Como lidar com crianças com “inconformidade de gênero”?

Existe um protocolo de comportamento esperado para homens e mulheres que obedece a lógica de manutenção de uma estrutura social que privilegia homens e subalterniza mulheres. 

Este protocolo é baseado no nosso sexo de nascimento, ensinado num intenso processo de domesticação e conformação, e o chamamos de “gênero”. É, resumidamente, o conjunto de regras que determina como meninos e meninas devem se comportar para serem aceitos socialmente como sendo meninos ou meninas.

Crianças que demonstram resistência, interesse, curiosidade ou propensão em questionar estas regras estão em sérias dificuldades. É cada vez mais comum ver pais desesperados porque seus filhos se comportam de maneira diferente do que é esperado para o seu sexo: “meu filho gosta de brincar de bonecas", “minha filha não gosta de usar vestidos”, “meu filho não gosta de brincar com os outros meninos". 

Dessa forma, crianças "dissidentes" estão sendo punidas e levadas de todo jeito a se “encaixar”, seja pelo discurso conservador do “nascemos assim", seja pelo discurso progressista do “nascemos no corpo errado”. Comportamentos que antes eram entendidos apenas como sendo a personalidade se manifestando hoje viraram motivo de preocupação e tomaram um caminho de patologização sob a desculpa de "evitar o sofrimento" (que na verdade é a vergonha dos adultos pela inadequação do comportamento da criança). 

Este texto é, portanto, não só para pais, professores e cuidadores, mas para todos os adultos que sentem-se confusos e tentados a classificar comportamentos infantis a partir de uma ótica de “identidade de gênero”, incorrendo no grave risco de patologizar infâncias, classificar crianças segundo sua própria interpretação do mundo e no anseio de corrigi-las, levar grande sofrimento psíquico.

Começando do começo – o gênero

Gênero, falando a grossíssimo modo, é um conjunto de ‘regras’ que existem para definir e demarcar qual é a expectativa sobre o comportamento de um grupo que nasce com um determinado sexo.

Ou seja, crianças nascem, tem seu sexo identificado e imediatamente começam a ser socializadas para pensar, sentir-se e comportar-se de acordo com as prerrogativas do seu gênero. Ou seja, se nasce do sexo masculino é empurrado para o “clube de formação de homens”, onde aprenderá a ser forte, viril, dominador, agressivo, usar azul, gostar de esportes, carros, etc. Se nasce do sexo feminino, vai para o “clube de formação de mulheres” onde aprenderá a gostar de rosa, ser cuidadora, mãe, esposa, delicada, bela, maternal, brincar de bonecas, etc.

E isso é muito importante de pontuar: crianças são ensinadas. Não existe um comportamento que seja natural e inerente ao fato de se nascer menino ou menina. Tudo o que manifestamos em sociedade são comportamentos aprendidos.

As regras do gênero são formadas puramente por estereótipos.

Estereótipos são “pré-conceitos”, conceitos que antecedem um fato. Por exemplo, quando dizemos que meninas gostam de rosa, ou que meninas são mais delicadas, estamos usando um estereótipo de gênero. Uma expectativa pré-concebida de que o fato de alguém ter nascido menina significa que é delicada, frágil e gosta de rosa.

Os estereótipos de gênero são a base de formação do machismo. Todos os estereótipos que são atribuídos a meninos tem um campo semântico mais valorizado, são mais ligados a ideia de força, virilidade, controle, potência, liberdade, atributos muito importantes na nossa sociedade. Enquanto que os estereótipos de gênero atribuído às meninas falam de fragilidade, delicadeza, vaidade, cuidado, gentileza, obediência… atributos que não só não são valorizados como colocam o grupo em posição de subalternidade e submissão em relação aos homens.

Dessa forma, o “gênero” tem uma função estratégica. Ele ensina como o grupo de pessoas do sexo masculino e do sexo feminino devem se comportar. E como resultado temos um grupo que tem comportamento dominador (homens), que conquistam e detém privilégios em função da dominação do grupo com comportamento subalterno (mulheres). É a fórmula mágica da manutenção do patriarcado.

De uns anos para cá o processo de generificação das crianças foi se tornando cada vez mais intenso. Compare as prateleiras coloridas de uma loja de brinquedos dos anos 90 com uma hoje, 30 anos depois dividida nas cores azul e rosa ou as lojas de roupa infantil. Os comportamentos esperados estão cada vez mais marcados e cada vez mais precoces. O advento do “chá de revelação” fez com que o processo de socialização de gênero comece antes mesmo que o bebê tenha nascido.

E como crianças são pessoas, únicas, com personalidade, podem ser sempre mais ou menos resistentes a essa socialização, que é um aprendizado duríssimo e cruel. Se você nasce uma menina naturalmente mais assertiva, ativa, combativa, vai ser podada. Se você nasce um menino naturalmente sensível, delicado, tímido, vai ser podado. A conformação dentro dos estereótipos de gênero implica em reduzir pelo menos pela metade todo o seu potencial de experimentação do mundo.

Então se uma criança, por sua personalidade, apresenta “sinais trocados”, se uma menina aparenta ser “masculina” (ou seja, tem mais aderência aos estereótipos que são eleitos para os homens), ou se um menino é “feminino” (ou seja, tem mais aderência aos estereótipos que são eleitos para as mulheres), há um curto-circuito no sistema que rapidamente se encarrega de tolir esse comportamento através da censura, do constrangimento, do banimento social e da violência.

Essa intensificação nos padrões de gênero fez com que crianças cujo comportamento não se encaixam, que apresentem “inconformidade de gênero” passassem a ser vistas como tendo uma questão que precisa ser tratada. Um menino que brinca com bonecas ou uma menina que não gosta de vestidos, hoje corre o sério risco de ser “diagnosticado” como sendo uma “criança trans” e entrar numa rota de tratamentos que na via final incluem cirurgias esterilizantes e medicação para uma vida inteira.

E isso vem acontecendo com o endosso e o incentivo da indústria médica e farmacêutica, por motivos de criação de um mercado que já movimenta milhões de dólares.

Os absurdos critérios médicos para identificar “disforia de gênero”

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) elaborou um documento sobre como lidar com crianças e adolescentes com “inconformidade de gênero” em 2019. O material, intitulado “Recomendações sobre Crianças e Adolescentes com Inconformidade de Gênero”, visa orientar profissionais de saúde e educadores sobre o tema, oferecendo diretrizes para o acompanhamento dessas crianças e adolescentes.

Este documento é um exemplo perfeito de como os estereótipos e a necessidade social de conformação de crianças dominaram o panorama, incluindo o discurso médico. As indicações são uma coleção de orientações equivocadas porque são baseadas em identificar “desvios” a partir do enquadramento da criança em comportamentos esperados de gênero, no melhor estilo se gosta de azul de carrinho é menino, se gosta de boneca é menina. Vamos analisar detalhadamente o que o documento diz.

Como lidar com crianças com "inconformidade de gênero"
fonte )

Disforia de gênero em crianças: critérios diagnósticos segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria


O primeiro critério elencado pela SPB para diagnosticar “disforia de gênero em crianças é:

“incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e o gênero designado de uma pessoa, com duração de pelo menos 6 meses.”

O que se quer dizer com isso: que o primeiro “sintoma” de “disforia de gênero” em uma criança é que por pelo menos 6 meses o seu comportamento geral (gênero experimentado/expresso) seja incongruente (diferente/incompatível) do comportamento socialmente esperado de acordo com seu sexo (gênero designado). Traduzindo em um exemplo: se a criança nasceu com o sexo masculino, espera-se e ela será ensinada a se comportar dentro dos estereótipos para meninos (gênero designado). MAS, se por um acaso, esse menino, por 6 meses, apresentar no seu comportamento coisas que são entendidas socialmente como sendo típicas de meninas (gênero experimentado/expresso), então esse menino tem um SINTOMA de disforia de gênero. Parece absurdo e é, principalmente quando nós vamos ver qual é a lista desses comportamentos “incongruentes, dos quais ele deve apresentar 6 de 8 para ser considerado “disfórico”:

  1. forte desejo de pertencer a outro gênero, ou dizer que seu gênero é outro Quando seu menino diz que é menina, ou sua menina diz que é menino. Esse é um comportamento absolutamente comum em crianças, principalmente as menores, elas fantasiam e experimentam o mundo e podem dizer desde que são de outro sexo, até de que são de outra espécie (meu filho costumava dizer que era um gato). Há também aqui um outro fenômeno que faz com que crianças afirmem ser de outro sexo que é uma confusão sobre si causada pelos adultos que a cercam. Imagine um menino que gosta muito de brincar de bonecas. Ele pega uma boneca e fica ouvindo que isso é coisa de menina. Ele é sensível e chora muito e fica ouvindo que parece uma menininha. E os adultos em pânico com esses comportamentos desviantes reforçam ainda mais a cobrança por “comportamentos de menino” a ponto dessa criança concluir que ele não tem nada a ver com um menino, talvez ele seja mesmo uma menina. Quase sempre essas declarações vinda de crianças tem a ver com um momento de fantasia ou por alguma confusão causada por adultos na percepção da criança sobre si.
  2. Em meninos uma forte atração por vestir roupas femininas. Em meninas uma forte atração por vestir roupas masculinas. Aqui a SBP apresenta como sintoma o fato de meninos interessarem-se por roupas de menina e vice-versa. Esse aspecto é especialmente perverso porque para crianças pequenas roupas não tem significado simbólico e sim lúdico. Então, por exemplo, roupas para meninas são muito mais coloridas, divertidas, engraçadas e atraem muito mais atenção e elogios. É natural despertar o desejo por usá-las, nos meninos. Roupas para meninos são muito mais práticas, confortáveis e protetoras. É natural despertar o desejo por usá-las, nas meninas. Fora que crianças tem interesse natural em experimentar as roupas dos pais, independente do seu sexo. E à medida que crescem crianças vão tendo personalidade, é muito preconceituoso e cruel dizer, por exemplo, que uma menina que gosta de roupas masculinas típicas (leia-se, bermuda, camiseta, calça, tons frios, motivos esportivos) tem um sintoma.
  3. Forte preferência por papéis transgêneros em brincadeira de faz-de contas Aqui a SBP está regulando como uma criança deve fantasiar nas suas brincadeiras. Ou seja, se o seu filho brinca que é uma menina, ou uma princesa, ou a rainha, ou a “mãe”, ou a mulher-maravilha, ou a Elza do Frozen. Ou se sua filha brinca que é um menino, ou um príncipe, um guerreiro, o “pai”, o Super-Man, o Batman, o Ben 10. Não sei o que fazer caso eles brinquem que são um elefante, talvez procurar um veterinário.
  4. Forte preferência por brincadeiras, jogos ou atividades tipicamente usados ou preferidos por outro gênero. Neste item a SBP joga fora o axioma “não existe brincadeira de menino ou de menina” e considera que se um menino brinca de boneca ou se uma menina brinca de carrinhos ela tem um problema.
  5. Forte preferência em brincar com pares de outro gênero. Neste item se torna um problema se a criança prefere brincar com outras do sexo diferente do seu. Ou seja, se seu filho gosta mais de brincar com meninas do que com meninos, aparentemente é um “sintoma”. A mesma coisa se sua filha preferir brincar mais com meninos do que com meninas. Afinidade, personalidade, nada disso importa mais, pelo visto.
  6. Em meninos, forte rejeição de brinquedos, jogos ou atividades tipicamente masculinas e forte evitação de brincadeiras agressivas e competitivas; em meninas, forte rejeição de brinquedos, jogos e atividade tipicamente femininas Isso é tão errado e ao mesmo tempo tão elucidativo. Este item está claramente dizendo que se um menino não é agressivo e competitivo ele pode ter um sintoma e ser uma menina. E que se sua filha, por outro lado, não gosta de brincadeiras delicadas e “tipicamente femininas” (leia-se casinha, boneca, maquiagem) ela pode ser, na verdade, um menino. Depois a gente vê as estatísticas de violência, vê como homens são empurrados para serem essas máquinas de matar e como mulheres fiam impassíveis nessa relação, e não entende como isso acontece.
  7. Desejo intenso de por características sexuais primárias e/ou secundárias, compatíveis com o gênero experimentado. Esse item fala sobre a criança expressar ter uma genitália diferente da que possui (característica sexual primária). Para características sexuais secundárias (seios, pêlos), já estamos falando de púberes. Este aqui é o único item digno de maior observação que é entender: o que está acontecendo com essa criança a ponto dela desenvolver ódio ou aversão específico pela própria genitália? Em tese, para uma criança, sua genitália deveria ser um item com a mesma importância do nariz ou da orelha. Então se uma criança manifesta tanta consciência e desconforto com a própria genitália vale ficar alerta se já que talvez isso seja evidência não de disforia de gênero mas de abuso sexual.

