É possível educar crianças para repudiar a homofobia?

Será que é realmente possível educar crianças que cresçam para não só não praticar como para repudiar a homofobia? Eu acredito que a resposta é talvez, e apenas talvez, por mais progressistas que sejamos, porque para ensinar como não discriminar pessoas homossexuais precisamos repensar todo o conceito de heterossexualidade.

Em primeiro lugar, precisamos entender um pouco dos motivos pelos quais ser homossexual é considerado um problema tão grande na sociedade que vivemos hoje. Sim, porque o comportamento homossexual não é novo, nem novidade, nem incomum, nem nos humanos e nem em inúmeras outras espécies. Inclusive existem estudos antropológicos que remontam práticas rituais homossexuais já há cerca de 10.000 anos, ou seja, pessoas transam com outras pessoas desde sempre, a despeito de serem ou não do mesmo sexo.

E quando tudo isso começou a mudar sistematicamente? Com o fortalecimento de instituições como o casamento e a família nuclear que surgiram para garantir a manutenção da heterossexualidade compulsória.

É o que é a heterossexualidade compulsória?

É um regime político organizado para garantir o controle da sexualidade de mulheres, de forma que elas estejam sempre subordinadas sexual e afetivamente a homens, ligadas a uma família nuclear e comprometidas com o cuidado do ambiente doméstico, da manutenção da vida de um homem, com a reprodução e cuidado de crianças. E dizemos que é um regime compulsório porque essa é a única forma de relacionacionamento afetivo-sexual que é permitida aos indivíduos, tendo mecanismos punitivos desde sutis (preconceito velado), até bem contundentes (a morte) para os que não seguem. Vivemos sim em uma sociedade em que não apenas é proibido não ter um comportamento heterossexual como todas as instituições sociais se organizam para garantir a heterossexualização dos seus indivíduos.

E como isso acontece? Desde boa parte das religiões que tem cláusulas bem específicas sobre o tema, passando pelos modelos de conduta ensinados na família, escola, etc (que reforçam a ideia da formação de uma família nuclear, com pai, mãe e filhinhos, como o ápice do acontecimento de uma vida), passando pelas instâncias legais que não reconhecem uniões homoafetivas (e isto está mudando bem aos poucos com muita luta dos grupos interessados), até o principal propagador: a cultura de massa, que nos bombardeia incessantemente com a romantização das relações heteroafetivas.

Ou seja, a despeito de como se constitui a atratividade afetiva e sexual (pergunta para a qual não existe uma resposta definida), ter homens e mulheres unidos e reproduzindo a espécie, com a fêmea em situação de subordinação (que é uma situação dada pela maneira como o casamento se organiza) é uma estratégia basilar do patriarcado e do capitalismo. Não é interessante que mulheres (e aí também homens, consequentemente) sejam livres para de repente decidirem que NÃO querem formar um tipo de organização social (a família-nuclear) que é a peça-chave para a manutenção desse sistema que nos oprime.

Entender a compulsoriedade da heterossexualidade é fundamental para compreendermos o fenômeno da discriminação sexual. Pessoas que decidem fazer sexo com outras do mesmo sexo, de forma não-procriativa, estão transgredindo não só as leis de “Deus”, mas principalmente as leis de regulação da mão de obra para a sustentação do capitalismo e as leis de manutenção da hierarquização sexual entre homens e mulheres. Isso não é sobre “heteronormatividade”, é muito maior que isso. É, repito, um regime político, uma agenda para garantir a imobilidade das castas sexuais.

E aí você pode se perguntar: mas se o patriarcado está aí há 6000 anos porque tão recentemente é que podemos dizer que existe uma organização tão complexa para garantir a heterossexualização das pessoas? Simples, porque antes mulheres não tinham direito a dar nenhuma opinião sobre o destino dos seus corpos. Elas eram vendidas, negociadas pela família, trocadas entre tribos, dadas de presente, como meros objetos comerciais. Mulheres e homens não precisavam ser convencidos a nada quando se tratava de reproduzir a espécie, isso era um negócio, uma solução para ter mãos para lavoura. Até o advento da disseminação das ideias eclesiais, sexo não andava junto com a ideia de casamento, ou amor, ou nada que valha. Quando a prática de vender mulheres em casamento foi abolida (e ainda é uma prática muito comum em muitas partes do mundo, não se enganem), e mulheres começaram a ter alguma autonomia sobre quem seriam seus parceiros, ganharam no colo uma bomba chamada romantização dos relacionamentos heterossexuais, toda a sociedade se reordenou para que a essência de como as uniões se organizavam não mudasse tanto assim, para que sequer pensássemos nisso, em outras formas de estar, de amar, de desejar. Para que mulheres sequer cogitassem a ideia de não unirem-se nunca mais a homens, por exemplo. Continuamos a celebrar os mesmos rituais medievais, mas agora chamando de “escolha”.

Eu acredito firmemente que a maneira mais fácil de educar crianças sobre relacionamentos é buscando fugir o máximo possível dessas noções heterossexualizantes, que estão presentes em tudo que ensinamos, o tempo inteiro, na nossa linguagem, nossa cultura, nos nossos modelos. Dizemos que a vaca é a “mulher do boi” (por que ela não pode ser a irmã? por que não dizemos que ela é a versão fêmea daquela espécie?), dizemos que dois irmãos que são um menino e uma menina são um “casal”, dizemos que crianças namoram, e isso pra citar alguns poucos exemplos que passaram agora na minha cabeça.

Temos que nos observar ao máximo para evitar essa visão do mundo pautada pela divisão sexual. Até porque crianças não têm uma noção erótica. Elas vêem o mundo dividido muito mais entre adultos e crianças do que entre homens e mulheres. Somos nós, ADULTOS, que nos esforçamos o tempo inteiro em doutrinar essa organização mental pautada no sexo.

Eu também não gosto muito do discurso da “aceitação”, porque — a depender de como é feito — isso indiretamente ainda reforça a ideia de que existe um comportamento normativo, padrão, e um “desviante”. “Aceitar”, “incluir”, pressupõe uma concessão. Uma ideia de que aquele outro ali está fazendo algo que não deveria, não poderia, não é natural, está “fora”. E esse entendimento (para crianças) reforça uma ideia de “falta de naturalidade” em comportamentos homossexuais, de que a heterossexualidade é o “certo” mas temos que ser bacanudos e “inclusivos”, quando na real é que ninguém tem nada a ver com a vida sexual de ninguém e pessoas não têm que ser organizadas, ou aferidas, ou validadas, de acordo ou por causa da sua sexualidade.

Diga a seu filho que adultos namoram e crianças não namoram. É isso que ela precisa saber sobre o tema. Quando a criança vir dois homens se beijando, verá adultos namorando. Quando vir duas mulheres se beijando, verá adultos namorando. Quando ela vir um homem beijando uma mulher, verá adultos namorando. Quando ela vir um casal de homens ou mulheres com um filho, verá dois adultos que resolveram criar uma criança. Dois pais, duas mães. Sequer há muito o que ser “explicado” sobre isso. É a vida dos adultos. Fim de papo. Não há o que “aceitar”, não há nada “diferente” nisso. Precisamos parar de projetar nossos constrangimentos e nosso preconceito para o mundo das crianças.

Se há algo a ser “explicado” para crianças sobre esse tema é que vivemos em uma sociedade que valoriza e condiciona um comportamento heterossexual. E isso nos leva a um comportamento de estranhamento, reativo e muitas vezes agressivo a tudo que foge a essa domesticação. O que crianças precisam entender não sobre o que é que a “homossexualidade” e sim sobre o que é realmente a heterossexualidade, sobre o que ela representa, sobre como ela nos é imposta, a que ela se destina. Que pessoas não são “naturalmente” uma coisa ou outra. Elas são pessoas, humanas, complexas, e têm o direito de crescer fazendo valer seus desejos e afetos sem ter que prestar contas a ninguém.

Em uma sociedade que prestasse, onde pessoas fossem verdadeiramente livres, todos saberiam que comportamento sexual de alguém é um tema de foro íntimo e de competência dela e que ninguém tem que se meter nisso. E que isso não define ninguém. Que classificar, discriminar, perseguir, segregar, estigmatizar pessoas com base no seu comportamento sexual só faz sentido em uma sociedade patriarcal, que precisa controlar corpos e sexualidades. Que só funciona porque realiza esse controle.

Então, considerando todas as poderosas engrenagens da heterossexualidade compulsória eu não tenho ilusões que seja possível criar crianças 100% descontruídas, seres de luz, porque a própria lógica de “desconstrução” que temos já está contaminada, porque o capitalismo já colocou as patas nessa pauta (e está se dando MUITO bem), enfim, são muitos poréns. Mas eu acredito sim que é possível explicar a nossas crianças e adolescentes como e porquê as coisas são como são. E acho que é possível esse esforço de contrabalancear essa educação que é toda baseada na divisão sexual da sociedade e consequentemente na dominação e na subalternidade de homens e mulheres respectivamente. Vale a pena pelo menos esse esforço dirigido.

Quanto ao meu filho eu espero apenas que ele faça sexo protegido, consciente e consentido. E que curta muito, e se divirta, porque sexo é uma coisa bastante boa, convenhamos. O resto, realmente, não é da minha conta.

Ser mãe, no país dos absurdos, durante a tempestade

Talvez nunca tenha sido tão insuportável ser mãe como nessa longa tempestade que atravessamos, nesse país dos absurdos, governado por pessoas tão más. Porque atravessamos esta tormenta com nossos filhos nos braços, e muitas de nós estão ficando pelo caminho, e muito pouco estamos conseguindo fazer para ajudar umas as outras.

Eu nunca, particularmente, senti medo de morrer. Até que tive um filho. O primeiro e mais forte sentimento então que eu tomei contato, mais até que o profundo amor que me tomou, foi o medo da morte. Medo de partir sem saber que destino meu filho teria então. Medo que meu filho partisse, levando com ele meu coração dilacerado. Nesses tempos que vivemos, todas nós, que somos mães, convivemos com essa sombra pesada sobre nossas cabeças como nunca antes, porque são inúmeras as ameaças. E sim, para cada filho que se vai, a dor é todas as mães, porque toda mãe conhece esse terror, esse medo desesperado de partir antes dos seus filhos. E para onde olhamos só há dor.

Então eu queria deixar aqui o meu mais sincero abraço a todas as mães que perderam seus filhos nessa pandemia que é muito mais horrorosa do que deveria por conta do desgoverno que vivemos.

Para cada mãe que perdeu seu filho para a violência do Estado e para todas as mães, principalmente negras, pobres, periféricas, que além do medo da pandemia nunca sabem se seus filhos retornarão vivos para casa porque sabemos que nossa cor nos torna um alvo.

Para as mães que perderam seus bebês da maneira mais horrenda, vítimas da violência masculina.

Quero deixar toda minha solidariedade para todas as mães que estão nesse momento sem saber como vão alimentar seus filhos, porque a pobreza nos assola.

Para cada mãe que está sofrendo as mais terríveis violências dentro do seu lar, sem perspectiva de fuga e proteção para suas crianças.

Para todas as mães que estão em burnoutdepressão, crises de pânico, ansiedade crônica, ou cuja saúde mental está esvaindo com algum outro quadro, porque já não dão conta de dar conta de tanta coisa.

Para todas as mães que estão exaustas, sofridas, amedrontadas, sem saber o que fazer com seus filhos, que resposta oferecer, sem saber que mundo existe lá fora para oferecê-los.

Para todas que estão hospitalizadas, ou que estão nesse momento com seus filhos internados.

Queria deixar o meu mais sincero abraço para todos filhos que perderam suas mães, para aqueles que estão com muito medo de perdê-las.

Queria também que cada criança hoje pudesse sentir-se especialmente confortada, querida, segura. Mas eu sei que não é possível, mas ainda é possível desejar, de todo o coração, e mandar os pensamentos mais felizes e acreditar que eles podem ter força sim.

Só nos resta resistir, é o que estamos fazendo. O que sempre fizemos. Não sei ainda por quanto tempo. E nos resta também acreditar que vai passar. Trincar os dentes e seguir em frente. Resistir, sim. Mas até quando?

A culpa não é da mãe

A mídia foi tomada pelo caso do menino Henry, de 4 anos, que foi barbaramente assassinado por espancamento pelo padrasto com a anuência e/ou omissão de todos os que os cercavam, inclusive a mãe, que tinha sua guarda e era a cuidadora primária direta. E a culpa, obviamente, está recaindo sobre a mãe.

Eu não sou muito fã de ficar repercurtindo atos de violência contra as crianças, até porque o menino Henry é (infelizmente), apenas o caso da vez. Já tivemos outras crianças vítimas cuja história foi intensamente explorada pela mídia, como caso do Bernardo, da Isabela Nardoni, e outras que não recebem tanta atenção assim, visto que negras, como é o caso das crianças de Belford Roxo.

Estou trazendo então esse tema pra comentar sobre o comportamento padrão em casos de violência contra crianças que é o de apontar todos os dedos para a mãe. E não, eu não pretendo aqui advogar em defesa dessa mãe ou de nenhuma outra, mas antes comentar sobre os inúmeros problemas que decorrem de responsabilizarmos unicamente as mães sobre o cuidado e segurança dos filhos e como isso serve tão bem aos interesses de um sistema patriarcal.

Culpabilizamos exclusivamente as mães por qualquer evento que acontece com as crianças principalmente por conta da romantização da maternidade que vende a imagem de que toda mãe é naturalmente “santa”, “amorosa”, “pacífica”, “boa”. O mito da “mãe leoa” que protege (ou deveria proteger) os filhos a qualquer custo é na verdade um problema para as mulheres e crianças. Em primeiro lugar porque mulheres são pessoas. E a despeito da socialização feminina treiná-las sim para que sejam mais cuidadosas, amorosas e menos agressivas, elas — como qualquer pessoa — também são capazes de todo tipo de atrocidades, inclusive contra crianças.

Então, quando culpabilizamos mulheres por elas terem “falhado” na sua responsabilidade, por terem desviado da norma do que uma mãe deve ser, quando reforçamos o discurso da “mãe monstra”, nós cada vez mais naturalizamos essa a ideia de que toda mãe é naturalmente e necessariamente boa. E isto está bem longe de ser verdade. Maternidade não conserta caráter de ninguém.

O mito da “mãe leoa” também mais constitui uma enrascada que uma espécie de elogio para as mulheres porque faz com que toda a sociedade espere que mães estejam sempre à postos e atentas, a despeito de terem ou não condições para isso. E mais, faz com que toda uma rede que cerca cada criança, delegue para a mãe essa responsabilidade da proteção, e simplesmente lave as mãos.

Quando alguém encontra uma criança em risco, o que essa pessoa faz é buscar a mãe da criança para que ela resolva o problema, e não garantir que o risco a essa criança cesse. Ninguém considera que a mãe pode não ter condições ou mesmo vontade de proteger essa criança. Ninguém considera que a mãe pode ser a ameaça.

As pessoas não estão preocupadas em proteger crianças porque elas são tratadas como um problema que precisa ser tirado da frente. Um problema que mães causaram, ao tê-las. Então mães que assumam e resolvam. A sociedade age devolvendo o “problema” para que mães resolvam, afinal elas que resolveram transar e resolveram parir. E quando alguma coisa bizarra demais para merecer manchetes de jornal acontece todos ficam “abismados” como se um cotidiano das mais absurdas violências não fosse o comum de boa parte das nossas crianças, sob o nosso olhar complacente. E, obviamente, vão atirar pedras na mãe, que deveria ser onipotente, onipresente e onisciente.

O menino Henry morreu espancado. Morreu de tomar chutes de um homem adulto. Um menino franzino de 4 anos tomando bicudas no abdômen. Quem falhou foi a mãe? Não. Falharam todos que em algum momento perceberam que essa criança estava em perigo e simplesmente se eximiram de protegê-la, justamente por considerar que isso era “assunto da mãe”. Que acionaram a mãe e viraram os olhos sentindo que a missão de proteger uma criança acaba quando devolvemos a responsabilidade para quem é “de direito”. Porque somos uma sociedade que trata crianças como coisas, como objetos que pertencem aos pais. E que quando há algum problema é só “avisar ao dono”, e eles que resolvam. Mesmo que esses pais, que essa mãe, que essa unidade funcional familiar seja a principal fonte de violência contra essa criança.

O menino Henry estava sendo agredido há meses. É óbvio que ele pediu socorro de maneiras diretas e sutis para diversas pessoas. É óbvio que os sinais estavam ali. Não teve uma única pessoa que lançou um olhar mais atento para esse menino para notar que talvez tivesse alguma coisa profundamente errada? Como é que ninguém foi capaz de ouvir o choro, os pedidos de socorro verbais e não verbais, olhar as marcas, ver as mudanças de comportamento? Foi toda uma cadeia de cuidado que passava por mãe, pai, babá, avós, tios, escola, terapeutas, vizinhos… que simplesmente não notou, ou ignorou, ou considerou que isso era “um problema da mãe”.

Quantas crianças em situação de vulnerabilidade e risco de vida passam sob nossos olhos todos os dias e nós viramos a cara porque isso é um “problema da mãe?”. Por que nosso “compromisso” com o bem-estar de crianças se resume em localizar a mãe para culpá-la quando alguma coisa dá errado?

