem mandou abrir as pernas?”, “quem mandou não se cuidar?”.

E os homens são completamente excluídos dessa equação porque eles não são educados para assumirem responsabilidade sobre filhos, eles são educados para fertilizar mulheres, para “comer todas”. A função do homem é fazer sexo com o maior número de mulheres possíveis. A função das mulheres é parir e cuidar desses filhos. Essa é a armadilha que o patriarcado cria para nós.

E para completar o ciclo de impossibilidades, o Brasil é um dos países com a legislação mais rígida em relação ao aborto, que só é permitido, até a 12ª semana, em caso de estupro ou riscos de vida para o feto ou a gestante. Isso é sobre obrigar mulheres a serem mães, custe o que custar.

A socialização para a maternidade — o jeito subjetivo

Quando a menina nasce, um dos seus primeiros brinquedos (senão o primeiro) é justamente uma boneca, com quem vai realizar suas primeiras brincadeiras, possivelmente imitando sua própria cuidadora. Todas as pessoas em volta dessa criança vão se referir a essa boneca como “a filhinha dela”. Todas as pessoas vão se referir a essa menina como “mãe” dessa boneca. É a primeira função que é ensinada para uma criança do sexo feminino, pouquíssimo tempo depois dela nascer.

Dificilmente essa menina vai ver seu próprio pai dispensando tantos cuidados com ela quanto sua mãe. E ainda que seus pais não sejam os principais cuidadores muito certamente ela estará sob os cuidados de uma mulher: a avó, uma tia, as crecheiras. Se ela tiver irmãos homens, verá que eles brincam com carrinhos, bolas e nunca, ou quase nunca, são referenciados como “pai” de qualquer coisa. Muito menos de uma boneca.

Essa menina vai crescer e nos contos de fada verá que a princesa é feliz quando se casa e tem filhos com o príncipe. Ela assistirá desenhos, novelas, filmes, e em todos eles o final feliz envolve o casamento e uma barriga gestante. Vai ver por aí que entre a carreira e a família a mulher deve escolher a família. Que uma mulher bem-sucedida sem marido e filhos é infeliz. Que uma mulher solteira sem filhos está perdida, carente, desesperada.

Ela vai ouvir que a maternidade é sagrada. Que esse é o maior e mais verdadeiro amor do mundo. Que uma mulher só está completa quando tem filhos. Verá as mulheres adultas ao seu redor engravidando e festejando em público enquanto choram suas dores, dificuldades e frustrações no privado. Verá essas mulheres serem tratadas de maneira “diferente”, “especial”, por estarem grávidas e ingenuamente passará a acreditar que ser mãe realmente sacraliza. Ela será estimulada a superhomenagear a própria mãe, por sua “bravura”, “dedicação”, “cuidado”, “carinho” e será sutilmente orientada a não se importar com os atos negligentes e omissos do pai. Ela aprenderá que “mãe é mãe”, que “ser mãe é padecer no paraíso”, que “mãe é sagrada”, que “ser mãe é um dom divino”. Verá as pessoas adultas ao seu redor criticando o tempo inteiro as “mães negligentes” e começará a acreditar que a maior virtude de uma mulher é ser uma boa mãe.

Essa menina vai crescer e apesar de em toda parte ela ser bombardeada com o imaginário romântico do amor, da paixão, do casamento e da maternidade, dificilmente ela será orientada sobre sua sexualidade. Crescerá com pouca ou nenhuma informação de qualidade sobre sexo, vida sexual, relações afetivas, métodos contraceptivos, consentimento. E não, não é “todo mundo sabe disso hoje em dia” porque não se trata de saber como bebês são feitos. Se trata de conversar abertamente com essa menina sobre como são os relacionamentos heterocentrados. Sobre como os homens agem e como se proteger de verdade. Sobre conhecimento concreto e domínio sobre o próprio corpo.

Talvez essa menina ultrapasse a adolescência sem engravidar porque adiou o início da sua vida sexualmente ativa, talvez porque tenha introjetado tanto pavor de ter filhos antes de “estar preparada” que seja absolutamente rigorosa com métodos anticonceptivos. Ela vai chegar na vida adulta, ansiará por um relacionamento estável e uma vez nele começará a ser cobrada para ter filhos. Ela mesma dirá que está sentindo o seu “relógio biológico”.

Entenda: relógio biológico não existe. O nome disso é socialização. É uma vida inteira sendo ensinada, sendo doutrinada por todos os lados para a função da maternidade. Onde está o relógio biológico masculino? Está quebrado?