E seguida, temos o item B, que é o segundo pré-requisito para indicar que uma criança tem “disforia de gênero”, segundo a SPB:

A condição está associada a sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, acadêmico o em outras áreas importantes da vida do indivíduo.”

Sobre esse item é importante contextualizar que ele é uma consequência de um estado de coisas muito bem evidenciado pelo item A. Acompanhe comigo.

Imagine os valores e preocupações de adultos que observam um problema no fato da sua criança (e aqui estou listando somente os critérios da SBP): 1. fabular que é de outro sexo, 2. querer vestir roupas diferentes associadas a outro sexo, 3. brincar que é um personagem de outro sexo, 4. gostar de brincar livremente, inclusive de brincadeiras associadas ao outro sexo, 5. gostar de brincar com amigos do sexo diferente do seu, 6. é um menino que não gosta de ser agressivo ou é uma menina ativa.

Imagine essa criança. Cujo comportamento, absolutamente normal e que expressa a sua personalidade, é visto (pelos adultos) como um sintoma, como um problema, como a manifestação de que algo está errado com ela? É óbvio que ela vai estar em sofrimento psíquico.

Porque a criança sente, e muito precocemente, a rejeição, a preocupação dos adultos, a apreensão. Ela sente como o comportamento dos pais muda quando ela tenta corrigir o comportamento. Ela sofre quando ela não consegue manter-se dentro daquilo que os pais esperam. Ela percebe o que é premiado e o que será punido.

Existe sim “sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social” em crianças que apresentam “inconformidade de gênero”, mas não porque há algo errado com elas, e sim com os adultos que estão infernizando sua vida.

Se você entender que “conformidade de gênero” é “conformidade de comportamento esperado socialmente” e “inconformidade de gênero”, é “inconformidade de comportamento esperado socialmente” vai compreender também o tamanho da violência que adultos estão cometendo contra crianças e adolescentes neste momento.

Mas existe “disforia de gênero”?

A disforia corporal é um sentimento de mal estar persistente sobre alguma característica do próprio corpo. É uma condição clínica que pode afetar a qualquer um e que tem diferentes tipos e graus de manifestação. Muitas pessoas que tem anorexia por exemplo sofrem de disforia corporal ou seja, enxergam seus corpos gordos, mesmo estando num estado de extrema magreza.

Hoje a “disforia de gênero” é definida como um sentimento de angústia e inadequação em relação ao próprio corpo sexuado. Chamamos “disforia de gênero” mas é uma disforia corporal.

Crianças que são persistentemente confrontadas em relação aos seus gostos pessoais podem sim desenvolver algum tipo de confusão ou disforia em relação ao seu corpo. Basta pensar como fica a cabeça de uma criança que escuta o tempo inteiro que tudo aquilo que ela gosta não foi feito para ela e sim para quem é do outro sexo, e que o jeito que ela é está errado. Pense por exemplo em um menino que escuta o tempo inteiro: “isso é coisa de menina”, “parece uma menina”, “não pode, é para as meninas”? Não é difícil ele concluir: “se tudo que eu gosto é para meninas e se o meu jeito parece de uma menina então eu sou uma menina”. E dessa conclusão para o desconforto psíquico com o corpo é um passo.

O tratamento para a disforia corporal é terapia, acolhimento, conforto, aceitação do próprio corpo, elevação da estima, autocuidado. No caso da disforia de gênero, principalmente em crianças, o adequado seria terapia familiar, porque em 99,9% das vezes a origem do desconforto da criança está na dificuldade de ser aceita com sua personalidade (que não se encaixa nas expectativas de gênero) pelos seus entes mais próximos.

E aqui uma nota importante: terapia e acolhimento é a indicação para qualquer tipo de disforia corporal. Da mesma forma que não receitamos dietas ou cirurgias plásticas para pessoas disfóricas por causa do seu peso corporal, não se deve fazer afirmação de gênero, tampouco intervenções medicamentosas ou cirúrgicas em que apresenta disforia por causa do seu corpo sexuado.

Ademais, pesquisas indicam que cerca de 90% dos casos de disforia de gênero se resolvem espontaneamente no final da adolescência e todos os protocolos médicos que tratam do tema do gênero em crianças estão sendo revisados apontando para a terapia como tratamento.

Como lidar com crianças com “inconformidade de gênero”?

É impossível para uma criança ser livre e feliz se tiver que cumprir todos os ditames dos estereótipos de gênero. Um menino, por exemplo, que é mais sensível, delicado, avesso a combates, e/ou interessado por “coisas de meninas” vai ser visto como “mulherzinha”, “criança viada”, “gay”, “afeminado”, e será profundamente rechaçado e rejeitado socialmente. Uma menina que é mais ativa, mais agressiva, agitada, assertiva, que goste de esportes, vai ser marginalizada, chamada de “moleca”, vai ser terrivelmente cobrada para que seja uma “mocinha”.

Só que crianças são pessoas e tem personalidade própria. E também são uma esponja e rapidamente percebem que tipo de comportamentos e posturas são desejados para que eles sejam aprovados. Para essas crianças perceber que aquilo que elas são é muito diferente daquilo que esperam que ela seja é muito dolorido. Principalmente se a criança for o tempo todo coberta de críticas, censuras, e declaração de “preocupação”.

Então o que eu queria dizer aqui é: seu filho não é uma menina porque gosta de bonecas, e cor de rosa, e não gosta de socar os amigos, nem sua filha é um menino porque ela não quer se maquiar, ou usar vestidos, ou brincar de casinha. E tampouco tem alguma coisa de errado com eles.

Eu tenho certeza que você consegue entender que brincadeiras, roupas, fantasias, comportamento, não definem se alguém é menino ou menina.

Então, quando uma criança tem uma personalidade que acaba destoando muito da expectativa social sobre ela e começa a receber muitas cobranças para ser de outro jeito, a família deve:

  • ser a primeira a reconhecer que não há nenhum problema com a criança e que é apenas a personalidade dela se manifestando;
  • acolher a dor e confusão dessa criança com eventuais rejeições sociais ao seu jeito de ser;
  • promover um ambiente familiar seguro, de experimentação, liberdade e conforto;
  • explicar o motivo pelo qual ela está sendo rechaçada socialmente (que não é culpa dela mas de um terrível sistema que quer obrigar pessoas a determinados comportamentos e visa crianças);
  • e pensar junto com ela mecanismos para que ela possa estar segura e protegida também nos espaços fora de casa respeitando seu jeito.

A outra opção, a pior delas, é acreditar que o problema está com a cria e não com essa sociedade horrorosa e castradora, que ela nasceu “no corpo errado”, e que você vai “ajudá-la” a se “encaixar”.

Aliás, “encaixar” é uma palavra mágica um tanto irresistível que faz muito pais desesperados tomarem decisões bastante questionáveis sobre suas crianças. Eles não querem que os filhos sofram, sabemos como a sociedade é cruel com quem não se encaixa. É compreensível.

Mas aí cabe pensar o preço que estas crianças estão pagando para se “encaixar” nessa sociedade que está aí, ao invés de confrontarmos e lutarmos e colocarmos abaixo essas regras. Pensar se é nessa sociedade terrível, sexista, racista, elitista, cruel, que queremos que nossos filhos se encaixem. Pensar se não é mais fácil até, simplesmente deixarem nossas crianças se desenvolverem livremente experimentando tudo aquilo que a personalidade deles vai demandando.

E buscando referências, novas maneiras de estar no mundo, que ainda são poucas mas que estão surgindo sim, impulsionando essa possibilidade (veja aqui 5 filmes infantis que nos ajudam a pensar um pouco sobre isso)

Hoje, cada família precisa escolher qual vai ser a filosofia que vai adotar na criação dos seus filhos. Porque claramente vemos discursos que parecem o mesmo mas são claramente contraditórios. Ou acreditamos que estereótipos de gênero são um problema e deixamos as crianças livres para experimentar ser do jeito que quiser, acreditamos que não existe brinquedo de menino e menina, que não existe cor de menino e de menina, e damos a possibilidade de uma infância mais rica e menos reprimida, ou acreditamos definitivamente que nascer de um determinado sexo define seu comportamento o mundo e adotamos esse manual de comportamento de gênero para ser seguido desde o nascimento.

Rejeitar o gênero, transgredir essas regras, definir-se como PESSOA, e não como “homem” ou “mulher”, segundo os parâmetros do patriarcado, é a verdadeira revolução. Todos nós somos, ou deveríamos ser inconformes com o gênero. Porque ele é uma armadilha, uma prisão. Crianças são seres visionários e tem muito a nos ensinar. Deveríamos aprender com elas ao invés de tentar “encaixá-las”.

É possível controlar o que crianças assistem?

Round 6 (Squid Game) é uma série coreana, sucesso absoluto na Netflix, e que conta história de um grupo de pessoas disputando literalmente até a morte uma fortuna em dinheiro. É uma boa série, o enredo é relativamente simples e muito bem contado, e possui classificação de 16 anos. Não é indicada para crianças e nem mesmo adolescentes por possuir cenas explícitas de assassinato, suicídio, tráfico de órgãos e sexo. E no entanto, todas as crianças não param de falar nela, para desespero dos pais. É possível controlar o que crianças assistem? E aí antes de ficarmos preocupados ou indignados, precisamos levar algumas questões muito importantes em consideração para que estejamos, acima de tudo preparados para esse tipo de coisa. Porque esse não será o primeiro, e muito menos o último, conteúdo “inadequado” que nossos filhos terão contato.

É impossível controlar completamente o que as crianças vêem

Num mundo hiperconectado como o nosso a questão não é mais SE crianças vão tomar contato com determinado tema, mas QUANDO e COMO.

Boa parte das crianças de hoje está sendo criada por pais que tiveram sua infância em um mundo bastante analógico. Assistíamos programas infantis, desenhos animados, filmes, quase tudo na TV aberta ou em meia dúzia de canais de TV a Cabo. Era bem mais simples controlar o conteúdo audiovisual porque tínhamos poucos emissores (TV, rádio, revistas) e conteúdos emitidos de maneira mais ou menos centralizada. Então, nossos pais, se assim desejassem, poderiam organizar praticamente tudo a que teríamos acesso ou pelo menos conhecer toda a programação. Não é o nosso caso.

Hoje crianças tem acesso a dezenas de serviços de streaming diferentes que por sua vez tem centenas de desenhos animados, filmes, séries e todo tipo de conteúdo, fora os próprios canais de TV a Cabo e a TV aberta. Por um celular (que muitas vezes é próprio) crianças acessam a internet, tendo acesso a buscadores que podem trazer praticamente qualquer informação. Elas acessam o Youtube, e seus ídolos são Youtubers que fazem às vezes de babá eletrônica e dizem uma infinidade de coisas interessantes assim como toneladas de bobagens. Acessam TikTok onde milhares de outras crianças fazem todo tipo de coisa sem nenhuma supervisão. Há um ecossistema tecnológico que pouco dominamos e uma infinidade de conteúdos disponíveis impossíveis de serem contabilizados.

Há também o fato de que os cuidadores (e aqui invariavelmente estou falando da mãe, que acaba sendo a principal responsável e quem lança olhos pra essas coisas) não têm como ficar 24 horas sobrevoando os filhos para regular o que eles estão assistindo. Muitas crianças estão nas mãos de terceiros enquanto a mãe trabalha, e muitas vezes, todo esse aparato eletrônico faz as vezes de babá entretendo as crianças enquanto adultos fazem coisas como tentar ganhar dinheiro para sobreviver, limpar a casa para manter um mínimo de salubridade, cozinhar, e etc. E a despeito de todas as críticas (válidas), sobre o excesso de telas, esta acaba sendo uma consequência de uma realidade imposta pelo tipo de vida que temos a nossa disposição: pessoas empobrecidas, em dupla, tripla jornada com pouco tempo para fazer coisas como dar atenção qualificada e em quantidade aos filhos.

Então a primeira informação aqui é: se já era difícil antes, hoje é impossível dar conta dos conteúdos e informações que nossas crianças terão acesso. Todo o tempo que não temos as crianças têm de sobra para estar por dentro de todas novidades. Se algo faz parte do hype, elas estarão sabendo, acredite.