E quantas mães não estão completamente vulnerabilizadas, sem nenhuma condição física, emocional, psicológica, financeira de proteger seus filhos? E estão completamente abandonadas nessa tarefa? Quantas mulheres não estão indo além dos limites aceitáveis para a dignidade humana em nome de proteger seus filhos sob os olhares cúmplices da sociedade que acredita que nada que mulheres façam é demais porque “mães devem fazer tudo para proteger seus filhos?”.

Mães não tem que fazer TUDO para proteger seus filhos. Porque esse “tudo” para a sociedade inclui todo tipo de sacrifício e degradação. Porque a responsabilidade de proteger crianças é usado contra essas mulheres, que são chantageadas, são humilhadas, são usadas, e que quase sempre aceitam de um tudo em nome de garantir a segurança de seus filhos. Aceitam ficar em relacionamentos abusivos, aceitam violência doméstica, aceitam subempregos humilhantes, aceitam vender seus corpos. E tudo bem por isso, ninguém move um dedo para apoiar mulheres, vamos dar um troféu de “mãe guerreira” e uma sessão de apedrejamento público se alguma coisa sair errado. Ninguém liga pro bem estar dessa mulher e menos ainda com crianças.

Parem de apontar dedos para as mulheres. Deixem as mães em paz. Cuidar de crianças é compromisso de todos. Não só das nossas crianças, mas de todas as crianças. Crianças são pessoas em formação, vulneráveis e precisam de proteção 24 horas, e em uma sociedade que não fosse tão predatória, isso seria oferecido a ela em todos os espaços. A despeito da presença dos pais.

Em uma sociedade que realmente se preocupa com suas crianças, Henry, Bernardo, Isabela Nardoni, os meninos de Belford Roxo, e mais tantos outros casos “famosos” e anônimos não existiriam. Mães não estariam acuadas, desesperadas, com a tarefa solitária de defender seus filhos. Mães seriam vistas como pessoas, que falham, e por isso também precisam de ajuda, orientação, apoio. Mães também seriam observadas se sua maternagem é realmente protetiva ou violenta. E principalmente mães não seriam culpabilizadas porque quando algo acontecesse com uma criança, TODA a sociedade, todos nós, sentiríamos esse peso dessa culpa. Sentiríamos que falhamos. Como pessoas, como grupo, como comunidade. Como seres humanos.

Cada vez que uma criança sucumbe, todos nós falhamos. A culpa é nossa.

O que é a Lei de Alienação Parental (LAP)?

Quando fala-se em Lei de Alienação Parental (LAP), a primeira coisa que vêm à mente são histórias de casais em pé de guerra, usando os filhos como munição para atingir um ao outro. Relatos e relatos surgem sobre como um pai impediu o convívio do filho com a mãe, ou sobre como a mãe “fez a cabeça da criança” contra o pai. E como as famílias no geral são muito mais um campo de batalha do que um espaço de harmonia, esse é sempre um tema muito sensível para se abordar porque afeta memórias muito sensíveis na história de várias pessoas que estiveram no meio de disputas de custódia.

E portanto, o lugar mais preciso para se começar essa discussão é esclarecendo logo de partida: essa pressão que crianças sofrem nesse processo de disputa dos pais é terrível, a dor é real, esses embates precisam de mediação sim, mas não é “alienação parental”. É abuso psicológico de crianças, o que os pais sofrem é calúnia, difamação, ou qualquer outro nome ou figura jurídica passível de ser aplicada, mas “alienação parental” é uma outra coisa, e não podemos defendê-la enquanto dispositivo legal porque ela tem no seu escopo muito mais problemas que soluções, além de ser profundamente misógina e feita para prejudicar mulheres e crianças.

O que é a SAP?

Para entender o que é a Lei de Alienação Parental (LAP) é preciso conhecer o conceito da “Síndrome da Alienação Parental (SAP)” surgiu em 1985 proposto pelo psiquiatra americano Richard Gardner (guarde bem esse nome), como sendo um distúrbio passível de acometer crianças envolvidas em disputas de custódia, principalmente quando um dos genitores agia ativamente no sentido de interditar o filho material e emocionalmente na criação de vínculos com o outro genitor. Para Gardner, a SAP, quando não identificada e devidamente tratada, poderia trazer graves consequências psíquicas e comportamentais para a criança. Diversos sintomas como ansiedade, depressão, aversão injustificada ao genitor foram associadas a esse quadro, assim como implantação de falsas memórias (guarde essa informação também) nas crianças.

A SAP desde a criação sempre foi uma teoria controversa, sem comprovação científica, questionada e pouco fiável. Recusada pela própria Associação Americana de Psicologia, sequer foi incluída na quinta edição do Manual de Diagnósticos e Estatísticas dos Transtornos Mentais (DSM-5), que lista todos os distúrbios mentais já identificados, e em virtude dessa discordância, em junho do ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a existência apenas do termo “alienação parental” e não da “síndrome da alienação parental”. No entanto, mesmo sem muita credibilidade, ela foi rapidamente acolhida no meio jurídico servindo aos tribunais mundo afora para basear sentenças de guarda em divórcios litigiosos.

No Brasil, ela serviu de base para a criação da lei 12.318, de 26 de agosto de 2010, que dispõe sobre a alienação parental, criada no intuito de “proteger” a psiquê das crianças em caso de separação dos seus pais, e prevê desde multa a pais alienadores, até reversão completa de guarda.

A fundamentação Gardnerista da lei não é invenção da nossa imaginação delirante. O projeto de lei 4053/2008 foi proposto, à época, pelo deputado Regis Oliveira, do PSC/SP, e todo projeto de lei, quando é proposto, precisa de uma justificação. Você pode ler tudo você mesma aqui, mas nós vamos destacar algumas coisas.

Na justificação, lê-se:

lei de alienação parental

Literalmente todas essas fontes giram em torno dos mesmos grupos que elaboram artigos e análises que acabam por remeter ao mesmo autor — Richard Gardner.

livro “Síndrome da Alienação Parental e a Tirania do Guardião” — “direcionado aos magistrados, pais, advogados, psicólogos, psicanalistas, assistentes sociais e demais operadores do direito” — foi organizado e publicado pela Associação de Pais e Mães Separados — APASE, responsável também pela tradução do artigo “Síndrome de Alienação Parental” de François Podevyn, cuja fonte teórica principal é — você já sabe — Richard Gardner.

O site da associação SOS Papai se baseia largamente em fontes belgas — principalmente na ACALPAAssociation Contre l’Aliénation Parentale. Dando uma rápida olhada no site — notadamente, no item de “diagnóstico da alienação parental” -, é possível perceber a mesma linguagem de sempre e os mesmos critérios descritos por… Gardner. Na listade referências bibliográficas recomendadas pela organização sobre o assunto, naturalmente, ele é referenciado.

As associações Pai Legal e Pais Por Justiça também possuem amplo material sobre a SAP, sempre referenciando os mesmos materiais, os mesmos julgamentos; empenhadas em “denunciar falsas acusações de abuso sexual”.

A justificação desse Projeto de Lei finaliza com a citação de um artigo publicado em 2006 por Maria Berenice Dias, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul — nome recorrente na defesa da LAP e da SAP -, intitulado “Síndrome da alienação parental, o que é isso?”. Vamos deixar aqui só um trecho:

lei de alienação parental

Maria Berenice Dias atualmente é Vice-Presidenta Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), referência em doutrina e jurisprudência em direito de família no Brasil, além de ser uma de suas fundadoras. Ela também preside a Comissão de Direto Homoafetivo e Gênero do mesmo instituto e já presidiu a Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB. Maria Berenice ajudou a elaborar a Lei de Alienação Parental.

Se você ainda não entendeu o problema, deve ser porque nunca leu de fato o que esse tal de Gardner escreveu. Nós temos muitos e muitos exemplos de absurdos que não cabe expor neste texto especificamente — porque já fizemos uma compilação aqui.

Em suma: nossa lei é, de fato, baseada numa teoria que relativiza e naturaliza pedofilia, além de ativa e automaticamente colocar em dúvida a denúncia feita por mães de abuso sexual de crianças, com base em estereótipos misóginos de mulheres loucas, histéricas, ciumentas, controladoras e dissimuladas.

Como a lei funciona de fato?

Em resumo, com a Lei de Alienação Parental, mães estão perdendo a guarda dos seus filhos para pais pedófilos. A mãe, com guarda compartilhada, percebe que o filho está sendo abusado sexualmente pelo pai e o denuncia na Justiça Criminal. É aberto um inquérito para investigar, mas, antes mesmo de ele ser concluído, o pai consegue uma decisão de reversão da guarda, na Vara de Família, alegando “falsa denúncia” por parte da mãe, que é então acusada de ser alienadora. Os processos correm em instâncias diferentes e em geral as provas do abuso são ignoradas, se perdem, os laudos psicológicos das crianças são desconsiderados, e ao final, a criança fica sob a custódia justamente de quem é acusado de ser o seu abusador.

Já são inúmeros casos. Terríveis. Mulheres aterrorizadas, sendo deslegitimadas, incapazes de proteger suas crianças de uma situação tão aterradora quanto a violência sexual. Mulheres que são acusadas de implantar “falsas memórias” de abuso nos próprios filhos para que eles acusem os pais. Mulheres que passaram a ser coagidas, ameaçadas com esta lei. Que recolhem-se, silenciam-se, aceitam acordos onde entregam seus filhos parcialmente nas mãos do abusador para não perdê-los completamente. Mulheres que desistem de buscar direitos. De buscar justiça para seus filhos. Por medo de perdê-los.

É esse o estrago que causa a Lei da Alienação Parental no Brasil hoje, e causou em todos os outros países onde vigorou, e foi derrubada.

Uma lei que não foi feita para proteger crianças, mas sim proteger abusadores

Para entender um pouco sobre o sentido verdadeiro dessa lei, é preciso voltar-se para os fundamentos da sua criação. E para isso é preciso falar de Richard Gardner (lembram-se dele), o criador da teoria da SAP.

Gardner foi um médico que defendia pedofilia abertamente em seus livros, que fez carreira defendendo nos tribunais indivíduos acusados de abuso sexual de crianças. Não coincidentemente, a sua “pesquisa” e a “teoria” (SAP) que desenvolveu foi amplamente utilizada por ele e aumentou muito sua fama e seus honorários, justamente protegendo genitores pedófilos.

Richard Gardner também é o autor do livro Sex Abuse Hysteria: Salem Witch Trials Revisited” (Creative Therapeutics, 1991), onde escreveu coisas como: “Há um pouco de pedofilia em cada um de nós”, ou no seu livro True and False Accusations of Child Sex Abuse (Creative Therapeutics, 1992), onde naturaliza o incesto dizendo que mulheres não devem deixar seus parceiros sem sexo já que “Sua sexualidade aumentada pode reduzir a necessidade de que seu marido se volte para a filha do casal em busca de prazer sexual”.

Profundamente misógino, a obra de Gardner é mais uma a alimentar o mito da mulher histérica e oportunista, ao passo que naturalizava o contato sexual entre crianças e adultos.

O que podemos fazer?

A Lei da Alienação Parental já existe no Brasil desde 2010 e desde o início vem causando estragos. Inúmeras mães, que perderam a guarda dos seus filhos, ou fugiram com eles para não ter que entregá-los ao pai abusador, organizam-se, em diversos grupos, pedindo a revogação dessa lei que causa tanto estrago. A lei precisa ser revogada e mecanismos mais eficientes de proteção à criança precisam ser pensados.

repercuta essas informações

Muitas pessoas ainda não sabem como esta lei está sendo usada contra mulheres e como ela está sendo um recurso que coloca em risco crianças que sofrem abuso sexual intrafamiliar. Compartilhe essas informações o máximo possível, combata a ideia de que a lei da alienação parental (a despeito de algumas aplicações “bem-sucedidas”) é uma avanço para proteção de mulheres e crianças.

vote na consulta pública do senado

Mulheres organizadas conseguiram levar suas denúncias e provocar uma audiência públicae hoje a luta é pela revogação dessa lei. Vote na consulta pública e mostre seu apoio.

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FONTES

O que é Síndrome de Alienação Parental?

Entenda porque revogar a Lei de Alienação Parental é importante para mulheres e crianças – Themis

Lei expõe crianças a abuso – Agência Pública

O empenho da Justiça para evitar os danos da alienação parental

Lei da Alienação Parental: problema ou solução? Debate esquenta

Pai abusador usa Lei de Alienação Parental para tomar guarda de filho

Lei pode obrigar crianças a conviver com abusadores – AzMina

Alienação parental: uma nova forma de violência contra a mulher


Os mitos que romantizam a maternidade

São muitos os mitos que romantizam a maternidade. A romantização constrói uma narrativa sobre algo, escondendo seus aspectos opressivos, e idealizando e hiperdimensionando aspectos positivos. Esta é uma estratégia muito astuta dentro das estruturas de opressão para criar amarras psicológicas que garantem que as pessoas submetam-se a determinados papeis sociais e naturalizem situações onde são imensamente prejudicadas, sem dar-se conta disso. Para mulheres, a romantização da maternidade é fundamental para garantir a compulsoriedade dessa tarefa. A despeito dos dispositivos mais diretos e objetivos (como a dificuldade de garantir a contracepção ou a impossibilidade de interromper a gravidez), são esses gatilhos psíquicos que são construídos durante toda nossa socialização que garantem que quase toda mulher necessariamente acabe se tornando mãe em algum momento da sua vida, ou que sintam-se compelidas a maternar animais, plantas, seus companheiros, ou qualquer outra coisa que apareça no caminho.

Aprendemos sobre a maternidade e sobre o que é ser mãe de muitíssimas maneiras. Recebemos instruções diretas e também observamos o mundo. Vemos nossa própria mãe e a de outras pessoas, e também representações culturais, artísticas e midiáticas: teatro, livros, músicas, filmes, novelas, séries, matérias jornalísticas, e etc. É a nossa cultura — machista, a serviço dos valores do patriarcado — que oferecem todo um referencial com o qual vamos organizando mentalmente todo um aparato simbólico sobre o que significa ser mãe. Sobre o que a sociedade espera de nós nesse lugar. Como devemos agir, pensar, sentir e nos comportar. Somos moldadas para a maternagem atravessadas por mitos românticos que funcionam tanto como uma isca para este lugar, quanto uma medida de controle do comportamento da mulher que materna.

Os mitos que existem sobre a maternidade são a armadilha que nos atraem, nos mantém presas e condicionadas e que embaçam nossa reflexão crítica sobre nosso verdadeiro papel no patriarcado. Por isso é muito importante conhecê-los, para reconhecê-los e principalmente, combatê-los:

