Como a educação machista tritura crianças

Nossa sociedade prega uma educação machista que tritura crianças. Já reparou que quando queremos que alguém seja forte, decidido, corajoso nós dizemos: “seja homem!” e quando queremos insinuar que alguém é fraco, frágil, medroso, vulnerável, dizemos “é uma mulherzinha!”? Que a mulher sempre é representada como uma vítima, como objeto de disputa ou conquista, alguém que precisa ser salva, alguém que causa problemas, enquanto o homem chega e resolve tudo (normalmente com bastante violência?). Que “mulher no volante, perigo constante”, “só podia ser mulher”, “lugar de mulher é em casa com os filhos”, “mulher não nasceu para comandar”, “mulher fala demais”, “mulheres são invejosas”, “mulheres são muito fofoqueiras”, “mulher demora demais para se arrumar”, “mulher é tudo fresca”, “mulheres são vaidosas”, “mulher tem que se cuidar”, “mulher tem que cuidar da casa”, “a responsabilidade com os filhos é da mulher”, “mulher não tem cabeça para essas coisas”, “homem não gosta de mulher inteligente”, “homem não gosta de mulher independente”, “mulher provoca”?

E o homem? “Homem é assim mesmo”

Isso são estereótipos de gênero reforçando a ideia de que mulheres são seres inferiores aos homens.

E o cruel disso tudo? Já dissemos. Estereótipos são expectativas, não expressam a verdade de um indivíduo. Todas as características que citamos na verdade podem ser de qualquer pessoa, não escolhem em que sexo biológico vão se manifestar. “Delicadeza”, por exemplo, é um atributo. Que mulheres podem ter. Ou não. E homens também. E tudo bem.

A grande questão é que tudo isso está tão intrinsecamente arraigado na nossa cultura e nos é ensinado a todo momento e há tanto tempo que passamos a acreditar que é de fato REAL. Passamos a acreditar que as pessoas de fato SÃO os seus estereótipos de gênero.

A maioria das mulheres hoje, quando engravida, é estimulada a esperar saber o sexo da criança para comprar todo o enxoval de acordo com uma determinada cor que é usada como um marcador para o sexo biológico do bebê.

E por que é tão importante saber se o bebê é menino ou menina e informar isso para a sociedade? Porque ferimos nossas bebês, furando suas orelhas, pendurando acessórios na sua cabeça, para que não se corra nenhum risco do seu sexo ser confundido? Por que as pessoas ao invés de perguntar o nome da criança primeiro, costumam perguntar seu sexo? Que diferença faz para adultos a genitália de um bebê?

menino ou menina? Como saber sem dar um colorido né?

E eu respondo: é importante saber o sexo daquela criança para que desde cedo já fique muito claro para a sociedade qual o clube (feminino ou masculino) a que ela pertence. E para que ela seja tratada, educada e instruída de acordo com as regras do seu estereótipo de gênero. E que ache que aquilo tudo é natural, nasceu com ela.

Você nunca reparou como o tratamento do bebê muda, a partir do momento em que você informa qual o sexo? (“ que princesinha LINDA!”, “que garotão FORTE!”)

E esse “treinamento” é bastante limitador e cruel. Meninos e meninas vão ser ensinados a se sentirem, serem e se comportarem de acordo com as expectativas do seu gênero, desde bebê, de forma sutil ou bem direta.

Fábrica de heróis

Meninos vão ser inseridos na cultura dos “heróis”, dos “campeões”, dos “guerreiros” (que já trazem embutidos os valores de força, coragem, ousadia, rapidez, e agressividade e violência). Verão a si mesmos representados como protagonistas em tudo, filmes, novelas, desenhos e terão uma noção distorcida da própria importância. Sempre como o personagem principal, o mais importante, o herói que salva o dia, aquele de quem todos precisam e a quem todos servem.

Brincarão com coisas que trabalham sua criatividade, suas habilidades racionais, espaciais, lógica. Serão estimulados a correr livremente e praticar esportes, com o desenvolvimento de sua potência física valorizada. Serão treinados para ter uma vida profissional e estimulados a quererem profissões desafiadoras, de status, carreiras de sucesso.

Não aprenderão que devem ter responsabilidades de auto-cuidado, cuidar dos filhos ou da própria casa, porque percebem que não precisam se preocupar com essas coisas já que sempre tem uma mulher fazendo isso por eles. Seja a mãe, seja uma irmã, seja a companheira, seja uma trabalhadora doméstica.

Qualquer contato com o universo de brincadeiras das meninas será duramente repreendido e aprenderão a rir e a debochar das meninas, porque serão tratados como mais espertos, mais fortes, mais inteligentes, mais rápidos, mais “legais”. E que meninas são o seu oposto, logo tolas e chatas. Serão incentivados a punir os amigos que demonstrarem estarem “saindo da linha”das regras da masculinidade xingando de “mulherzinha”, “mariquinhas”, “viadinho”. E os espancando se for preciso para “virarem homens”.

A agressividade desde muito cedo será naturalizada e valorizada. Serão estimulados a brigar e a bater uns nos outros. Brincarão de lutar. E de matar. A competir e a sempre vencer. A não “deixar por isso mesmo”. E serão duramente repreendidos se não se demonstrarem másculos, viris, agressivos. Se não partirem para a “porrada”.

Serão estimulados a hipervalorizar o sexo, e sua maior responsabilidade social será sempre mostrar que é “macho”. Carregarão o peso da virilidade nas costas, de conquistar sempre o maior número possível de mulheres, estarem sempre à caça. Nunca negarem sexo, mesmo que não estejam com vontade. Buscar sempre exibir uma mulher bonita, como um troféu. Que mulheres dizem “não” querendo dizer “sim” e como eles possuem um “instinto animal” que não conseguem conter, isso justifica ultrapassar qualquer limite.

Serão coibidos de mostrar os próprios sentimentos, a nunca parecerem que se importam de verdade, porque sentimentos pertencem ao universo feminino. E aprenderão que tudo que é desse mundo é inferior e fragilizante. Entenderão que sua única preocupação é desbravar o mundo e que tudo lhe pertence. Inclusive as outras mulheres, de quem crescem tão distantes, tão separados, que têm dificuldade de enxergar como pessoas. Pensarão que mulheres são seres de outro planeta (mulheres são de “Vênus”, homens são de “Marte”), são um objeto, e que só os outros homens os entendem e são verdadeiramente dignos da sua amizade e companheirismo.

que divertida essa brincadeira de atirar nas pessoas, não? Por que será que os atiradores em série são sempre homens?

Triturador de donzelas em perigo

Meninas vão ser embebidas na cultura das “princesas” (um título que já traz embutido diversas das características que são empurradas para as mulheres como beleza, docilidade, vulnerabilidade, fragilidade, delicadeza, etc etc); Serão treinadas para serem vaidosas, prendadas, domésticas, mães, cuidadoras, através dos brinquedos que são destinados a elas (bonecas, pelúcias, conjuntos de cozinha, e tudo que é parafernália de beleza).

Verão a si mesmas sempre representadas como coadjuvantes, donzelas em perigo, princesas à espera de um príncipe. Nunca se verão em cargos importantes, ganhando prêmios, vivendo aventuras, realizando grandes descobertas. E se acostumarão com a ideia de ocupar um lugar secundário na sociedade. De se ver como um acessório.

Perceberão como em toda parte mulheres sempre estão sendo elogiadas apenas pelo seu corpo e sua aparência. E receberão mensagens confusas sobre estar sempre disponível sexualmente e ao mesmo tempo “se valorizarem”. Serão vigiadas para que não engordem e duramente censurada caso comam muito. Aprenderão a odiar o próprio corpo que nunca será suficientemente belo. A se acharem sujas. “Bonita” é o principal elogio que ouvirão e crescerão com a percepção (reforçada pela mídia) que este é o único atributo de poder que possuem.

Serão estimuladas a dançar, cantar, sensualizar, participar de concursos de beleza. Brincarão com brinquedos que simulam cuidados com o lar, com os filhos e serão responsabilizadas precocemente para realizar atividades domésticas, para “ir aprendendo”. Cuidarão dos irmãos. Serão desestimuladas a realizarem atividades esportivas, ativas, “brutas”, ou qualquer coisa que fira sua imagem “feminina” de objeto de decoração. Serão subestimadas se decidirem se aventurar pelo mundo das ciências exatas. Ridicularizadas e afrontadas se demonstrarem apreço por itens do universo masculino.

Serão orientadas a ficarem quietinhas, caladas, de perna fechada, sem gritar, correr, protestar, porque “são meninas boazinhas”. Serão censuradas sempre que manifestarem desagrado, sempre que forem mais incisivas, que falarem aberta e objetivamente sobre seus desejos. Serão exploradas emocionalmente, chamadas de loucas.

Ouvirão desde o nascimento que o seu destino é “conseguir um namorado”. Que é a maternidade onde uma mulher se completa. Que felicidade está na manutenção de uma família e não de uma carreira. Que homem não gosta de mulher que não se cuida, não gosta de mulher inteligente, não gosta de mulher independente. Que outras mulheres são falsas e querem roubar seu homem de todo jeito. E apesar disso, também aprenderão a nunca confiar completamente no homem porque ele tem uma “natureza animal” irrefreável.

brincando de ser bela, recatada e do lar no inferno rosa

Essas são as instruções que todos nós recebemos e que nós, adultos, ensinamos para as crianças. Reforçamos e reforçamos e reforçamos estereótipos de gênero e prendemos as crianças nessa armadilha que as obriga a performar um personagem que muitas vezes está longe de fazer parte da essência dela, da personalidade dela.

Ou você, mulher, realmente se identifica com todas as características que são atribuídas ao sexo feminino? Elas fazem parte da sua personalidade só porque você nasceu com uma vagina? E você, homem? Você realmente nasceu assim?