Mesmo que a mulher não se case, com o passar do tempo ela será cobrada para ter um filho. “Se não quer engravidar, então por que não adota?”. Não importa como, ela DEVE se tornar mãe. Nem que seja mãe de um pet. Uma vida inteira de doutrinação para que ele cuide e ame incondicionalmente outro ser humano não passam em branco para nenhuma mulher. E ela será levada a acreditar que toda mulher sem filhos possui um vazio existencial, uma vida sem propósitos, uma velhice infeliz e solitária.

E mais, mulheres ainda são levadas a acreditar que estão escolhendo esse destino, da maternidade, que realmente escolheram engravidar, ou falharam ao não se prevenir, e não são levadas a refletir sobre o que realmente constitui fazer uma escolha.

No entanto, perceba, escolher algo pressupõe eleger entre duas ou mais opções de peso equivalente, fazendo valer critérios pessoais de satisfação pessoal. Dessa forma, escolher entre entregar a carteira ao assaltante ou morrer, não é escolha. Escolher entre passar fome ou aceitar um subemprego também não. Outro cenário ilustrativo: Você entra na sorveteria, você quer sorvete, tem vários sabores. Todos parecem saborosos. Você indica que quer o de chocolate. Fez uma escolha.

Agora, se, hipoteticamente, você passou a sua vida inteira ouvindo que sorvete de chocolate é que é o melhor, que você só deveria ser tomar sorvete de chocolate e que se você não tomar sorvete de chocolate é uma péssima pessoa, que você só será uma pessoa completa quando tomar sorvete de chocolate. Se você fosse repudiada ao dizer que quer tomar um sorvete de outro sabor… será que poderíamos afirmar que tomar sorvete de chocolate é um desejo legítimo seu? Que é algo que você realmente quer e que está escolhendo?

Mulheres são induzidas o tempo inteiro a acreditar que estão realmente no controle de suas próprias vidas. Naturalizam toda pressão e toda a opressão que sofrem desde o nascimento. Vivem tão completamente submergidas num estado de permanente coação que sequer conhecem ou reconhecem uma situação em que possam realizar escolhas legítimas sobre si mesma. E essa falácia liberal da escolha é importante para manter mulheres permanentemente culpadas por tudo que acontece em suas vidas e para que não reconheçam quem é o verdadeiro responsável: o sistema machista e patriarcal em que estamos inseridas.

maternidade compulsoria

É possível dizer que aquela mulher que passou toda sua vida ouvindo que ser mãe é o ápice da própria existência; que cresceu vendo todos os modelos de como uma mulher deve ser necessariamente passando pela experiência da maternidade como redenção; que sabe que vai ser repudiada, questionada, criticada caso recuse a ideia de ser mãe; realmente escolheu gestar? Com todo o cenário que envolve a questão da maternidade, é possível separar o que é realmente desejo pessoal pleno do que é socialização para ser mãe?

Escolher pressupõe opções equilibradas. Quando as opções são ser uma pária social ou ceder a toda a pressão que a mulher sofre desde o nascimento é escolha? Quando as possibilidades disponíveis para garantir que a escolha de não ser mãe não são cem por cento seguras, quando não há NENHUM dispositivo que realmente impeça uma gravidez, quando não é possível interromper uma gestação não planejada, a maternidade é uma escolha?

Quantas mulheres realmente podem se dar ao luxo de sentir que escolheram ser mães? Que não se sentiram pressionadas pela família, pelo companheiro, pelo tal “relógio biológico”? Que não foram impelidas a alcançar o pseudo status de importância e “divindade” que atribuem às mães? Mulheres que engravidaram por estarem completamente mal orientadas sobre o funcionamento do próprio corpo, dos contraceptivos disponíveis e que carregavam sozinhas o fardo da contracepção que FALHA se não for realizado pelo casal conjuntamente?

Mulheres não “escolhem” ser mãe. Isto é imposto como o único destino digno possível para a vida delas. E um dia elas simplesmente atendem a essa profecia auto-realizável. Seja conscientemente ou não. Isso é maternidade compulsória. O que é facultativo, na nossa sociedade, é a paternidade.

20 coisas que você deve começar a dizer ao seu menino

Há algumas coisas que você deve começar a dizer ao seu menino durante sua socialização que certamente farão muita diferença sobre a maneira como eles irão para um mundo patriarcal que espera delas uma postura de dominação e violência contra mulheres. Vamos ver?