  • a mãe sagrada: 
    O sagrado é algo conectado diretamente a uma força superior, imaculada. O sagrado é venerado, infalível e existe para servir a humanidade e ao mesmo tempo ser adorado. Desde mitos antigos, com o arquétipo da “deusa mãe”, cristalizando com Maria, mãe de Jesus, aprendemos que ser mãe é um ser “divino”, “sagrado”, “puro”. Envolvemos o tema da maternidade em uma aura mística, onde a grávida é a mulher “escolhida” e filhos são uma bênção “dos céus”, uma missão sagrada que mulheres devem aceitar custe o custar, estejam prontas ou não, queiram ou não. Uma missão cuja recusa é tida como heresia. A ideia da mãe sagrada vai ancorada na de que a maternidade é um “sacro ofício”, que a dor, o sofrimento, o sacrifício, fazem parte do ato de criar crianças e que nenhuma mulher deve reclamar ou rebelar-se, mas sim resignar-se, e mais sentir-se agraciada afinal “filhos são um presente divino”. A ideia de que a maternidade é um lugar de divindade, e que toda mãe deve ser “adorada”, “reverenciada”, como uma Deusa, também abre espaço para muito abuso de poder onde mulheres incorporam esse mito e comportam-se com total onipotência perante seus filhos exigindo amor e respeito porque sim.
  • a mãe especial:
    esse é um mito muito ancorado no da sacralidade da maternidade. Vende-se a ideia de que mães são seres “especiais”. Isso cria uma falsa sensação de status na maternidade e mascara toda a opressão dessa condição, a ponto de mulheres que não são mães afirmarem que há “privilégios de tratamento” para as que são, antagonizando esses dois grupos. Mulheres deixam de se enxergar como iguais, pressionadas pelo patriarcado para o exercício da maternidade, para verem-se como rivais, onde mães se tornam as “preferidas”, as “paparicadas”, por terem cumprido o seu destino como mulher. Essa promessa é especialmente potente porque a estima das meninas é desde muito sendo esmagada e todas as outras possibilidades de existência e potencialidades vão sendo minadas. Meninas muito precocemente vão entendendo que seus talentos não servem ao mundo, a não ser que estejam a serviço da sedução de um homem ou da criação de filhos. Esse discurso da “mulher especial”, então, torna a maternidade um lugar desejado para muitas mulheres, um lugar onde elas entendem que finalmente terão atenção, reconhecimento social, terão algo que é uma criação sua (sim, um bebê). E é um choque para muitas quando, ao terem filhos, percebem que caíram em uma armadilha, e que se tornaram-se completamente invisíveis.
  • a mãe guerreira/heroína:
    a função do mito da mãe guerreira ou mãe heroína é romantizar o sofrimento e o abandono materno. É uma estratégia eficiente que faz com que mulheres assumam esse arquétipo diante de dados desafios da criação dos filhos, trazendo para si toda a responsabilidade de resolvê-los, e que faz com que a sociedade também “lave as mãos” diante de suas dificuldades, já que toda mãe “é guerreira”. É um prêmio de consolação emocional, uma espécie de “biscoito” psíquico que jogamos para mulheres manterem-se firmes enquanto sofrem todo tipo de horror e aniquilação na tarefa de criarem de seus filhos. Via de regra a mãe “guerreira” foi abandonada por todos e teve que fazer os maiores sacrifícios e abrir mão completamente da própria vida. E muitas vezes esse “elogio” vem dos próprios filhos como forma de gratidão e reconhecimento para a mãe pelo tremendo esforço que aquela mulher fez para criá-los. Mas de fato, quase sempre, por trás de uma mãe “guerreira”. de uma “mãe heroína” o que existe mesmo é miséria, violência, abandono do Estado, e muita exploração.
  • a mãe dotada naturalmente:
    esse é um mito muito presente e muito nocivo: a ideia de que é natural para mulheres cuidar do outro. Que mulheres “levam jeito”, que mulheres tem um “dom”, um “instinto” maternal e de cuidado. Isso não é verdade em absoluto e traz como único resultado uma idealização absurda sobre o tipo de mãe que mulheres devem se tornar. Mães que não erram, que estão sempre ali à disposição dos filhos, mães que amam naturalmente tudo que tem a ver com suas crias e com a maternidade. Essa ideia de que pode haver algum elemento inerente às mulheres para o cuidar de filhos é injusta e profundamente misógina. Injusta porque sequer considera homens nessa equação colocando todo o peso e expectativa nas costas das mulheres e misógina porque enxerga mulheres necessariamente sob uma ótica de serviço e dedicação às necessidades do outros. E esse mito também é a desculpa perfeita para homens fugirem da responsabilidade do cuidado, e para meninas serem socializadas com muito mais afinco nessa direção enquanto não é feito nenhum investimento no ensinamento dos meninos. Mulheres muito facilmente assumem todo tipo de tarefa de cuidado e sentem-se desestimuladas a cobrar ou ensinar ou delegar essas mesmas tarefas aos homens porque “eles não levam jeito pra isso”.
  • a mãe que ama incondicionalmente:
    um dos mitos mais perniciosos que ronda a maternidade é sobre o amor. Tanto o que mães sentem pelos filhos quanto o que filhos sentem pelas mães. Na maternidade, este sentimento é imposto como absolutamente necessário, verdadeiro e inequívoco, que surge sem reservas e de maneira intensa. Para as mulheres é uma espécie de “salário”, a “compensação” por todo o trabalho que ela realiza sozinha, tanto o amor que ela sentirá pelo filho (“você nunca sentirá nada igual”), quando o amor que ela aprende que filhos deverão sentir por ela (“ninguém nunca vai te amar tanto”). E essa lenda que atravessa a relação parental traz também uma visão romântica do amor. Das mães espera-se um amor abnegado, aquele que tudo doa e nada espera, o amor carinhoso e dedicado, sempre a serviço da necessidades dos filhos. Dos filhos o reconhecimento devotado de todos os sacrifícios que a maternidade impôs àquela mulher e a gratidão eterna. Como resultado existe uma série de distorções de relacionamento entre mães e filhos, onde mulheres agarram-se aos filhos e ao seu sentimento por eles como a única coisa importante e que justifica suas vidas, e cobram afeto e gratidão dos seus filhos apenas porque sim, mesmo que sua relação e sua criação seja permeada por equívocos e violências. Do outro lado há filhos romantizando as possibilidades afetivas de suas mães, querendo delas total dedicação e serviço, desumanizando essas mulheres, tirando delas o direito ao erro, muitas vezes patologizando como “narcisista” comportamentos que distem do ideal de “mãe amorosa e dedicada”. E sempre há culpa, muita culpa. Mães que sentem que não amam seu filho o bastante, ou que sentem que não tem o seu trabalho reconhecido. Filhos culpados por não sentirem todo o amor e gratidão que são cobrados o tempo inteiro.
  • a mãe perfeita:
    esse mito constrói a narrativa de que mães são perfeitas e não tem direito ao erro, ao equívoco, à dúvida, no exercício da sua maternagem. E é uma excelente e uma das principais ferramentas de controle do comportamento das mulheres porque, na expectativa de corresponder a esse ideal de perfeição, mulheres aceitam muito facilmente todas dificuldades, o abandono, a dor, a solidão, o desamparo e a exploração do seu trabalho por parte do homens. Elas envergonham-se de sentir as dificuldades de maternar, acham que o problema é com elas, que não são boas o suficiente, e tem muito constrangimento em reclamar e contar suas dores e medos. E ai não conversam sobre o que realmente acontece, não conseguem sair do personagem de mãe infalível. Porque admitir que está dificil demais é lidar com o fato de que não correspondem ao ideal de mãe perfeita, sagrada, que a tudo se doa sem reclamar. Que não são capazes de serem gratas pela benção que é ter um filho. E mulheres que ousam verbalizar para si que não se sentem “abençoadas”, que a experiência da maternidade para elas tem sido na verdade um problema, são escrachadas socialmente, punidas, e invariavelmente sentem-se culpadas.

Os mitos maternos agem assim. Romantizam. Criam a imagem de que a maternidade é um lugar especial, de júbilo, plenitude e amor. Cria um cenário tão idílico que torna-se atraente para mulheres, enquanto elas crescem sendo desprovidas de todas as outras possibilidades de estar no mundo, enquanto elas são massacradas pela ideia de que possuem um “dom” natural para maternar, que possuem um “relógio biológico”, que não possuem nenhum talento, ou utilidade, ou que não há nada mais importante que possam fazer que não seja tornar-se mãe. E uma vez lá, mães, estas mulheres se vêem completamente perdidas e ficam reféns desses mitos e de toda essa romantização porque tentam a todo custo fazer a lenda acontecer, e a sociedade, que opera essa narrativa para garantir que mulheres permaneçam desejosas e “sonhando” com a maternidade, reforça e reforça o discurso e pune as mães que ousam romper o pacto com a mitologia e falar sobre a realidade de de exploração laboral que é a maternidade. E isso opera tão consistentemente que até o tal discurso da “maternidade real” já está sendo romantizado.

Homens sabem muito bem o que significa ser pai. Tanto que adiam ao máximo esse momento (quando pretendem assumir) ou simplesmente fogem. Onde está a romantização da paternidade?

De tantas saudades

Meu filho, você completa seis anos. Seis longos anos se passaram desde que te peguei no colo pela primeira vez e hoje quando te vejo assim, já um menino, meu coração é só saudades. Sim, eu já sinto agora saudades desse garoto divertido e esperto que você é porque descobri que o tempo passa muito rápido. Eu ainda não esqueci teu cheiro de bebê, eu ainda não esqueci teus primeiros passos e agora tudo são saltos e pulos pela casa. Eu ainda não esqueci teus balbucios e agora você matraqueia sem parar. Eu sinto tantas saudades, saudades de tudo. Saudades de você, saudades de mim antes de você. Meu coração é só confusão, eu sinto falta de poder dormir tranquila até a hora que quiser e sinto falta do seu sorriso que me acompanha incansavelmente todas as manhãs. Eu sinto falta do meu corpo antes que você o invadisse e sinto falta de sentir você se transformando em você dentro da minha barriga. Eu sinto falta da minha vida antes de tudo ser sobre você e sinto falta cada vez que você não está aqui. Como é possível tanta contradição num coração?

Você na minha vida me impulsionou a ser coisas que jamais sonhei. A olhar para lugares e abrir portas que nunca mais conseguirei fechar. Tua presença cotidiana, que me tornou mãe, também me tornou uma mulher que anseia e luta por uma possibilidade de mundo melhor para todas as mulheres e para todas as crianças. Mas foi você, é por você. É por não querer perder sua alma, por não querer deixar você entregá-la, num pacto por privilégios. Eu sinto saudades. Saudades de quando a vida parecia mais fácil apenas porque eu não entendia, eu não via, eu não sentia. Eu não sentia nada, e agora eu sinto tudo, meu filho. E foi você, rasgando minhas vísceras com a tua chegada.

Eu sei que foi a socialização que me trouxe até aqui, mas não posso negar a intensidade desse vínculo, de amor, de afeto. Tudo passa tão rápido, e eu sinto alívio também, porque foi tudo tão difícil, e então eu penso que bom que passou, nunca mais faria de novo, mas aí me doem as saudades de um jeito que não tem jeito. E digo “não tenham filhos”, como dizer o contrário? Mas não, eu não vou negar, a maternidade me transformou, ela me trouxe até aqui, ela me forjou essa mulher melhor. E não, não acontece com todas. E sim, acontece com muitas. E às vezes um sorriso apaga tudo, mas é sempre só por um instante. Você tem seis anos, meu filho, e eu não odeio ser mãe. Eu não odeio mesmo. Mas odeio o patriarcado, eu odeio esse mundo que explora mulheres e que nos impede de mergulhar no mar intenso dessa experiência sem medo de rachar a cabeça no fundo.

Você faz seis anos e eu sou só saudades. Saudades de quando você não estava aqui. Saudades de cada versão de você que se vai enquanto você cresce, assim tão rápido.

5 tipos de exemplos que adultos devem dar às crianças

A socialização de crianças ocorre a partir do dizemos para elas mas principalmente a partir daquilo que ela vê, os modelos de comportamento que ela apreende do mundo. Crianças aprendem o que ensinamos e, principalmente, apreendem o mundo a partir daquilo que elas vêem dos seus adultos de referência. Vamos para o mundo imitando esses adultos e com a maturidade é que vamos tendo possibilidade emocional e bagagem crítica para reorganizar esses comportamentos na vida. Por isso os tipos de exemplos que adultos devem dar às crianças podem ser determinantes no futuro:

  1. homens realizando trabalho doméstico
    não adianta apenas dar panelinhas para os meninos ou subtraí-las das meninas, crianças precisam ver homens e mulheres realizando todos os tipos de trabalho doméstico nos ambientes que ela frequenta, a ponto dela não ser capaz de fazer nenhuma associação de atividades a um sexo pois vê todos fazendo de tudo: lavando, passando, cozinhando, limpando, cuidando dos outros. E idealmente, ela precisa ver isso dentro da própria casa, ver todos os adultos ali conversando e realizando a divisão das tarefas da maneira mais justa possível para todos, e inclusive incluindo a criança nas pequenas tarefas.
  2. mulheres divertindo-se
    Traga na mente a imagem de mulheres da infância? Quantas estavam à toa, rindo, fazendo nada, apenas curtindo um pouco a vida? Possivelmente pouquíssimas, porque mulheres não aprendem que têm direito a isso quando chegam na vida adulta. Homens cultivam seus hobbies, tem seus esportes, carteado, videogame, encontro com os amigos no bar, e toda uma série de coisas que ocupa esse lugar de lazer e entretenimento. Para mulheres resta o trabalho doméstico, o trabalho invisível que nunca termina, e quando sobra tempo, uma novela ou série. E convenientemente mulheres ainda aprendem que “lazer” é embelezar-se, então gastam o seu pouco tempo livre dedicadas a rituais de beleza que são tudo, menos divertidos. Então faça um favor as suas crianças e divirta-se. Deixa a louça na pia e senta pra jogar videogame também, saia com suas amigas ou receba-as em casa e passe a tarde gargalhando com elas. Cultive também seus hobbies, escute suas músicas, cante alto, dance pela sala. Deixe as crianças saberem que mulheres são pessoas que existem para além do serviço, da utilidade pública e do embelezamento de ambientes.
  3. homens emocionando-se e falando sobre sentimentos
    Quase tudo que crianças veem sobre homens é com eles envolvidos em conflitos. Homens gritando, com raiva, socando coisas, resolvendo tudo no tapa e no tiro. Homens demonstrando força, brutalidade. Crianças precisam saber que homens possuem sentimentos e que emocionar-se, ter empatia, ter sensibilidade, gentileza, fragilidade não é uma prerrogativa feminina. Que os homens da vida da criança chorem junto com ela assistindo desenho animado, usem roupas coloridas, não tenham medo de dizer que erraram, pedir desculpas, dizer que não sabem, que estão com medo. Que crianças possam conhecer homens que sejam humanizados, despreocupados do compromisso de serem dominantes, desvinculados do compromisso de serem heróis, guerreiros, príncipes. Homens rebelados com o pacto de dureza que o patriarcado exige de todos eles. E que haja cada vez mais retratos desses homens (e meninos) nas narrativas midiáticas para além da caricatura das comédias românticas.
  4. mulheres reais, despreocupadas em serem belas
    Crianças precisam tomar contato com mulheres reais. Mulheres que têm pêlos, marcas, cicatrizes, seios flácidos, celulites, cabelos desgrenhados, rugas. Precisam ver mulheres despreocupadas com roupa, maquiagem, comendo e bebendo com prazer, sem contar calorias compulsivamente. Crianças precisam ver mulheres parando de autodepreciar ou supervalorizar a própria aparência e a de outras mulheres, falando coisas do tipo “nossa, como fulana engordou”, ou “meu cabelo está horrível”. Precisam ver mulheres elogiando-se sem ser pela forma física, aparência ou roupas. E parar de ver mulheres gastando horas do dia em rituais de roupa, unha, cabelo, depilação, maquiagem, para somente depois disso as ouvirem dizer que “estão ótimas”. E parar de ver concursos de beleza e mídias onde mulheres e meninas tem uma aparência absolutamente irreal e falsificada. Parar de ganhar bonecas que já chegam magras, loiras e maquiadas. Meninos e meninas precisam ter contato o tempo inteiro com mulheres reais, validando outras mulheres reais e levando suas vidas sem angústia de estar “bela”.
  5. adultos repudiando violência
    esse é o mais difícil e o mais importante. Crianças precisam testemunhar homens e mulheres repudiando a violência. E isso implica ver homens não sendo violentos com mulheres nem crianças. Isso implica mulheres não sendo violentas com seus filhos. Isso implica rever toda a nossa produção cultural que exalta a força e a violência como maneira de transitar no mundo. Crianças precisam, no mínimo, de um ambiente onde haja um esforço contínuo pelo estabelecimento de acordos, de conversas, de estratégias para resolver problemas que não envolvam gritos, agressões verbais, chantagem emocional, ameaças, agressões físicas. De um ambiente formados por adultos que abandonem o punitivismo como forma de relacionamento e aprendizado. Crianças precisam conviver com isso, e casa, na escola, na maior parte de ambientes possível. Precisam ver adultos conscientes e críticos, empenhados em combater todos os males que uma sociedade tão agressiva, violenta e voltada para a dominação dos mais vulneráveis nos causa. E como adultos, esse é o nosso principal desafio. Combater a dominância, a hierarquia e a violência que nos rege e mostrar a todas as nossas crianças que é possível vivem em comunidade sem tanto sofrimento.

Dessa forma, há algumas coisas que crianças precisam começar a VER acontecendo por aí, não esporadicamente, mas o tempo todo, na sua casa, na casa dos parentes e amigos, nas histórias que lê, que assiste. São mensagens simples mas poderosas que vão mostrando outras possibilidades, que ajudam a quebrar a lógica da exploração patriarcal e da hierarquia entre homens e mulheres, que é afinal contra o que lutamos.

Crianças não são um problema

O mundo seria muito diferente se as pessoas parassem de tratar as crianças como um problema. Que todo o discurso que é feito sobre elas, de toda a sociedade, não girasse em torno de uma ideia que não é claramente dita mas sempre muito sutilmente colocada de que elas causam o caos, que são uma perturbação, de que não deveriam estar ali.

Vivemos em uma sociedade que pretensamente “ama” todas as crianças e as protege. É o discurso oficial que está bastante longe da realidade. Crianças são um grupo vulnerável tratado como propriedade privada dos seus tutores, sob fiscalização bastante esparsa do Estado. São vistas como menos que coisas, muitas vezes equiparáveis a animais de estimação. São sistematicamente excluídas socialmente até atingirem uma idade em que possam ter utilidade social, sejam por serem férteis, produtivas, ou consumidoras. São alvo de todo tipo de discurso aberto de ódio sem que haja sequer indignação sobre o tema. E poucos se preocupam de fato do bem estar delas, enquanto grupo, enquanto classe, enquanto seres de direito, que são. Pessoas.

Eu queria que pessoas lembrassem que a infância é um estágio obrigatório para todos. Que sequer faz sentido tratar crianças como seres “inferiores” ou à margem, porque necessariamente todos nós já estivemos nesse lugar, tendo o mesmo tipo de comportamento típico, de ser uma pessoa em desenvolvimento apreendendo o mundo. Então eu gostaria que os adultos não dedicassem tanto tempo para simplesmente domesticar as manifestações naturais dos estágios necessários de crescimento de todas essas tão jovens pessoas. Que não reclamassem tanto de suas necessidades de choro, sono, fome, de sua curiosidade, rebeldia, de sua inocência, sua raiva, sua inconveniência.

Eu queria que crianças com deficiências não fossem invisíveis, não fossem tratadas como seres de segunda categorias que não precisam de deferência, afeto e cuidado porque são encaradas como pessoas sem plenas capacidades para serem exploradas à exaustão pela máquina capitalista, cujos poucos direitos que possuem foram conquistados à duras penas por suas mães, igualmente invisíveis com suas questões.