Quase nenhum conteúdo cultural é realmente bom para as crianças, mesmo os infantis

Nós temos apego a classificação indicativa e ela é realmente importante, mas pensar o que é “adequado” e o que não é requer um pouco mais de reflexão. Se pensarmos que a mídia é um braço do patriarcado para a nossa socialização fazendo propaganda sobre como devemos nos comportar, o que devemos naturalizar, o que é aceitável e o que não é, vamos perceber que quase nenhum conteúdo (mesmo os ditos infantis) deveria passar sem algum acompanhamento ou problematização junto às crianças. Desde o mais singelo conto de fadas (Branca de Neve foi beijada desacordada), passando por canções de ninar (o Boi da Cara Preta ataca crianças que sentem medo), cantigas de roda (o Cravo despedaça a Rosa em uma briga), chegando aos desenhos, filmes, séries, games e todo o resto. Nossa produção cultural a despeito de nos entreter e até informar, serve principalmente para nos educar dentro da agenda patriarcal. Nossa cultura espelha nossa sociedade e nossa sociedade molda nossa cultura. É uma roda que se retroalimenta.

E é fácil verificar isso. Estamos escandalizados com Round 6 e assemelhados mas, voltemos para nossa idílica infância por um momento. Onde não havia internet e nem tantos conteúdos, tik toks, e influenciadores. Uma época melhor? Mais fácil? Nós víamos programas infantis onde as apresentadoras estavam seminuas, e recebiam convidados para cantar músicas profundamente sexualizadas. Nós aprendemos a descer na boquinha da garrafa nesses programas, inclusive. Assistíamos desenhos infantis onde os “inimigos” eram combatidos na base de muita briga e violência. Tom e Jerry, Pica Pau, Papa Léguas, He-Man, Liga da Justiça, Batman, e uma lista infinita atestam isso. Assistíamos Sessão da Tarde (onde passava Goonies mas também passava Porky’s), e víamos novela. Produções dos anos 80 e 90 (não que a dos anos 2000, 2010, 2020, estejam melhores) onde violência, racismo, machismo, pedofilia, caricaturização da pobreza, normalização da prostituição, romantização da maternidade e de relacionamentos abusivos eram a regra e não a exceção.

E poderíamos inclusive fazer o exercício de analisar os produtos culturais disponíveis para as gerações anteriores (aí em formato de cinema, radionovela, fotonovelas, livros, revistas diversas). Em todos eles teremos o mesmo combo de naturalização da violência, sexismo, racismo, elitismo porque a mídia, os produtos culturais e artísticos pertencem ao grupo que nos domina (homens brancos), refletem seus valores e fazem propaganda das suas ideias de dominação.

Dessa forma pensar em produtos “adequados” ou “inadequados” é questão de um ponto de vista. A violência do Round 6 é gráfica, crua, espirra sangue na tela, mas o adolescente de 17 anos que tem permissão pela classificação indicativa para assistir a isso já teve seu espírito preparado para a ideia de que opositores podem ser assassinados desde a época em pisava na cabeça de cogumelos jogando Super Mario. Você não vê ninguém, nos desenhos, nos filmes, nas séries, do Harry Potter até a Turma da Mônica, resolvendo seus conflitos com Comunicação Não-Violenta. A dominação, punição e aniquilação do inimigo é a regra.

Dessa forma precisamos atentar para o fato de que muitas vezes só nos chocamos e nos atentamos pro que nossos filhos consomem quando o sangue jorra ou aparece gente pelada. E na verdade todos os conteúdos que nos são oferecidos precisam de um apreciação mais atenta. Somos bombardeados de mensagens que vão nos formando também, que vão nos conduzindo a pensar de uma determinada forma, que vão naturalizando comportamentos e fatos que nunca deveriam ser considerados normais em uma sociedade saudável.

A violência é tão fascinante e nossas vidas são tão normais

Violência pode causar morte, mas violência não é sobre morte. A morte é um fato que faz parte da vida. Tudo morre e crianças tomam contato muito precocemente com essa noção por inúmeros motivos. E as histórias muitas vezes a ajudam a elaborar esse conceito de perda.

Violência é sobre dominação com uso de força, intimidação, coerção.

Vá a uma sessão de brinquedos e veja a quantidade de armas que estão reservadas para serem vendidas aos meninos. E nós compramos. Nós naturalizamos crianças brincando de “bandido e polícia”. Crianças aprendem sobre “heróis e vilões”, “bom e mau”, sobre “defender” os inocentes, numa representação onde aquele que tem permissão para perseguir e matar tem sempre a mesma cara masculina e branca. Onde as mulheres sempre precisam ser salvas. Onde a disputa é sempre por poder, dinheiro, terras, dominar o mundo. Ensinamos a lógica da dominação para nossas crianças. Legitimamos o uso da força por detrás de uma narrativa heróica e justificamos seu uso em nome de um “bem maior”.

A linguagem da nossa cultura é a violência com fins de intimidação e dominação. Somos violentos uns com os outros, com vulneráveis, mulheres e crianças. Com pessoas negras, pobres. A depender da raça e classe, crianças já presenciaram mais sangue e assassinatos recaindo sobre os seus que em um episódio fraco de Round 6. A normalização da violência é uma estratégia fundamental para a manutenção do poder masculino e não é interessante que seja diferente já que é através dela que homens mantêm-se no poder.

Um mundo onde meninos repudiam a violência, onde meninas rebelam-se contra a violência, onde a violência torna-se inadmissível simplesmente inviabiliza a manutenção dos sistemas de poder vigentes.

Então precisamos falar sim sobre violência com as crianças. Precisamos explicar qual a lógica que move as engrenagens desde mundo em que elas irão viver. Explicar qual o objetivo das regras implícitas que lhes são sutilmente apresentadas. Crianças precisam aprender, o mais cedo possível, a reconhecer, repudiar e denunciar todo tipo de violência e isto é um feito dificílimo porque levado ao pé da letra vamos notar que toda nossa vida está completamente impregnada de códigos abusivos.

Como lidar com as crianças e os conteúdos que elas acessam?

  1. Primeiro é preciso trazer as crianças para o problema. Estamos falando sobre Round 6, mas pornografia é um problema infinitamente maior e acredite, elas também estão acessando ou em vias de acessar. Não temos como controlar os conteúdos mas temos como orientar as crianças para fazerem escolhas mais qualificadas. Explicar o que é a classificação indicativa, para que serve, qual a importância. Que tipo de conteúdos podem encontrar pela internet e como alguns podem ser bastante nocivos. Que a despeito da curiosidade, há conteúdos e temas que é preciso um pouco mais de maturidade emocional para acessar. Que muitas vezes um determinado assunto será um burburinho no grupo dela mas que isso não significa que os amigos estão conseguindo ter a melhor abordagem do tema. Contar um pouco que a própria criança conseguirá realizar certos filtros a partir do que você orienta que é melhor para ela. Se a criança tiver medo, ou simplesmente for proibida, coagida, ameaçada, para não acessar… a primeira coisa que ela vai fazer é correr para ver tudo.
  2. Outra dica que pode ajudar é tentar limitar minimamente, e na medida do possível mesmo, a quantidade de conteúdo que a criança acessa. Promover uma certa curadoria. Limitar acesso a diversos serviços de streaming, sempre com filtro de classificação etária, limitar o número de canais de youtubers que a criança segue e sempre, na medida do possível dar uma olhada na playlist do youtuber para ver que tipo de conteúdo ele produz, assistir uns vídeos de amostra. O mesmo para o Tik Tok.
  3. Use todos os recursos de restrição e filtro que estiverem ao seu alcance nas plataformas e dispositivos que a criança acessa. Caso a criança tenha seu próprio celular usar aplicativos de controle parental onde você consegue monitorar todo o conteúdo que a criança vai acessar do seu próprio aparelho.
  4. Reduzir o tempo das telas e redes na medida do possível. Assistir conteúdos junto com a criança, ou colocá-la assistindo perto de você. Compartilhar um pouco dos filmes, desenhos e demais coisas que ela vê. Isso ajuda a criar vínculo e parceria para que você fique minimamente inteirada do que está acontecendo no universo virtual infantil.
  5. Conversar com a criança sobre o que ela anda vendo, pedir pra ela contar sobre as histórias que assistiu, sobre as últimas youtuber predileto também é um bom caminho para fazer uma ponte para o mundo dela e ficar de olho.

Resolve? Não. Funciona 100%? Também não. Mas já ajuda a pelo menos mapear por onde sua criança anda se informando. Se nosso desafio aqui na criação deles é a socialização, nossa principal batalha parece mesmo ser os produtos culturais e os valores que eles propagam.

Tá, mas e Round 6?

Retomando as premissas de que: é impossível controlar o que elas vêem, nenhum conteúdo pode ficar inteiramente sem alguma problematização e que existe um sistema de dominação que é retroalimentado na socialização das crianças para se tornarem adultos violentos, Round 6 é o menor dos nossos problemas. Mas sim, eu entendo que muitos cuidadores estejam preocupados e desconfortáveis.

Então acho que vale saber que ainda que crianças e adolescentes não estejam vendo a série, elas têm uma boa noção do conteúdo, seja através de canais de You Tube, Tik Tok, ou conversando com os amigos que viram. Em seguida, a premissa “pessoas morrem em jogos de disputa” não é exatamente uma coisa chocante para a maioria delas. O que, é claro, não justifica assistir a série porque, como disse, há cenas explícitas de assassinato e também de sexo. E há uma diferença entre saber que pessoas foram assassinadas e ver um cérebro espirrar na tela. Então aí acho que cada família vai precisar regular isso de acordo com suas regras internas mesmo.

De qualquer forma o que não se pode mesmo é menosprezar a capacidade das crianças de apreenderem o mundo e aproveitar o hype para problematizar algumas questões muito interessantes, a depender da idade delas, como: que tipo de vida é essa que temos onde pessoas preferem disputar dinheiro dispostas a matar e arriscando-se a morrer? Quanto vale vida de uma pessoa? É ético ser bilionário em um mundo com tanta gente miserável? Será que há espaço nesse mundo para existir algo assim de verdade? Será que tanto horror é somente ficção? O que a gente precisaria para não existir um Round 6 nesse mundo? Qual a verdadeira violência ali, pessoas tomando tiro na cabeça, ou pessoas estarem tão desesperadas a ponto de aceitarem arriscar-se a morrer por dinheiro? Ou ver pessoas bilionárias divertindo-se com isso? O que é mais desumano?

Colocar as crianças para pensar o mundo. Pensar o mundo junto com elas. Criar crianças críticas, conscientes. É um exercício que vale a pena.

5 violências que cometemos contra crianças

Há 5 violências que cometemos contra crianças, que são comuns. São pequenas coisas que violam a integridade das crianças e muitas vezes nem notamos. No geral, como sociedade, não tratamos crianças como indivíduos. O fato delas serem completamente dependentes dos adultos que as cercam as deixam em uma situação completamente fragilizada e sujeitas a abusos que nem mesmo os seus adultos responsáveis identificam como tal.

E os primeiros a cometer pequenos e grandes abusos são, obviamente, os pais. É comum a ideia de que o filho é uma propriedade, uma posse, uma conquista. Quase um objeto. “O filho é meu e eu faço o que eu quiser” é a máxima que governa boa parte das relações parentais. E aí toda sorte de fronteiras são ultrapassadas. Mas ignoramos solenemente que crianças possuem limites e não raro as tratamos como um bichinho de pelúcia fofo que podemos brincar, apertar, jogar pra cima e pra baixo, enfeitar como quisermos, dar uns tabefes talvez. Mas por amor, é claro.

E isso é importante sublinhar. Não há aqui nenhuma dúvida sobre a legítima boa intenção da esmagadora maioria das mães, pais, cuidadores em geral. Não há nenhuma dúvida sobre o amor, sobre o cuidado, sobre o sacrifício dispensado para a criação daquela criança. Nada disso anula o fato de que temos conceitos muito equivocados e que mesmo recheados de boas intenções cometemos muitas trapalhadas e algumas tantas violências.

Eu vou citar aqui algumas coisas simples, corriqueiras, que costumeiramente fazemos com crianças e que representam um grande desrespeito a sua individualidade e até a sua dignidade. Nada feito “por mal”, mas feito sempre sem pesar muito o que aquilo implica, sem considerar a subjetividade da criança envolvida.

E antes de começar para fazer entender bem como essas ações costumeiras podem ser graves e nós sequer percebemos, eu gostaria de propor um exercício de imaginação relativamente simples:

imagine que você é um extraterrestre recém-chegado a outro planeta e que para estar lá tem que ser tutelado por um grupo a quem deve obedecer a todas as orientações. Você não conhece absolutamente nada das regras sociais daquela civilização, você não conhece o idioma, não pode andar pelos lugares desacompanhado, nem ficar sozinho. Você precisa de orientação para se alimentar, porque não consegue preparar o alimento sozinho, e precisa de supervisão até para se vestir e ir ao banheiro. Até se adaptar nesse planeta, você é completamente dependente dessa família para sobreviver. Você, nessa condição, é como qualquer criança e essa família, são seus cuidadores. E, por pura dependência e desconhecimento, você está submetido às regras dos seus cuidadores e desse novo planeta.