1. Não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”

Você sabia que antigamente rosa era uma cor de menino e que o azul é que era uma cor de menina? Cores são apenas cores. Adultos é que inventam classificações arbitrárias que de repente mudam. Você tem o direito de escolher o que gosta e o que não gosta, entre roupas, brinquedos, o seu jeito de ser. Não é porque você não gosta das “coisas de menino”, ou prefere as tais “coisas de meninas” que tem alguma coisa errada. Ao contrário. É perfeitamente normal gostar de tudo um pouco com tantas opções legais que têm por aí. Se meninas gostam de bola, gibis, videogames, carrinhos e aeronaves, são boas em jogos de tabuleiro, jogos de montar, por que você não pode se divertir com bonecas, jogos de cozinha, pintura e tudo mais? E brincar de casinha, comidinha ou princesas é super legal sim. Se você pode brincar com tudo, por que brincar só com a metade? Não faz sentido não é mesmo? O bacana é poder todo mundo brincar junto. Meninas podem correr, pular, se sujar. Elas não são mais lentas ou mais frágeis. Excluir meninas das brincadeiras só faz com que não se aproveite toda a diversão possível. Meninos e meninas são crianças e não há diferença nenhuma entre vocês que seja importante.

2. Crianças não namoram

Você não tem” namoradinhas”. Crianças não namoram. Crianças brincam e estudam. E você não precisa se sentir coagido quando disserem que você tem que conquistar as meninas da escola. Adultos podem ser muito inconvenientes. Você não precisa ceder se alguma coleguinha disser que “quer namorar com você” ou que é sua “namorada”. Crianças são amigas umas das outras. Apenas isso. E adultos, de maneira nenhuma “namoram” crianças. Namoro é coisa entre adultos. Há pessoas adultas que namoram e pessoas adultas que não namoram, inclusive. Quando você crescer vai gostar de alguma pessoa e vai poder namorar com ela. Uma pessoa de cada vez. Porque namorar é ter compromisso com o sentimento da outra pessoa e isso deve ser sempre respeitado.

3. Ninguém pode tocar o corpo de ninguém sem consentimento

Seu corpo é apenas seu e não deve ser tocado por ninguém sem seu consentimento expresso. Você não precisa receber nem dar abraços ou beijos se não quiser. Se alguém tocar o seu corpo sem pedir sua permissão se afaste e diga “eu não quero que você me toque. Ninguém pode tocar no meu corpo sem a minha permissão”. E conte tudo para um adulto da sua confiança. E sempre peça permissão antes de tocar o corpo de alguém, principalmente o de outra menina. Para qualquer coisa. “Posso pegar sua mão?”, “Posso te abraçar?”. Sempre peça. E se a resposta for não, é não. Não insista.

4. Quando alguém diz “não”, é não. Sempre.

Quando uma menina diz “não”, ela realmente está querendo dizer “não”. Se ela ficar em silêncio e não disser nada, também considere como um “não”. Se ela disser “talvez”, na dúvida, igualmente será um “não”. Não insista. Sempre garanta que as meninas estejam confortáveis e que estejam consentindo nas suas ações para com elas. É ruim quando não podemos fazer algo que queremos, eu sei. Mas acredite, a frustração passa e você sobreviverá. Meninas não devem nada a você só porque você quer e elas tem o direito de proteger-se. Respeite se elas tiverem medo ou desconfiança. Isso não é sobre você é sobre a experiência de mundo delas. Escute-as, aprenda e respeite se elas forem incapazes de confiar em você. Não é pessoal.

5. Defenda meninas

Meninas não são mais fracas, ou mais frágeis, ou incapazes de proteger-se mas tem um mundo absolutamente violento contra elas. E precisam de apoio porque alguns meninos crescem e tornam-se homens verdadeiros predadores , perseguindo-as, machucando-as de muitas maneiras. Então fique alerta, se você vir alguma menina em dificuldades, seja qual for, ajude-a. Isso vai significar muitas vezes ir contra os seus amigos. Pode significar muitas vezes que você vai estar sozinho contra o seu próprio grupo. Mas significa também que você não estará compactuando com toda a violência que homens comentem contra meninas e mulheres. Defenda meninas pelo motivo certo. Não porque “você é homem” e deve protegê-las porque elas são “frágeis”, mas porque você é uma pessoa que sabe que esse grupo está vulnerável a ataques e precisa de toda ajuda possível.

6. A violência não é um recurso válido

Violência é apenas violência. É injustificável. E não só violência física, mas também a verbal, psicológica. Não sinaliza que você é forte e sim que você é incapaz de resolver qualquer questão de forma honrada, respeitosa e civilizada. É sinal de fraqueza e não de fortaleza. Eu sei que as pessoas ao seu redor estão o tempo inteiro querendo que você se mostre “forte” e “bravo”, e que parecem admirar quem é agressivo e violento, mas isto está profundamente errado. Não devemos nunca admitir que ferir outras pessoas é uma hipótese viável. Violência só traz sofrimento. Se você sentir raiva, o que é normal, pode extravasar por outros mecanismos, mas a sua raiva não te dá o direito de agir violentamente. E agir sem violência não te torna um “covarde”, te torna uma pessoa boa. E também nunca admita que ninguém cometa nenhum tipo de violência contra você. Nem física, nem verbal, nem psicológica. Defenda-se. Procure ajuda. Proteja-se sempre.