Queria que todas as crianças tivessem seus direitos respeitados e não só aquelas que interessam à sociedade, as brancas endinheiradas. Que crianças negras tivessem direito de verdade à infância e que não fossem vistas como adultas tão logo cheguem à pré-adolescência, já sendo considerados aptas para morrer na mão do Estado, ou parir.

Queria que homens não violassem, não agredissem, não explorassem corpos infantis. Que assumissem suas crianças e cuidassem delas de verdade. E que todo esse discurso de que crianças são seres “sagrados”, são “anjos”, são “seres inocentes” não fosse uma mera falácia para ficar bem na foto.

Eu queria que todos se mobilizassem para pensar a maternidade compulsória, um debate tão necessário, e não usasse isso como desculpa esfarrapada para destilar discurso de ódio contra crianças.

Parem de tratar crianças como se elas fossem um problema apenas porque somos uma sociedade embrutecida, cruel, dura, incapaz de cultivar valores de empatia, generosidade e solidariedade com quem ainda não é útil ao sistema. Parem de tratar crianças como se elas fossem um estorvo, um fardo, apenas porque ninguém além das mulheres é levado a responsabilizar-se pela criação delas. E isso interrompe a vida das mulheres sim, mas não porque há algum problema com as crianças e sim porque há um problema com toda uma sociedade que isenta-se da formação dos seus próprio cidadãos, que trata crianças como números, como exército de reserva.

Uma sociedade com valores tão deturpados não está preparada para amar crianças de verdade. Para respeitá-las. Para entendê-las. Para querer oferecer o melhor possível para cada uma delas. Para vê-las em toda sua potência, força e beleza. Somos uma sociedade de valores tão individuais e utilitaristas formada por adultos que também tiveram sua infância roubada, e precisamos ser capazes de quebrar esse ciclo sem fim de violências. Em algum momento precisaremos dar um basta. Não são as crianças que são um problema, são os adultos que em algum momento esquecem da criança que já foram. Elas são a potencial solução para esse mundo tão complicado que vivemos e nós somos incapazes de reconhecer e investir nisso.

Pelo direito de criar nossos filhos

Pode não parecer, mas lutamos pelo direito de criar nossos filhos com dignidade. A sociedade é estruturada de forma que cada um de nós seja a engrenagem de uma super-estrutura exploratória que funciona para beneficiar plenamente uma parcela muito específica e diminuta da população, a saber: homens brancos ricos. Logo, se você não é um homem branco rico, certamente está sendo explorado em algum ponto dessa cadeia, seja em função do seu sexo, sua raça, sua classe, ou tudo junto.

Nosso bem-estar enquanto indivíduos e enquanto comunidade não é algo que seja uma finalidade na nossa vida da forma como ela é organizada. Ou seja: na realidade não nascemos para “ser felizes” e sim para manter em funcionamento um sistema que faz homens brancos e ricos felizes e cada vez mais poderosos. As necessidades subjetivas de felicidade e bem-estar que nos são permitidas almejar e alcançar (e que são necessárias até como um mecanismo de regulação social, senão nos revoltaríamos) são insufladas de maneira artificial e calculadas para nos manter pacíficos, iludidos e alimentando uma roda de consumo que garante o lucro de quem nos explora.

Dito e entendido isto, precisamos ser bem honestos na seguinte questão: o sistema não liga para as crianças, que são propriedade das suas famílias até atingirem uma idade em que possam ser utilizadas na estrutura. E neste contexto, as famílias são as unidades funcionais para criar e manter os indivíduos mais ou menos em bom estado para serem usufruídos em sua capacidade produtiva e reprodutiva, e cujo funcionamento gira basicamente em torno da exploração do trabalho de uma mulher.

O sistema capitalista-patriarcal não se importa se crianças estão nascendo em sofrimento, se passam fome, se são agredidas ou abusadas. Ele apenas se encarrega para que nasça o maior número de crianças possível para que sempre exista um exército de reserva em carestia que é usado para continuar gerando riqueza. E isso através de inúmeros mecanismos diferentes como a heterossexualidade compulsória, a maternidade compulsória, o controle dos corpos femininos, a cultura do estupro, a cultura da pedofilia, machismo, racismo, etc.

É por isso que toda mulher cresce aprendendo que a felicidade vem de ter “amor” ou algo que valha, que manifesta-se em casar-se, ter filhos e cuidar de uma casa e de um marido; e que todo homem cresce aprendendo que a felicidade vem de ter “dinheiro”, sucesso e afins, que manifesta-se em trabalhar, trabalhar, trabalhar. Para que, como resultado final, mulheres mantenham-se sempre cumprindo sua função de gestar e cuidar dos filhos e manter um lar que vai dar assistência para que um homem mantenha-se trabalhando para o capital em potência máxima. Todos sendo explorados. É a máquina perfeita. E os discursos em torno disso vão se adaptando, remodelando-se com o tempo, mas todos os rios desaguam no mesmo mar, não se engane. Nós crescemos aprendendo isso, e nós estamos ensinando isso aos nossos filhos — querendo ou não.

Logo, criar TODAS as crianças felizes, saudáveis, protegidas, capazes de construir um mundo melhor não é prioridade de ninguém que detenha o poder. As pesquisas, descobertas científicas, tecnologias e teorias sobre o melhor desenvolvimento de bebês existem para garantir uma melhor criação apenas das crianças que importam: aquelas que se tornarão adultos que comporão as partes mais acima da grande pirâmide de exploração a qual pertencemos. Criar filhos com alguma dignidade é um privilégio reservado a quem pode pagar. E quem pode pagar, historicamente, tem raça e classe muito bem definidos. Em resumo, moradia adequada, segurança alimentar, acesso a informação, tempo, informação, rede de apoio, possibilidade de autoconhecimento, e tudo mais que uma criação decente de crianças demanda, é acessível basicamente pra uma bolha que contém pessoas brancas com dinheiro.

Afinal, para quem estamos falando de humanização do parto, com os sistemas de saúde pública completamente sucateados? Com o SUS sendo destruído? Para quem estamos fazendo campanha de amamentação prolongada se a licença-maternidade é de 120 dias? Para quem estamos pregando “criação com apego” se quase sempre o que a maior parte das famílias consegue fazer pelos filhos é manter o básico da estrutura de sobrevivência, colocar na escola com um beijo de bom dia, colocar na cama com um beijo de boa noite, torcendo pra ter dado tudo certo entre uma coisa e outra?

Como é que a gente fala de alimentação saudável sem falar de segurança alimentar? Sem falar de renda-mínima? Valor da cesta-básica? Agricultura familiar, aumento salário-mínimo? Como é que a gente fala de comer bem com quem passa fome? Como fala de criação sem violência sem discutir saúde mental, adições, pobreza, violência doméstica, cultura da pedofilia, desamparo estatal, ausência de proteção policial e legal?

Como é que discute antirracismo com os filhos sem falar de desigualdade social, distribuição de renda, políticas de cotas de alto a baixo, reparação histórica, taxação de grandes fortunas, redistribuição de terra e moradias? Sem falar em genocídio de pessoas pretas e pobres, encarceramento em massa?

Quando a gente toca em todas essas questões superficialmente, ou apenas do ponto de vista individual e subjetivo, sem partir da base, sem tocar na raiz dos problemas, para quem estamos falando afinal ? Quem são as pessoas que conseguem burlar estas questões estruturais básicas e ter acesso aos benefícios de um discurso progressista porque tem dinheiro para pagar por isso? E em que isso resulta senão no reforço da lógica de exploração que rege todas as nossas relações?

E fiz essa longa explanação até aqui para dizer que: não existe proposta sobre uma sociedade melhor, mais justa, que não passe pela necessidade de todos criarem seus filhos com dignidade, respeito e consciência crítica. Todos. E não somente as pessoas que chegaram até aqui carregadas historicamente por um acúmulo de privilégios. E para que todos tenham essas possibilidades, para que famílias não sejam apenas uma máquina de produzir gente a serviço da estrutura capitalista-patriarcal precisamos reivindicar estratégias que confiram condições materiais para as pessoas.

Sem condições materiais mínimas asseguradas: moradia, alimentação, segurança, educação, assistência médica, etc, não dá pra criar crianças com qualidade. Porque para garantir esse básico, temos que abrir mão do principal recurso necessário para realizar essa tarefa que é o nosso tempo. Quando se precisar estar 18 horas por dia dedicado a um trabalho laboral de manutenção da vida não interessa quanta informação nós recebemos, quantos livros lemos, quantos cursos fizemos, quantas teorias revolucionárias de criação nós conhecemos, não conseguiremos aplicar isso. Só vamos acumular a angústia e frustração.

E ocupar todo o nosso tempo também é uma estratégia do capitalismo. Precisamos ser mantidos ocupados e exaustos para que não consigamos sequer refletir sobre nossa situação. Para que a gente não pense sobre que tipo de organização de vida é essa em que estamos inseridos, que vamos sobrevivendo, passando pra frente toda a socialização que aprendemos, no automático, deixando exploração, violência e sofrimento como legado. Nosso tempo é completamente ocupado, roubado de nós para que a gente não tenha tempo nenhum de refletir quem somos, de onde viemos, para onde vamos.

A ninguém interessa uma geração de pessoas despertas, que esteja interessada em criar crianças críticas, conscientes. Que vão se tornar adultos potentes para rebelar-se. Pessoas conscientes são um problema e propor uma criação libertadora, anti-sexista, antirracista, anticapitalista é dos discursos contra-hegemônicos mais revolucionários que podem existir, e cabe a nós, pais, cuidadores, educadores, adultos interessados em plantar sementes para um futuro mais promissor, conquistar o direito fundamental e inalienável de poder criar nossos filhos com dignidade hoje. Já.

E portanto, nós temos o compromisso de ser mais ousados do que temos sido. Ou no mínimo menos ingênuos. ENXERGAR as artimanhas em que somos engendrados, denunciar, opor-se, reivindicar condições mais justas, humanas, Condições materiais. Concretas. Pensar em uma organização social que não se baseie em exploração. Que não dependa de lotes de crianças em sofrimento sendo produzidas a toque de caixa para poder prosperar. Criar uma sociedade melhor para nossos filhos só funciona se essa sociedade for melhor para todos os filhos de todas as pessoas. Porque enquanto uma criança ainda crescer com fome, sendo explorada, sendo abusada em algum lugar significa que ainda falhamos com ela e com o adultos que ela será. Que fatalmente perpetuará esse ciclo de indignidades. E vamos só afundar na ilusão de que estamos fazendo algo e continuaremos a entregar nossos filhos para esse mesmo mundo bosta com um futuro de cartas marcadas que tem cara de passado.

A felicidade de todos nós deveria ser nosso objetivo enquanto sociedade. E pra isso precisamos até entender o que consideramos felicidade. Enquanto nos for negado o direito de pensar por conta própria (roubando nosso tempo, direcionando nossos pensamentos e emoções) vamos seguir patinando. Mas acima de tudo precisamos entender que esse desafio não é dos nossos filhos, não é mais dos nossos pais. É todo nosso, e não podemos fugir. Pelo direito de criar nossos filhos e pelo direito de toda criança ser criada com respeito e dignidade.

A pedofilia é um projeto

A pedofilia é um projeto. Ela é definida como qualquer tipo de envolvimento de cunho sexual de adultos com crianças. Há hoje todo um “repudio” social à prática e aqui entram muitas aspas mesmo porque é preciso que, de uma vez por todas, a gente encare esse tema sob a perspectiva adequada: a pedofilia é uma estratégia masculina para garantir e manter seu poder sobre as mulheres.

E não é tão difícil de perceber isso. Basta saber para onde olhar.

Primeiro, vamos olhar os números, para entender a magnitude do que acontece.

Falando de Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde em 2018 foram registrados mais de 32 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes. De 0 a 9 anos, 75% das vítimas são meninas. De 10 a 19, as vítimas meninas somam 92%. As agressões (e por “agressões” entenda que a maioria é estupro) ocorrem prioritariamente em casa perpetradas pelo pai/padrasto ou um conhecido da família. E sim, os perpetradores são a maioria esmagadora, homens.

É uma média de 3 agressões por hora, o que significa que até você terminar de ler esse texto há uma chance muito grande de uma menina ter sido acossada sexualmente em casa pelo pai ou alguém muito próximo, em algum lugar do Brasil.

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E isso analisando dados específicos. Quando começamos a cruzar informações fica tudo muito mais nebuloso. Muitos já devem ter ouvido falar da “famosa” estatística de que no Brasil há um caso de estupro notificado a cada 11 minutos (que com a previsão de subnotificação poderia significar um estupro a cada minuto). O que não se falou é que 70% desses casos de estupro são de crianças e adolescentes. Segundo o 13º Anuário de Segurança Pública, com dados de 2018, de cada dez estupros, oito ocorrem contra meninas e mulheres e dois contra meninos e homens.

E isto estamos falando de tragédias domésticas.

Se consideramos os números de exploração sexual infantil então, os dados são alarmantes. Embora seja uma taxa bem difícil de levantar, um estudo de 2002, estimou que à época havia cerca de 10 milhões de crianças em situação de prostituição no mundo. Lembrando sempre que mulheres e meninas são 99% das vítimas de comércio sexual. E são alarmantes principalmente porque pesquisas consistentes quase inexistem, há um apagão de informação, subnotificação, omissão e silêncio. Sabemos por exemplo que crianças são 1/3 das vítimas de tráfico humano no mundo, sendo 70% delas, meninas. De todas as vítimas de tráfico humano mundial, aliás, meninas representam 20%. Com fins de exploração sexual para 59% dos casos. Isso sem falar nos números de pornografia infantil, que são explosivos.

E aqui falando apenas das práticas “ilegais” ou “forçadas”. Porque há as “legalizadas”. O casamento infantil é uma realidade no mundo inteiro e é a forma em que o Estado endossa a tomada de poder sobre corpo de crianças, de maneira absolutamente institucionalizada e naturalizada. Podemos então começar dizendo que no mundo hoje cerca de 21% das mulheres casaram antes de cumprir 18 anos. São 650 milhões de mulheres. E todo ano, 12 milhões de adolescentes menores de 18 anos contraem matrimônio. A idade de consentimento para casamento é uma discussão bastante recente, que muitos países não se interessam em fazer, ou tem legislações que são absolutamente coniventes com o abuso. Como permitir o união com menores após a emancipação feita pelos pais (que como resultado incentiva desde venda de menores até autorização para “salvar a honra” perdida por conta de estupro). E não há tantas diferenças assim com relação a cultura ou nível de desenvolvimento, Estados Unidos e Canadá estão tão mal posicionados no mundo, em termos de proteção a essas adolescentes, quanto o Afeganistão, Nigéria, Tanzânia e outros países da África.

Brasil é o quarto país do mundo em índice de casamento infantil e segundo o Censo 2010, pelo menos 88 mil meninos e meninas com idades de 10 a 14 anos estavam casados. Na faixa etária de 15 a 17 anos, eram 567 mil.

E tudo isso para dizer que a pedofilia seja de forma ilegal (quando há legislação protetiva) ou ilegal (quando amparado pela legislação) é uma atividade amplamente enraizada, disseminada e praticada em toda a nossa sociedade. Que a maioria esmagadora das vítimas são meninas e que a maioria esmagadora dos perpetradores são homens.

E aí cabe então agora entende como isso se estabelece e por quê isso acontece.

Eu já falei um pouco aqui sobre cultura do estupro, sobre como homens e mulheres são socializados para normalizar abuso e violência sexual como ritual de sedução. Mas para esse raciocínio ficar completo é preciso entender que o pensamento pedófilo faz parte da socialização masculina e é o principal traço da nossa cultura. Meninos aprendem a desejam mulheres jovens e aprendem a manter esse desejo mesmo quando adultos. E é bem fácil perceber isso.

Antes, é preciso um parêntese de que esse constructo cultural, como conhecemos hoje, foi reforçado principalmente no último século com advento da TV e demais mídias de comunicação de massa. Tanto como um reflexo do pensamento predominante quanto como uma necessidade de driblar o tabu que passou a ser criado quando finalmente a infância foi reconhecida como uma parte vital do desenvolvimento humano, gerando verdadeiras batalhas para criar barreiras de proteção à infância. E isso tanto é verdade que as legislações que regulam a idade de casamento infantil são absolutamente recentes. Na regra, antes disso, a prática de venda ou troca de meninas em matrimônio (como um produto mesmo) eram um negócio familiar, e não havia absolutamente nenhum constrangimento em desposar meninas mal tivessem atingidas a idade púbere.

Pesquise com que idade sua avó ou bisavó tiveram seu primeiro filho e descubra por si mesma.

Então, alguns desses parâmetros que cito aqui, nos são muito próximos e atuais e refletem um estabelecimento de uma cultura da pedofilia organizada em parâmetros muito mais sofisticados em função das possibilidades tecnológicas e com função de preservar e reinserir a lógica naturalizada de homens acessarem livremente — e sem tabu — os corpos de meninas.

Por exemplo, nós mulheres somos proibidas de envelhecer, já notaram? O homem “maduro” é sábio, charmoso, experiente. Já a mulher entra em completo pânico ao ver o primeiro cabelo branco na têmpora pois sabe que está obsoleta no mercado. Está “velha”. Deixa de ser objeto de desejo, deixa de ser “fodível”, não consegue mais inserir-se nos mesmos espaços (inclusive mercado de trabalho), fica refém — e é cobrada por isso — de um sem número de procedimentos estéticos para “prolongar a juventude”. Porque toda mulher sabe que homens querem estar do lado de mulheres jovens.