Como é que se vai conhecer de verdade a personalidade do bebê se ele já nasce com tantas expectativas sobre como ele deve ser, se comportar, agir, só por causa do sexo biológico dele? E se todo esse treinamento de gênero que se está oferecendo não tiver nada a ver com ele? E se a menina odiar bonecas e adorar carrinhos? E se o menino adorar bonecas e odiar lutar?

Crianças são pessoas em desenvolvimento.

Crianças estão sofrendo por causa dos estereótipos de gênero. Por causa do seu machismo. Meninas e meninos estão sendo privados de um despertar pleno, de terem contato com o desenvolvimento de todas as suas habilidades porque só são estimulados pela metade.

Nossas crianças estão no meio de uma guerra de estereótipos e estão sofrendo. Tendo que atender desde cedo expectativas muito duras de comportamento. E isso é especialmente mais grave e cruel com nossas meninas, que são criadas para serem a parte mais fraca e são as maiores vítimas dessa cultura machista que violenta, abusa e mata mulheres.

Romper com os estereótipos é difícil mas não é uma tarefa impossível. É um enfrentamento que começa com o entendimento de como a engrenagem funciona e com o desmantelamento da sua lógica interna.

Vamos ser livres.

É possível controlar o que crianças assistem?

Round 6 (Squid Game) é uma série coreana, sucesso absoluto na Netflix, e que conta história de um grupo de pessoas disputando literalmente até a morte uma fortuna em dinheiro. É uma boa série, o enredo é relativamente simples e muito bem contado, e possui classificação de 16 anos. Não é indicada para crianças e nem mesmo adolescentes por possuir cenas explícitas de assassinato, suicídio, tráfico de órgãos e sexo. E no entanto, todas as crianças não param de falar nela, para desespero dos pais. É possível controlar o que crianças assistem? E aí antes de ficarmos preocupados ou indignados, precisamos levar algumas questões muito importantes em consideração para que estejamos, acima de tudo preparados para esse tipo de coisa. Porque esse não será o primeiro, e muito menos o último, conteúdo “inadequado” que nossos filhos terão contato.

É impossível controlar completamente o que as crianças vêem

Num mundo hiperconectado como o nosso a questão não é mais SE crianças vão tomar contato com determinado tema, mas QUANDO e COMO.

Boa parte das crianças de hoje está sendo criada por pais que tiveram sua infância em um mundo bastante analógico. Assistíamos programas infantis, desenhos animados, filmes, quase tudo na TV aberta ou em meia dúzia de canais de TV a Cabo. Era bem mais simples controlar o conteúdo audiovisual porque tínhamos poucos emissores (TV, rádio, revistas) e conteúdos emitidos de maneira mais ou menos centralizada. Então, nossos pais, se assim desejassem, poderiam organizar praticamente tudo a que teríamos acesso ou pelo menos conhecer toda a programação. Não é o nosso caso.

Hoje crianças tem acesso a dezenas de serviços de streaming diferentes que por sua vez tem centenas de desenhos animados, filmes, séries e todo tipo de conteúdo, fora os próprios canais de TV a Cabo e a TV aberta. Por um celular (que muitas vezes é próprio) crianças acessam a internet, tendo acesso a buscadores que podem trazer praticamente qualquer informação. Elas acessam o Youtube, e seus ídolos são Youtubers que fazem às vezes de babá eletrônica e dizem uma infinidade de coisas interessantes assim como toneladas de bobagens. Acessam TikTok onde milhares de outras crianças fazem todo tipo de coisa sem nenhuma supervisão. Há um ecossistema tecnológico que pouco dominamos e uma infinidade de conteúdos disponíveis impossíveis de serem contabilizados.

Há também o fato de que os cuidadores (e aqui invariavelmente estou falando da mãe, que acaba sendo a principal responsável e quem lança olhos pra essas coisas) não têm como ficar 24 horas sobrevoando os filhos para regular o que eles estão assistindo. Muitas crianças estão nas mãos de terceiros enquanto a mãe trabalha, e muitas vezes, todo esse aparato eletrônico faz as vezes de babá entretendo as crianças enquanto adultos fazem coisas como tentar ganhar dinheiro para sobreviver, limpar a casa para manter um mínimo de salubridade, cozinhar, e etc. E a despeito de todas as críticas (válidas), sobre o excesso de telas, esta acaba sendo uma consequência de uma realidade imposta pelo tipo de vida que temos a nossa disposição: pessoas empobrecidas, em dupla, tripla jornada com pouco tempo para fazer coisas como dar atenção qualificada e em quantidade aos filhos.

Então a primeira informação aqui é: se já era difícil antes, hoje é impossível dar conta dos conteúdos e informações que nossas crianças terão acesso. Todo o tempo que não temos as crianças têm de sobra para estar por dentro de todas novidades. Se algo faz parte do hype, elas estarão sabendo, acredite.

Quase nenhum conteúdo cultural é realmente bom para as crianças, mesmo os infantis

Nós temos apego a classificação indicativa e ela é realmente importante, mas pensar o que é “adequado” e o que não é requer um pouco mais de reflexão. Se pensarmos que a mídia é um braço do patriarcado para a nossa socialização fazendo propaganda sobre como devemos nos comportar, o que devemos naturalizar, o que é aceitável e o que não é, vamos perceber que quase nenhum conteúdo (mesmo os ditos infantis) deveria passar sem algum acompanhamento ou problematização junto às crianças. Desde o mais singelo conto de fadas (Branca de Neve foi beijada desacordada), passando por canções de ninar (o Boi da Cara Preta ataca crianças que sentem medo), cantigas de roda (o Cravo despedaça a Rosa em uma briga), chegando aos desenhos, filmes, séries, games e todo o resto. Nossa produção cultural a despeito de nos entreter e até informar, serve principalmente para nos educar dentro da agenda patriarcal. Nossa cultura espelha nossa sociedade e nossa sociedade molda nossa cultura. É uma roda que se retroalimenta.

E é fácil verificar isso. Estamos escandalizados com Round 6 e assemelhados mas, voltemos para nossa idílica infância por um momento. Onde não havia internet e nem tantos conteúdos, tik toks, e influenciadores. Uma época melhor? Mais fácil? Nós víamos programas infantis onde as apresentadoras estavam seminuas, e recebiam convidados para cantar músicas profundamente sexualizadas. Nós aprendemos a descer na boquinha da garrafa nesses programas, inclusive. Assistíamos desenhos infantis onde os “inimigos” eram combatidos na base de muita briga e violência. Tom e Jerry, Pica Pau, Papa Léguas, He-Man, Liga da Justiça, Batman, e uma lista infinita atestam isso. Assistíamos Sessão da Tarde (onde passava Goonies mas também passava Porky’s), e víamos novela. Produções dos anos 80 e 90 (não que a dos anos 2000, 2010, 2020, estejam melhores) onde violência, racismo, machismo, pedofilia, caricaturização da pobreza, normalização da prostituição, romantização da maternidade e de relacionamentos abusivos eram a regra e não a exceção.

E poderíamos inclusive fazer o exercício de analisar os produtos culturais disponíveis para as gerações anteriores (aí em formato de cinema, radionovela, fotonovelas, livros, revistas diversas). Em todos eles teremos o mesmo combo de naturalização da violência, sexismo, racismo, elitismo porque a mídia, os produtos culturais e artísticos pertencem ao grupo que nos domina (homens brancos), refletem seus valores e fazem propaganda das suas ideias de dominação.

Dessa forma pensar em produtos “adequados” ou “inadequados” é questão de um ponto de vista. A violência do Round 6 é gráfica, crua, espirra sangue na tela, mas o adolescente de 17 anos que tem permissão pela classificação indicativa para assistir a isso já teve seu espírito preparado para a ideia de que opositores podem ser assassinados desde a época em pisava na cabeça de cogumelos jogando Super Mario. Você não vê ninguém, nos desenhos, nos filmes, nas séries, do Harry Potter até a Turma da Mônica, resolvendo seus conflitos com Comunicação Não-Violenta. A dominação, punição e aniquilação do inimigo é a regra.

Dessa forma precisamos atentar para o fato de que muitas vezes só nos chocamos e nos atentamos pro que nossos filhos consomem quando o sangue jorra ou aparece gente pelada. E na verdade todos os conteúdos que nos são oferecidos precisam de um apreciação mais atenta. Somos bombardeados de mensagens que vão nos formando também, que vão nos conduzindo a pensar de uma determinada forma, que vão naturalizando comportamentos e fatos que nunca deveriam ser considerados normais em uma sociedade saudável.

A violência é tão fascinante e nossas vidas são tão normais

Violência pode causar morte, mas violência não é sobre morte. A morte é um fato que faz parte da vida. Tudo morre e crianças tomam contato muito precocemente com essa noção por inúmeros motivos. E as histórias muitas vezes a ajudam a elaborar esse conceito de perda.

Violência é sobre dominação com uso de força, intimidação, coerção.

Vá a uma sessão de brinquedos e veja a quantidade de armas que estão reservadas para serem vendidas aos meninos. E nós compramos. Nós naturalizamos crianças brincando de “bandido e polícia”. Crianças aprendem sobre “heróis e vilões”, “bom e mau”, sobre “defender” os inocentes, numa representação onde aquele que tem permissão para perseguir e matar tem sempre a mesma cara masculina e branca. Onde as mulheres sempre precisam ser salvas. Onde a disputa é sempre por poder, dinheiro, terras, dominar o mundo. Ensinamos a lógica da dominação para nossas crianças. Legitimamos o uso da força por detrás de uma narrativa heróica e justificamos seu uso em nome de um “bem maior”.