7. Você é um menino, não um homem

Sabemos que ser criança neste mundo é muito complicado. E que ser menino tem uma carga bastante difícil de lidar. Que os adultos cobram que você aja como um “homem” e exigem de você posturas que você nem entende direito o que significa. Mas se você se sentir ameaçado ou coagido, seja por qualquer motivo, não guarde segredo. Conte conosco. Nós sempre acreditaremos em você e vamos ter proteger. Nós não queremos que você “aja como um homem”, isto é uma bobagem. Queremos que você seja criança, experimentando o mundo e descobrindo aos poucos o que você é, sua personalidade, seu temperamento, o que gosta ou não. Você não tem que ser nada agora exceto um aprendiz atento, não tem que atender expectativa de ninguém. Você ainda está crescendo, não deixe que esta cobrança sem sentido te defina.

8. Saiba cuidar de si mesmo

É importante saber escolher, comprar e cozinhar os próprios alimentos. Cuidar da limpeza da própria roupa. Saber como manter limpa a casa onde vive. É importante saber como cuidar-se. Ninguém tem nenhuma obrigação de fazer isso por você e se um dia você estiver numa relação de casamento essas responsabilidades devem ser divididas, portanto você deve saber executar a sua parte. Eu sei que você pode se sentir tentado a achar que meninas é que são responsáveis pelas tarefas cotidianas e domésticas, porque é muito do que você vê em toda parte. Mas isso não é correto e nem justo. Talvez você encontre meninas que acreditem que é obrigação delas fazer as coisas por você. Não permita isso, isso é exploração. A verdadeira autonomia tem a ver com você ser capaz de cuidar completamente de si sem transferir essa responsabilidade para ninguém, muito menos para mulher alguma. Responsabilize-se e aprenda a cuidar de si mesmo.

9. Meninas não são definidas por como se parecem

Meninas são inteligente, espertas, engraçadas, amigas, divertidas. Tem todas as qualidades e defeitos que qualquer pessoa tem. Meninas são pessoas. Amigas, companheiras de aventuras. A aparência delas não é importante. Ser bonito ou ser feio não é a principal qualidade de ninguém. E a aparência de uma menina não é um assunto que lhe diga respeito. Assim como as roupas que ela veste. Meninas não existem para serem objetos decorativos do ambiente. Se ela é alta, baixa, gorda, magra, branca, negra, realmente não é da sua conta. Nada disso define quem uma menina é. Eu sei que você será bombardeado com imagens e estímulos que vão te fazer cobiçar meninas de um determinado padrão, e que você vai aprender que o corpo delas é o mais importante a ser desejado. Mas focar nisso fará apenas que você deixe de se concentrar na parte mais importante de qualquer pessoa que é sua personalidade, inteligência, ideias, e a maneira como essa pessoa consegue fazer você se sentir com o jeito que ela tem. Meninas são pessoas e não coisas. Respeite-as sempre como o ser humano completo que elas são.

10. O universo não gira ao redor do seu umbigo

O mundo vai fazer você pensar que está no centro do universo. Tudo o que você lerá, assistirá, ouvirá falar, tem a ver com pessoas como você. Outros meninos. Suas conquistas, suas descobertas. Você verá outros homens em cargos importantes, vivendo aventuras, protagonizando por toda parte. Sim, é muito fácil acreditar que tudo é sobre você, seus sentimentos e suas possibilidades. Mas não é. Mulheres não possuem o mesmo status que os homens porque elas foram proibidas por muito tempo de fazer as mesmas coisas que os homens sempre fizeram. E com muita luta elas buscam ocupar espaços na sociedade em que vivemos. Então entenda que você não é melhor, nem especial, nem mais importante. Você apenas possui uma coisa chamada privilégio, que faz com que você seja tratado de forma melhor por todos simplesmente porque nasceu um menino.

11. Você não precisa disfarçar seus sentimentos

Nós somos responsáveis por lidar com nossas próprias emoções e nosso grande desafio é conseguir nos conhecer para que elas não nos levem a tomar más decisões. Somos pessoas, falhamos, estamos aqui aprendendo uns com os outros a sermos pessoas melhores. Não tenha medo de expor seus sentimentos. Converse, entenda o que é tristeza, alegria, raiva, dor, angústia, medo, aprenda a reconhecer isso dentro de si. Seja autêntico e honesto consigo mesmo. Você não tem que provar nada para ninguém escondendo ou fingindo seus sentimentos. Você não precisa substituir sua dor, sua confusão, tristeza, pela raiva cega apenas porque esse é o único sentimento desejado em meninos. Deixe sua sensibilidade, delicadeza, amabilidade e gentileza transparecerem, não significa que você é nada, apenas que é uma pessoa empática e muito bacana. Fragilidade não é defeito. Sensibilidade também não. Muito pelo contrário. Nos dias de hoje, essas características são fundamentais pra gente viver juntos em sociedade.