E mais, o ideal de beleza que nos é exigido reflete não só a necessidade de manter um ar de “juventude”: o apelo (vendido pelas imagens padrão da mídia, publicidade, e indústria da beleza e moda) é de uma mulher pequena, frágil, de “pele suave”, depilação total, ausência de manchas, rosto corado, magra, sem nenhuma gordura, corada, jovial, sexy mas “angelical”.

Pensem. Quem tem essas características primárias? Quem tem pele lisa e sem manchas, ausência de pêlos, pouca gordura corporal, rosto e lábios corados? Quem tem estatura pequena e frágil? Com quem essa descrição parece?

Se você não sabe eu digo: crianças.

Mulheres adultas têm pêlos, acnes, gordura, cheiros, rugas, estrias, celulites, cicatrizes e tudo mais. Ou deveriam ter. Porque homens ostentam isso tudo sem pressão, a eles é permitido crescer e envelhecer. Mas mulheres são permanentemente pressionadas para manterem um corpo e um rosto adolescente se quiserem ser atraentes. Porque homens só legitimam a beleza pré-pubere. E essa imagem de que tipo de mulheres homens devem desejar é reforçada pela mídia e principalmente pela pornografia.

Jennifer Aniston. 20 anos e mesma cútis com algum botox a mais

Homens são incentivados a “trocar” sua esposa de 40 por “duas de 20”, efetivamente ostentam relacionamentos com mulheres 20, 30, 40, 50 anos mais novas. Muitas delas que começaram a se relacionar quando ainda eram menores de idade. O abuso é romantizado com o papo de que “amor não tem idade” ou a velha história de que “meninas amadurecem primeiro que meninos”, ou que “ela era diferente e mais madura pra idade”.

Toda a nossa mídia está recheada de meninas e adolescentes sendo aliciadas para performar o papel de “ninfetas”, de “lolitas” sedutoras dos pobres homens que não podem ver uma “cabrita”. A rivalidade entre mulheres mais velhas e mais jovens é absurdamente estimulada a ponto de adolescentes serem culpabilizadas pelos assédios que sofrem de homens adultos casados que não respeitam seus relacionamentos. Meninas e jovens que são terrivelmente sexualizadas e estimuladas a buscar reconhecimento e aceitação social a partir do reconhecimento de sua beleza e da aprovação masculina que surge na forma de assédio. Não precisa ir muito longe, uma busca no instagram revela o perfil de diversas crianças e adolescentes absolutamente pornificadas.

Mc Melody, 12 anos

Nossa sociedade acolhe homens abusadores e pedófilos. A lista de homens famosos acusados de envolver-se sexualmente com menores é incalculável. Celebridades que nunca tiveram uma vírgula de sua reputação sendo afetada. E nem terão. Escândalo após escândalo, seguimos anestesiados diante do volume de casos, achando que tanta violência são causadas por “monstros”, simplesmente porque é difícil demais admitir que o que vemos é uma regra e não uma exceção: homens são criados para serem predadores sexuais de meninas.

E não pára por aí, a tentativa de institucionalização da pedofilia é real, consistente e faz avanços. Existem inclusive várias e várias tentativas organizadas de normalizar a pedofilia como uma orientação sexual, todo um ativismo pedófilo, antiquíssimo, que teve seu auge no final da década de 70/80, sofreu algumas derrotas ao longo da décadas de 90/2000 e agora está ressurgindo disseminado pelas redes travestido de “diversidade”. Existem leis como a Alienação Parental que foi toda formulada por uma teoria rejeitada em diversos países e sem nenhuma comprovação científica, criada por uma figura comprovadamente pedófila, que como resultado da aplicação tem mantido crianças em situação de abuso na guarda dos seus perpetradores. Em 2005 no Brasil, ainda vigorava uma lei que permitia que estupradores escapassem da cadeia caso casassem com suas vítimas.

A pedofilia não é uma “doença”, essa é mais uma tentativa de patologizar o comportamento masculino e causar empatia e uma falsa sensação de segurança nas mulheres, dando a impressão que só “alguns” homens são perigosos, que são pessoas “adoecidas”, que “sofrem” e podem “curar-se”. Mas se a pedofilia é uma doença de alguns, alguém me explica todos os números apresentados acima? Me explica como a idade média do primeiro assédio de qualquer mulher é anterior aos 10 anos de idade? Por homens adultos? O hábito de homens serem os iniciadores sexuais de suas filhas é uma prática tão naturalizada em algumas regiões do Norte do Brasil, por exemplo, que surgiu a lenda do “boto” que engravidava meninas pra justifica a alta taxa de gravidezes incestuosas. Essa “doença” é uma pandemia global? Porque nem coronavírus atinge tanta gente.

Apenas observem os homens. Seus hábitos, seus focos de desejo, seus fetiches, o que produzem em termo de cultura, o que pensam e dizem sobre meninas. Homens aprendem a desejar sexualmente essas crianças e adolescentes e alimentam toda uma industria de comercialização de corpos jovens, enquanto forçam mulheres a nunca parecerem velhas demais, enquanto violam meninas e as seduzem chamando de “amor”.

E tudo isso por qual motivo?

Bom, essa resposta é “fácil” e relativamente curta. Para manter o sistema de dominação de homens sobre mulheres ativo e operante.

Existe maneira mais eficiente de dominar uma mulher e tomá-la para si, ao seu serviço, do que capturando-a ainda menina? Do que submetendo-a sexualmente? Engravidando-a e a retirando da vida pública? Onde ela não poderá estudar, trabalhar, ser ativa, disputar espaço, pois estará completamente mergulhada nas tarefas de cuidados de casa e filhos? Sempre dependente economicamente porque não terá como acumular nenhuma riqueza própria, formar nenhum patrimônio?

Pensem na vida das avós de vocês. “50 anos de casamento”. Pergunte-as pelo que elas passaram, o que aturaram, o quanto serviram caladas, a que foram submetidas. Essa realidade não dissipou-se, ela é absolutamente real ainda para muitas e muitas de nós. Hoje, neste momento.

A exploração sexual infantil é um subproduto do casamento infantil porque o mundo patriarcal é um mundo que sempre entregou mulheres para o abate assim que atingissem a puberdade. E ainda entrega, mas agora de diferentes maneiras.

E o objetivo é sempre o mesmo: manter mulheres sob uma lógica de submissão e subalternidade, reproduzindo filhos e mantendo a roda do capitalismo girando. As estratégias se especializam, mas o objetivo do patriarcado não muda.

E é por isso que qualquer coisa que passe por combater práticas de pedofilia precisam levar em conta a engrenagem de como as relações entre homens e mulheres está estruturada. Então não passa apenas por dar “educação sexual”, ou mesmo de criar leis punitivistas, ou legislação protetiva. É preciso implodir a lógica de dominação sexual de homens para meninas e mulheres. Precisamos ver a pedofilia como ela é: uma estratégia de guerra de homens contra mulheres, inserida no coração do patriarcado. Uma maneira de manter mulheres acossadas com suas crianças, eternamente com medo de violência sexual. Crianças e mulheres por mais “educadas” que estejam pra reconhecer os agressores não dão conta de defender-se porque a realidade é que as agressões e as ameças e a violência está por toda parte. Basta olhar.

Precisamos de um pacto social verdadeiro pela proteção das nossas crianças, que implica no reconhecimento do homem como sujeito perpetrador da violência física e sexual contra mulheres e crianças. E que responsabilize, cobre, exija uma compromisso de todos que dizem repudiar essa realidade patriarcal.

Que homens que dizem se importar e indignam-se com tanta dor causada tenham coragem de rebelar-se, trair o patriarcado que significa trair todos os outros homens que compactuam com esse sistema de opressão. Não basta e não é justo pedir que mulheres deem conta de eternamente defender-se e as suas crias, de entregar suas vidas ao inimigo. Precisamos desmantelar essa máquina, entendendo como ela funciona, sem paliativos e principalmente sem ingenuidade. Porque é a vida de meninas, todas as meninas, que está em risco constante.

Até quando amamentação será um assunto dos homens?

Agosto Dourado e voltamos às campanhas e ao debate em torno da amamentação. Debate esse que gira invariavelmente em torno da “conscientização” das mulheres sobre a importância de amamentar seus filhos, e aí entram vários argumentos sobre benefícios de saúde para o bebê e também para a mãe, e também um universo bastante rico de informações no sentido de orientar mulheres para realizar essa tarefa. E isso seria muito bonito se a amamentação na nossa sociedade não fosse um privilegio de classes mais abastadas e também mais do mesmo na lógica patriarcal da exploração do corpo da mulher. Até quando amamentação será um assunto dos homens?

E para entendermos melhor essas afirmações tão polêmicas que eu trago assim logo de cara, é importante a gente conhecer pelo menos um pouco sobre a história da amamentação desde sempre.

A importância do leite humano como alimento imprescindível para sobrevivência de bebês sempre foi compreendida desde a pré-história quando perceberam que oferecer alimentos alternativos era infrutífero. No entanto nem sempre foi considerado importante que a amamentação fosse realizada pela mãe da criança

Apenas na antiguidade acredita-se que mães amamentavam seus filhos livremente, e corrobora com isso muito da mitologia que conhecemos até hoje, onde Deusas de diferentes panteões aparecem realizando essa prática, além de registros diversos. Já no Império Romano (que acabou em 476 DC) há registros do uso da figura da “nutriz”, que era uma mulher — escrava — cuja função era amamentar crianças. A famosa “ama-de-leite”.

Por séculos, existiu a “indústria da nutriz”, onde todos (pobres e ricos) se utilizavam da mão-de-obra de uma outra mulher (primeiro escravizada depois “contratada”) para amamentar os filhos. Com a Revolução Industrial, onde todo mundo foi parar nas fábricas, criação dos centros urbanos como conhecemos, atomização da família e principalmente o avanço das tecnologias de nutrição infantil a indústria do leite em pó veio acabar com esse nicho de mercado, transformando as nutrizes em “babás” e fazendo desabar as taxas de amamentação ao redor de todo mundo. Agora mulheres eram convencidas de que até leite condensado era melhor que o seu próprio leite e que ela deveria ser “livre” (para trabalhar na fábrica e enriquecer a indústria, no caso).

Aí vem a pergunta que não quer calar, e que quase ninguém lembra de fazer: por que mulheres pararam de alimentar seus próprios bebês, entregando a outras mulheres, se esta é uma atividade relativamente natural e consequente ao parir? Simples, porque HOMENS assim o decidiram já que:

a) lactantes demoravam a engravidar novamente e ter muitos filhos era estratégico, porque a mortalidade infantil era altíssima e crianças eram patrimônio dos pais (trabalhadores braçais, se meninos, ou parideiras para vender em casamento, se meninas).
b) no início do advento do cristianismo, lactantes eram constrangidas a não fazer sexo e os homens queriam transar.

Então a amamentação de crianças pela mãe era um péssimo negócio para homens já que sua esposa ficava envolvida numa tarefa que poderia durar anos, sem produzir novos bebês e com pouca disponibilidade – e permissão religiosa – para transar.

Atualmente, pesquisas comprovam a amamentação como estratégica para o melhor desenvolvimento dos bebês e a tarefa passa a ser reincorporada como uma boa prática, agora a encargo das próprias mães.

E aí você pensa, uau, finalmente! Evoluímos hein! Só que claro que não, se a gente olha para nossa história para aprender alguma coisa, a lição que temos aqui é: alimentação de bebês sempre foi uma coisa pensada e decidida por homens e imposta às mulheres sobre diferentes artifícios. Mulheres nunca tiveram autonomia sobre seus corpos, e, principalmente, a importância e a maneira como é realizada alimentação infantil sempre esteve ligado muito mais a fatores econômicos do que pensados realmente no bem-estar de crianças e mulheres.

E é nessa hora que eu te convido a pensar junto comigo, sem emoção, sobre esse tema.

O que acontece agora é que os principais problemas foram superados: lactantes já podem transar sem culpa e também não vão engravidar por isso. E homens entenderam que bebês bem amamentados se tornam adultos mais fortes, inteligentes, saudáveis e com mais longevidade. Entenderam que isso é um bom investimento a longo prazo.

E do mesmo jeito que mulheres foram convencidas que deveriam entregar seus filhos para nutrizes e depois que deveriam dar leite em pó para seus bebês, agora estão sendo convencidas sobre como ela deve assumir a tarefa da amamentação . Porque é um “ato de amor”, um “dever”, que é “bom pra sociedade”. Dizendo (muito sutilmente, claro) que se você não amamenta, você não ama seu filho, não quer o melhor para ele. Romantização na veia. A velha fórmula não muda.

E aí, é preciso ver com clareza qual a mulher escolhida pelo sistema capitalista para que amamente essas crianças que serão os adultos premiados do futuro. Quais são os bebês selecionados para uma existência mais saudável e com menos risco de adoecimento. E para descobrir eu sugiro um experimento simples: coloquem a hastag #smam em qualquer mídia social e observem bem as fotos. O que você vê? Mulheres brancas com acesso a bens econômicos e culturais.

Porque a amamentação e saúde de bebê para longo prazo, não é para todas as pessoas. Muito menos para a camada mais pobre da classe trabalhadora, quase toda formada de pessoas racializadas e pobres. Essa população precisa estar economicamente ativa alimentando a indústria do leite em pó, enquanto um outro grupo mais privilegiado, que tem raça e tem classe definido vai poder fazer valer o uso de todas as recomendações preconizadas pela OMS.

Ou você espera que uma mulher proletária, salário mínimo, chefe de família, quase sempre com mais de um filho, com nenhuma rede de apoio, com apenas 120 dias de licença maternidade, amamente por 6? Como? Com uma lei que te dá dois intervalos de apenas meia hora durante o período laboral para a amamentar? Com oferta mínima de creches para deixar o bebê? Com pediatras que orientam introdução alimentar aos 4 meses de idade com danoninho?

Como nós vamos falar sobre “livre demanda” com essa mulher? Quando ela passa facilmente 12 horas fora de casa? Sobre “confusão de bicos”? Quando diversas outras pessoas se encarregam de alimentar o bebê nesse período e ela perde completamente o controle do processo? Vamos dizer para ela “ordenhar” e “conservar” o leite? De que mulher estamos falando que consegue fazer isso? Aquela mulher que trabalha na fábrica, que trabalha o dia inteiro em pé na loja do shopping, que trabalha atrás de um balcão, no painel de um atendimento telemarketing?

E aí você pode argumentar: “mas os países com maior taxa de aleitamento são países muito pobres da África ou do Oriente Médio”. São sim, e quando você vai olhá-los na lupa quase sempre descobre que quase todos são países minúsculos que serviram como laboratório das campanhas da ONU. Ou você acha que se realmente houvesse vontade política de incentivar o aleitamento nós teríamos apenas 34 países (incluindo o Brasil) cumprindo a recomendação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de conceder ao menos 14 semanas de licença à mãe com remuneração não inferior a dois terços dos seus ganhos mensais?

Com quem estamos falando quando dizemos que o recomendado é que o bebê seja amamentado até os dois anos de idade? Quem é essa mulher que consegue fazer isso? Quais condições de VIDA são necessárias para isso que não flertam com privilégio de raça e classe? Ou que sejam apenas uma conjunção de perrengue e sorte?

Quão cruel é jogar essas campanhas no colo de uma mulher pobre que se chicoteia intimamente porque “não conseguiu amamentar” quando ela não teve informação, apoio e teve que voltar a trabalhar para sustentar a família? Por que ficamos falando apenas sobre amor e saúde e nunca sobre sobrevivência?

Ou vamos admitir finalmente que realmente não interessa nem um pouco a saúde de crianças pretas, pardas, pobres. Que ninguém se importa se elas se alimentam de mingau de fubá, se ficam subnutridas, adoecidas, se morrem. Porque pobre é exército de reserva mesmo, e o que mais tem no mundo são pessoas pobres, não é mesmo? E ninguém se importa com a subjetividade da mulher proletária, dane-se que ela sabe que Mucilon não é o melhor para o seu bebê, porque veja, finalmente ela está informada, mas é só aquilo que ela consegue prover, com culpa, com medo. Já que essa mulher está o tempo inteiro lidando com viver ou morrer, literalmente, e está o tempo inteiro fazendo redução de danos. Nunca escolhas.

Mais uma vez a decisão sobre quem amamenta e que bebês serão nutridos está nas mãos dos homens, e mulheres estão fora do debate e das decisões e políticas que impactam diretamente a autonomia do seu corpo e a saúde dos seus filhos.

Para um política verdadeiramente honesta sobre o tema, a amamentação é focada em saúde para todos os bebês e não só os que são estratégicos ao capital. E mulheres são chamadas ao debate e não chantageadas emocionalmente. E recebem todas as condições materiais para que possam realizar a tarefa para o qual estão sendo convocadas.

E por condições materiais eu falo da ampliação da licença maternidade para o mínimo de 6 meses segundo as recomendações da OMS assim como um “auxílio-lactação” pelo mesmo período para que toda mulher pobre, sem renda, não precise entregar seu filho com 30 dias na mão de terceiros e ir trabalhar. É preciso falar em ampliação da assistência de creches para que se possa deixar outros filhos durante o dia, enquanto dá assistência ao recém-nascido. É preciso uma ampla rede de assistência ao parto e ao puerpério, com profissionais de apoio à amamentação fazendo visitas domiciliares, orientando e acompanhando essa mãe. É preciso ampliação da licença parental, para que haja uma outra pessoa apoiando essa mulher nas demandas domésticas. E aí sim, dadas as condições para que qualquer mulher, de qualquer raça ou classe, que queira, possa amamentar, podemos falar em orientação, conscientização, incentivo, apoio.