A linguagem da nossa cultura é a violência com fins de intimidação e dominação. Somos violentos uns com os outros, com vulneráveis, mulheres e crianças. Com pessoas negras, pobres. A depender da raça e classe, crianças já presenciaram mais sangue e assassinatos recaindo sobre os seus que em um episódio fraco de Round 6. A normalização da violência é uma estratégia fundamental para a manutenção do poder masculino e não é interessante que seja diferente já que é através dela que homens mantêm-se no poder.

Um mundo onde meninos repudiam a violência, onde meninas rebelam-se contra a violência, onde a violência torna-se inadmissível simplesmente inviabiliza a manutenção dos sistemas de poder vigentes.

Então precisamos falar sim sobre violência com as crianças. Precisamos explicar qual a lógica que move as engrenagens desde mundo em que elas irão viver. Explicar qual o objetivo das regras implícitas que lhes são sutilmente apresentadas. Crianças precisam aprender, o mais cedo possível, a reconhecer, repudiar e denunciar todo tipo de violência e isto é um feito dificílimo porque levado ao pé da letra vamos notar que toda nossa vida está completamente impregnada de códigos abusivos.

Como lidar com as crianças e os conteúdos que elas acessam?

  1. Primeiro é preciso trazer as crianças para o problema. Estamos falando sobre Round 6, mas pornografia é um problema infinitamente maior e acredite, elas também estão acessando ou em vias de acessar. Não temos como controlar os conteúdos mas temos como orientar as crianças para fazerem escolhas mais qualificadas. Explicar o que é a classificação indicativa, para que serve, qual a importância. Que tipo de conteúdos podem encontrar pela internet e como alguns podem ser bastante nocivos. Que a despeito da curiosidade, há conteúdos e temas que é preciso um pouco mais de maturidade emocional para acessar. Que muitas vezes um determinado assunto será um burburinho no grupo dela mas que isso não significa que os amigos estão conseguindo ter a melhor abordagem do tema. Contar um pouco que a própria criança conseguirá realizar certos filtros a partir do que você orienta que é melhor para ela. Se a criança tiver medo, ou simplesmente for proibida, coagida, ameaçada, para não acessar… a primeira coisa que ela vai fazer é correr para ver tudo.
  2. Outra dica que pode ajudar é tentar limitar minimamente, e na medida do possível mesmo, a quantidade de conteúdo que a criança acessa. Promover uma certa curadoria. Limitar acesso a diversos serviços de streaming, sempre com filtro de classificação etária, limitar o número de canais de youtubers que a criança segue e sempre, na medida do possível dar uma olhada na playlist do youtuber para ver que tipo de conteúdo ele produz, assistir uns vídeos de amostra. O mesmo para o Tik Tok.
  3. Use todos os recursos de restrição e filtro que estiverem ao seu alcance nas plataformas e dispositivos que a criança acessa. Caso a criança tenha seu próprio celular usar aplicativos de controle parental onde você consegue monitorar todo o conteúdo que a criança vai acessar do seu próprio aparelho.
  4. Reduzir o tempo das telas e redes na medida do possível. Assistir conteúdos junto com a criança, ou colocá-la assistindo perto de você. Compartilhar um pouco dos filmes, desenhos e demais coisas que ela vê. Isso ajuda a criar vínculo e parceria para que você fique minimamente inteirada do que está acontecendo no universo virtual infantil.
  5. Conversar com a criança sobre o que ela anda vendo, pedir pra ela contar sobre as histórias que assistiu, sobre as últimas youtuber predileto também é um bom caminho para fazer uma ponte para o mundo dela e ficar de olho.

Resolve? Não. Funciona 100%? Também não. Mas já ajuda a pelo menos mapear por onde sua criança anda se informando. Se nosso desafio aqui na criação deles é a socialização, nossa principal batalha parece mesmo ser os produtos culturais e os valores que eles propagam.

Tá, mas e Round 6?

Retomando as premissas de que: é impossível controlar o que elas vêem, nenhum conteúdo pode ficar inteiramente sem alguma problematização e que existe um sistema de dominação que é retroalimentado na socialização das crianças para se tornarem adultos violentos, Round 6 é o menor dos nossos problemas. Mas sim, eu entendo que muitos cuidadores estejam preocupados e desconfortáveis.

Então acho que vale saber que ainda que crianças e adolescentes não estejam vendo a série, elas têm uma boa noção do conteúdo, seja através de canais de You Tube, Tik Tok, ou conversando com os amigos que viram. Em seguida, a premissa “pessoas morrem em jogos de disputa” não é exatamente uma coisa chocante para a maioria delas. O que, é claro, não justifica assistir a série porque, como disse, há cenas explícitas de assassinato e também de sexo. E há uma diferença entre saber que pessoas foram assassinadas e ver um cérebro espirrar na tela. Então aí acho que cada família vai precisar regular isso de acordo com suas regras internas mesmo.

De qualquer forma o que não se pode mesmo é menosprezar a capacidade das crianças de apreenderem o mundo e aproveitar o hype para problematizar algumas questões muito interessantes, a depender da idade delas, como: que tipo de vida é essa que temos onde pessoas preferem disputar dinheiro dispostas a matar e arriscando-se a morrer? Quanto vale vida de uma pessoa? É ético ser bilionário em um mundo com tanta gente miserável? Será que há espaço nesse mundo para existir algo assim de verdade? Será que tanto horror é somente ficção? O que a gente precisaria para não existir um Round 6 nesse mundo? Qual a verdadeira violência ali, pessoas tomando tiro na cabeça, ou pessoas estarem tão desesperadas a ponto de aceitarem arriscar-se a morrer por dinheiro? Ou ver pessoas bilionárias divertindo-se com isso? O que é mais desumano?

Colocar as crianças para pensar o mundo. Pensar o mundo junto com elas. Criar crianças críticas, conscientes. É um exercício que vale a pena.

Crianças não são um problema

O mundo seria muito diferente se as pessoas parassem de tratar as crianças como um problema. Que todo o discurso que é feito sobre elas, de toda a sociedade, não girasse em torno de uma ideia que não é claramente dita mas sempre muito sutilmente colocada de que elas causam o caos, que são uma perturbação, de que não deveriam estar ali.

Vivemos em uma sociedade que pretensamente “ama” todas as crianças e as protege. É o discurso oficial que está bastante longe da realidade. Crianças são um grupo vulnerável tratado como propriedade privada dos seus tutores, sob fiscalização bastante esparsa do Estado. São vistas como menos que coisas, muitas vezes equiparáveis a animais de estimação. São sistematicamente excluídas socialmente até atingirem uma idade em que possam ter utilidade social, sejam por serem férteis, produtivas, ou consumidoras. São alvo de todo tipo de discurso aberto de ódio sem que haja sequer indignação sobre o tema. E poucos se preocupam de fato do bem estar delas, enquanto grupo, enquanto classe, enquanto seres de direito, que são. Pessoas.

Eu queria que pessoas lembrassem que a infância é um estágio obrigatório para todos. Que sequer faz sentido tratar crianças como seres “inferiores” ou à margem, porque necessariamente todos nós já estivemos nesse lugar, tendo o mesmo tipo de comportamento típico, de ser uma pessoa em desenvolvimento apreendendo o mundo. Então eu gostaria que os adultos não dedicassem tanto tempo para simplesmente domesticar as manifestações naturais dos estágios necessários de crescimento de todas essas tão jovens pessoas. Que não reclamassem tanto de suas necessidades de choro, sono, fome, de sua curiosidade, rebeldia, de sua inocência, sua raiva, sua inconveniência.

Eu queria que crianças com deficiências não fossem invisíveis, não fossem tratadas como seres de segunda categorias que não precisam de deferência, afeto e cuidado porque são encaradas como pessoas sem plenas capacidades para serem exploradas à exaustão pela máquina capitalista, cujos poucos direitos que possuem foram conquistados à duras penas por suas mães, igualmente invisíveis com suas questões.

Queria que todas as crianças tivessem seus direitos respeitados e não só aquelas que interessam à sociedade, as brancas endinheiradas. Que crianças negras tivessem direito de verdade à infância e que não fossem vistas como adultas tão logo cheguem à pré-adolescência, já sendo considerados aptas para morrer na mão do Estado, ou parir.

Queria que homens não violassem, não agredissem, não explorassem corpos infantis. Que assumissem suas crianças e cuidassem delas de verdade. E que todo esse discurso de que crianças são seres “sagrados”, são “anjos”, são “seres inocentes” não fosse uma mera falácia para ficar bem na foto.

Eu queria que todos se mobilizassem para pensar a maternidade compulsória, um debate tão necessário, e não usasse isso como desculpa esfarrapada para destilar discurso de ódio contra crianças.

Parem de tratar crianças como se elas fossem um problema apenas porque somos uma sociedade embrutecida, cruel, dura, incapaz de cultivar valores de empatia, generosidade e solidariedade com quem ainda não é útil ao sistema. Parem de tratar crianças como se elas fossem um estorvo, um fardo, apenas porque ninguém além das mulheres é levado a responsabilizar-se pela criação delas. E isso interrompe a vida das mulheres sim, mas não porque há algum problema com as crianças e sim porque há um problema com toda uma sociedade que isenta-se da formação dos seus próprio cidadãos, que trata crianças como números, como exército de reserva.

Uma sociedade com valores tão deturpados não está preparada para amar crianças de verdade. Para respeitá-las. Para entendê-las. Para querer oferecer o melhor possível para cada uma delas. Para vê-las em toda sua potência, força e beleza. Somos uma sociedade de valores tão individuais e utilitaristas formada por adultos que também tiveram sua infância roubada, e precisamos ser capazes de quebrar esse ciclo sem fim de violências. Em algum momento precisaremos dar um basta. Não são as crianças que são um problema, são os adultos que em algum momento esquecem da criança que já foram. Elas são a potencial solução para esse mundo tão complicado que vivemos e nós somos incapazes de reconhecer e investir nisso.