12. Você não precisa disfarçar sua personalidade

Seja educado. Educação, polidez e gentileza são virtudes importantes para todos os seres humanos conviverem em sociedade. Mas você não precisa fingir ser mais extrovertido, ou firme, ou ativo, ou viril do que você é. Você não tem que atender as expectativas de ninguém mostrando ser alguém que você não é. Você não precisa “agir como um homem”, afinal o que isso significa? Você é um menino. Uma criança. Uma pessoa em formação. Você não precisa se preocupar com nada além de aprender sobre o mundo, se divertir, brincar, e não tem que provar nada para ninguém. Você é amado exatamente do jeito que é e será amado sempre. Ninguém espera que você seja nada além de uma pessoa feliz que consiga viver na sociedade respeitando suas regras.

13. Saiba escolher seus amigos

Este é um mundo especialmente difícil para um menino viver em grupo. Os outros garotos vão impor regras de comportamento bastante equivocadas para que você seja aceito entre eles. Eles podem pedir que você maltrate outras pessoas, especialmente meninas. Vão incentivar você a provar sua “macheza” demonstrando uma abordagem profundamente abusiva para com o corpo e o espaço delas. Eles vão incitar você a humilhar e até agredir outros meninos que não se mostrarem tão “machos”. Vão querer que você demonstre “força” sendo agressivo com os outros e vão premiar esse comportamento fazendo você se sentir muito querido e admirado. Este é um preço que não vale a pena pagar, acredite. Saiba escolher amigos que prezem pelos mesmos valores que você e não tenha medo de afastar-se daqueles que comportam-se com agressividade e violência. Existe sim o que é o certo e o que é o errado. E maltratar pessoas certamente é uma coisa errada, por mais que isso seja exaltado em certos grupos. E não tenha medo de confrontar comportamentos dos seus amigos que você sabe que são inadequados. Afinal, de que lado você quer estar? Que tipo de garoto você quer ser?

14. Priorize mulheres

Existem mulheres por aí, que pesquisam produzem, constroem, inventam, criam, cantam, interpretam, escrevem. Eu sei que você está completamente acostumado a só ver homens por toda parte como protagonistas a ponto de acreditar que o mundo somente foi realizado por eles. Eu sei que tudo que você aprende sobre meninas é que elas são inferiores a você, mas isso é não é a verdade. A história é contada pelos vencedores e todo o legado das mulheres foi usurpado. Suas conquistas e descobertas foram apropriadas ou simplesmente escondidas. Muito do mundo que conhecemos foi realizado também graças a muitas mulheres que nos antecederam tendo o triplo de dificuldade que qualquer homem porque tiveram que enfrentar muita resistência. Portanto seja um aliado, priorize mulheres. Compre, assista , leia, contrate o trabalho de outras mulheres. Não acredite se te disserem que algo feito por uma mulher é inferior, ou imperfeito. Não boicote, desvalorize ou subestime o trabalho de mulheres. Coopere com elas.

15. Tenha responsabilidade emocional

Você vai ser estimulado a se relacionar com o maior número de pessoas que conseguir e ao mesmo tempo, como se isso provasse que você é uma pessoa muito poderosa. E a pressão pode ser tão forte que você se sentirá frustrado e rejeitado caso não consiga concretizar esse tipo de comportamento. Não caia no erro de assumir o papel de caçador e tratar os outros como se fossem uma caça. Permita-se viver boas histórias. Histórias que você gostaria de recordar com carinho no futuro. Relacionamentos são coisas complicadas que exigem dedicação, comprometimento e honestidade. Não tenha medo de ser verdadeiro e expor seus sentimentos. Seja honesto sempre. Aprenda a lidar com o fato de que algumas pessoas vão querer estar com você e outras simplesmente não vão querer, e tudo bem por isso. Ninguém te deve nada. Não te devem carinho, atenção, afeto. Não te devem cuidado. Não são sua propriedade. Ninguém tem obrigação de gostar de você ou de estar com você. E você deve respeitar e aceitar isso. E deve também respeitar o sentimento de quem se afeiçoar a você, não usando isso a seu favor. O nome disso é responsabilidade emocional.