Vamos começar então?

1. tocar em crianças sem sua permissão.

Imagine que nesse planeta em que você é recém-chegado todos os habitantes sentem-se no direito de tocar seu corpo, a qualquer momento. Eles estão fascinados com a sua espécie e se encostam em você sem pestanejar, onde quer que você esteja. Eles se aproximam e tocam seu cabelo, apertam sua bochecha, fazem cócegas em você. Seres que você acha agradáveis, seres que você acha assustadores, seres repugnantes. Não importa. Você tenta desvencilhar-se. Você diz não. Você foge. Não adianta. Riem de você. Te tratam com condescendência. Te ofendem e te humilham se você parecer zangado. Te obrigam a ser tocado apenas porque sim. Ignoram o seu pesar, o seu medo, o seu nojo. Afinal você é tão fofo, por que resiste? Não seja um alienígena mal educado, submeta-se, dá um beijinho aqui!

Sentiu desconforto com a ideia? Pois é isso que acontece com crianças o tempo inteiro. A autonomia corporal delas é constantemente violada por terceiros. O corpo das crianças é tratada como um bem público onde todos sentem-se a vontade para tocar quando bem entendem a despeito dos protestos dessas crianças. Ainda no útero qualquer pessoa se sente no direito de tocar, desde a barriga da mulher grávida, até toda e qualquer criança, durante todo o seu estágio de desenvolvimento infantil, a sua revelia.

Crianças são indivíduos, não as toque, ponto final. Use os mesmos critérios que você usa para você. Quem você permite que te abrace, que te beije, que te faça carinhos? Qualquer estranho na rua? Ou pessoas da sua confiança a quem você PERMITIU fazer isso? Protejam crianças que não conseguem se expressar, não é porque ela não fala que essa situação é desejada para ela, não precisa muito para entender a problemática dessa situação.

2. desnudar crianças em público

Agora imagine que neste planeta onde você foi parar, o grupo que te acolheu tenha que trocar constantemente suas roupas para sua adaptação à atmosfera do planeta e eles o deixam nu ou seminu a qualquer momento, em qualquer lugar, não importando quem ou quantos outros estejam presentes, e não importando o que você pensa ou como se sente a respeito. Sentiu-se vulnerável?

Nós, adultos, desnudamos nossas crianças com muita facilidade e em qualquer lugar, com muito pouca preocupação em resguardar sua integridade corporal nesses momentos. Afinal, “são só crianças, não tem problema”. Mas será que esse é um lugar confortável para crianças, principalmente a medida que crescem, se verem nuas em um ambiente onde todos os outros estão vestidos? Onde podem receber olhares e também comentários não-solicitados sobre seu corpo? É será que é seguro? Não há uma questão moral aqui apenas um questionamento, será que é realmente uma boa ideia naturalizar para as crianças que elas podem ficar nuas na frente de desconhecidos? Que “não tem nada a ver”? Que ela “é só uma criança?”. Nós podemos garantir que essa instrução não pode deixá-la desarmada demais diante de pessoas mal-intencionadas? Nós podemos assegurar completamente que está criança não está sendo fotografada ou filmada e terá sua imagem nua/seminua exposta ou comercializada junto a predadores sexuais? Nós temos, em última instância, o direito de desnudar nossas crianças em público, quando nós mesmo não fazemos isso? Nós não saímos ficando pelados por aí (para além de ser ataque violento ao pudor) por todas as questões supracitadas (insegurança, exposição, vulnerabilização…). Por que para crianças dizemos que é “normal”?

3. orientar crianças a urinar e defecar em público

De repente você chega para os habitantes do novo planeta e diz: preciso ir ao banheiro. E eles apontam para o chão e dizem: “pode fazer aí”. Como você se sentiria? O que isso estaria ensinando a você sobre aquele planeta?

Muito comumente instruímos crianças a urinarem e até defecarem no meio da rua. E sim eu compreendo que é bastante difícil administrar as idas ao banheiros das crianças quando estamos em espaços públicos porque elas ainda não tem controle da bexiga por longos períodos mas o ponto aqui é como meninos são incentivados a se aliviar em qualquer lugar enquanto meninas são coibidas e obrigadas a aprender a reter até encontrar um banheiro.

Meninos aprendem aqui, de partida, que suas necessidades físicas são mais urgentes e imperiosas que a das meninas. Que eles não precisam aprender a se conter por muito tempo. Que eles tem o direito de expor a genitália principalmente se for para aliviar uma necessidade. Que eles não precisam ter nenhuma preocupação com higiene e preservação do espaço público. Que o espaço público é deles, e eles tem o direito de fazer o que quiser, inclusive destruí-lo.

Como resultado, temos meninos que crescem e tornam-se homens que se acham no direito de expor a genitália a qualquer momento e em qualquer lugar. E mulheres que naturalizam a exposição da genitália masculina em público, caso eles precisem “se aliviar”. Para além de um ambiente público desagradável e demarcado pela urina masculina.

4. brincadeiras humilhantes e provocações

Finalmente, os habitantes desse planeta que você está visitando tem uma hábito muito curioso. Eles adoram uma experimentação e você é o campo de provas! Como você não conhece nada daquele planeta eles te contam histórias assustadoras, inventam fenômenos que não existem, insistem em ser desagradáveis e todo tipo de coisa. Eles se divertem com suas reações e estão constantemente te enganando, te assustando, te irritando, te aborrecendo, apenas para ver como é bonitinha a sua “cara”, como é engraçado quando você fica bravo, ou chora, ou fica morrendo de medo. Você é tratado com extrema condescendência, não é levado a sério, subestimam seus sentimentos, não te escutam com atenção e percebe que só é interessante a medida que funciona como entretenimento. Você quase os odeia. Mas depende de todos eles. E aprende a aceitar porque simplesmente é a parte mais fraca e será punido se reagir. Parece bom pra você?

Temos o hábito de ficar “provocando” as crianças. Queremos vê-las chorar, rimos quando estão assustadas, enraivecidas, debochamos delas. Não as ouvimos com consideração. Não acreditamos nelas. Nosso comportamento geral com crianças é uma coisa horrorosa e desrespeitosa.

Parem, apenas parem de tratar crianças como experimentos científicos. Que vamos “implicar”, assustar, fazer “testes”, pregar peças, enganar, apenas para ver suas “reações”. Adultos são uma legião de “tios do pavê” quando trata-se de crianças. Achamos bacana rir dos seus tombos, dos seus medos, das suas dúvidas. Tratamos crianças como seres muito pitorescos, muito “fofinhos” e “bonitinhos”. Essas são as crianças que “servem”. As que funcionam como entretenimento, que levam “alegria” por sua “inocência”. Mas na hora que elas apresentam seus temores, inseguranças e dificuldades, ninguém quer estar perto.

4. expor informações sensíveis na internet

Subitamente os habitantes do novo planeta começam a provocar você. Eles parecem bravos, você está confuso, começa a ficar com medo. Você não sabe o que está acontecendo e começa a ficar muito assustado. Você corre, você chora. Você se esconde. E subitamente todos começam a rir e você descobre que tudo não passava de um grande trote. Que toda sua reação de terror foi filmada e agora você era um entretenimento gratuito para milhares de desconhecidos que estão rindo do seu momento de vulnerabilidade.

Parem de filmar/fotografar e postar informações sensíveis sobre a sua criança. Você não é dona da imagem dela. Ao contrário, você deveria ser guardiã da reputação dessa pessoa que está em formação. Pergunte-se: você gostaria de virar um meme? Você gostaria de crescer tendo sido um meme? Ser reconhecido como “a criança do meme”? Não percebem que uma piada só é engraçada para quem ri e não para o objeto do riso? Crianças são pessoas e não objetos a disposição do entretenimento dos pais.


Em resumo

Crianças têm direito a proteção da sua integridade física e psíquica, têm direito a sua imagem e de serem donas da sua história. Somos seus guardiões até que elas tenham idade e maturidade bastante para pesar e assumir as consequências dos seus atos. Mas nós tratamos crianças como posse, como uma coisa que não possui uma crescente autonomia, que não tem compreensão — ainda que limitada — dos fatos. Achamos que “crianças não entendem as coisas” e as tratamos como seres que não percebem e não sentem os pequenos e grandes abusos que cometemos. Fazemos com uma criança aquilo que nunca faríamos com qualquer outro adulto que por quaisquer motivos estivesse sob nossa supervisão e cuidados.

Nós, constantemente, violamos a autonomia corporal e a integridade das nossas crianças. É algo tão incorporado na nossa cultura e nos nossos hábitos que sequer percebemos isso como uma violação. Mas com um pouco de bom senso é muito fácil perceber os limites, basta considerar que crianças são pessoas. Basta considerar que a despeito de terem dificuldade de elaborar, elas tem sim sentimentos. E podemos aprender a considerá-los e respeitá-los.

Nossas palavras não mudarão a realidade

Estamos em um momento terrível e palavras não mudarão nossa realidade, precisamos articular ações que concretizem essas palavras de ordem. Na data desse texto, agosto de 2021, vivemos uma pandemia, empobrecimento e mais um milhão de incontáveis desgraças nesse apocalipse a conta-gotas e um fato em particular sensibilizou quase todas as mulheres que tenho notícias. Estamos presenciando o retorno do Talebã ao governo do Afeganistão, um grupo paramilitar fundamentalista islâmico que caracteriza-se por impor um regime de governo totalitário marcado pela violência e por leis absolutamente restritivas para mulheres. São inúmeras as possibilidades de impedimentos, desde trabalhar e estudar até a andar na rua desacompanhada de um homem ou ter sua voz ouvida em um espaço público. No Talibã, mulheres devem ser invisíveis. Isso tudo movido a castigos físicos, violência sexual e casamentos forçados. Milhares de mulheres naquele território estão em pânico, nesse exato momento, sem saber dos seus destinos. Vendo toda sua vida e todos os seus planos sendo jogados pela janela.

Basta uma crise política para que os direitos das mulheres sejam os primeiros a serem confiscados. No Afeganistão mulheres já tiveram muitos direitos e inclusive por algum tempo tiveram um tipo de vida muito semelhante ao nosso, mulher ocidental. Não que nós estejamos em ampla e larga “vantagem”, aqui mesmo no Brasil vemos como o fundamentalismo religioso também prega que mulheres não devem estudar ou trabalhar, como devem se vestir, se portar, e nossos parcos direitos de autonomia reprodutiva estão sendo paulatinamente caçados. E se não ficarmos atentas e combativas corremos sim o sério risco de perdê-los. Porque direitos das mulheres conquistados sob um estado patriarcal estão em constante risco. Basta uma crise. Uma pequena ou grande crise e seremos o grupo que será rifado.

Afinal, qual é o grupo que está sendo mais prejudicado nessa pandemia? Mulheres, óbvio. Expulsas do mercado de trabalho, precarizadas, pauperizadas, largadas a própria sorte com os filhos em casa, vulnerabilizadas, agredidas. Um show de horrores. Lá e cá.

Por outro lado nunca estivemos tão ativos nas redes e isso me faz pensar sobre como nossas lutas são facilmente capturadas pra uma disputa narrativa que mais desmobiliza que qualquer outra coisa. Eu fico pensando sobre como fomos engolidas por um debate pós-moderno que quer vencer tudo no textão e na hashtag. Sobre como gastamos tempo e energia com debates um tanto inuteis que — por levar toda nossa energia — nos dá a sensação de que estamos nos movimentando. É tão bonito esse mundo proclamado (e profetizado pela Xuxa), em que tudo pode ser e basta acreditar que tudo será. Antes fosse. Antes toda essa verborragia passasse no teste da realidade. Eu juro mesmo que tudo que eu queria agora era que todas aqueles mulheres no Afeganistão pudessem autoidentificar-se como homens, pegar em armas e praticar um pouco da violência “intramasculina” explodindo uma meia dúzia de cabeças por lá. Que elas sentissem que não são mulheres. Que elas sentissem que não se identificam com a cisnormatividade blablabla de poderem ter um mão amputada caso pintem a unha e que elas pudessem mudar a realidade delas apenas autodeterminando que pensando bem não são mulheres.

Só faltaria combinar com os Talibãs.