A pedofilia é um projeto

A pedofilia é um projeto. Ela é definida como qualquer tipo de envolvimento de cunho sexual de adultos com crianças. Há hoje todo um “repudio” social à prática e aqui entram muitas aspas mesmo porque é preciso que, de uma vez por todas, a gente encare esse tema sob a perspectiva adequada: a pedofilia é uma estratégia masculina para garantir e manter seu poder sobre as mulheres.

E não é tão difícil de perceber isso. Basta saber para onde olhar.

Primeiro, vamos olhar os números, para entender a magnitude do que acontece.

Falando de Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde em 2018 foram registrados mais de 32 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes. De 0 a 9 anos, 75% das vítimas são meninas. De 10 a 19, as vítimas meninas somam 92%. As agressões (e por “agressões” entenda que a maioria é estupro) ocorrem prioritariamente em casa perpetradas pelo pai/padrasto ou um conhecido da família. E sim, os perpetradores são a maioria esmagadora, homens.

É uma média de 3 agressões por hora, o que significa que até você terminar de ler esse texto há uma chance muito grande de uma menina ter sido acossada sexualmente em casa pelo pai ou alguém muito próximo, em algum lugar do Brasil.

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E isso analisando dados específicos. Quando começamos a cruzar informações fica tudo muito mais nebuloso. Muitos já devem ter ouvido falar da “famosa” estatística de que no Brasil há um caso de estupro notificado a cada 11 minutos (que com a previsão de subnotificação poderia significar um estupro a cada minuto). O que não se falou é que 70% desses casos de estupro são de crianças e adolescentes. Segundo o 13º Anuário de Segurança Pública, com dados de 2018, de cada dez estupros, oito ocorrem contra meninas e mulheres e dois contra meninos e homens.

E isto estamos falando de tragédias domésticas.

Se consideramos os números de exploração sexual infantil então, os dados são alarmantes. Embora seja uma taxa bem difícil de levantar, um estudo de 2002, estimou que à época havia cerca de 10 milhões de crianças em situação de prostituição no mundo. Lembrando sempre que mulheres e meninas são 99% das vítimas de comércio sexual. E são alarmantes principalmente porque pesquisas consistentes quase inexistem, há um apagão de informação, subnotificação, omissão e silêncio. Sabemos por exemplo que crianças são 1/3 das vítimas de tráfico humano no mundo, sendo 70% delas, meninas. De todas as vítimas de tráfico humano mundial, aliás, meninas representam 20%. Com fins de exploração sexual para 59% dos casos. Isso sem falar nos números de pornografia infantil, que são explosivos.

E aqui falando apenas das práticas “ilegais” ou “forçadas”. Porque há as “legalizadas”. O casamento infantil é uma realidade no mundo inteiro e é a forma em que o Estado endossa a tomada de poder sobre corpo de crianças, de maneira absolutamente institucionalizada e naturalizada. Podemos então começar dizendo que no mundo hoje cerca de 21% das mulheres casaram antes de cumprir 18 anos. São 650 milhões de mulheres. E todo ano, 12 milhões de adolescentes menores de 18 anos contraem matrimônio. A idade de consentimento para casamento é uma discussão bastante recente, que muitos países não se interessam em fazer, ou tem legislações que são absolutamente coniventes com o abuso. Como permitir o união com menores após a emancipação feita pelos pais (que como resultado incentiva desde venda de menores até autorização para “salvar a honra” perdida por conta de estupro). E não há tantas diferenças assim com relação a cultura ou nível de desenvolvimento, Estados Unidos e Canadá estão tão mal posicionados no mundo, em termos de proteção a essas adolescentes, quanto o Afeganistão, Nigéria, Tanzânia e outros países da África.

Brasil é o quarto país do mundo em índice de casamento infantil e segundo o Censo 2010, pelo menos 88 mil meninos e meninas com idades de 10 a 14 anos estavam casados. Na faixa etária de 15 a 17 anos, eram 567 mil.

E tudo isso para dizer que a pedofilia seja de forma ilegal (quando há legislação protetiva) ou ilegal (quando amparado pela legislação) é uma atividade amplamente enraizada, disseminada e praticada em toda a nossa sociedade. Que a maioria esmagadora das vítimas são meninas e que a maioria esmagadora dos perpetradores são homens.

E aí cabe então agora entende como isso se estabelece e por quê isso acontece.

Eu já falei um pouco aqui sobre cultura do estupro, sobre como homens e mulheres são socializados para normalizar abuso e violência sexual como ritual de sedução. Mas para esse raciocínio ficar completo é preciso entender que o pensamento pedófilo faz parte da socialização masculina e é o principal traço da nossa cultura. Meninos aprendem a desejam mulheres jovens e aprendem a manter esse desejo mesmo quando adultos. E é bem fácil perceber isso.

Antes, é preciso um parêntese de que esse constructo cultural, como conhecemos hoje, foi reforçado principalmente no último século com advento da TV e demais mídias de comunicação de massa. Tanto como um reflexo do pensamento predominante quanto como uma necessidade de driblar o tabu que passou a ser criado quando finalmente a infância foi reconhecida como uma parte vital do desenvolvimento humano, gerando verdadeiras batalhas para criar barreiras de proteção à infância. E isso tanto é verdade que as legislações que regulam a idade de casamento infantil são absolutamente recentes. Na regra, antes disso, a prática de venda ou troca de meninas em matrimônio (como um produto mesmo) eram um negócio familiar, e não havia absolutamente nenhum constrangimento em desposar meninas mal tivessem atingidas a idade púbere.

Pesquise com que idade sua avó ou bisavó tiveram seu primeiro filho e descubra por si mesma.

Então, alguns desses parâmetros que cito aqui, nos são muito próximos e atuais e refletem um estabelecimento de uma cultura da pedofilia organizada em parâmetros muito mais sofisticados em função das possibilidades tecnológicas e com função de preservar e reinserir a lógica naturalizada de homens acessarem livremente — e sem tabu — os corpos de meninas.

Por exemplo, nós mulheres somos proibidas de envelhecer, já notaram? O homem “maduro” é sábio, charmoso, experiente. Já a mulher entra em completo pânico ao ver o primeiro cabelo branco na têmpora pois sabe que está obsoleta no mercado. Está “velha”. Deixa de ser objeto de desejo, deixa de ser “fodível”, não consegue mais inserir-se nos mesmos espaços (inclusive mercado de trabalho), fica refém — e é cobrada por isso — de um sem número de procedimentos estéticos para “prolongar a juventude”. Porque toda mulher sabe que homens querem estar do lado de mulheres jovens.

E mais, o ideal de beleza que nos é exigido reflete não só a necessidade de manter um ar de “juventude”: o apelo (vendido pelas imagens padrão da mídia, publicidade, e indústria da beleza e moda) é de uma mulher pequena, frágil, de “pele suave”, depilação total, ausência de manchas, rosto corado, magra, sem nenhuma gordura, corada, jovial, sexy mas “angelical”.

Pensem. Quem tem essas características primárias? Quem tem pele lisa e sem manchas, ausência de pêlos, pouca gordura corporal, rosto e lábios corados? Quem tem estatura pequena e frágil? Com quem essa descrição parece?

Se você não sabe eu digo: crianças.

Mulheres adultas têm pêlos, acnes, gordura, cheiros, rugas, estrias, celulites, cicatrizes e tudo mais. Ou deveriam ter. Porque homens ostentam isso tudo sem pressão, a eles é permitido crescer e envelhecer. Mas mulheres são permanentemente pressionadas para manterem um corpo e um rosto adolescente se quiserem ser atraentes. Porque homens só legitimam a beleza pré-pubere. E essa imagem de que tipo de mulheres homens devem desejar é reforçada pela mídia e principalmente pela pornografia.

Jennifer Aniston. 20 anos e mesma cútis com algum botox a mais

Homens são incentivados a “trocar” sua esposa de 40 por “duas de 20”, efetivamente ostentam relacionamentos com mulheres 20, 30, 40, 50 anos mais novas. Muitas delas que começaram a se relacionar quando ainda eram menores de idade. O abuso é romantizado com o papo de que “amor não tem idade” ou a velha história de que “meninas amadurecem primeiro que meninos”, ou que “ela era diferente e mais madura pra idade”.

Toda a nossa mídia está recheada de meninas e adolescentes sendo aliciadas para performar o papel de “ninfetas”, de “lolitas” sedutoras dos pobres homens que não podem ver uma “cabrita”. A rivalidade entre mulheres mais velhas e mais jovens é absurdamente estimulada a ponto de adolescentes serem culpabilizadas pelos assédios que sofrem de homens adultos casados que não respeitam seus relacionamentos. Meninas e jovens que são terrivelmente sexualizadas e estimuladas a buscar reconhecimento e aceitação social a partir do reconhecimento de sua beleza e da aprovação masculina que surge na forma de assédio. Não precisa ir muito longe, uma busca no instagram revela o perfil de diversas crianças e adolescentes absolutamente pornificadas.

Mc Melody, 12 anos

Nossa sociedade acolhe homens abusadores e pedófilos. A lista de homens famosos acusados de envolver-se sexualmente com menores é incalculável. Celebridades que nunca tiveram uma vírgula de sua reputação sendo afetada. E nem terão. Escândalo após escândalo, seguimos anestesiados diante do volume de casos, achando que tanta violência são causadas por “monstros”, simplesmente porque é difícil demais admitir que o que vemos é uma regra e não uma exceção: homens são criados para serem predadores sexuais de meninas.