16. A paternidade é um compromisso intransferível

Criar uma criança para este mundo é uma das coisas mais importantes que uma pessoa pode fazer. Embora você possa ter a percepção que cuidar de bebês é um assunto de mulheres, esta é uma tarefa também de homens. E se um dia você quiser viver a experiência de ter um filho saiba que esse é um compromisso irrevogável e intrasferível, da qual não podemos fugir. Ser pai é para sempre e um filho é uma coisa muito séria, é um ser vulnerável que estará contando com sua presença, apoio, cuidado e amor. E essa experiência pode ser incrível sim porque é realmente uma grande responsabilidade criar pessoas para este mundo.

17. Você pode amar quem você quiser

Pode ser que você cresça e goste de meninas, pode ser que você cresça e goste de meninos, pode ser que você goste dos dois. E não tem nenhum problema com isso. Basicamente, de quem você gosta ou deixa de gostar, com quem você se relaciona ou não, é um assunto particular seu. Respeite seus sentimentos e desejos e não os reprima. Ainda vivemos em um mundo que tem dificuldade de aceitar todas as formas de amor. E mais, vivemos em um mundo que quer fazer parecer que meninos e meninas se amarem é a única forma de amor possível, aceitável e “normal” de existir, e isso simplesmente não é verdade. Você é uma pessoa. E pessoas se apaixonam por outras pessoas. Precisamos entender e respeitar isso. Portanto saiba que para nós não importa realmente com quem você vai se relacionar desde que isso resulte numa história bacana que faça você feliz. E lembre-se de levar essa regra com você: com quem as pessoas se relacionam não é um problema seu. Nunca desrespeite ninguém por causa disso e nem permita que outros a sua volta o façam.

18. Entenda como os corpos funcionam

Conheça seu corpo. Cada pedaço dele, completamente. Aprenda como ele funciona. Aprenda onde dói, onde formiga, onde faz cócegas, onde relaxa, onde é muito bom. E aprenda sobre o corpo das meninas. O que há de igual e o que há de diferente. Saiba que meninas quando crescem possuem tantos pelos quanto você e que isso é tão natural nelas quanto é em você. Meninas tem cheiros, fluidos, gases, como você. Mais semelhanças que diferenças. Aliás, conheça a fundo as diferenças. Saiba como funciona seu sistema reprodutivo, e como funciona o sistema reprodutivo delas. Saiba que meninas são cíclicas, menstruam, entenda como e porquê isso acontece e como isso é fantástico. E saiba que acima de tudo que o corpo, qualquer corpo, não te pertence, é inviolável e merece absoluto respeito. Você vai sempre ser ensinado que o sexo é uma parte muito importante da sua vida e que você deve se preocupar com isso talvez mais do que você gostaria. Respeite a si mesmo, seu tempo, seus processos

19. Aprenda a amar mulheres

Eu sei, ninguém te ensinou como se ama meninas. Em toda parte você só escuta que elas são chatas, inferiores, frágeis. Que são fúteis, burras, só se interessam por coisas superficiais. O que você vê na televisão é que elas só servem para decorar o ambiente sendo belas. Que elas não servem para ser admiradas como pessoas, mas sim como um objeto bonito. Que elas se dividem entre as que vão te amar e servir e as que vão te rejeitar e fazer sofrer. Que elas devem cuidar de você não importa o que você faça. Eu sei que é difícil amar essa imagem que te vendem de como as meninas são. Você aprende que mulher é um xingamento não é? Te chamam de “menininha” quando querem te diminuir. Só que nada disso é verdade. Meninas são pessoas. E pessoas maravilhosas, inteligentes, cheias de particularidades fascinantes. E você deve amá-las incondicionalmente. Não por sua beleza, ou por desejo ao seu corpo, ou por ser cuidado, ou para ter alguém para te servir. Mas por elas serem… pessoas. Como você. Cheias de particularidades. Defeitos e qualidades. Pessoas que serão suas amigas, companheiras de trabalho, de diversão, e de aventuras. Te ensinar a odiar mulheres é um projeto que você deve recusar. Desconfie de qualquer proposta que coloca mulheres numa posição inferior.

20. Este ainda não é um mundo bom para as mulheres

Este é um mundo em que meninas ainda não são tratadas tão bem quanto os meninos são tratados. Portanto você deve estar sempre atento para não cometer injustiças e nem retirar direitos das meninas. Deve estar vigilante para não cometer abusos e violências. Há mulheres maravilhosas por aí brigando todo dia para tornar esse mundo um lugar melhor para meninas viverem. Não colabore para uma cultura que as obriga a cumprir um padrão de aparência física e comportamento só para agradar você e não seja mais um a tentar esmagar a autoestima delas, fazendo-as pensar que não são boas o suficiente. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer de que você é superior às meninas, mais especial, inteligente e poderoso. E que meninas devem obedecê-lo, admirá-lo e servi-lo. Que você verá meninas competindo pela sua atenção e isso vai fazer você se sentir único. Mas resista aos seus privilégios da maneira que puder porque são eles que tornam o mundo um lugar muito perigoso para meninas. Muitos meninos crescem e se tornam homens que perseguem, assassinam, violam, e fazem muito mal para as mulheres. Você não precisa se tornar parte desse problema. Você é um menino bom. Você pode se tornar um homem bom.