É óbvio que essa baboseira queer não se sustenta na realidade, o que não parece tão óbvio é sobre como estamos completamente entorpecidos e apartados dessa mesma realidade. Ou melhor, como construímos um ambiente virtual que é hoje é uma espécie de “realidade” que vai preencheendo dias, vazios, perspectivas. Que vai tampando buracos emocionais e funcionando como rota de fuga de uma vida que parece cada vez impossível de ser resolvida. Nas redes conseguimos trazer paz e equidade com hashtag, acabamos com o sexismo mudando a grafia das palavras, podemos até confundir vogal temática com pronome, não tem problema nem ser burro, ninguém liga. É sim um lugar de mais liberdade onde, se você procurar bem, acha uma bolha quentinha cheia de pessoas que vão concordar com você e ajudar a falar mal do amiguinho. Dá paz, eu entendo.

Porque a vida, pulsando lá fora, não tem fluidez nenhuma. É o país de Bolsonaro, é o país onde voltamos pro mapa da fome, onde continuamos a morrer feitos moscas por causa de uma pandemia que ninguém sabe ainda quando vai acabar, é um mundo infestado de imbecis negacionistas que esqueceram o básico da geografia, da biologia e de tudo quanto noção básica de ciência que deveríamos ter aprendido na primeira infância. É o mundo onde há a situação das mulheres afegãs, das haitianas, de nós, latino-americanas, e tantas outras realidades igualmente massacrantes para mulheres a ponto de nem saber enumerar. É um mundo insuportável que estupra mulheres e crianças por minuto, que vende bebês na deep web pra pedófilos, onde meia dúzia de bilionários tem dinheiro suficiente para comprar nações inteiras e salvar milhões da miséria mas preferem investir dando uma voltinha no espaço num foguete fálico ridículo. É um mundo que está derretendo e congelando simultaneamente porque nós conseguimos ignorar os problemas climáticos por tempo bastante a ponto de já não podermos fazer mais nada exceto arregalar os olhos com as consequências. Um mundo onde a gente não tem nem mais lágrimas pra chorar afinal o que são 5 pessoas mortas pisoteadas num aeroporto quando já perdemos mais de 3000 pessoas por dia só por aqui?

Eu entendo o apelo sedutor do discurso pós-moderno, que não te exige inteligência, coerência e te dá poder a partir de uma das poucas coisas que você pode tentar controlar: o seu discurso. Que diz que você pode se empoderar mana, é sobre isso, vai planeta. É o que tem pra hoje para lidar com essa maldita impotência diante de um mundo que se esfacela. Vamos correr para dentro da bolha, pra quem pode, pra quem consegue. E a esta altura eu já nem sei se condeno essa pulsão de loucura generalizada. É luta ou fuga, e luta já sabemos que não está rolando. Mas palavras não mudam a realidade, ações mudam. A materialidade está lá, inalterada, dando na nossa cara quando olhamos para ela. Você não destrói monstros que te ameaçam dizendo que eles são nuvens de algodão doce, você reúne um exército e corta a cabeça dele fora. E essa tentativa pueril de não olhar esse monstro da desigualdade de sexo, raça e classe nos olhos vai cobrar seu preço para nós. Já está cobrando.

Sobre o pai que não estava lá

Sempre que chega o dia dos pais eu quero falar com todos os filhos que cresceram com essa sensação de o que o pai não estava lá. Que foram diretamente atingidos por essa organização familiar estranha onde o pai é uma figura distante, por vezes misteriosa, muitas vezes agressiva. Aquele homem que fala pouco, que não chora, que tem hábitos rígidos e ar taciturno. Que consegue o silêncio familiar apenas com um olhar.

Quantas famílias não foram e são governadas por essa figura clássica de homem. O PAI. Que chega tarde e cansado do trabalho, que a mãe coloca a comida no prato, que a casa precisa estar limpa, que o ruído precisa cessar porque ele quer descansar enquanto vê TV.

O PAI. Que grita com a mulher — sua mãe — mas não deixa faltar nada em casa. E que sua mãe sente-se agradecida porque “ele é honesto”, “ele é bom pra mim”, “pelo menos ele não bate”, “pelo menos ele não bebe”, “pelo menos ele não tem outra família”. Ou nada disso. Às vezes é uma gratidão surda, sem motivo, em meio a tantas violências, que só parecem menores porque o lar de origem da sua mãe era pior.

O pai. Tão diferente da figura que você vê nos filmes e nas novelas. Um homem que pouco sorri, que você não sabe bem o que sente, que está presente mas não estava lá.

Porque sua mãe estava lá. Na porta da escola, cerzindo suas roupas, escondendo seus pequenos malfeitos, te protegendo de pequenas e grandes surras. Descabelada, vendo novela, fazendo bolos. Sua mãe estava lá, lavando, passando, cozinhando, criando filhos, todos os dias, tão iguais. E muitas vezes ainda trabalhando fora, chegando cansada, chegando antes, fazendo tudo. Sua mãe estava lá, sem saber se era feliz, sem saber se era amada, sem saber se era prazer, sem saber se era vista, se era gente. Cuidando de tudo, de você dos seus irmãos.

E seu pai também estava lá. Embora você pouco o visse, embora você pouco se lembre, porque pensando bem você pouco o conhece. Talvez um dia descubra histórias sobre ele que vão te surpreender. Revirando albuns da época em que existiam retratos. Talvez descubra coisas que se orgulhe e tantas outras que a envergonhe ou amedronte.

E suas lembranças serão boas, ainda que difusas, afinal, ele é seu pai não é mesmo? Um pai fazendo o que bons pais devem fazer. Ele nunca deixou você passar fome afinal, nem te faltou um teto. Não importa se você não tem certeza se é só isso que pais deveriam fazer. Não importa que ele saiba muito pouco sobre você. Que a relação que vocês têm é muito mais uma fantasia que você criou para suprir uma falta que você nem sabia que tinha. E que quando você lembra de algo semelhante a carinho, afeto, presença e até sorriso, seja tudo sobre sua mãe. Porque era ela que realmente estava lá.

Eu quero dizer a esses filhos que a socialização para masculinidade transformou esses meninos em homens que não conseguem dar-se por inteiro, que não conseguem mostrar-se por completo, que é impossível pensar num envolvimento amoroso, presente, honesto, íntegro, com o tipo que homem que homens aprendem a ser. E isso não é para que você “perdoe” o seu pai, é só pra dizer que essa presença ausente é a regra. Que a família margarina que vemos nas novelas e filmes tem um bocado de ilusão. Que somos alijados de estabelecer conexão porque se aos homens for permitido se abrirem, se mostrarem e se conectarem ele não darão conta de cumprir sua tarefa de explorar e subjugar mulheres. Que esse é o preço que todos pagamos. Essa presença ausente, extirpada de alma, de brilho nos olhos.

E está tudo bem se você sente que quem estava lá por você sempre foi a sua mãe. Você não tem que sentir gratidão por seu pai apenas porque ele ficou e tudo bem se você já sentiu que sua vida teria sido melhor se ele tivesse ido. Saiba que isso é muito comum, é sistemático, tudo bem conversarmos sobre isso, isso é um efeito colateral de uma coisa chamada patriarcado.

Onde há dominação não há como repousar o amor.

É possível educar crianças para repudiar a homofobia?

Será que é realmente possível educar crianças que cresçam para não só não praticar como para repudiar a homofobia? Eu acredito que a resposta é talvez, e apenas talvez, por mais progressistas que sejamos, porque para ensinar como não discriminar pessoas homossexuais precisamos repensar todo o conceito de heterossexualidade.

Em primeiro lugar, precisamos entender um pouco dos motivos pelos quais ser homossexual é considerado um problema tão grande na sociedade que vivemos hoje. Sim, porque o comportamento homossexual não é novo, nem novidade, nem incomum, nem nos humanos e nem em inúmeras outras espécies. Inclusive existem estudos antropológicos que remontam práticas rituais homossexuais já há cerca de 10.000 anos, ou seja, pessoas transam com outras pessoas desde sempre, a despeito de serem ou não do mesmo sexo.

E quando tudo isso começou a mudar sistematicamente? Com o fortalecimento de instituições como o casamento e a família nuclear que surgiram para garantir a manutenção da heterossexualidade compulsória.

É o que é a heterossexualidade compulsória?

É um regime político organizado para garantir o controle da sexualidade de mulheres, de forma que elas estejam sempre subordinadas sexual e afetivamente a homens, ligadas a uma família nuclear e comprometidas com o cuidado do ambiente doméstico, da manutenção da vida de um homem, com a reprodução e cuidado de crianças. E dizemos que é um regime compulsório porque essa é a única forma de relacionacionamento afetivo-sexual que é permitida aos indivíduos, tendo mecanismos punitivos desde sutis (preconceito velado), até bem contundentes (a morte) para os que não seguem. Vivemos sim em uma sociedade em que não apenas é proibido não ter um comportamento heterossexual como todas as instituições sociais se organizam para garantir a heterossexualização dos seus indivíduos.

E como isso acontece? Desde boa parte das religiões que tem cláusulas bem específicas sobre o tema, passando pelos modelos de conduta ensinados na família, escola, etc (que reforçam a ideia da formação de uma família nuclear, com pai, mãe e filhinhos, como o ápice do acontecimento de uma vida), passando pelas instâncias legais que não reconhecem uniões homoafetivas (e isto está mudando bem aos poucos com muita luta dos grupos interessados), até o principal propagador: a cultura de massa, que nos bombardeia incessantemente com a romantização das relações heteroafetivas.

Ou seja, a despeito de como se constitui a atratividade afetiva e sexual (pergunta para a qual não existe uma resposta definida), ter homens e mulheres unidos e reproduzindo a espécie, com a fêmea em situação de subordinação (que é uma situação dada pela maneira como o casamento se organiza) é uma estratégia basilar do patriarcado e do capitalismo. Não é interessante que mulheres (e aí também homens, consequentemente) sejam livres para de repente decidirem que NÃO querem formar um tipo de organização social (a família-nuclear) que é a peça-chave para a manutenção desse sistema que nos oprime.

Entender a compulsoriedade da heterossexualidade é fundamental para compreendermos o fenômeno da discriminação sexual. Pessoas que decidem fazer sexo com outras do mesmo sexo, de forma não-procriativa, estão transgredindo não só as leis de “Deus”, mas principalmente as leis de regulação da mão de obra para a sustentação do capitalismo e as leis de manutenção da hierarquização sexual entre homens e mulheres. Isso não é sobre “heteronormatividade”, é muito maior que isso. É, repito, um regime político, uma agenda para garantir a imobilidade das castas sexuais.

E aí você pode se perguntar: mas se o patriarcado está aí há 6000 anos porque tão recentemente é que podemos dizer que existe uma organização tão complexa para garantir a heterossexualização das pessoas? Simples, porque antes mulheres não tinham direito a dar nenhuma opinião sobre o destino dos seus corpos. Elas eram vendidas, negociadas pela família, trocadas entre tribos, dadas de presente, como meros objetos comerciais. Mulheres e homens não precisavam ser convencidos a nada quando se tratava de reproduzir a espécie, isso era um negócio, uma solução para ter mãos para lavoura. Até o advento da disseminação das ideias eclesiais, sexo não andava junto com a ideia de casamento, ou amor, ou nada que valha. Quando a prática de vender mulheres em casamento foi abolida (e ainda é uma prática muito comum em muitas partes do mundo, não se enganem), e mulheres começaram a ter alguma autonomia sobre quem seriam seus parceiros, ganharam no colo uma bomba chamada romantização dos relacionamentos heterossexuais, toda a sociedade se reordenou para que a essência de como as uniões se organizavam não mudasse tanto assim, para que sequer pensássemos nisso, em outras formas de estar, de amar, de desejar. Para que mulheres sequer cogitassem a ideia de não unirem-se nunca mais a homens, por exemplo. Continuamos a celebrar os mesmos rituais medievais, mas agora chamando de “escolha”.

Eu acredito firmemente que a maneira mais fácil de educar crianças sobre relacionamentos é buscando fugir o máximo possível dessas noções heterossexualizantes, que estão presentes em tudo que ensinamos, o tempo inteiro, na nossa linguagem, nossa cultura, nos nossos modelos. Dizemos que a vaca é a “mulher do boi” (por que ela não pode ser a irmã? por que não dizemos que ela é a versão fêmea daquela espécie?), dizemos que dois irmãos que são um menino e uma menina são um “casal”, dizemos que crianças namoram, e isso pra citar alguns poucos exemplos que passaram agora na minha cabeça.

Temos que nos observar ao máximo para evitar essa visão do mundo pautada pela divisão sexual. Até porque crianças não têm uma noção erótica. Elas vêem o mundo dividido muito mais entre adultos e crianças do que entre homens e mulheres. Somos nós, ADULTOS, que nos esforçamos o tempo inteiro em doutrinar essa organização mental pautada no sexo.