E não pára por aí, a tentativa de institucionalização da pedofilia é real, consistente e faz avanços. Existem inclusive várias e várias tentativas organizadas de normalizar a pedofilia como uma orientação sexual, todo um ativismo pedófilo, antiquíssimo, que teve seu auge no final da década de 70/80, sofreu algumas derrotas ao longo da décadas de 90/2000 e agora está ressurgindo disseminado pelas redes travestido de “diversidade”. Existem leis como a Alienação Parental que foi toda formulada por uma teoria rejeitada em diversos países e sem nenhuma comprovação científica, criada por uma figura comprovadamente pedófila, que como resultado da aplicação tem mantido crianças em situação de abuso na guarda dos seus perpetradores. Em 2005 no Brasil, ainda vigorava uma lei que permitia que estupradores escapassem da cadeia caso casassem com suas vítimas.

A pedofilia não é uma “doença”, essa é mais uma tentativa de patologizar o comportamento masculino e causar empatia e uma falsa sensação de segurança nas mulheres, dando a impressão que só “alguns” homens são perigosos, que são pessoas “adoecidas”, que “sofrem” e podem “curar-se”. Mas se a pedofilia é uma doença de alguns, alguém me explica todos os números apresentados acima? Me explica como a idade média do primeiro assédio de qualquer mulher é anterior aos 10 anos de idade? Por homens adultos? O hábito de homens serem os iniciadores sexuais de suas filhas é uma prática tão naturalizada em algumas regiões do Norte do Brasil, por exemplo, que surgiu a lenda do “boto” que engravidava meninas pra justifica a alta taxa de gravidezes incestuosas. Essa “doença” é uma pandemia global? Porque nem coronavírus atinge tanta gente.

Apenas observem os homens. Seus hábitos, seus focos de desejo, seus fetiches, o que produzem em termo de cultura, o que pensam e dizem sobre meninas. Homens aprendem a desejar sexualmente essas crianças e adolescentes e alimentam toda uma industria de comercialização de corpos jovens, enquanto forçam mulheres a nunca parecerem velhas demais, enquanto violam meninas e as seduzem chamando de “amor”.

E tudo isso por qual motivo?

Bom, essa resposta é “fácil” e relativamente curta. Para manter o sistema de dominação de homens sobre mulheres ativo e operante.

Existe maneira mais eficiente de dominar uma mulher e tomá-la para si, ao seu serviço, do que capturando-a ainda menina? Do que submetendo-a sexualmente? Engravidando-a e a retirando da vida pública? Onde ela não poderá estudar, trabalhar, ser ativa, disputar espaço, pois estará completamente mergulhada nas tarefas de cuidados de casa e filhos? Sempre dependente economicamente porque não terá como acumular nenhuma riqueza própria, formar nenhum patrimônio?

Pensem na vida das avós de vocês. “50 anos de casamento”. Pergunte-as pelo que elas passaram, o que aturaram, o quanto serviram caladas, a que foram submetidas. Essa realidade não dissipou-se, ela é absolutamente real ainda para muitas e muitas de nós. Hoje, neste momento.

A exploração sexual infantil é um subproduto do casamento infantil porque o mundo patriarcal é um mundo que sempre entregou mulheres para o abate assim que atingissem a puberdade. E ainda entrega, mas agora de diferentes maneiras.

E o objetivo é sempre o mesmo: manter mulheres sob uma lógica de submissão e subalternidade, reproduzindo filhos e mantendo a roda do capitalismo girando. As estratégias se especializam, mas o objetivo do patriarcado não muda.

E é por isso que qualquer coisa que passe por combater práticas de pedofilia precisam levar em conta a engrenagem de como as relações entre homens e mulheres está estruturada. Então não passa apenas por dar “educação sexual”, ou mesmo de criar leis punitivistas, ou legislação protetiva. É preciso implodir a lógica de dominação sexual de homens para meninas e mulheres. Precisamos ver a pedofilia como ela é: uma estratégia de guerra de homens contra mulheres, inserida no coração do patriarcado. Uma maneira de manter mulheres acossadas com suas crianças, eternamente com medo de violência sexual. Crianças e mulheres por mais “educadas” que estejam pra reconhecer os agressores não dão conta de defender-se porque a realidade é que as agressões e as ameças e a violência está por toda parte. Basta olhar.

Precisamos de um pacto social verdadeiro pela proteção das nossas crianças, que implica no reconhecimento do homem como sujeito perpetrador da violência física e sexual contra mulheres e crianças. E que responsabilize, cobre, exija uma compromisso de todos que dizem repudiar essa realidade patriarcal.

Que homens que dizem se importar e indignam-se com tanta dor causada tenham coragem de rebelar-se, trair o patriarcado que significa trair todos os outros homens que compactuam com esse sistema de opressão. Não basta e não é justo pedir que mulheres deem conta de eternamente defender-se e as suas crias, de entregar suas vidas ao inimigo. Precisamos desmantelar essa máquina, entendendo como ela funciona, sem paliativos e principalmente sem ingenuidade. Porque é a vida de meninas, todas as meninas, que está em risco constante.

Vamos problematizar o Papai Noel?

O Natal está chegando. Será que vamos problematizar o Papai Noel? Algumas mães entram em crise existencial se perguntando se devem ou não deixar seus filhos acreditarem no bom velhinho, também conhecido como Papai Noel. O argumento — muito justo — é de que esta é uma tradição inventada para turbinar o consumo, que é uma mentira que contamos para as crianças, que isso pode aumentar aí o número de horas na terapia dos pequenos rebentos, entre outras questões filosóficas, políticas e sociais.

Veja bem, gostaria aqui de fazer uma observação sobre esta questão, até porque eu mesma, muito antes de ter filhos obviamente, imaginei que não ia deixar meu filho acreditar nesse velho capitalista que dá presentes para as crianças de posses enquanto milhares morrem de fome. Porém, tomei um saboroso tabefe da realidade que gostaria de compartilhar aqui.

Em primeiro lugar é importante ressaltar que nós mães — via de regra — não temos tanto poder assim para decidir no que nossos filhos vão ou não acreditar. Lá para os 3 anos de idade eles mergulham num mundo de fantasias do qual muitos não saem nem quando chegam na vida adulta. Então conforme-se, seu filho vai acreditar em coisas, muitas das quais você não terá controle. Monstros, heróis, zumbis… ele vai ter amigos imaginários, e não adianta você perder tempo tentando explicar para ele porque dinossauros são reais e dragões não.

Depois, as fantasias infantis hoje são turbinadas pelo convívio social, escola e principalmente a mídia. Então, a menos que você crie seu filho dentro de uma gaiola, ele vai ouvir falar desse tal de Papai Noel, vai ver desenho, comercial, os parentes vão falar, amigos da escola, vão perguntar a ele na rua se ele já escreveu a tal cartinha, mesmo que escrever cartas nem seja um hábito da geração dele. De um jeito ou de outro, ele vai saber que esse velho faz contrabando de brinquedos, e ele vai querer a parte dele em geleca, goste você ou não. Então, mesmo que você se faça de desentendida e nunca alimente essa ideia no seu filho, isso será construído no imaginário dele de alguma forma.

Aí é escolha sua se quer ou não desmontar isso, e em nome de quê. E vale pensar, qual custo vai ter pro seu filho, uma criança, ser o floquinho de neve especial que confronta todos os amigos e gera silêncio constrangedor ao dizer a frase “minha mãe disse que Papai Noel não existe, é ela que compra meus brinquedos”, e talvez ver os coleguinhas começarem a chorar, é claro. Aliás, qual o custo para o seu filho em ser o elemento que vai semear a dúvida e a discórdia entre todos os amiguinhos que vão perguntar o que ele ganhou de Natal e mostrar o que encontraram debaixo dentro do sapatinho que deixaram na janela.

Seu filho é uma criança. E o Papai Noel já é um mito moderno que está profundamente enraizado na nossa sociedade com todos os seus defeitos e qualidades. O argumento de que ele é uma “mentira” pouco se sustenta porque metade das coisas que crianças usualmente acreditam são “mentiras”, ou eufemismos, ou verdades editadas/suavizadas/adaptadas. E o que não for elas complementam com a própria imaginação. Acreditar no Papai Noel, da Fada do Dente, no Coelhinho da Páscoa (ou no Batman, Hulk e Elza do Frozen) não vai tornar o mundo dela pior ou melhor. Apenas vai mantê-la integrada na mitologia infantil do seu tempo.

Agora, a mitologia do Papai Noel é algo livre de problematizações? De jeito nenhum. Ele é o mito moderno dessa sociedade capitalista e consumista, mas é o que tem pra hoje. Todas as sociedades, em todos os tempos, construíram seus mitos e nenhum era lá grande coisa também. Mas existe um maneira mais “saudável” de trabalhar esse mito com as crianças e atravessar o Natal? Existe sim, quer ver?

  • evitar associar a ideia de que o presente é uma recompensa por “bom comportamento”: Crianças não tem que ser obedientes ou estudiosas ou seja lá o que for porque querem ganhar presentes e sim porque ser obediente e estudioso são virtudes importantes de serem cultivadas que são um recompensa em si e trazem benefícios de longo prazo. Você pode dizer para o seu filho por exemplo escrever uma carta (ou mandar um email, um whatsapp, sei lá) contando pro Papai Noel como foi o ano, o que ele mais gostou de fazer, o que ele espera para o ano que vem e agradecendo pelas coisas boas que ele viveu.
papai noel
Coitado do bom velhinho, gente.
  • você não precisa dizer ao seu filho que os brinquedos que o Papai Noel distribui são feitos por mágica e surgem do nada, fazendo parece que ele pode pedir qualquer coisa e colocando você em uma enrascada financeira. Você pode dizer que o Papai Noel é um fabricante e que você paga pelo brinquedo que ele vai produzir e entregar, portanto o presente tem que estar dentro das suas possibilidades. E vale aí explicar que esse é o motivo pelo qual algumas crianças não conseguem receber presentes: porque seus pais não têm condição de pagar. Não está nem muito longe da verdade e ainda dá uma pitada de consciência social que não faz mal a ninguém.
  • não obrigue seu filho a tirar aquelas fotos com o Papai Noel caso ele deteste ou tenha muito medo. Deixe que seja uma coisa espontânea porque ele realmente gosta do velho barbudo. E faça com que ele tire a foto de pé ao lado, ou no seu colo, nunca no do Papai Noel. Sério, não deixe seu filho sentar no colo de estranhos nem que seja para uma foto de 5 segundos.
problematizar o papai noel
Não faça isso com seus filhos, sério mesmo.
  • explique o sentido de presentar, o sentido do Natal, tanto do ponto de vista religioso quanto laico, mesmo que você não tenha nenhuma religião e esteja pouco se lixando para a data. O seu filho é um ser social, é importante que ele entenda o que acontece na sociedade na qual ele está sendo criado.
  • Aproveite a oportunidade para não repetir a pior tradição de Natal de todas: mulheres se matando de cozinhar enquanto homens coçam o saco e tomam cerveja. Essa é uma péssima mensagem sobre divisão do trabalho doméstico e papel social que as crianças recebem todo fim de ano. Coloca todo mundo pra fazer tudo. Ou então pede pizza.