E isso falando apenas de uma via completamente reformista.

Pensando de maneira revolucionária, pra começar, mulheres precisam retirar essa decisão da mão dos homens. Que ainda que não o façam diretamente hoje, a conduzem através das pesquisas científicas, das invenções industriais, das leis, das normas e diretrizes de saúde, das campanhas. Homens que instrumentalizam mulheres desde sempre para prestação de serviço ao sistema patriarcal e capitalista.

Precisamos tomar esse debate para nós e fazê-lo nos nossos termos, pensando juntas qual o papel que como mulheres e mães queremos, podemos e precisamos realizar, num grande pacto social. Isso significa construir coletivamente sobre qual o custo (mental, emocional, psicológico, financeiro, físico), da amamentação para nós. Pensar no lugar do nosso corpo nisso tudo. Combater essa estratégia de romantização da amamentação que é uma clara estratégia para culpabilizar e responsabilizar mulheres pela nutrição de seus bebês.

E pensarmos, juntas, nós, mulheres. Porque são muitas as questões e poucas as respostas construídas através do acúmulo do nosso olhar e das nossas experiências de mulher: e fazer isso desapaixonadamente, sem coerções emocionais.

Como a nutrição adequada de bebês deve ser gerida por nós enquanto sociedade? E como nós, mulheres, seres que somos capazes de realizar essa tarefa, queremos estar neste contexto? Esse é um lugar completamente diferente e libertário para pensar amamentação. Algo inédito e que ainda não foi feito de verdade: do ponto de vista das mulheres.

E sim, mulheres podem amar amamentar, está liberado também. Porque para muitas é uma experiência bonita e repleta de beleza num vínculo muito especial com a criança. E mais uma vez isso não tem a ver com maternidade. Mulheres amamentam, seus filhos e os filhos de outras mulheres. A experiência subjetiva de cada uma é particular e incomunicável.

O importante é a consciência de que potência não é obrigatoriedade. Que amamentar não é ato de amor, é ato de política pública de saúde. Que tem uma função estratégica importantíssima: garantir cidadãos de plena saúde e vigor para construir a sociedade. E ser nutrida deve ser um direito universal de todas as crianças, e não só das que podem pagar por isso. E amamentar deve ser um direito das mulheres, que devem conduzir esse debate como pessoas estratégicas nessa função, como sujeitos e não como objetos eternamente instrumentalizados para cumprir os objetivos dos homens nesse mundo capitalista e patriarcal.

“Paternidade consciente” é a que luta contra o patriarcado

Há por aí todo um discurso de renovação da paternidade, vindo de um movimento capitaneado por homens interessados em serem pais “melhores” para os seus filhos. É a “paternidade ativa”, “paternidade consciente”, “paternidade participativa”. E esse é um discurso muito válido e legítimo, mas vale aqui pontuar algumas coisas importantes para que isso possa ser aproveitado de forma realmente revolucionária nas relações parentais, reverberando em mudanças reais na estrutura familiar e consequentemente na educação das crianças, na vida das mulheres e na sociedade. “Paternidade consciente” é a que luta contra o patriarcado.

É muito óbvio que há um lacuna importantíssima de afetividade deixada pelos homens das gerações anteriores na criação dos filhos, muito em virtude da socialização masculina, que retira os homens desse lugar de contato com a sensibilidade e também da função “tradicional” do pai na relação familiar, onde sempre bastou que ele fosse o provedor. Ser “bom pai” era sinônimo de não deixar que a família passasse fome, sendo o homem então completamente desobrigado de estabelecer vínculos amorosos com as crianças, que só eram importantes à medida que simbolizavam o resultado da união com a mãe.

Então, com as recentes discussões sobre “masculinidade”, a via que os homens conseguem alcançar e reivindicar nesse processo é o direito de “sensibilizar-se”, de poderem ser emocionais, de chorar, abraçar, usar um belo cardigã rosa sem que sua virilidade seja questionada. E a “nova paternidade” quase sempre passa por buscar ser acessível, sensível às demandas emocionais da criança e presente. E isso não é ruim em absoluto, muito pelo contrário, é valiosíssimo que homens conscientizem-se da importância de estabelecer vínculos afetivos concretos com seus filhos, mas é valiosíssimo também que se discuta que só isso não é o suficiente e que na verdade isso é só a ponta do iceberg. Falar em “paternidade consciente” significa prioritariamente ter consciência sobre o processo e as demandas impostas pelo patriarcado na organização da nossa sociedade, e atuar ativamente pela sua desconstrução, já que sem isso é impossível para os homens exercer um papel realmente saudável e feliz na configuração parental.

O sistema patriarcal, sob qual todos nós nascemos e somos socializados nos coloca uma relação onde mulheres e crianças necessariamente são subordinadas ao homem, que exerce uma figura de autoridade e controle sobre os membros da família. Onde a mãe tem funções muito específicas, todas ligadas ao trabalho doméstico e reprodutivo (ainda que também seja uma trabalhadora no mercado), e o pai tem a função muito definida de sustentar e “proteger” o lar, que é “seu”, conferindo-lhe inclusive a prerrogativa do uso da força e da agressividade para manter sua influência e domínio. Então qualquer ação que pretenda-se realmente transformadora em relação a paternidade é aquela que propõe-se a romper completamente com essa lógica.

Portanto, não adianta nada você ser um pai bacana, carinhoso, que chega do trabalho e vai brincar com o filhão no sofá, ou é completamente disponível para seus filhos no final de semana para muita “presença” e diversão, se você é completamente alheio a todo o trabalho invisível de manutenção da vida dessa criança. Trabalho esse que é sua mulher (ou alguma mulher, certamente) que está executando. Se você, de alguma forma, permanece explorando a mãe dos seus filhos para mantê-lo lindos, limpos e cheirosos, para você só chegar e brilhar como o paizão legal, desculpa, mas você apenas colocou glitter no mesmo sistema de bosta de sempre, e está oferecendo o mesmo modelo habitual de homem misógino e machista, na versão velada premium, agora com muitos abraços ao invés de gritos.

É preciso presença de verdade. Isso significa envolver-se realmente em todas etapas de desenvolvimento das crianças. E convenhamos, isso não acontece em absoluto. Se você entrar hoje em quaisquer fóruns, cursos, palestras, que falem sobre gestação, parto, amamentação, puerpério, pediatria, alimentação, educação, vestuário, escola … quaisquer temas que sejam relacionados à criação de filhos, muito certamente 95% do público será feminino. Se for nas reuniões de escola, consultas médicas, apresentações escolares, parques, praças, supermercados, lojas de roupa, verá que são mulheres em toda parte cuidando das demandas das crianças. Escrevendo e consumindo informação o tempo inteiro, enquanto homens limitam-se a ser orientados e executar instruções, sentindo-se muito importantes por bancarem o pai esforçado que sabe trocar fralda. Mas onde eles estão se informando sobre tudo que é necessário sobre crianças para dividir essa carga mental com a mãe dos seus filhos? Estando ou não com ela?

Uma boa paternidade não pode limitar-se a ter muito orgulho de si por finalmente dizer “eu te amo” para os filhos. Por ter assumido. Por pagar pensão. Por não espancar. Por dar banho e colocar pra dormir. Eu sei que para homens parece muita coisa, mas por favor, vejam tudo que mulheres fazem, eu sei que vocês podem ser menos medíocres que isso.

Eu quero ver um dia, páginas falando sobre a “paternidade real” de homens reclamando que não têm mais tempo para tomar banho, que não vão ao banheiro sozinhos porque os filhos não os deixam em paz , homens exaustos reclamando de restrição de sono e sendo inquiridos nas entrevistas de RH sobre quem fica com os filhos enquanto trabalham. Quero ver homens remarcando compromissos pra levar o filho ao médico, ir na reunião da escola ou tendo que faltar porque a criança amanheceu com diarreia. Homens trocando informações sobre fralda de pano ou marca de descartáveis mais baratas. Trocando receitas pra tirar mancha de molho do sofá e riscado de canetinha da cortina. Pesquisando sobre aquela mancha esquisita que apareceu na sola do pé da criança. No grupo da escola ajudando a organizar a festinha de fim de ano.

E não um ou dois indivíduos, os alecrins dourados, mas todos os pais. Quero ver a guerra infinita acontecendo nos grupos de criação parental, com homens e mulheres, todos discutindo se devem ou não dar chupeta para as crianças ou se a Peppa Pig é uma má influência. Conversando com os amigos o tempo inteiro sobre as peripécias das crianças. Porque é isso o que acontece com quem realmente está envolvido, cuidando completamente dos seus filhos, de todas as etapas, ainda que dividindo as tarefas. É difícil, cansativo, chato, muitas vezes enlouquecedor, não é “divertido”. Se você se acha um “pai participativo” e não está exausto meu amigo, tem alguma coisa errada porque com certeza alguém está, e deve ser sua companheira ou qualquer outra mulher sendo explorada no caminho.

Para renovar a paternidade é preciso reordenar toda a lógica de organização doméstica com homens assumindo sua parte no trabalho. Não importa se estão empregados ou não. Assumir que ter um emprego é cansativo o suficiente para precisar não fazer mais nada é também admitir que não entende o quanto cuidar de uma casa custa, tanto em termos financeiros quanto laborais. É também admitir que acredita que sua companheira te deve alguma coisa, paga em casa limpa, comida pronta e roupa lavada, em troca do sustento que você oferece. E isso é suco de patriarcado. Um péssimo modelo parental, que mantém a noção de hierarquia de homens sobre mulheres.

E finalmente, para construir essa presença parental realmente transformadora é preciso comprometer-se com a construção de um mundo mais decente que esse. Isso significa não só romper com os privilégios sobre as mulheres por ter nascido homem, como envolver-se ativamente no desmantelamento desse sistema hierárquico, repudiando, constrangendo e exigindo medidas contra abandono parental, violência doméstica, pedofilia, estupro e tudo que envolve a exploração sexual da mulher. Quero ver esses pais defendendo espaços de livre circulação para crianças, creches gratuitas, de qualidade, em quantidade. Homens reivindicando as pautas de humanização do parto defendendo um nascimento digno para seus filhos e o fim da violência obstétrica para suas companheiras.

A “nova paternidade” precisa caminhar além e mais conscientemente rumo a uma sociedade livre de toda exploração, seja de gênero, raça ou classe. Explorações essas que homens invariavelmente colhem vantagens de alguma espécie. “Amor” é muito importante, que bom que homens estão cientes da necessidade de despertar pra isso. Mas agora é preciso mergulhar no cuidado. Até porque dizem por aí que quem ama, cuida. Não é mesmo? Então comecem por aí. Amem, responsabilizem-se e cuidem.

O que é masculinidade?

Não se nasce homem, torna-se. E nesse fazer, aquele menino, um ser dotado de inúmeras potencialidades, é podado, transformado. O que é masculinidade, afinal?

E o que consta nos manuais da “Escola Patriarcal de Formação de Homens”? Regras que ditam como ele deve ser (ou demonstrar ser, a qualquer custo), comportar-se, sentir. Instruções tão detalhadas e que são passadas tão cedo e tão sistematicamente que em pouco tempo o comportamento torna-se um padrão a ponto de chegarmos a achar que “meninos são assim”. A ponto de acreditarmos que existe um “energia masculina” ou uma “energia feminina”.

Forte, rápido, agressivo, implacável, corajoso, heróico, destemido, objetivo, resolvedor, esperto, ativo, conquistador, sexual, extrovertido, dominante, controlador. Meninos aprendem desde cedo que o homem manda e os outros obedecem. Que o homem produz, ou faz produzir. Que ele tem a prerrogativa de usar o grito, a intimidação, a imposição, a manipulação, a chantagem, a força. Tudo para conseguir o que quer. Que ele, a saber de sua condição de raça e classe, pode inclusive dominar outros homens. Conquistar o mundo. Que o corpo das mulheres o pertence e ele pode pegar a hora que ele quiser. E principalmente, meninos aprendem que um homem não é uma mulher. Em hipótese alguma ele pode comportar-se, gostar, sentir coisas que “são de mulher”. Porque ser mulher é ser o elo fraco. E aprendem a odiar e rejeitar tudo que é relacionado ao “feminino”.

E essa informação é muito importante.

Não existe a ideia de masculinidade sem o seu oposto complementar que é a ideia de feminilidade. A fortaleza simbólica do homem só existe em contraste à pretensa fragilidade da mulher e foi a masculinidade que criou a feminilidade para que esse contraponto fosse feito.

Dessa forma, o que é a mulher? Ela representa exatamente tudo aquilo que o homem não é. O outro. O não-homem. É sua via negativa. O homem é o sol, a mulher a lua. O homem é a luz, a mulher a escuridão. Ela é a passividade, a fragilidade, a sensibilidade, a empatia o cuidado, a interioridade, domesticidade, empatia, cuidado, reserva, discrição, o sutil, suave, a organização, a beleza, doçura. A candura, os tons pastéis, o perfumado, sensual, sedutor, lascivo. Que é feito para ser conquistado. Meninas aprendem que mulheres cuidam. Mulheres nutrem. Mulheres criam. Mulheres reproduzem. E principalmente aprendem que devem conquistar um homem provando a ele seu valor, para finalmente terem lugar no mundo. E devem dar filhos ao homem. Cuidar dele, honrá-lo, servi-lo. Para serem protegidas. São aquelas que existem para serem salvas. E que aprendem a admirar e defender tudo que é “masculino”.o “homem masculino” não foge do conflito

Qual a primeira “ofensa” que um menino recebe para aprender a como deve portar-se enquanto homem? “não seja como uma menininha”. Isso está dizendo a ele: não seja fraco senão ou será dominado.

“Mulher” é um xingamento. Perceba aliás como a quase totalidade dos palavrões e ofensas verbais tem a ver com atacar a virilidade masculina com comparações a mulheres. E como a homofobia é um filhote da misoginia pois o homem gay, é tido como o homem “feminino”, e o maior crime que um homem pode cometer é associar-se ao “feminino” de qualquer forma.

“Meninos não choram”, “meninos não fazem drama”, “seja homem!”, “seja forte”, “vai lá e dá uma porrada nele”, “homem não tem medo”, “não seja covarde”, “é fracote agora?”, “vai deixar barato?”, “ai, se fosse homem não deixava falar assim com você”, “vai encarar?”, “ihh, ta de blusa rosa agora, é viadinho”, “toma esse copo azul, que rosa é coisa de menina”, “flores é coisa de menina”, “pôneis são coisas de menina”, “bonecas são coisas de menina”, “brincar de comidinha é coisa de menina”, “cara, pra que tanto tempo se arrumando, virou viado agora?”, “tem que gostar de esporte de macho”, “cinza, cor de macho”, “comida de macho”, “filme de macho, com muito tiro”, “jogo de macho”, “roupa de macho”, “não me abraça não cara, tá me estranhando?”, “tá me olhando assim porquê, tá me estranhando?”, “ihhh olha lá de mão dada com outro cara, é viado”, “olha lá que mulezinha gostosa, bora assoviar”, “pow, você deixou ela te dizer não? volta lá e cata ela”, “dá bebida pra ela”, “conta aí, como foi lá com a mina, comeu? tirou foto?”, “ihh ta arrumando a casa igual mulherzinha agora?”, “larga isso aí que sua mãe que é mulher cuida”, “pede pra tua irmã cuidar ué, ela é mulher”, “vai ser jogador de futebol e pegador de mulher”, “pára de frescura, virou viado agora”, “ihh vai chorar? não é macho não?”, “aguenta porra! vira homem!”, “tem que chegar em cima e sair pegando as mulé”, “mulher gosta é de homem cafajeste”, “mulher boa é mulher com a boca ocupada”, “resolve logo na porrada não é na conversa não”, “tu não manda na tua mulher não?”, “mulher só pensa em dinheiro, são todas aproveitadoras”, “você conta a verdade pra sua mulher? é otário mesmo”, “mete a porrada logo!”, “quem tem que cuidar do filho é a mãe”, “quem tem que cuidar da casa é a mulher?, “tá lavando louça da madame? é mané mesmo”, “olha ali, cresceu rápido, o corpo já tá todo formado”, “sentou no vaso e colocou o pé no chão já aguenta” , “você tem que pensar em você”, “você pode ser o que você quiser”, “não deixa nenhuma mulher atrapalhar você”, “o casamento só vai atrapalhar sua vida”, “se tiver filhos vai ter que pagar pensão”, “você pode ter um futuro brilhante”, “se nada der certo, assalto um banco”, “olha lá, maior safada, aposto que todo mundo já comeu, não vale nada não”, “cara, olha a roupa dela, ta pedindo uma apertada”, “é piranha”, “essa é pra casar”, “já vem com pacote”, “mulher direita não faz isso”, “se me deixar eu mato”.

Assim nasce o homem. Como é que meninos tão rapidamente tornam-se um grupo cuja principal característica é a agressividade, violência e dominação, não só da outra metade da população mas de todo o ecossistema, sempre numa relação predatória? Que faz com que sejam majoritariamente os agressores de mulheres e crianças, os violadores, os abusadores, os atiradores em massa. Que faz com que sejam majoritariamente os que deflagram guerras e conflitos de toda ordem. Que disseminam a tortura, o medo, a destruição.