Eu também não gosto muito do discurso da “aceitação”, porque — a depender de como é feito — isso indiretamente ainda reforça a ideia de que existe um comportamento normativo, padrão, e um “desviante”. “Aceitar”, “incluir”, pressupõe uma concessão. Uma ideia de que aquele outro ali está fazendo algo que não deveria, não poderia, não é natural, está “fora”. E esse entendimento (para crianças) reforça uma ideia de “falta de naturalidade” em comportamentos homossexuais, de que a heterossexualidade é o “certo” mas temos que ser bacanudos e “inclusivos”, quando na real é que ninguém tem nada a ver com a vida sexual de ninguém e pessoas não têm que ser organizadas, ou aferidas, ou validadas, de acordo ou por causa da sua sexualidade.

Diga a seu filho que adultos namoram e crianças não namoram. É isso que ela precisa saber sobre o tema. Quando a criança vir dois homens se beijando, verá adultos namorando. Quando vir duas mulheres se beijando, verá adultos namorando. Quando ela vir um homem beijando uma mulher, verá adultos namorando. Quando ela vir um casal de homens ou mulheres com um filho, verá dois adultos que resolveram criar uma criança. Dois pais, duas mães. Sequer há muito o que ser “explicado” sobre isso. É a vida dos adultos. Fim de papo. Não há o que “aceitar”, não há nada “diferente” nisso. Precisamos parar de projetar nossos constrangimentos e nosso preconceito para o mundo das crianças.

Se há algo a ser “explicado” para crianças sobre esse tema é que vivemos em uma sociedade que valoriza e condiciona um comportamento heterossexual. E isso nos leva a um comportamento de estranhamento, reativo e muitas vezes agressivo a tudo que foge a essa domesticação. O que crianças precisam entender não sobre o que é que a “homossexualidade” e sim sobre o que é realmente a heterossexualidade, sobre o que ela representa, sobre como ela nos é imposta, a que ela se destina. Que pessoas não são “naturalmente” uma coisa ou outra. Elas são pessoas, humanas, complexas, e têm o direito de crescer fazendo valer seus desejos e afetos sem ter que prestar contas a ninguém.

Em uma sociedade que prestasse, onde pessoas fossem verdadeiramente livres, todos saberiam que comportamento sexual de alguém é um tema de foro íntimo e de competência dela e que ninguém tem que se meter nisso. E que isso não define ninguém. Que classificar, discriminar, perseguir, segregar, estigmatizar pessoas com base no seu comportamento sexual só faz sentido em uma sociedade patriarcal, que precisa controlar corpos e sexualidades. Que só funciona porque realiza esse controle.

Então, considerando todas as poderosas engrenagens da heterossexualidade compulsória eu não tenho ilusões que seja possível criar crianças 100% descontruídas, seres de luz, porque a própria lógica de “desconstrução” que temos já está contaminada, porque o capitalismo já colocou as patas nessa pauta (e está se dando MUITO bem), enfim, são muitos poréns. Mas eu acredito sim que é possível explicar a nossas crianças e adolescentes como e porquê as coisas são como são. E acho que é possível esse esforço de contrabalancear essa educação que é toda baseada na divisão sexual da sociedade e consequentemente na dominação e na subalternidade de homens e mulheres respectivamente. Vale a pena pelo menos esse esforço dirigido.

Quanto ao meu filho eu espero apenas que ele faça sexo protegido, consciente e consentido. E que curta muito, e se divirta, porque sexo é uma coisa bastante boa, convenhamos. O resto, realmente, não é da minha conta.

Ser mãe, no país dos absurdos, durante a tempestade

Talvez nunca tenha sido tão insuportável ser mãe como nessa longa tempestade que atravessamos, nesse país dos absurdos, governado por pessoas tão más. Porque atravessamos esta tormenta com nossos filhos nos braços, e muitas de nós estão ficando pelo caminho, e muito pouco estamos conseguindo fazer para ajudar umas as outras.

Eu nunca, particularmente, senti medo de morrer. Até que tive um filho. O primeiro e mais forte sentimento então que eu tomei contato, mais até que o profundo amor que me tomou, foi o medo da morte. Medo de partir sem saber que destino meu filho teria então. Medo que meu filho partisse, levando com ele meu coração dilacerado. Nesses tempos que vivemos, todas nós, que somos mães, convivemos com essa sombra pesada sobre nossas cabeças como nunca antes, porque são inúmeras as ameaças. E sim, para cada filho que se vai, a dor é todas as mães, porque toda mãe conhece esse terror, esse medo desesperado de partir antes dos seus filhos. E para onde olhamos só há dor.

Então eu queria deixar aqui o meu mais sincero abraço a todas as mães que perderam seus filhos nessa pandemia que é muito mais horrorosa do que deveria por conta do desgoverno que vivemos.

Para cada mãe que perdeu seu filho para a violência do Estado e para todas as mães, principalmente negras, pobres, periféricas, que além do medo da pandemia nunca sabem se seus filhos retornarão vivos para casa porque sabemos que nossa cor nos torna um alvo.

Para as mães que perderam seus bebês da maneira mais horrenda, vítimas da violência masculina.

Quero deixar toda minha solidariedade para todas as mães que estão nesse momento sem saber como vão alimentar seus filhos, porque a pobreza nos assola.

Para cada mãe que está sofrendo as mais terríveis violências dentro do seu lar, sem perspectiva de fuga e proteção para suas crianças.

Para todas as mães que estão em burnoutdepressão, crises de pânico, ansiedade crônica, ou cuja saúde mental está esvaindo com algum outro quadro, porque já não dão conta de dar conta de tanta coisa.

Para todas as mães que estão exaustas, sofridas, amedrontadas, sem saber o que fazer com seus filhos, que resposta oferecer, sem saber que mundo existe lá fora para oferecê-los.

Para todas que estão hospitalizadas, ou que estão nesse momento com seus filhos internados.

Queria deixar o meu mais sincero abraço para todos filhos que perderam suas mães, para aqueles que estão com muito medo de perdê-las.

Queria também que cada criança hoje pudesse sentir-se especialmente confortada, querida, segura. Mas eu sei que não é possível, mas ainda é possível desejar, de todo o coração, e mandar os pensamentos mais felizes e acreditar que eles podem ter força sim.

Só nos resta resistir, é o que estamos fazendo. O que sempre fizemos. Não sei ainda por quanto tempo. E nos resta também acreditar que vai passar. Trincar os dentes e seguir em frente. Resistir, sim. Mas até quando?

A culpa não é da mãe

A mídia foi tomada pelo caso do menino Henry, de 4 anos, que foi barbaramente assassinado por espancamento pelo padrasto com a anuência e/ou omissão de todos os que os cercavam, inclusive a mãe, que tinha sua guarda e era a cuidadora primária direta. E a culpa, obviamente, está recaindo sobre a mãe.

Eu não sou muito fã de ficar repercurtindo atos de violência contra as crianças, até porque o menino Henry é (infelizmente), apenas o caso da vez. Já tivemos outras crianças vítimas cuja história foi intensamente explorada pela mídia, como caso do Bernardo, da Isabela Nardoni, e outras que não recebem tanta atenção assim, visto que negras, como é o caso das crianças de Belford Roxo.

Estou trazendo então esse tema pra comentar sobre o comportamento padrão em casos de violência contra crianças que é o de apontar todos os dedos para a mãe. E não, eu não pretendo aqui advogar em defesa dessa mãe ou de nenhuma outra, mas antes comentar sobre os inúmeros problemas que decorrem de responsabilizarmos unicamente as mães sobre o cuidado e segurança dos filhos e como isso serve tão bem aos interesses de um sistema patriarcal.

Culpabilizamos exclusivamente as mães por qualquer evento que acontece com as crianças principalmente por conta da romantização da maternidade que vende a imagem de que toda mãe é naturalmente “santa”, “amorosa”, “pacífica”, “boa”. O mito da “mãe leoa” que protege (ou deveria proteger) os filhos a qualquer custo é na verdade um problema para as mulheres e crianças. Em primeiro lugar porque mulheres são pessoas. E a despeito da socialização feminina treiná-las sim para que sejam mais cuidadosas, amorosas e menos agressivas, elas — como qualquer pessoa — também são capazes de todo tipo de atrocidades, inclusive contra crianças.

Então, quando culpabilizamos mulheres por elas terem “falhado” na sua responsabilidade, por terem desviado da norma do que uma mãe deve ser, quando reforçamos o discurso da “mãe monstra”, nós cada vez mais naturalizamos essa a ideia de que toda mãe é naturalmente e necessariamente boa. E isto está bem longe de ser verdade. Maternidade não conserta caráter de ninguém.

O mito da “mãe leoa” também mais constitui uma enrascada que uma espécie de elogio para as mulheres porque faz com que toda a sociedade espere que mães estejam sempre à postos e atentas, a despeito de terem ou não condições para isso. E mais, faz com que toda uma rede que cerca cada criança, delegue para a mãe essa responsabilidade da proteção, e simplesmente lave as mãos.

Quando alguém encontra uma criança em risco, o que essa pessoa faz é buscar a mãe da criança para que ela resolva o problema, e não garantir que o risco a essa criança cesse. Ninguém considera que a mãe pode não ter condições ou mesmo vontade de proteger essa criança. Ninguém considera que a mãe pode ser a ameaça.

As pessoas não estão preocupadas em proteger crianças porque elas são tratadas como um problema que precisa ser tirado da frente. Um problema que mães causaram, ao tê-las. Então mães que assumam e resolvam. A sociedade age devolvendo o “problema” para que mães resolvam, afinal elas que resolveram transar e resolveram parir. E quando alguma coisa bizarra demais para merecer manchetes de jornal acontece todos ficam “abismados” como se um cotidiano das mais absurdas violências não fosse o comum de boa parte das nossas crianças, sob o nosso olhar complacente. E, obviamente, vão atirar pedras na mãe, que deveria ser onipotente, onipresente e onisciente.

O menino Henry morreu espancado. Morreu de tomar chutes de um homem adulto. Um menino franzino de 4 anos tomando bicudas no abdômen. Quem falhou foi a mãe? Não. Falharam todos que em algum momento perceberam que essa criança estava em perigo e simplesmente se eximiram de protegê-la, justamente por considerar que isso era “assunto da mãe”. Que acionaram a mãe e viraram os olhos sentindo que a missão de proteger uma criança acaba quando devolvemos a responsabilidade para quem é “de direito”. Porque somos uma sociedade que trata crianças como coisas, como objetos que pertencem aos pais. E que quando há algum problema é só “avisar ao dono”, e eles que resolvam. Mesmo que esses pais, que essa mãe, que essa unidade funcional familiar seja a principal fonte de violência contra essa criança.

O menino Henry estava sendo agredido há meses. É óbvio que ele pediu socorro de maneiras diretas e sutis para diversas pessoas. É óbvio que os sinais estavam ali. Não teve uma única pessoa que lançou um olhar mais atento para esse menino para notar que talvez tivesse alguma coisa profundamente errada? Como é que ninguém foi capaz de ouvir o choro, os pedidos de socorro verbais e não verbais, olhar as marcas, ver as mudanças de comportamento? Foi toda uma cadeia de cuidado que passava por mãe, pai, babá, avós, tios, escola, terapeutas, vizinhos… que simplesmente não notou, ou ignorou, ou considerou que isso era “um problema da mãe”.

Quantas crianças em situação de vulnerabilidade e risco de vida passam sob nossos olhos todos os dias e nós viramos a cara porque isso é um “problema da mãe?”. Por que nosso “compromisso” com o bem-estar de crianças se resume em localizar a mãe para culpá-la quando alguma coisa dá errado?

E quantas mães não estão completamente vulnerabilizadas, sem nenhuma condição física, emocional, psicológica, financeira de proteger seus filhos? E estão completamente abandonadas nessa tarefa? Quantas mulheres não estão indo além dos limites aceitáveis para a dignidade humana em nome de proteger seus filhos sob os olhares cúmplices da sociedade que acredita que nada que mulheres façam é demais porque “mães devem fazer tudo para proteger seus filhos?”.

Mães não tem que fazer TUDO para proteger seus filhos. Porque esse “tudo” para a sociedade inclui todo tipo de sacrifício e degradação. Porque a responsabilidade de proteger crianças é usado contra essas mulheres, que são chantageadas, são humilhadas, são usadas, e que quase sempre aceitam de um tudo em nome de garantir a segurança de seus filhos. Aceitam ficar em relacionamentos abusivos, aceitam violência doméstica, aceitam subempregos humilhantes, aceitam vender seus corpos. E tudo bem por isso, ninguém move um dedo para apoiar mulheres, vamos dar um troféu de “mãe guerreira” e uma sessão de apedrejamento público se alguma coisa sair errado. Ninguém liga pro bem estar dessa mulher e menos ainda com crianças.