Outra coisa importante a ser dita: a “decepção” que seu filho pode vir a sentir ao descobrir que Papai Noel não existe ou a percepção de que “meus pais mentiram para mim” estará diretamente ligada a maneira como você vai se envolver com a fantasia dele. Você não precisa ser a pessoa que vai introduzir a mitologia do Noel para o seu filho. Você pode ser a pessoa que funciona como facilitadora de uma crença que ele fatalmente vai elaborar por conta própria. Nesse sentido, quanto mais histórias e firulas e mecanismos de reafirmação do mito você inventar, maior a sensação de “ter sido enganado” que seu filho pode vir a ter. Ou pode ser que você mesma seja capaz de perceber o momento em que a “magia” perdeu o sentido e vá explicando que o Papai Noel é o que é, um mito.

E pode ser inclusive que seu filho passe em branco por tudo isso por muito tempo e quando ele vier a prestar atenção já vai estar com idade suficiente para concluir que a história é bastante mal contada já que quase ninguém tem chaminé no Brasil e renas voadoras aqui já teriam sido abatidas em pleno vôo.

De qualquer forma, se a criança for aficcionada por Natal, tiete de Papai Noel, fã número um das renas e dos duendes… boa sorte e aproveita também. Daqui a pouco passa. Os filhos crescem muito rápido e não demora estamos sentindo saudades de quando a vida era tão simples para eles que a maior preocupação que tinham era receber a visita do bom velhinho.

problematizar o papai noel
Aproveita e escreve sua cartinha também! Feliz Natal!

O dia que o Lias foi embora

Quando Lias apareceu eu e meu companheiro nos assustamos um pouco. Lias era o amigo imaginário do meu filho. Ele apareceu quando ele tinha uns 3 anos e meio mais ou menos e, bom, talvez por meu filho ter pouca imaginação ou imaginação demais, Lias era a própria mão dele, cuja voz ele fazia, como um ventríloquo.

De certa forma era engraçado, era literalmente o famoso “fala com a minha mão”. Meu filho conversava o tempo todo com o Lias, que no caso era a própria mão dele, e ele mesmo respondia com uma voz fina engraçada. E eu cheguei a imaginar explicações diversas para um comportamento tão excêntrico até que resolvi pesquisar um pouco e entendi que era um processo absolutamente normal da criança em crescimento, e que o melhor era não se meter e deixar ela lá vivendo o processo. E eu no caso só filmei algumas vezes pra usar no futuro porque afinal aquelas cenas dele falando com a mão eram boas demais pra deixar passar.

Amigos imaginários são um recurso que muitas crianças utilizam — e outras não — para começar a lidar com a realidade, com seus sentimentos e com sua individuação. A criança “treina” com o amigo invisível suas habilidades em aquisição de ir pro mundo e se relacionar com o entorno.

E dessa forma Lias, a mão, entrou pra família. E já estávamos acostumados a ver meu filho colocando a culpa nela de coisas que ele tinha feito, brincando, brigando com a própria mão e nos envolvendo em intermináveis diálogos com ela.

Até que Lias foi aparecendo cada vez menos, a ponto de sua ausência ser sentida. E um dia eu não resisti e perguntei “meu filho, cadê o Lias?”, e ele respondeu “o Lias não existe”. Assim, na lata, sem nem preparar meu coração.

O Lias não existe. Eu e meu companheiro nos entreolhamos e os olhos dele estavam brilhando de lágrimas assim como os meus. Como assim o Lias não existe? Se outro dia ele estava aqui, brigando comigo pedindo um beijo de boa noite? Como ele não existe se eu ainda lembro de você meu filho, se atrapalhando com os primeiros passos? Se eu ainda escuto seu choro, se eu ainda lembro suas primeiras palavras e de toda a comida que você jogava fora do caldeirão? E todas aquelas fraldas que você não usa mais? E as roupas que já não te servem?

Você está crescendo meu filho, e o Lias foi embora. E eu estou escrevendo pra dizer que parte de mim está feliz porque é muito duro para uma mulher esses primeiros 5 anos da vida do filho, quando ele está fazendo essa transição de deixar de ser um bebê. Mas também hoje me dou conta que acaba de repente e aí a gente olha dentro de si e percebe que sim, bem lá no fundo, tem um pouco de saudade de algumas coisas. Eu vou sentir saudades de conversar com sua mão, aliás, com o Lias. E do bebê engraçado que você foi e que agora é esse garotinho esperto e divertido. E de como foi uma experiência incrível para mim poder ver você deixar de ser um bebê. E eu sempre vou lembrar do Lias no meu coração, como um alerta para aproveitar a parte boa de poder ser mãe, porque tudo passa.

Todo choro deve ser consolado

Ora, mas vejam só, agora nós somos uma sociedade moderna que finalmente percebeu que não devemos espancar crianças, que acredita que todo choro deve ser consolado. Agora nós temos métodos mais modernos, arejados, “positivos”, “não violentos”. É o cantinho da calma, é a escuta ativa. Agora vai.

Aí corta para a historinha, totalmente real.

Estava eu aguardando meu marido e meu filho na saída do banheiro que também era a saída do cinema. Sentado na escada de saída do cinema estava um pai, placidamente, conversando em voz baixa, com toda a calma do mundo com seu filho. O menino era visivelmente bem jovem e depois eu descobri que ele tinha apenas 2 anos. E chorava copiosamente. Copiosamente. E o pai o mantinha (apenas com calmos comandos verbais) de pé junto a parede. De castigo.

Enquanto o castigo prosseguia o pai ia dando o sermão da montanha e eu, que acompanhava a cena mortificada com o canto do olho, pude me inteirar da história. A família estava no cinema, a mãe, o pai, um bebê de colo, o menino de 2 anos, e mais um irmão (possivelmente mais velho). O menino de 2 anos começou a se agitar e a chorar, e a querer o colo da mãe. O pai ofereceu o colo, o menino não quis. Queria o colo da mãe. E aí estava armada a celeuma. O garotinho pode ter se “comportado mal” (sabe-se lá o que isso quer dizer para um menino de 2 anos), e ganhou com isso a retirada do cinema e a punição de ficar em pé do lado de fora (tudo bem, ele poderia sentar se quisesse, pelo que entendi) até o filme terminar.

O menino pedia a mãe e ouvia como resposta: “não, sua mãe está lá dentro do cinema vendo filme com seus irmãos ela não vai vir te ver”. O menino pedia colo e ouvia: “não! eu quis te dar colo lá dentro e você não quis! Agora fica aí”. O menino, estoicamente, pedia pra ir pra outro lugar e ouvia: “não, vamos ficar aqui até o filme acabar”. Tudo pontuado por “pode chorar à vontade, não tem problema”. O menino tinha 2 anos e estava completamente desconsolado.

Olha, eu realmente acredito que aquele pai estivesse completamente bem intencionado no que estava fazendo e até estivesse orgulhoso de si mesmo se achando o rei da pedagogia porque estava ali ‘disciplinando’ o seu filhinho ao invés de simplesmente tê-lo espancado para ele calar a boca.

Mas

Nenhuma técnica, nenhuma filosofia de “disciplina” vai funcionar se você não acalmar seus demônios internos, meu amigo, minha amiga. E se você não partir de uma premissa elementar, básica mesmo: crianças são pessoas.

Se uma criança está chorando desconsoladamente, não seja a pessoa babaca que acha isso edificante. Console-a.

Há uma diferença aliás entre o choro de “birra”, que é frustração por não ter conseguido algo. O choro de raiva, o choro de tristeza. E quer saber? Todos eles precisam ser consolados. Consolar e acalmar uma criança não significa “ceder”, não significa “perder”. Significa que você está ali pelo seu filho e está mostrando pra ele que você se importa com os sentimentos dele e que você estará ao lado dele para ajudá-lo.

Aliás, que obsessão que pais tem por disciplina, autoridade, bla bla bla. Que queda de braço com crianças que ainda estão provando o próprio cocô. Deixa eu explicar aqui uma coisa que deveria ser óbvia: vocês têm esse empenho por disciplinar seus filhos mas isso é muito mais uma necessidade SUA de domesticar essa criança pra ela dar menos trabalho pra VOCÊ, do que uma coisa que você está fazendo por ela. E de mostrar serviço para sociedade que sutilmente dá status social para pais carrascos, que têm filhos “comportados”. Filhos que, embora crianças, ajam como adultos na cerimônia do chá da rainha da Inglaterra. Vai se saber a que custo psicológico.