Rivalidade feminina: dividir para conquistar

Há um tipo de amor que só uma mulher pode oferecer, e que no entanto pouquíssimas vezes conseguimos acessar. Nossa socialização é perfeitamente moldada para nos vermos como inimigas, nunca aliadas, e isso é providencial para que não consigamos nunca nos unir em função de lutarmos juntas. A principal estratégia do patriarcado é fomentar a rivalidade feminina: dividir para conquistar.

A cruel competição por atenção masculina

Nascemos e somos impulsionadas a buscar aprovação e aceitação masculina para nos validar enquanto seres humanos perante a sociedade (“finalmente arranjou um marido”) e para cumprir nosso destino social imposto de procriar a espécie (“uma mulher só é completa quando se torna mãe!”). Somos doutrinadas a atrair e conquistar um macho que nos valide e nos fecunde (“a um casamento sem filhos falta alguma coisa!”) com a vã promessa de sermos transportadas para uma vida de conto de fadas (“e eles viveram felizes para sempre”).

Para alcançar este objetivo, “conquistar” — portanto casar — com um homem e ter filhos, que é o único objetivo absolutamente definido e completamente socialmente aceito para uma mulher, é necessário basicamente um único pré-requisito básico: ser bela.

Ser bela, a maldição de toda mulher, desde o nascimento (“mas que linda é a princesinha, parece uma boneca”; “coloca o brinquinho pra ficar bonita”; “e esse laço, pra ficar bonita”; “esse vestido, fica mais bonita”). Bonita, bonita, bonita, bonita, bonita. Seja bonita, mulher.

Desde crianças, não somos elogiadas, via de regra, pela nossa inteligência, pelo nosso bom humor, pela nossa perspicácia, independência ou engenhosidade. É o nosso cabelo, sorriso, olhos, pele, e até características que nunca deveriam ser levadas em conta em um bebê (“nossa, que perninha grossa, vai dar trabalho”) que entram na lista do que é digno de nota para ser elogiável. A “boquinha”, o “narizinho”, “vai ter um cabelo bonito”, “menina bonita não chora”, “sua feia”, “não come tanto, vai engordar, ninguém vai te querer”, “cabelo ruim”. Feia, feia, feia, feia. Não seja feia. Ou vai ser rejeitada. A sociedade vai te rejeitar, criança, menina feia. Porque você não é um projeto de menina bonita. Feita para atrair, conquistar um macho. Procriar.

Inteligência? Equilíbrio? Resiliência? Caracteres secundários. Sempre precedidos por uma conjunção que explicita muito bem o seu valor pois “não é bonita ‘mas’ é inteligente ou “é bonita e ‘ainda’ é inteligente”. Nenhum homem fala pra outro homem que a mulher que ele está saindo é “super legal”: Ela é “gata”, “gostosa”, “mulherão”.

Você pode até dizer que beleza é subjetiva. Mas não é. Toda mulher sabe bem. É muito claro quem é bonita e quem não é. Objetivamente. Está estampado em todas as capas de revista, em todos os horários da programação da TV, no cinema. Há instruções bem definidas para todos sobre como a mulher bela deve parecer. E os homens sabem muito bem como aumenta o seu capital social perante seus pares quando estão com uma “mulher bonita” ao lado. Não à toa, homens idosos, ricos e poderosos, compram a beleza e a juventude de mulheres para desfilarem status.

E às mulheres, o que resta? Uma vez que a beleza que é vendida para que seja alcançada é inalcançável? Competir umas com as outras (“espelho, espelho meu, existe alguém mais bela que eu?”). Competem ferozmente para serem as mais belas, até porque sua estima nunca está bem construída. Mesmo a mais bonita é ensinada a sequer se reconhecer bela, para permanecer frágil e não usar sua beleza como arma.

Toda mulher é ensinada a nunca se sentir boa o suficiente. Temos tanta disforia que nem nomeamos, é nossa velha companheira, desde sempre. Pergunte a uma mulher o que ela não gosta no próprio corpo, o que ela mudaria. Ela dirá “tudo”, ou quase tudo. Somos ensinadas a odiar nossos corpos e compelidas a modificá-los sempre. Em nome de uma beleza cruelmente esculpida em parâmetros inatingíveis com o objetivo se sermos eternos objeto do desejo masculino.