Parem de apontar dedos para as mulheres. Deixem as mães em paz. Cuidar de crianças é compromisso de todos. Não só das nossas crianças, mas de todas as crianças. Crianças são pessoas em formação, vulneráveis e precisam de proteção 24 horas, e em uma sociedade que não fosse tão predatória, isso seria oferecido a ela em todos os espaços. A despeito da presença dos pais.

Em uma sociedade que realmente se preocupa com suas crianças, Henry, Bernardo, Isabela Nardoni, os meninos de Belford Roxo, e mais tantos outros casos “famosos” e anônimos não existiriam. Mães não estariam acuadas, desesperadas, com a tarefa solitária de defender seus filhos. Mães seriam vistas como pessoas, que falham, e por isso também precisam de ajuda, orientação, apoio. Mães também seriam observadas se sua maternagem é realmente protetiva ou violenta. E principalmente mães não seriam culpabilizadas porque quando algo acontecesse com uma criança, TODA a sociedade, todos nós, sentiríamos esse peso dessa culpa. Sentiríamos que falhamos. Como pessoas, como grupo, como comunidade. Como seres humanos.

Cada vez que uma criança sucumbe, todos nós falhamos. A culpa é nossa.

Lugar de mulher é onde o patriarcado quiser

Acreditamos na máxima “lugar de mulher é onde ela quiser”, mas basta uma crise para o patriarcado nos colocar de joelhos cumprindo aquilo que somos destinadas dentro desse sistema de opressão.

Eu já falei que é preciso pelo menos 4 pessoas para dar conta saudavelmente de todas as demandas da criação de filhos: duas pessoas em revezamento tomando conta das necessidades básicas da criança (que inclui não deixá-la sozinha, por exemplo); uma pessoa para ganhar o sustento; uma pessoa para cuidar das questões de limpeza, alimentação, roupa e cuidados gerais de manutenção do ambiente. Esse cenário não se produz, obviamente, nem em condições normais da vida, mas ainda assim, mulheres sempre conseguiram desdobrar-se e equilibrar-se terceirizando tarefas e contando com parceiros como a escola e a família.

Com a pandemia, todos estes artifícios externos para conseguir dar conta das responsabilidades que são jogadas sobre os ombros da mulheres foram retirados e o cenário — previsível e trágico — é de terra arrasada, afinal quem cuida das crianças enquanto os pais trabalham se não há mais cuidadores terceirizados? A resposta é tão fácil e automática, que chega a ser cruel: as mulheres. Não importa se elas também precisam trabalhar para se sustentar. Não importa se elas estudam, se elas produzem. Lugar de mulher é em casa e elas são as primeiras a irem pro sacrifício.

Mulheres hoje são as principais afetadas pela pandemia, estão sendo expulsas dos postos de trabalho, estão sobrecarregadas de tarefas domésticas, são as principais responsáveis pelos cuidado das crianças, dos doentes. Estão em cativeiros com seus companheiros sendo violadas, abusadas, agredidas, mortas. Enquanto isso, homens estão sendo plenamente atendidos em suas necessidades, roubando nossos postos de trabalho porque não são responsabilizados pelo cuidado de nada e ainda aumentando sua produtividade.

E todos se perguntam — e se espantam — sobre como isso pode estar acontecendo.

Eu respondo

No patriarcado existe uma coisa chamada divisão sexual do trabalho, que é a maneira como as tarefas do trabalho são divididas na sociedade levando em conta o sexo dos indivíduos. É a divisão sexual do trabalho que separa as atividades em “trabalho de homem”e “trabalho de mulher” e que também hierarquiza fazendo com que o tal “trabalho de homem” valha mais, sejam melhor remuneradas e tenha mais status. É pela divisão sexual do trabalho que homens são destinados ao mundo externo, à esfera produtiva e mulheres são relegadas ao mundo doméstico, à esfera reprodutiva. E isso acontece desde sempre, em diferentes sociedades, a ponto de podermos afirmar com razoável segurança que existem dessa forma desde o início do patriarcado, o que cobre quase tudo que conhecemos.

É muitíssimo importante que entendamos isso. Isso é o puro suco do patriarcado cuja exploração sobre mulheres se estrutura sobre a divisão sexual do trabalho, a maternidade compulsória e a heterossexualidade compulsória. Esse é o tripé estrutural consolidado para manter toda e qualquer mulher em posição de subalternidade, cuidando dos serviços domésticos, das crianças, dos adoecidos, dos idosos, dos homens.

A despeito de todas as “conquistas” que tenhamos conseguido, a despeito de leis e mudanças de costumes, percebemos como esse tripé segue inabalável quando em momentos de crise como esse mulheres são atiradas de volta ao “seu lugar”: cuidando da casa, dos filhos, do companheiro, dos vulneráveis. Veja como esta pandemia trouxe um retrocesso de mais de dez anos em participação no mercado de trabalho para mulheres no Brasil e na América Latina. Como somos a parcela mais empobrecida e mais explorada. Como os numeros de feminicídio e violência doméstica explodiram pelo mundo (assim como os de divórcio).

É para isso que existimos no patriarcado e só sairemos desse lugar rompendo essa lógica e destruindo os mecanismos que o sustentam. Não acreditem na falácia de que: “lugar de mulher é onde ela quiser”, que “mulheres já estão em pé de igualdade com homens”, que “mulheres já podem fazer tudo”. Isso é uma mentira mil vezes contada para nos manter no mesmo lugar de subalternidade mas com um sentimento (falso) de liberdade. Quando a crise bate, nós não temos todo esse direito de “escolha” que imaginamos ter e nossa agência é muito limitada porque não existe nenhum olhar para nossas demandas, somos descartadas enquanto sujeitos de direitos, com necessidades. Sobramos nós e as crianças.

A pandemia escancarou a realidade nua e crua de todas as mulheres. Está aí, inegável, sendo vivida em maior ou menor grau por todas nós. Que consigamos enxergar de uma vez por todas o lugar que a sociedade nos reserva e romper com isso. Lutar contra isso. Nomear os nossos inimigos e combatê-los, senão não importa quantas conquistas e “avanços” sejam pretensamente conseguidos, nós mulheres nunca abandonaremos esse lugar de servilidade e subalternidade. Nossas necessidades nunca serão consideradas. Nunca seremos pessoas. Com direitos. Livres.

O medo não nos paralisará

Não há o que dizer hoje para amparar tanta dor e angústia que nos atravessam irmãs. O medo paira no ar, mas não nos paralisará. É a noite escura. Não sabemos do futuro. Não há palavras para nos consolar e não podemos sequer nos furtar um abraço. Eu gostaria de poder dizer a cada uma de vocês, mulheres, que vamos resistir e tudo vai passar. E vai, sim, eu sei. Mas também sei que quando tudo fica difícil demais no mundo, é sobre nós, sobre nossos ombros, que recaem todas as chagas.

Estamos com medo.

Mulheres, o que posso dizer? O medo nunca nos abandona. Ele é nosso companheiro fiel desde que nascemos, desde nossa primeira lufada de ar. É nosso companheiro mais antigo, a primeira fera que aprendemos a domar. A sombra que nos acompanha noite e dia, sempre à espreita. Sempre nos mantendo vigilantes. Onde fazemos morada. Nós conhecemos o medo desde sempre e sabemos o que fazer.

E sim, está tudo muito mais difícil. Estamos adoecendo, empobrecendo, perdendo nossos amores, nossos pais e também nossos filhos. Estamos passando fome, vendendo nossos corpos de diferentes maneiras para nos sustentar. Estamos nos submetendo a todo tipo de violência. Confinadas. Sequestradas. Reféns de um poder patriarcal que não se importa com nada e muito menos com mulheres.

Mas eu acredito, ainda acredito, que não há força maior e mais revolucionária, e potente, que a de mulheres quando finalmente se unem na mesma direção. Eu acredito na força que só mulheres, criadas para resistir desde sempre a todo tipo de abuso apenas por serem fêmeas sob o patriarcado, desenvolveram. Tiveram que desenvolver.

Toda mulher é uma sobrevivente e não é agora que seremos paradas.

Que nossas semelhanças nos unam, mais do que nossas diferenças nos separam. Esqueçam os “feminismos”, nós somos uma única voz, lutando por questões pungentes, de vida e morte. Lutando por comida, por abrigo, por dignidade. Lutando para defender nossas crianças. Lutando umas pelas outras. Mulheres por mulheres. Sempre. Precisamos agora ser um único corpo, compacto, indevassável, um corpo de mulher, que faz as pazes com seu sangue e resiste. E vai pra luta defender a si e os seus.

Hoje, 8 de março de 2021 é um dia de lutas. E mais que nunca brigamos para sobreviver. Lutamos contra a fome, contra a exploração, contra a violência, lutamos contra o poder patriarcal materializado de forma pura diante de nós. Olhem e vejam. Encarem a batalha que descortina-se diante de nós sem subterfúgios. Vamos sair dessa fase de negaçao. A guerra agora é sobre resistir, sobre sobreviver, sobre não perecer de fome, adoecimento, totalitarismo. É sobre permanecer caminhando até sair do outro lado desse longo caminho escuro e interminável e assistir ao sol nascer.

Cuidem-se. Protejam-se. Protejam os seus. Não tenham ilusões que cairá alguma migalha dessa mesa para mulheres e crianças. Está tudo bem se você está com medo. Quem não está com medo não está entendendo nada sobre o que está acontecendo. Lembre-se que o mundo nunca nos paralisou. E não vai nos paralisar. Vamos juntas.

O que é a Lei de Alienação Parental (LAP)?

Quando fala-se em Lei de Alienação Parental (LAP), a primeira coisa que vêm à mente são histórias de casais em pé de guerra, usando os filhos como munição para atingir um ao outro. Relatos e relatos surgem sobre como um pai impediu o convívio do filho com a mãe, ou sobre como a mãe “fez a cabeça da criança” contra o pai. E como as famílias no geral são muito mais um campo de batalha do que um espaço de harmonia, esse é sempre um tema muito sensível para se abordar porque afeta memórias muito sensíveis na história de várias pessoas que estiveram no meio de disputas de custódia.

E portanto, o lugar mais preciso para se começar essa discussão é esclarecendo logo de partida: essa pressão que crianças sofrem nesse processo de disputa dos pais é terrível, a dor é real, esses embates precisam de mediação sim, mas não é “alienação parental”. É abuso psicológico de crianças, o que os pais sofrem é calúnia, difamação, ou qualquer outro nome ou figura jurídica passível de ser aplicada, mas “alienação parental” é uma outra coisa, e não podemos defendê-la enquanto dispositivo legal porque ela tem no seu escopo muito mais problemas que soluções, além de ser profundamente misógina e feita para prejudicar mulheres e crianças.

O que é a SAP?

Para entender o que é a Lei de Alienação Parental (LAP) é preciso conhecer o conceito da “Síndrome da Alienação Parental (SAP)” surgiu em 1985 proposto pelo psiquiatra americano Richard Gardner (guarde bem esse nome), como sendo um distúrbio passível de acometer crianças envolvidas em disputas de custódia, principalmente quando um dos genitores agia ativamente no sentido de interditar o filho material e emocionalmente na criação de vínculos com o outro genitor. Para Gardner, a SAP, quando não identificada e devidamente tratada, poderia trazer graves consequências psíquicas e comportamentais para a criança. Diversos sintomas como ansiedade, depressão, aversão injustificada ao genitor foram associadas a esse quadro, assim como implantação de falsas memórias (guarde essa informação também) nas crianças.

A SAP desde a criação sempre foi uma teoria controversa, sem comprovação científica, questionada e pouco fiável. Recusada pela própria Associação Americana de Psicologia, sequer foi incluída na quinta edição do Manual de Diagnósticos e Estatísticas dos Transtornos Mentais (DSM-5), que lista todos os distúrbios mentais já identificados, e em virtude dessa discordância, em junho do ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a existência apenas do termo “alienação parental” e não da “síndrome da alienação parental”. No entanto, mesmo sem muita credibilidade, ela foi rapidamente acolhida no meio jurídico servindo aos tribunais mundo afora para basear sentenças de guarda em divórcios litigiosos.

No Brasil, ela serviu de base para a criação da lei 12.318, de 26 de agosto de 2010, que dispõe sobre a alienação parental, criada no intuito de “proteger” a psiquê das crianças em caso de separação dos seus pais, e prevê desde multa a pais alienadores, até reversão completa de guarda.

A fundamentação Gardnerista da lei não é invenção da nossa imaginação delirante. O projeto de lei 4053/2008 foi proposto, à época, pelo deputado Regis Oliveira, do PSC/SP, e todo projeto de lei, quando é proposto, precisa de uma justificação. Você pode ler tudo você mesma aqui, mas nós vamos destacar algumas coisas.