Homens estão no comando do mundo há 6 mil anos. Um mundo cuja lógica é a dominação através da força, do massacre, da invasão e da guerra.

E não sou eu quem estou dizendo. São as estatísticas. Os fatos históricos. Fatos esses de onde mulheres sequer constam porque foram sistematicamente apagadas. A história é sempre contada pelos conquistadores, lembram?

Não há nada na concepção de masculinidade que não passe pela formação de um ente feito para dominar através da violência e da agressividade. Todos os símbolos, toda a liturgia.

Não há nada na concepção de feminilidade que não passe pela formação de um ente a ser dominado, submetido e subalternizado. Criado com a ideia de que deve ser eleito e conquistado, reproduzir e servir ao seu amo e senhor.

E tudo isso pra dizer que não existe “masculinidade tóxica”. É incoerente e politicamente improdutivo se aferrar a essa ideia. Há movimentos até legítimos de homens que estão finalmente querendo pensar e discutir a formação do seu comportamento então é importante entender que é impossível separar uma masculinidade boa de uma ruim quando tudo que tem a ver com o esse tema faz parte de um terrível sistema de violência e conquista.

A masculinidade não se torna “boa” só porque um homem que continua usufruindo seus privilégios de dominância social, agora também “chora” e usa um pulôver rosa. Porque ser “menos tóxico” não tem a ver com fazer concessões aderindo a estereótipos de gênero do campo do “feminino”. Isso não faz nem cócegas no sistema de hierarquia que a ideia de masculinidade e feminilidade sustentam. E isso em última instância, limpa a consciência de todos os envolvidos, fazendo homens e mulheres pensarem que “algo está sendo feito”, que “homens estão melhorando”, que “homens estão se esforçando”, quando no fim eles só estão afrouxando um pouco o nó da gravata que aperta o próprio pescoço. Agora eles podem ser exploradores de mulheres, que choram.

Para homens que realmente desejam engajar-se na proposta de serem pessoas melhores o único caminho viável é romper com a ideia de masculinidade. E isso implica em abrir mão da sua prerrogativa de dominação e uso sistemático da violência. Implica em repudiar e combater veementemente toda e qualquer ação que passe pela coação, coerção e uso da força como estratégia para transitar no mundo.

Isso significa ir contra os seus e denunciar a exploração de homens para com mulheres. Significa reequilibrar a distribuição de todas as históricas funções da esfera reprodutiva que estão convenientemente no campo do “feminino”, que revertem em benefícios para homens. Significa também repudiar a feminilidade enquanto construção do ideal de mulher perfeita, bela, recatada e do lar. Da mãe e esposa. Criadas para servir ao homem nos seus propósitos.

Isso é sobre desmontar a indústria do sexo que lucra trilhões através da objetificação e comercialização do corpo feminino. Desde maneiras “sutis” como a industria da moda e beleza até seu resultado final na pornografia e prostituição. É repudiar toda e qualquer exploração do corpo feminino. Combater o assédio, o estupro. Proteger as meninas. Combater o casamento infantil. Reconhecer toda a dívida histórica que vocês possuem para com as mulheres, todo o sangue derramado, trabalho usurpado, toda a dor e violência.

Rever a “masculinidade” é tomar consciência do que significa tornar-se homem na nossa sociedade e romper com isso. E combater, ativamente. Junto a todos os outros homens. Quebrar a roda. Isso é assumir compromisso com ser homens melhores. Abrir mão do privilégio que representa pertencer a uma classe que é ensinada a ser servida e atendida o tempo inteiro por outras mulheres.

Quando o feminismo fala em “igualdade”, isso não é sobre direitos civis, ou uma equiparação dom o privilégio masculino de conquistar e invadir. Não queremos ser como os homens são dentro desse sistema. “Igualdade” para mulheres é ter o reconhecimento que somos PESSOAS, que temos integridade, dignidade, inviolabilidade. Assim como cada homem tem, só por ter nascido homem.

Eu olho para o meu filho de 5 anos e me recuso a perdê-lo para esse sistema de moer consciências. Meu filho, meu menino não é assim. Crianças não são assim. Nós a tornamos. Nós usurpamos sua humanidade. Eu acredito em um mundo onde nossos filhos tenham o direito de crescerem livres de todos estes estereótipos que os convocam a dançar essa melodia mortal tocada pelo patriarcado. E como feminista, eu acredito na revolução. E acredito que a revolução está neles, mas também está em nós, mulheres. E sim, pode estar também nos homens.

Há um teórica feminista fantástica chamada Andrea Dworkin que escreveu um discurso essencial chamado “Eu quero uma trégua de 24 horas sem estupro”. E com uma trecho desse discurso que eu quero encerrar esse texto e convocar todos a pensarem.

“Eu vim aqui hoje porque eu não acredito que o estupro é inevitável ou natural. Se eu acreditasse, eu não teria razão para estar aqui. Se eu acreditasse, minha prática política seria diferente dessa. Vocês já se perguntaram por que nós não entramos em um combate armado contra vocês? Não é porque não há uma escassez de facas de cozinhas neste país. É porque nós acreditamos na humanidade de vocês, contra todas as evidências.

Nós não queremos fazer o trabalho de ajudar vocês a acreditarem em sua humanidade. Nós não podemos fazer mais isso. Nós sempre tentamos. E em troca, temos sido pagas com exploração e abusos sistemáticos. Vocês vão ter que fazer isso sozinhos de agora em diante e vocês sabem disso.”


Dica: sugiro demais que toda a família assista ao documentário “The Mask You Lived In”, do Netflix:.

Criar crianças antirracistas é garantir que vidas negras importam

Criar crianças antirracistas é garantir que vidas negras importam. E para ensinar crianças sobre antirracismo é preciso contar-lhes histórias. Contar sobre como, ao longo de toda a trajetória da nossa civilização, grupos de pessoas — quase sempre brancas — sistematicamente invadiram outros territórios e dominaram os povos ali nativos, os assassinaram, e espoliaram.

Precisamos contar como esses grupos foram acumulando riquezas saqueadas e aumentando seu poder de invasão e domínio, sempre privilegiando seus iguais. Uma prática ancestral, imemorial, e definidora quando falamos da formação do que conhecemos como Brasil.

Precisamos explicar aos nossos filhos como fomos invadidos por um povo de homens brancos ricos, que chegaram e exterminaram milhares e milhares de pessoas que aqui viviam suas vidas. Sobre como eles perseguiram e escravizaram os habitantes que sobreviveram, e aqui se instalaram e começaram a apropriar-se de tudo, com fúria, à custa de muito sangue derramado. Precisamos explicar como esse lugar se tornou refúgio de uma monarquia acossada que veio para cá fugida e quis transformar essa terra no seu albergue particular. Como fizemos parte e aperfeiçoamos o tráfico sistemático de pessoas negras trazidas do continente africano para trabalho escravo, pessoas que eram vendidas como coisas, como objetos na banca do camelô da praça e vilipendiadas.

Temos que contar as nossas crianças como durante séculos, milhares e milhares e milhares de seres humanos foram tratados como coisas, comercializados, explorados até a última gota de suor e como, em algum momento, esse modelo de economia esgotou-se e eles foram “libertos”. E explicar a farsa da abolição da escravatura e deixar que crianças entendam como, há pouco mais de 100 anos, uma incalculável população de pessoas negras, homens, mulheres, crianças, foram jogadas na rua. Sem casa, sem comida, sem emprego, sem patrimônio, sem estudo. Para permanecerem, a partir daí, eternamente coagidas economicamente por pessoas brancas, oprimidas por uma estrutura criadas para mantê-las eternamente em posição de subalternidade racial, em subempregos, sempre vistas como seres sem distinção ou dignidade.

E precisamos dizer também como todas as mulheres indígenas e escravizadas foram sistematicamente estupradas, como foram abusadas por seus senhores, que nossa nação “feliz e miscigenada” é fruto da dor e da violência sexual sofrida pelas nossas ancestrais.

Não basta “falar sobre racismo” para crianças ou “reconhecer o seu privilégio branco” sem explicar os motivos pelos quais o racismo existe. Sem explicar a estrutura que é sustentada pela segregação racial que existe para manter pessoas brancas em situação de vantagem econômica, social, financeira e em posição de manter sua hierarquia sobre pessoas negras, para que elas continuem servindo, continuem fazendo o trabalho pesado, subutilizado, que os brancos não querem realizar.

É preciso apontar que pessoas negras hoje, como resultado de tudo que pessoas brancas fizeram, compõem a maioria das pessoas pobres, periféricas, menos escolarizadas, imersas em situação de violência, exploração, marginalidade, violência sexual, abandono parental. Que sofrem exclusão institucional, são a maioria da massa carcerária, a maioria da massa evadida das escolas, a maioria da massa que está subempregada. Que jovens negros são executados compulsoriamente pela polícia. Que estão à margem dos sistemas de justiça. Que elas apenas passaram a ser vistas como “pessoas”, há pouco mais de 100 anos, tendo que correr atrás de tudo que lhe foi roubado, herança, história, cultura, patrimônio, ancestralidade. Que muitas dessas pessoas não sabem nem definir quem foram seus tataravós porque eles foram retirados à força do seu lugar de origem, separados da sua família e jogados em uma senzala. Que isso tudo acontece porque pessoas negras foram raptadas, traficadas, foram assassinadas, foram escravizadas, por anos e anos. Tudo isso feito por pessoas brancas.

Então não adianta falar sobre racismo para crianças se você também não fala em privilégio e principalmente se você não fala em reparação. Se você acredita em meritocracia. Se você fala de tudo o que acontece com a população negra como se isso não fosse um problema que, mesmo que você, indivíduo, não tenha causado diretamente, hoje se beneficia. Se você conhece seus ancestrais, se sua família tem um patrimônio, se você tem herança a receber, é porque seus antepassados brancos, em algum lugar, estiveram escravizando uma pessoa negra. E hoje você colhe os frutos dessa exploração. Você acumula para si os resultados de anos de sangue negro derramado.

E sim, é preciso que as crianças brancas que estão aí hoje entendam isso. Que mais que entender-se com sendo detentores de inúmeros privilégios, que mais que serem capazes de não reproduzir preconceitos raciais, elas sejam capazes de recuar. Educar crianças para combater o racismo é mais que mostrar que pessoas negras existem, mostrando fotos de revista ou programas de TV, é sobre alertá-las que é preciso tirar o joelho do pescoço das pessoas negras. Porque nascemos com esse joelho posto, lhes tirando o ar.

Ensinar crianças sobre democracia racial é sobre a compreensão de toda a violência que pessoas brancas impuseram e impõem à pessoas negras. É sobre reconhecimento de todo o privilégio que advém dessa violência estrutural. E é sobre reparação. Sobre apoiar e lutar sobre essa reparação. Sobre recuar nos seus direitos adquiridos à custa do sangue dessas pessoas para permitir que pessoas negras acessem os espaços dos quais foram historicamente alijados, sobre eleger pessoas negras para ocupar espaços de poder, sobre consumir de pessoas negras, sobre defender pessoas negras da violência estatal.

Você vai ser capaz de tirar o seu filho do banco protegido do carro e caminhar com ele pelas ruas onde a população negra se atropela pedindo comida? Ou vai mostrar pessoas negras pela janela? Você vai ser capaz de abrir mão de colocar o seu filho nas “melhores escolas” e nos “melhores ambientes”, com “pessoas da classe dele”, para que ele possa “vencer na vida”, em nome dele frequentar lugares mais democráticos, plurais? Você vai ser capaz de manter seu filho em universidades particulares que você pode pagar em nome de abrir espaço na disputa das melhores escolas públicas? Você vai ser capaz de abrir espaço nos concursos públicos? Vai abrir mão de explorar a mão de obra doméstica de pessoas negras? Vai deixar seu filho brincando com as pessoas da “comunidade”? Se você não atravessa sua prática com essa compreensão de como cada pessoa negra chegou até aqui dentro desse sistema e não consegue dar passagem, não adianta nada usar camiseta com frases bonitas e hashtags.

Se você no fundo olha pra todo menino negro maltrapilho como um potencial trombadinha, se você olha para toda menina negra como uma serviçal, se você é incapaz de reconhecer beleza e potência neles. Se você mesma os rejeita, acusa e pune na primeira oportunidade. Enquanto pessoas brancas que estão dispostas a repensar seus privilégios não assumirem esse nível de consciência sobre as origens e desdobramentos dessa questão, vamos apenas ficar em articulações momentâneas que passam em poucos dias dando lugar apenas a novas ondas de indignação quando uma outra pessoa branca comete uma nova atrocidade.

Antirracismo é uma prática diária. É uma vigilância constância sobre o pensamento colonialista com que cada pessoa branca é socializada no sentido de manter todos os privilégios rapinados por seus ancestrais com violência e morte. É a recusa de privilégios travestidos de direitos.É retirar esses privilégios dos próprios filhos em detrimento de um sistema justo. Escancarar as vísceras desse sistema e assumir a responsabilidade por como chegamos até aqui. É assumir para si, definitivamente, o compromisso de que vidas negras importam.

Coisas que meninas devem saber para sobreviver em um mundo de predadores sexuais

Há uma série de coisas que meninas devem saber para sobreviver em um mundo de predadores sexuais. Orientar mulheres e meninas para lidar com assédio é mais complexo do que parece porque pouco refletimos sobre como somos socializadas para o jogo amoroso, e sobre como aprendemos a nos colocar sempre em posição de vulnerabilidade no momento da aproximação amorosa, principalmente nas relações heterossexuais. Temos muita dificuldade de perceber como é embaçado esse limite que aprendemos a traçar em relação ao abuso masculino sobre nós, que recai muitas vezes desde a mais tenra infância. Nós mulheres somos criadas com mensagens muito contraditórias sobre como agir e o que devemos aceitar, principalmente sobre homens e relacionamentos.

Aprendemos que nossa aparência é a coisa mais importante sobre nós mesmas e que precisamos de validação constante a ponto de dedicarmos todo nosso tempo em função de estar “bem”, que para mulheres é igual a estar bonita. Competimos umas com as outras por essa aprovação e interpretamos qualquer discordância como uma questão de “recalque” ou “inveja” da nossa “beleza”. Somos altamente críticas em relação a nós e as outras mulheres. E em algum nível todas ansiamos pela aprovação masculina na forma de olhares, curtidas, cumprimentos e elogios. Não percebemos como isso é usado para nos manipular, como isso nos gera insegurança e como abre caminho para que qualquer homem em qualquer lugar se ache no direito de opinar nosso corpo, controlar a maneira como nós devemos nos parecer, e nos humilhar.

Aprendemos a mensagem contraditória de que precisamos ser “recatadas”, “castas”, “difíceis”, ao mesmo tempo que somos incentivadas o tempo inteiro para, desde muito jovens, nos mostrarmos sedutoras. Roupas, maquiagens, danças, caras, bocas e trejeitos, são ensinados às meninas para que elas já se posicionem socialmente como sexualizáveis. Nossa cultura é pedófila e não esconde isso. Para homens, relacionamento com mulheres é sobre ter sexo, a maior quantidade possível. Para mulheres, relacionamento com homens é sobre amor, casamento e filhos.

E assim, meninos aprendem que devem “caçar” meninas, e meninas aprendem que devem sorrir para o caçador e se oferecer em sacrifício. Dessa forma, como criar nossas meninas para que se defendam? Como ensiná-las a diferenciar uma relação potencialmente saudável de uma abusiva, se nós mesmas temos essa dificuldade e vivemos caindo em armadilhas? O que devemos ensiná-las para que possam traçar limites entre interesse genuíno e assédio?

1. Padrões de beleza são reais e inatingíveis e existem para controlar meninas e mulheres

Mostre para sua filha que os padrões de beleza que ela vê nas revistas, na TV, e agora na internet são completamente artificiais. Que mulheres só tem aquela aparência graças a muita maquiagem, muita edição de imagem e filtro. E que ter aquela aparência glamorosa faz parte da profissão delas e que portanto há toda uma equipe que trabalha direta ou indiretamente pela manutenção daquele tipo de visual. Que essas mulheres são vitrines ambulantes subsidiadas por uma indústria cuja função é estimular outras a consumirem enlouquecidamente todo tipo de produto de beleza. Que vendem uma ideia inalcançável de como mulheres devem se parecer justamente com o objetivo de mantê-las sempre angustiadas e insatisfeitas com a própria imagem, pagando qualquer preço para se tornarem como o padrão.

Explique que especialmente meninas como ela, que não entendem muito bem como é a engrenagem do consumo que move o mundo, podem ser especialmente suscetíveis a este tipo de apelo. Porque parece que só mulheres que se parecem de uma determinada forma são amadas, queridas, admiradas e desejadas. Tem suas fotos curtidas, comentários elogiosos. Meninas “feias” ou foram do “padrão” são punidas, ofendidas, rejeitadas. A sociedade é cruel e isso tem uma função: fazer uma pressão enorme na cabeça de meninas, para que se tornem mulheres inseguras e infelizes, que odeiam o próprio corpo. Que odeiam a si mesmas. E mulheres inseguras ficam vulneráveis, frágeis, suscetíveis e isso é um prato cheio para abusos. Destruir a auto-estima de uma menina é o primeiro passo para dominar a mulher que ela vai ser tornar.