O que pais devem transmitir aos filhos são valores, o que devem ensinar são bons hábitos, o que devem explicar são as regras para se viver em sociedade e ajudá-los a se adequar, o que devem demonstrar são bons exemplos e o que devem ser são companheiros, pessoas em que essas crianças possam confiar, possam amar devotadamente como já fazem, sem sofrer por isso. Sem sofrer porque ama alguém que o magoa.

O pai que estava mantendo o filho aos prantos fora do cinema, certamente estava muito convencido de que estava ensinando uma lição ótima para aquela criança. Se ele olhasse para ela como uma pessoa, se olhasse para suas necessidades, entenderia que: a) ela ainda era pequena demais para assistir um filme de sei lá quantas horas entendendo tudo que estava acontecendo e mantendo a atenção, portanto obviamente ia se sentir entediada; b) sentindo-se entendiada, ou com sono, ou com frio, ou com qualquer outro sentimento que ela talvez nem soubesse identificar ainda, obviamente que ela iria buscar a mãe, que é a sua principal fonte de aconchego; c) o colo que era dela estava ocupado por um outro bebê e sabe-se lá se ela estava lidando bem com isso. O que esse pai poderia fazer? Consolar o filho, tirá-lo do cinema e levá-lo para a piscina de bolinhas, para tomar um sorvete, para fazer qualquer outra coisa. Mas não, “olha uma criança que não se comporta como eu preciso: vamos “discipliná-la!”.

E o que a criança estava vendo ali? O que ela está aprendendo com essa lição? Que as necessidades dela não são importantes diante das necessidades dos pais e dos irmãos. Que ela não tem a quem pedir ajuda e consolo quando se sentir sozinha. Que ela deve aprender a se virar sozinha sem o apoio do pai. Que o único recurso que ela tem para tentar comunicar as emoções dela (chorar) não são ouvidas. Não demora muito aliás ela vai parar de chorar e vai se comportar, papai, não se preocupe. E você vai sentir que tudo deu “muito certo”. Mais uma criança domada na conta do terapeuta.

E sabe o que mais que essa criança aprendeu? A ser autoritário. A ignorar o sentimento das outras pessoas. A ser intransigente. A ser frio. Porque é isso que ela estava vendo ali. É o comportamento que ela estava assimilando. De que você não precisa se preocupar com os sentimentos do outro.

Quer outra regra de ouro na hora de se relacionar com os seus filhos? Pense sempre “que mensagem eu estou passando”. Que não é o que você DIZ, mas é o que você FAZ. É isso que ela está apreendendo. E é nessa chave que você vai definindo que tipo de orientações e interdições (porque sim, educar é também se o primeiro a realizar interdições nos desejos dos filhos) você vai realizar.

E avaliem sempre se a criança está em uma idade que ela tem condições de assimilar o que você está tentando ensinar. Não existe uma “janela de oportunidade” que se você não ensinar coisa x na idade y nunca mais a criança aprende. Socialização é um processo complexo e múltiplo e vamos aprendendo a vida inteira e nos moldando. Fica difícil aprender quando crescemos porque somos esse saco ambulante de traumas justamente porque nossos pais exigiram de nós quando crianças elaborações e comportamentos que não éramos capazes de corresponder.

E olha, na dúvida do que fazer, dê afeto. Afeto sempre afeta e todo choro deve ser consolado.

Educar filhos é sobre escolher batalhas e não deixar feridos

Educar filhos é sobre escolher batalhas e não deixar feridos. A menina devia ter uns 2 ou 3 anos no máximo. Estávamos no meio do saguão da Receita Federal. Ela chorava desconsolada junto ao pai que estava ajoelhado na sua frente e impenetrável exigia que a criança pegasse um objeto que ela tinha atirado para longe num rompante de raiva.

A mãe, ao lado, observava impassível a cena. Decerto havia uma lógica naquilo tudo e talvez uma lógica correta dentro daquilo que aqueles pais acreditavam. Era preciso educar a criança, não importa onde, não importa como, não importa quanto tempo levasse. Ela atirou um objeto em um momento de birra e deveria portanto ajustar seu comportamento imediatamente, apresentando sua compreensão do ato, as mais sinceras desculpas e a correção do destempero. E os pais estavam ali naquela árdua missão. Certo? Todos concordamos?

Bom, sei lá. Às vezes eu acho que mesmo no meio das nossas boas intenções podemos ser projetos de ditadores com nossos filhos. Somos obcecados em mostrar e estabelecer nossa autoridade e sim isso é importante para nos posicionarmos como referência mas tampouco é a única estratégia, ou mesmo a mais acertada. Muitas vezes o que essa possibilidade faz é despertar a megalomania que há em nós. Queremos ser mais que pais. Queremos ser chefes. Comandantes. Que os filhos PRECISAM respeitar. PRECISAM obedecer. Porque somos os PAIS. E isto nos investiu com o poder sagrado sobre a vida dos filhos.

Mas toda essa reflexão me veio também porque a menininha lá chorava desconsoladamente, as vezes estendia os braços pedindo colo… Ela visivelmente já não estava entendendo mais nada, não sabia porque o pai ainda estava ali abaixado com cara de bravo e não a deixava sair. O que ela queria mesmo era um abraço, um picolé, ver Patati Patatá. Era uma menina de no máximo 3 anos, que teve um arroubo emocional.

Adultos fazem isso o tempo todo, gritam, saem batendo portas. É difícil mesmo se controlar às vezes e a maioria passa a vida tentando sem sucesso. Eu não acho que essa sociedade de adultos exaltados de hoje é formada por pessoas que foram crianças “sem limites”. Crianças cujos pais não tentaram controlá-las sob a desculpa de que as estavam ensinando. Ao contrário, a maioria de nós foi adestrada à base de muita violência física, verbal e psicológica, e isso resultou num total de muitos nadas porque crescemos e formamos essa sociedade de pessoas destemperadas, pouco afeitas ao diálogo e que naturalizam agressão.

Enfim, talvez, naquela situação, fosse mais fácil pegar a criança no colo, consolá-la, tentar ensinar outras maneiras de lidar com a raiva. Não estou dizendo também que devemos simplesmente ser permissivos com tudo que os filhos fazem. Mas é preciso escolher as batalhas na maioria das vezes e é preciso manter o foco para não ser engolido pela necessidade de mostrar autoridade a qualquer custo. É possível ensinar de muitas maneiras, acolhendo, dando o exemplo, algumas vezes sendo mais enérgico, mas sem esquecer o que estamos fazendo ali: tentando ensinar a essas pequenas criaturinhas estratégias para sobreviver nessa selva chamada planeta Terra. Ensiná-las a serem empáticas, a conhecerem suas emoções e lidar com elas. No ritmo e no tempo que elas consigam fazer isso. Repito, muita gente chega na vida adulta e ainda não conseguiu fazer metade do que se exige das crianças.

Até por isso, se dê algum desconto também. Porque você pode inclusive nem ser a melhor pessoa para essa tarefa: educar uma criança. Acontece. Pais acham que só porque geraram um filho se graduaram em psicologia, pedagogia, sociologia, pediatria, tudo junto. O conjunto de habilidades e conhecimentos necessários para se criar uma criança não brota por mágica com o nascimento da mesma. A necessidade de preparar-se para a parentalidade é uma realidade, nós simplesmente desconhecemos o funcionamento de bebês, crianças e adolescentes até nos deparamos com a necessidade de lidar com eles (e fazê-los sobreviver).

E estamos longe de saber alguma coisa né? Na maioria das vezes estamos tateando muito mais agarrados em convicções do que em certezas. Reproduzimos aquilo que achamos que deu certo na nossa socialização, que quase sempre é um desastre completo. Não que a gente se dê conta disso também. Vamos levando adiante. Pensamos “eu não matei, não roubei, não fui preso, devo ser uma boa pessoa, obrigada mamãe e papai”. Mas só você sabe o peso emocional que você carrega para se manter de pé todos os dias. A carência que você tem de recursos para lidar com a vida. E é isso. Seguimos reproduzindo a espécie. E sim, você simplesmente pode estar bastante coisa errada por aí, e seus pais podem ter feito bastante coisa errada com você. Culpa sua? Não. Culpa deles? Sim e não, também. Todo mundo está fazendo o seu melhor e os consultórios de terapia consertando os estragos para quem consegue ter acesso a eles.

E tudo isso para dizer que educação sem acolhimento não resolve muita coisa, no fim. E acolhimento não é aceitar tudo, abrir mão de ensinar valores, ética, as regras sociais. Acolhimento é perceber que seu filho está chorando desconsoladamente e naquele momento precisa de um abraço, não de uma bronca. A gente não devia deixar ninguém chorar desconsoladamente em nome de nada. Muito menos aos nossos filhos. Se a gente não tem muita certeza do que está ensinando, se somos todos meio cegos tateando para tentar sobreviver neste mundo, que ao menos seja de mãos dadas. Acolhendo uns aos outros. Que seu filho tenha a lembrança de que você foi a pessoa que o ensinou a ser uma “pessoa de bem”, mas também a pessoa que esteve ao seu lado e o ajudou a ser mais feliz.

E que com filhos a gente está o tempo todo escolhendo as batalhas que vai travar, porque tudo é desgastante. E nem tudo vale a pena, às vezes é só desgaste mesmo. É fácil perder o foco do que se está fazendo e dos motivos pelos quais estamos fazendo algo aos filhos. A gente tenta ensinar muita coisa que nem a gente aprendeu direito. Acho até que a gente consegue ensinar mais quando admite pra si mesmo que sabe muito pouco e que também tem vontade de sentar no chão e espernear junto para ver se alguém se compadece e resolve o seu problema.