Competimos umas com as outras, sofremos, odiamos nossos corpos, em nome de sermos objetos sexuais. Na infância, doutrinadas para sermos belas. Na adolescência, jogadas na arena da validação de nossos corpos púberes.

Compete-se com as meninas que antes eram amigas de infância e brincadeiras por causa de outros garotos. Garotos que são educados a avaliar mulheres por sua beleza e disponibilidade sexual. Que fazem listas das mais belas. Das gostosas. Das “fáceis”. Que filmam as calcinhas das meninas às escondidas e compartilham às risadas. Que fotografam suas experiências sexuais e expõem como um troféu. Que atraem meninas dizendo “você é diferente”, “você não é como as outras”, “você é especial”.

Meninas que aprendem que “as outras meninas são chatas”, que “mulher tem muito mimimi”, que “mulher é tudo falsa, se você der mole elas roubam seu namorado”, que “mulher se arruma para competir com as outras”. Meninas, quando não “belas”, que aprendem a desprezar as outras meninas para serem validadas no grupo dos meninos como “uma garota muito legal”, que “nem parece mulher”.

Garotas que não conseguem confiar em ninguém. Porque não conseguem conversar com a mãe. Porque não aprenderam a confiar em outras meninas. Porque não tem com quem compartilhar seus medos, temores, experiências, e passam por isso sozinhas. Socializadas para se isolarem. Não trocarem experiências entre si. Não se solidarizarem. Não se ajudarem. Porque “mulher fala demais”.

Garotas que acabam tendo suas primeiras experiências com outros homens sem nenhuma rede de apoio para entender se estão num relacionamento saudável. Se estão tendo experiências sexuais plenas. Que acabam completamente reféns de um relacionamento porque “estão amando” e sentem que finalmente estão recebendo o combo prometido: aceitação e validação de um macho. Amor. Quem sabe casamento e filhos?

Quantos relacionamentos abusivos acontecem porque um homem olha nos olhos de uma mulher e diz que ela é especial? Que é só dele? Que juntos viverão felizes para sempre? Que finalmente fez essa mulher se sentir aceita, desejada, escolhida, validada, finalmente “completa”?

Nós mulheres somos socializadas para odiarmos umas às outras. Porque a outra mulher é uma competidora em potencial pela atenção e validação social que nos ensinaram que deveríamos receber. Sendo belas. Sendo objetos sexuais.

É assim que o patriarcado atua. É assim que patinamos e somos massacradas. Todos os dias.

Do amor que só uma mulher pode oferecer

Precisamos aprender a amar de verdade outras mulheres. De verdade. Compartilhar intimidade, nossos segredos, nossas dores. Nossas dores são tão iguais! Tão semelhantes. Assim como nossas alegrias. Nossos corpos, nossa socialização. Tantas cicatrizes vindas do mesmo agressor.

A maternidade, às vezes, te oferece esse possibilidade de ponto de encontro. Existe uma intersecção nas experiências de gestar, parir, alimentar, cuidar de uma criança, que te aproxima de outras mulheres. Embora mesmo na maternagem sejamos impelidas a competir, há um olhar de compreensão que só uma mãe exausta tem para outra mãe exausta que pode abrir uma comporta reprimida de afeto que só uma mulher consegue oferecer a outra mulher.

Sim. Há uma qualidade de afeto que só uma mulher pode oferecer a outra mulher. É aquele afeto de quem carrega dores muito semelhantes pela vida. De quem nasceu, cresceu, foi socializada, e foi tratada como mulher a vida inteira. Para o bem e para o mal. Há um lugar de conforto e carinho, de mulheres que choram juntas, que se entendem, se confortam, se perdoam. Que vertem sangue, leite, lágrimas. Que quando começam, que quando se permitem confiar, quando se permitem se amar, se sentem acolhidas. Se sentem em casa.

Não existe lugar mais solitário para uma mulher que na maternidade. Talvez por isso se abra essa janela de oportunidade. De receber outras fêmeas, de falarem de suas crias, lamberem suas dores. E quando isso acontece as coisas ficam menos sombrias. Porque quando mulheres se reúnem, e se amam, elas se fortalecem.

Há mulheres incríveis por aí. Maravilhosas, inteligentes, dedicadas. Com tanta coisa a ensinar. Mulheres não são falsas, nem fúteis. Ou estão espreitando para roubar seu homem. Elas estão ali sobrevivendo. Com histórias tão duras. Com tanta força, tanta coragem, tantas experiências incríveis de como conseguem permanecer inteiras numa sociedade que nos massacra, nos pisoteia. Mulheres resistem.