E tem um segredo que é preciso saber: no final do dia, quando o trabalho acaba, mesmo as musas mais belas, longe das câmeras, são como nós. Mulheres comuns. Que também não se acham boas o suficiente. Que também não se acham bonitas o bastante.

E quem se beneficia enquanto meninas e mulheres desenvolvem depressão, anorexia, bulimia, ansiedade, gastam toda sua energia, tempo e dinheiro (muito dinheiro)? A quem serve manter mulheres sempre com a auto-estima arrasada, pensando em diversos momento do seu dia sobre como não são boas o bastante? Belas o suficiente? Aos homens. Homens que dominam todo um mercado, que lucram com isso. Homens, que mantém mulheres ocupadas em obter sua aprovação a todo custo e usam isso a seu favor para dominá-las, julgá-las, classificá-las, escolhê-las como em um leilão, como se mulheres não fossem pessoas.

Ensine a sua menina que o que ela tem de mais precioso a proteger nesse momento é o amor por si mesma, completa. Que o que ela tem de mais importante a aprender é a amar-se e amar outras mulheres. E eu sei que essa é uma tarefa muito difícil porque implica uma desconstrução que está muito arraigada. Recusar o troféu de mais bela pelo qual fomos ensinadas a morrer, pelo qual adoecemos e gastamos nosso tempo e dinheiro. Mas precisamos começar a quebrar esse paradigma essencial porque só quando mulheres deixarem de ser definidas pela sua aparência deixarão de ser tratadas como coisas. Abandonaremos finalmente a condição de objeto para nos tornarmos pessoas.

2. Atratividade física não é o elemento mais importante sobre uma pessoa e é o motivo errado para começar um relacionamento

Insista com sua filha para desconstruir a ideia de que a beleza é o elemento mais importante que alguém possui. Incentive-a a olhar e a se aproximar de outras pessoas para além da aparência física e a não permitir que ela seja abordada baseada unicamente neste parâmetro. Explique a ela que se o único fator pelo qual alguém a busca é por sua beleza, a atratividade do seu corpo, a sua sensualidade ou a sua presumida disponibilidade sexual, ela está sendo subestimada e não valorizada e merece alguém melhor, porque ela é uma pessoa completa, que é muito mais que um rosto ou um corpo atraente.

Ensine a sua filha que em um bom relacionamento as pessoas devem se enxergar e interagir por completo. Que para além de carícias e sexo, um casal conversa, se diverte, compartilha coisas da vida, se respeita, e se apoia. Que eles são amigos. E que portanto a personalidade, o caráter, os valores, da pessoa com quem ela vai se envolver é muito mais crucial que a aparência, e que da mesma forma ela deve esperar despertar interesse pelos mesmos indicadores, buscando compatibilidade. Que se ela não pode esperar se tornar uma boa amiga da pessoa que a busca romantica ou mesmo sexualmente então está fadada a entrar em uma situação pautada por hierarquia e controle, porque ela será tratada como um objeto que alguém possui. E ela deve esperar, ao invés disso, alguém com quem seja capaz de constituir uma relação genuína de afeto, respeito, cumplicidade e parceria. Não importa se é um encontro de duas horas ou um namoro de meses. Ela deve esperar consideração e respeito sempre. Que se sexo está se tornando mais importante que a integridade e saúde física e mental das pessoas envolvidas então tem algum coisa muito, mas muito errada.

3. Atração sexual é uma coisa normal e saudável e não tem a ver apenas com atratividade física

Converse com sua filha sobre paquera. Explique a ela que na idade adequada é normal que pessoas sintam-se atraídas umas pelas outras, queiram estar juntas, queiram fazer sexo. Que infelizmente, na nossa sociedade hoje, somos orientados a mover esse nosso interesse por paradigmas puramente estéticos, ou de status. Homens são guiados para buscar a mulher “gostosa”, mulheres são guiadas a buscar um “príncipe” que é, antes de tudo, “lindo”. Mas que aparência física não é definidora de atração sexual ou interesse romântico e a maneira como nos guiamos nossos afetos é condicionamento puro.

Nosso olhar, nosso querer, é formatado para admirar determinados padrões, e todos eles tem agenda, foram feitos para nos colocar num determinado lugar, cumprindo uma determinada função na lógica de uma sociedade que é patriarcal, capitalista e racista. Aprendemos, por exemplo, que mulheres “bonitas” são as brancas, magras, de traços claros europeizados, aprendemos que mulheres morenas e de corpo mais voluptuoso são as “gostosas”, as “sensuais”, que mulheres de traços latinos são “calientes”. Essas imagens existem para atender a um chamado racista, que vende uma imagem higienizada e angelical de pessoas brancas que são destinadas a perpetuação do núcleo familiar tradicional, de controle e de manutenção de patrimônio dentro de um dado grupo racial e uma imagem sexualizada de pessoas racializadas, que são desumanizadas e tidas como destinadas ao sexo e ao fetiche. Isso faz por exemplo, que qualquer pessoa que não tenha traços físicos eurocêntricos seja considerada “feia” ou “exótica”, faz com que meninas negras sejam invariavelmente preteridas e cultivem pela vida uma imensa dificuldade em ter parceiros e formar relacionamentos e que meninas brancas sejam entendidas como “esposa ideal”.

Outro bom exemplo é o das meninas que aprendem desde sempre a direcionar sua atenção sexual e afetiva para homens mais velhos. Esse incentivo inclusive é familiar que as orienta a buscar “um homem e não um moleque”, “um bom homem trabalhador que vai cuidar dela”. Como resultado, desde muito jovens, não sentem atração por pessoas da sua idade, que estão vivendo as mesmas experiências, e viram presas fáceis de abusadores. Mal entrando na adolescência, meninas já são consideradas “carne fresca no mercado” e são aliciada por homens muito mais velhos. E são incentivadas a ficarem lisonjeadas com esse assédio e aceitar esse abuso como reafirmação da sua feminilidade. A menina ouvirá que é “especial”, que “não é como as outras garotas”, que “é muito madura para sua idade”, que “é muito desenvolvida”, “já é uma mulher”, “já sabe o que quer”, e todo tipo de coisas. E isso tudo serão mentiras contadas para acessar seu corpo sexualmente, manipular e controlar.

Meninas aprendem que podem somente sentir-se atraídas por pessoas do sexo oposto, que isso é uma norma imutável, que é o “normal”, o “esperado”, o “certo”, e que qualquer coisa fora disso é a maior transgressão que ela pode cometer porque está recusando seu destino de fêmea, encontrar um macho, ser escolhida, casar e procriar. Não tutele os afetos da sua menina. Deixe que ela saiba que tem o direito de experimentar e descobrir o que realmente lhe interessa viver em termos de relacionamentos e sexualidade. Diga a ela que não existe “normal” e muito menos “anormal”. Que a organização dos relacionamentos na nossa sociedade é heterocentrada pois tem a função de manter os corpos das pessoas sob controle num modelo familiar margarina que não existe na realidade. Que o objetivo final é manter mulheres sob completa exploração do seu trabalho reprodutivo.

Manter a ilusão de uma sociedade eminentemente heterossexual é fundamental para manter a lógica capitalista que precisa de casais se reproduzindo e criando trabalhadores para serem explorados. É fundamental para a lógica patriarcal onde homens mantém a dominação sobre mulheres sobretudo sob o manto do “amor” e do cuidado da família. Permita que sua filha tenha liberdade nos seus afetos. Explique a ela a lógica por trás do pensamento lesbofóbico (e homofóbico) que é de impedir que pessoas possam decidir livremente como organizar suas vidas e escolher suas parcerias.

Então, diga a ela pra não se render a primeira faísca de paixão que cruzar seu coração, porque paixão não é sentença, não existe amor eterno, isso passa, nossos afetos são condicionados para nos empurrarem para grandes armadilhas e se ela mantiver a cabeça no lugar por tempo suficiente vai ter a chance de encontrar alguém para uma história que vai valer a pena ter vivido. Alguém da idade dela, que pensa parecido, tem os mesmos valores, e que mesmo que tudo acabe, poderá ser uma pessoa amiga pra uma vida inteira.

E que sim, é muito difícil se sentir “feia”, “gorda”, “estranha”, “inadequada”, “diferente”, mas que vale muito pena estar com alguém para quem isso não faz diferença, ou que na verdade nem é uma questão, porque não é para esse lugar que essa pessoa está olhando. Ela está olhando pra você e vendo o que você é: uma pessoa. E está amando isso e tendo atração sexual por isso, não só por seu corpo, mas por seu sorriso, suas ideias, o que você é na vida, de verdade. Diga a ela que nada diferente disso vale a pena ser vivido. Ela é uma pessoa, e deve ser amada e querida por isso e apenas isso. E ela pode amar pessoas de volta. Repita isso mil vezes para ela, até entrar fundo, até ela não ter dúvidas. E diga a ela que você sente muito que as coisas sejam assim e que você sente muito também por ter que orientá-la a travar uma batalha tão difícil e vital: requerer a própria humanidade nessa sociedade tão cruel.

4. O flerte surge da admiração mútua, o assédio surge da objetificação do outro

Quem admira o outro não quer o outro para si. Quem admira observa o outro com atenção, se inspira, cuida, respeita. Entendemos o valor daquilo que admiramos por este ser como é, não queremos modificá-lo, ou submetê-lo a nossa vontade. Desejar, por outro lado, significa querer ter algo para si, tomar posse e costumamos desejar coisas. Objetos. Mulheres não são admiradas na nossa sociedade, são objetos de desejo. Aprendemos a apreciar isso, a entender que ser tomada e possuída, que pertencer a alguém é um sinal de amor, e isso é uma armadilha que resulta em violência e em morte.

Por outro lado homens não aprendem a amar mulheres. Não aprendem a vê-las como ser humanos íntegros, dotados de qualidades e defeitos e dignos de respeito e admiração. Aprendem a vê-las como corpos sexuais que lhes devem diversão e prazer. Pergunte a um homem sobre mulheres que ele admira. Pergunte-lhe quem são, quais seus nomes. Peça para citar apenas 3. Dificilmente algum conseguirá cumprir esse desafio. Agora pergunte-lhes sobre mulheres que eles desejam, que eles gostariam de ter (isso mesmo, ter), e a lista será imensa. Homens aprendem que mulheres são coisas que eles adquirem, que passa a ser uma coisa sua, uma propriedade privada da qual ele pode dispor como bem entende.

Ensine sua filha a perceber a diferença entre a abordagem de alguém que a admira como pessoa e alguém que a deseja como um objeto. Essa é a diferença importante entre flerte e assédio. O flerte, a interação em que vamos demonstrando interesse pelo outro e conhecendo-o, é um recurso legítimo de aproximação entre duas pessoas que queiram relacionar-se. O assédio é um mecanismo onde necessariamente um impõe seu desejo sobre o outro, intimida, coage, manipula, chantageia, suborna, compra, o seu corpo, sua presença, seu sexo. É sobre poder, não sobre enamorar-se. É sobre homens que se acham no direito de tomar mulheres, desde legislando sobre sua aparência através de insultos como nas cantadas de rua (“me dá seu telefone, gostosa!”. Sobre a recusa do “não” e a insistência absoluta, que faz mulheres confundirem desrespeito com apaixonamento. É sobre subestimar a vontade do outro e querer domá-lo de qualquer forma. É sobre achar que toda mulher tem um preço, que é possível comprar consentimento. Que mulheres não sabem o que querem, ou o que estão fazendo “jogo duro”. É a “sedução” a qualquer custo. É sobre intimidação, perseguição, violência. Estupro. É sobre manipulação, chantagem emocional. É sempre mesma lógica: não há respeito pela vontade do outro porque o outro não tem vontade, não é uma pessoa, é algo a ser obtido.

Incentive sua filha a repudiar qualquer tipo de assédio, em qualquer lugar que seja. Incentive sua filha a rejeitar pessoas que avaliem corpo dela como se ela fosse um animal pronto para o abate. A afastar-se de pessoas que ignoram suas recusas. Que acreditam que insistência é prova de afeto. Explique que um homem que quer conquistá-la a qualquer custo não a ama, ele apenas sentiu-se desafiado na sua virilidade pela recusa e quer domar sua vontade. Nada de bom pode sair daí, não somos objetos á disposição para apreciação do desejo alheio.

Explique para sua menina que consentimento não tem a ver com dizer “sim”, porque muitas e muitas vezes dizemos “sim” sem estar com vontade. E aceitar algo sem vontade não é consentimento, é concessão. E, em um mundo patriarcal, inúmeros são os mecanismos que homens utilizam para dobrar nossa vontade: manipulação, chantagem emocional, coação, suborno, compra, ameaças, violência.

Consentimento não se negocia. Consentimento sem vontade é concessão e ela nunca deve fazer concessões sobre seu corpo, sobre seu sexo, sobre nada que arrisque sua integridade física, emocional e financeira. Homens irão em busca disso, vão desafiá-la, vão tentar dobrar sua vontade a qualquer custo sempre, porque eles não admitem a recusa de uma mulher. Entenda que isso acontece, e prepare-se para enfrentar. Todo o modelo de relacionamento entre homens é mulheres é formatado a partir da subalternidade e submissão feminina. Somos compulsoriamente levadas a aceitar e a dizer “sim” sobre tudo que tem a ver ou que vem de homens. E que a grande disputa é ter o direito de recusá-los. Recusar aceitar os seus gracejos, suas indiscrições, o seu julgamento sobre nossa aparência. Poder recusar sua presença, recusar sorrir para eles e agradá-los o tempo inteiro sem acusações ou retaliações.

5. O mundo ainda não é seguro para crianças e mulheres

Ensine sua criança a como agir para se defender ao perceber os primeiros sinais de assédio. Desde bebê . Explique o corpo é dela, que ninguém deve tocá-lo a não ser ela. Que nenhum adulto deve, e vá dando autonomia corporal a ela, o quanto antes for possível, de forma que apenas ela precise tocar em si mesma, mesmo para higienização. Mostre claramente quais partes podem e não podem ser tocadas. Nomeie-as com todos os nomes conhecidos, para que ela possa reconhecê-los em qualquer parte que ouvir. Fale sobre que tipo de carinhos são e quais não são permitidos. E não faça carinhos como beijinhos na boca que podem até ser toleráveis numa relação parental mas que podem deixar a criança confusa e abrir uma janela de oportunidade para abusadores. Divida o mundo das suas crias entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças e mostre sempre o que é e o que não é adequado para cada um desses universos assim como que tipo de interações são desejadas entre adultos (ou adolescentes) e crianças.

Assim que possível, explique para sua criança que predadores existem. Fale claramente sobre o tema, sobre o que eles fazem, como eles se aproximam, o que eles dizem. E ensine-as que qualquer um pode ser o abusador, inclusive alguém que ela ama e confia. Alguém de quem ela nunca desconfiaria. Ensine-a se relacionar criticamente com os adultos, explicando que eles não são perfeitos, nem sempre são modelos e que podem ser potencialmente perigosos e violentos para crianças.

Crie uma relação de confiança com seus filhos. Essa é a parte mais difícil porque prescinde em abrir mão do autoritarismo fácil, da educação pela violência e pelo medo. Implica em criar um canal constante de diálogo e principalmente escuta, de deixá-los seguros, sabedores que serão ouvidos, que acreditarão neles, que serão defendidos. Implica em tratar crianças como pessoas. Muitas e muitas mulheres passaram por situações horríveis porque sentiram medo de contar aos seus pais o que estava acontecendo. Porque foram desacreditadas. Porque foram manipuladas a pensar que ninguém acreditaria na palavra dela contra a palavra de um adulto, que ela seria punida, que ela também era cúmplice da situação, e ela não tinha um vínculo de confiança forte o bastante com os pais para saber que eles a apoiaram a qualquer custo.

Explique que infelizmente há cuidados que ela deverá tomar apenas por ser menina, como evitar andar sozinha, beber em demasiado sem alguém de confiança que possa protegê-la caso fique desorientada, evitar estar sozinha com homens de modo geral, e mais um monte de pequenas e grandes medidas que tornam a vida de uma mulher um verdadeiro inferno. E que nada disso é nossa culpa, é culpa dos homens, nós vivemos sim em uma sociedade que nos transforma em presas, sofremos terrorismo sexual e não podemos esquecer isso, nem ser ingênuas, nem achar que é exagero. As estatísticas estão aí mostrando a realidade. Então muitas vezes vai ser o seu medo que vai te proteger.

Oriente-a também sobre mecanismos institucionais para buscar ajuda, explique ela sempre pode ligar para o Disque 100, que ela pode levar a questão para a escola, que ela sempre tem a opção de buscar apoio em instâncias responsáveis e que nunca, de maneira nenhuma, deve tentar lidar sozinha com a situação.

E finalmente diga para sua menina que você estará lá por ela. E esteja. Que acreditará nela. E acredite. Que ela não deve se calar diante de abusos. E ajude a amplificar sua voz. Que ela deve procurar ajuda ao menor sinal de importunamento, seja direto ou sutil, e denunciar se estiver sendo importunada. E ampare-a. Que ela deve se proteger sempre. E proteja-a. E proteja-se. E diga a ela que ela não está sozinha nessa. Ela não está. Há muitas outras mulheres por aí, lutando para pavimentar uma estrada mais larga e iluminada para que todas as meninas possam caminhar. Juntas.