Não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”

Acho que uma das partes mais complicadas de se criar filhos hoje em dia é conseguir passar os valores de que não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”. Uma vez me perguntaram se eu deixaria meu filho sair com vestidos, unhas pintadas e coisas que são atribuídas às meninas. Eu fui bastante honesta na resposta: que dependeria. Se ele estivesse indo para algum lugar onde suas roupas fora do padrão de gênero não fossem causar grandes transtornos a ele, deixaria sim. Mas se fosse algum lugar onde ele pudesse ser fortemente rechaçado ou rejeitado, talvez eu não o expusesse, tão jovem (ele tem 3 anos e meio) a uma situação que ele não entenderia, não saberia lidar e ainda poderia magoá-lo profundamente.

E como eu lido com o desejo, muito natural, do meu filho usar coisas ditas “femininas”? Pessoalmente, eu nem ligo. Até porque ele não vê as coisas divididas dessa forma. Roupas são roupas, cores são cores, brinquedos são brinquedos. Com o tempo, inevitavelmente, ele vai ser apresentado a essas classificações arbitrárias e aí teremos um novo desafio que é diminuir o peso disso, para que ele continue se relacionando da maneira menos danosa possível com os estereótipos de gênero.

E por que meu filho não sabe o que são “coisas de meninas” e “coisas de meninos”? Porque até agora ninguém ensinou. Ele chegou até aqui sem ouvir a famigerada frase “isso não é para você”, ou “ isso é de menina”, ou “meninos fazem assim”, e sai por aí feliz na bicicleta cor-de-rosa que herdou da prima sem nenhum trauma ou dor na consciência. Assim como brinca com ela com as bonecas e com os carrinhos e com todos os brinquedos possíveis à disposição.

E aí é importante dizer que sim, é perfeitamente possível atravessar boa parte da primeira infância da educação de um filho sem ter que entrar no mérito do que teoricamente pertence ao mundo das meninas e o que pertence ao mundo dos meninos. Esse tipo de informação e instrução não representa nada além de uma limitação do universo. O que crianças precisam entender é que há coisas que são adequadas e permitidas a ela e outras que não são, que só são adequadas e permitidas quando elas crescerem. E isso já resolve muita coisa. O mundo para elas, na verdade é muito mais dividido em “coisas de crianças” e “coisas de adultos” que qualquer outra coisa. E essa é uma noção muito importante, inclusive para a segurança delas.

E que resolve muita coisa. “posso jogar Resident Evil?”, “não, isso é coisa de adultos”, “posso beber esse vinho?”, “não, você ainda é pequeno”, “posso mexer nessa faca?”, “melhor crescer mais um pouco”. Acredito inclusive que consigo manter essa lógica com adaptações até ele completar 18 anos.

Até porque, há uma infinidade de outras informações mais relevantes que uma criança deve saber desde bebê que não passam por dividir o mundo em azul e rosa. Tipo, o nome das partes do corpo. Inclusive, e principalmente dos genitais. Deve saber que não pode deixar ninguém encostar a não ser quem é o responsável por dar banho nele e higienizar. Deve saber que ele não deve encostar nos genitais de ninguém, mesmo que peçam. Que beijo na boca é coisa de adulto. Que crianças e adultos não ficam sem roupas juntos. Que ele deve pedir permissão para abraçar outras crianças caso queira e que se elas não quiserem, ele não deve insistir. Por exemplo.

E é isso, não se preocupe em antecipar-se, o seu filho vai entender os códigos. É fácil notar que o mundo é binário e ele vai se identificar ou não com um determinado grupo, e aí cabe a você apoiá-lo para que se sinta confortável e consiga expressar sua autenticidade. Porque em algum momento ele vai ser cobrado para que defenda as leis do gênero em que nasceu inserido. E se ele conseguir chegar nesse momento consciente de que essas regras não tem o menor sentido, de que ele não precisa se submeter, vai ter força para, quem sabe, realizar os enfrentamentos necessários para gente combater tanta coisa ruim que os estereótipos de gêneros nos trazem, tanto machismo estrutural. Quem sabe? São sementes que a gente planta, tentativas que nós fazemos.

Eu, como mãe feminista, realmente não tenho nenhuma garantia de que meu filho não vai ser machista. Eu não tenho ilusões de que ele será imune. Mas enquanto eu puder mostrar a ele como o mundo pode ser bem mais fácil, para todos, quando a gente não se submete a este chicote do gênero, vamos lá. É um dia de cada vez. Quem sabe a revolução não será materna?

Crianças são pessoas

Você já parou para pensar que crianças são pessoas? Sei que essa pergunta parece meio despropositada mas nós costumamos pensar, agir e tratar crianças como se fossem uma categoria a parte, uma outra espécie situada mais ou menos entre humanos e animais. Não tão racionais quanto humanos, não tão irracionais quanto animais. E talvez muito mais próximo dos animais que dos humanos.

Não tratamos crianças como pessoas. Inclusive existe amplamente disseminada a ideia de “treinar” um bebê nas suas diversas habilidades (dormir, comer, usar o banheiro), usando técnicas que partem do mesmo princípio do adestramento de cães. Além de “ensinar” disciplina através de castigo e violência. Dessa última, inclusive, cães talvez escapem com mais facilidade.

Não lembramos de como éramos no início da vida. O que pensávamos exatamente, o que sentíamos. Tudo é muito nebuloso na memória. Então crianças são um território desconhecido cujas ações costumam ser interpretadas com a mesma régua usada para lidar com pessoas adultas. E isto é uma ótica completamente equivocada pois lhes atribuímos intenções que são incapazes de ter. Crianças não manipulam, desafiam, provocam, pelo menos não no sentido clássico que estamos acostumados a lidar. Elas estão o tempo todo fazendo experiências, testando o mundo, as pessoas, a realidade a sua volta.

Crianças são seres em formação que estão apreendendo e aprendendo o mundo.

Mais importante que uma criação com apego, cuja cartilha vai se tornando cada vez mais difícil de seguir, é preciso praticar uma criação com empatia. Com um olhar de empatia, um olhar que tenta os compreender sentimentos e emoções, e procura experimentar de forma objetiva e racional o que sente o outro indivíduo, conseguimos mudar completamente a forma de nos relacionar com os nossos filhos, e com qualquer criança. Mas para isso é necessário que primeiro se trate a criança como o que ela é: um indivíduo.

Assim, num exercício, perceba por exemplo que um recém-nascido é uma PESSOA que acaba de chegar num lugar absolutamente estranho. Ele passou várias semanas dentro da mãe, num universo aquático, cheio de sons, sabores, luzes. Era como um peixe que vivia no grande oceano chamado útero. Aquele era o mundo dele. Ele ouvia vozes, coração batendo, vísceras trabalhando. E de repente ele está em outro lugar, completamente diferente. Ele está em outro meio físico, não aquático, agora ele respira ar, precisa engolir alimento. Antes tudo funcionava automaticamente, imediatamente, organicamente. Agora, quando ele sente fome, frio, calor, dor, medo, ele não consegue fazer nada. Exceto gritar.

É como se hoje você estivesse sentado tranquilo e confortável no seu sofá e em seguida fosse transportado para um planeta alienígena selvagem, onde todos voassem e suas capacidades físicas não lhe trouxessem nenhuma possibilidade de adaptação imediata e você não soubesse como sobreviver e nem como se comunicar. Você também gritaria um bocado, acredite.

Um bebê não chora muito porque quer manipular alguém. Ou porque é mimado. Ou porque é mandão. Um bebê chora assim porque o mundo realmente é coisa demais de uma vez só. Se imagine nesse lugar. Tenha empatia. Ele quer se sentir seguro. Quer um ponto de referência. Ele não tem a menor idéia do que aconteceu com ele. Você sabe que ele nasceu. Ele não. O que pra você é um nascimento para o bebê é uma espécie de morte: morte do mundo seguro onde ele vivia para um mundo novo, hostil, e que ele está aprendendo a conhecer. Isto é aterrorizante, convenhamos.

E isso não se esgota apenas enquanto bebê. A criança vai se desenvolvendo muito rápido, descobrindo o mundo e se descobrindo. Imagina o que é de repente aprender a comer comida, mastigar, andar, falar. Nos 3 primeiros anos da vida de um bebê as mudanças são tão brutais, aceleradas, desnorteadoras. Se até os pais têm dificuldade de lidar com isso, imagina para a pessoa que está vivendo. Não dá pra exigir que ela tenha as mesmas habilidades, as mesmas capacidades, a mesma maturidade para lidar com as coisas que os adultos, teoricamente, deveriam ter. Elas são seres agitados, curiosos, imaginativos. Imagina como você se sentiria se nesse mesmo planeta alienígena que eu usei como exemplo, você estivesse aprendendo finalmente a voar? Você ficaria sentado quietinho em um canto, ou você iria querer explorar os ares? Conhecer as nuvens?

Crianças não são uma outra categorias de seres humanos que por estarem sob tutela e cuidado de adultos são hierarquicamente inferiores e devem se submeter a tudo. Eu sugiro inclusive um exercício interessante: de que se pensem em crianças como um “adulto” em habilitação. Que ainda está se desenvolvendo, aprendendo a usar todas as suas potencialidades, físicas, emocionais, laborais, para transitar pelo mundo. Assim como muitos adultos em reabilitação. E aí eu deixo a pergunta: você bateria em um adulto em reabilitação? O deixaria chorando, gritando, para “aprender” algo? Você forçaria um adulto em reabilitação a adquirir independência a todo custo, mesmo que ele não estivesse preparado? Você declararia repulsa a presença desse adulto em lugares públicos? Você diria “odeio adultos em reabilitação?”.

Esse adultismo que é a tônica da nossa sociedade nos torna prepotentes e um tanto cruéis. Todo mundo já foi criança. E um dia seremos idosos. Um outro jeito de ser criança de novo, caminhando mais uma vez para a fragilidade física. É um ciclo que todo ser humano passa, e é necessário um tanto de ajuda mútua para fazer essa travessia. Sobretudo, essa tal de empatia que tanto falamos. De pessoa para pessoas.