Na justificação, lê-se:

lei de alienação parental

Literalmente todas essas fontes giram em torno dos mesmos grupos que elaboram artigos e análises que acabam por remeter ao mesmo autor — Richard Gardner.

livro “Síndrome da Alienação Parental e a Tirania do Guardião” — “direcionado aos magistrados, pais, advogados, psicólogos, psicanalistas, assistentes sociais e demais operadores do direito” — foi organizado e publicado pela Associação de Pais e Mães Separados — APASE, responsável também pela tradução do artigo “Síndrome de Alienação Parental” de François Podevyn, cuja fonte teórica principal é — você já sabe — Richard Gardner.

O site da associação SOS Papai se baseia largamente em fontes belgas — principalmente na ACALPAAssociation Contre l’Aliénation Parentale. Dando uma rápida olhada no site — notadamente, no item de “diagnóstico da alienação parental” -, é possível perceber a mesma linguagem de sempre e os mesmos critérios descritos por… Gardner. Na listade referências bibliográficas recomendadas pela organização sobre o assunto, naturalmente, ele é referenciado.

As associações Pai Legal e Pais Por Justiça também possuem amplo material sobre a SAP, sempre referenciando os mesmos materiais, os mesmos julgamentos; empenhadas em “denunciar falsas acusações de abuso sexual”.

A justificação desse Projeto de Lei finaliza com a citação de um artigo publicado em 2006 por Maria Berenice Dias, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul — nome recorrente na defesa da LAP e da SAP -, intitulado “Síndrome da alienação parental, o que é isso?”. Vamos deixar aqui só um trecho:

lei de alienação parental

Maria Berenice Dias atualmente é Vice-Presidenta Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), referência em doutrina e jurisprudência em direito de família no Brasil, além de ser uma de suas fundadoras. Ela também preside a Comissão de Direto Homoafetivo e Gênero do mesmo instituto e já presidiu a Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB. Maria Berenice ajudou a elaborar a Lei de Alienação Parental.

Se você ainda não entendeu o problema, deve ser porque nunca leu de fato o que esse tal de Gardner escreveu. Nós temos muitos e muitos exemplos de absurdos que não cabe expor neste texto especificamente — porque já fizemos uma compilação aqui.

Em suma: nossa lei é, de fato, baseada numa teoria que relativiza e naturaliza pedofilia, além de ativa e automaticamente colocar em dúvida a denúncia feita por mães de abuso sexual de crianças, com base em estereótipos misóginos de mulheres loucas, histéricas, ciumentas, controladoras e dissimuladas.

Como a lei funciona de fato?

Em resumo, com a Lei de Alienação Parental, mães estão perdendo a guarda dos seus filhos para pais pedófilos. A mãe, com guarda compartilhada, percebe que o filho está sendo abusado sexualmente pelo pai e o denuncia na Justiça Criminal. É aberto um inquérito para investigar, mas, antes mesmo de ele ser concluído, o pai consegue uma decisão de reversão da guarda, na Vara de Família, alegando “falsa denúncia” por parte da mãe, que é então acusada de ser alienadora. Os processos correm em instâncias diferentes e em geral as provas do abuso são ignoradas, se perdem, os laudos psicológicos das crianças são desconsiderados, e ao final, a criança fica sob a custódia justamente de quem é acusado de ser o seu abusador.

Já são inúmeros casos. Terríveis. Mulheres aterrorizadas, sendo deslegitimadas, incapazes de proteger suas crianças de uma situação tão aterradora quanto a violência sexual. Mulheres que são acusadas de implantar “falsas memórias” de abuso nos próprios filhos para que eles acusem os pais. Mulheres que passaram a ser coagidas, ameaçadas com esta lei. Que recolhem-se, silenciam-se, aceitam acordos onde entregam seus filhos parcialmente nas mãos do abusador para não perdê-los completamente. Mulheres que desistem de buscar direitos. De buscar justiça para seus filhos. Por medo de perdê-los.

É esse o estrago que causa a Lei da Alienação Parental no Brasil hoje, e causou em todos os outros países onde vigorou, e foi derrubada.

Uma lei que não foi feita para proteger crianças, mas sim proteger abusadores

Para entender um pouco sobre o sentido verdadeiro dessa lei, é preciso voltar-se para os fundamentos da sua criação. E para isso é preciso falar de Richard Gardner (lembram-se dele), o criador da teoria da SAP.

Gardner foi um médico que defendia pedofilia abertamente em seus livros, que fez carreira defendendo nos tribunais indivíduos acusados de abuso sexual de crianças. Não coincidentemente, a sua “pesquisa” e a “teoria” (SAP) que desenvolveu foi amplamente utilizada por ele e aumentou muito sua fama e seus honorários, justamente protegendo genitores pedófilos.

Richard Gardner também é o autor do livro Sex Abuse Hysteria: Salem Witch Trials Revisited” (Creative Therapeutics, 1991), onde escreveu coisas como: “Há um pouco de pedofilia em cada um de nós”, ou no seu livro True and False Accusations of Child Sex Abuse (Creative Therapeutics, 1992), onde naturaliza o incesto dizendo que mulheres não devem deixar seus parceiros sem sexo já que “Sua sexualidade aumentada pode reduzir a necessidade de que seu marido se volte para a filha do casal em busca de prazer sexual”.

Profundamente misógino, a obra de Gardner é mais uma a alimentar o mito da mulher histérica e oportunista, ao passo que naturalizava o contato sexual entre crianças e adultos.

O que podemos fazer?

A Lei da Alienação Parental já existe no Brasil desde 2010 e desde o início vem causando estragos. Inúmeras mães, que perderam a guarda dos seus filhos, ou fugiram com eles para não ter que entregá-los ao pai abusador, organizam-se, em diversos grupos, pedindo a revogação dessa lei que causa tanto estrago. A lei precisa ser revogada e mecanismos mais eficientes de proteção à criança precisam ser pensados.

repercuta essas informações

Muitas pessoas ainda não sabem como esta lei está sendo usada contra mulheres e como ela está sendo um recurso que coloca em risco crianças que sofrem abuso sexual intrafamiliar. Compartilhe essas informações o máximo possível, combata a ideia de que a lei da alienação parental (a despeito de algumas aplicações “bem-sucedidas”) é uma avanço para proteção de mulheres e crianças.

vote na consulta pública do senado

Mulheres organizadas conseguiram levar suas denúncias e provocar uma audiência públicae hoje a luta é pela revogação dessa lei. Vote na consulta pública e mostre seu apoio.

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FONTES

O que é Síndrome de Alienação Parental?

Entenda porque revogar a Lei de Alienação Parental é importante para mulheres e crianças – Themis

Lei expõe crianças a abuso – Agência Pública

O empenho da Justiça para evitar os danos da alienação parental

Lei da Alienação Parental: problema ou solução? Debate esquenta

Pai abusador usa Lei de Alienação Parental para tomar guarda de filho

Lei pode obrigar crianças a conviver com abusadores – AzMina

Alienação parental: uma nova forma de violência contra a mulher


Representatividade sem revolução é uma armadilha

Em algum momento de um passado não muito distante nós começamos a perceber como vivemos uma sociedade estratificada por sexo, classe e raça. Em algum lugar desse passado nós conseguimos nomear o inimigo e ensaiar estratégias. Que só o desmantelamento das estruturas opressoras poderiam reordenar nossa sociedade em nome de um modelo que ainda não temos claro qual seja, mas que certamente não passa pelo genocídio e exploração sistemática de mulheres, pobres, negros.

E então, o contragolpe.

Ele sempre vem.

Inúmeras armadilhas narrativas foram plantadas e agora florescem em solo forte. E já estamos colhendo seus frutos, nos estilhaçando por dentro. Qualquer ensaio de uma coesão em nome de lutar contra um poder hegêmonico desfez-se em teses identitárias e subjetivas que parecem muito bonitas mas só causam dissenso, brigas e disputas e mais disputas inúteis que não levam a lugar nenhum.

Dividir pra conquistar. Esse, visivelmente, é o lema.

Tudo começou com essa ideia imbecil de que somos “múltiplos”, “plurais”, “diferentes”, dissolvendo completamente a possibilidade de nos vermos enquanto classe. Classe sexual, classe racial, classe proletária. Nós somos múltiplos no explorar das nossas subjetividades mas na vivência material? Somos muito mais iguais do que pensamos, há muito mais o que nos une do que o que nos separa.

Entre numa sala com 100 pessoas. Misturados ali, homens, mulheres, pessoas brancas, pessoas negras e pardas, pessoas ricas, pessoas pobres. Pergunte como cada um se sente. Pergunte sobre o que cada um pensa. Pergunte sobre o que cada um percebe. Você ouvirá 100 respostas distintas.

Agora pergunte sobre as vivências.

Quem já sofreu violência sexual. Quem já sofreu assédio. Quem já sofreu violência obstétrica. Quem já se prostituiu para poder comer. Quem já sofreu violência doméstica.

Pergunte quem já foi perseguido em uma loja. Quem tem medo da polícia porque é alvo. Quem já perdeu um amigo para violência policial. Quem já foi humilhado por sua cor. Quem já foi preterido. Quem já foi agredido.

Pergunte quem já sentiu fome. Quem já teve medo de não ter onde morar. Quem já precisou da caridade de terceiros para coisas como roupas para vestir. Quem nunca teve acesso a coisas simples como livros.

Você verá grupos distintos e muito bem demarcados. Unidos pela sua experiência material, de vida. Que só aconteceram por causa do seu sexo, da sua classe social, da sua cor.

A subjetividade nos separa, mas a materialidade nos une. Nos divide claramente entre quem manda e quem obedece. Quem oprime e quem é oprimido.

E estamos perdendo isso de vista e atacando uns aos outros.

Nesse cenário, não há armadilha maior que a ideia de “representatividade”, tal como é apresentada, com literalmente a inclusão feita de cima pra baixo de representantes de minorias (mulheres, negros, pobres) de maneira puramente simbólica. Como embaixadores de uma falsa ideia de sociedade democrática.

E isso é especialmente problemático porque não podemos perder de vista que não há interesse — e nunca haverá — que minorias tradicionalmente oprimidas e marginalizadas realmente acessem espaços de poder. E permitir a presença simbólica de alguns indivíduos em determinados lugares é uma estratégia de pacificação e cooptação de pautas para o seu esvaziamento. É uma concessão, não é uma conquista real da reivindicação dos movimentos, porque essa inclusão não acontece nas instâncias decisórias, mas nas esferas de estimulação do consumo. Garotos-propaganda sempre, diretores e presidentes, nunca. O discurso da “representatividade” é esvaziado e repaginado como uma genial estratégia de ampliação de mercado.

Sabe para quem a “representatividade” importa? Para a Natura que adquiriu a Avon e a receita da marca cresceu 19,3% em reais na América Latina, impulsionada especialmente pelas vendas no Brasil, e avançou 22,5% na operação internacional, que reúne 50 mercados na Europa, Ásia, África e Oriente Médio e está de olho no mercado de beleza para negros e pardos que apesar de comportem 57% do total de habitantes do país, representam apenas 5,9% das vendas no mercado nacional.

E você pode questionar-se: mas qual é o problema? Pessoas pobres, pretas e pardas tem direito de ser vistas como consumidoras, não? Claro que tem, o problema não é esse. O problema é que antes de ser consumidor, essa população precisa ser vista como GENTE. Como cidadãos de direitos. E nesse momento, a representatividade que grita é essa aqui: 38% da população mais empobrecida do Brasil é composto por mulheres pretas ou pardas, 35% por homens pretos ou pardos, perfazendo 73% das pessoas em condição de pobreza. O que está sendo feito por essas pessoas? Não é curioso que no momento que o discurso da tal da representatividade esteja mais em voga, os números mostrem que na vida a população negra e parda nunca esteve tão empobrecida e vulnerável?

Representatividade sem revolução é uma armadilha
a representatividade que importa

A “representatividade”, hoje, virou um produto que compramos para nos sentirmos menos humilhados por toda a exploração que sofremos. Para nos sentirmos “vistos”, “acolhidos”, “percebidos”. Não há interesse das elites em representatividade de verdade. Estratégias sérias, programáticas, para diminuir a enome desigualdade social e consequentemente garantir uma representatividade real, quantitativa, qualificada, não só nunca foram realmente aceitas como foram sistematicamente boicotadas. A política de inclusão de cotas raciais nas Universidades, por exemplo, existe há mais de 15 anos, uma política séria, efetiva, para garantir acesso às cadeiras de educação superior para populações marginalizadas e excluídas e sempre foi atacada. Programas de renda mínima como Bolsa Família? Sucateados.

Olhem bem para a cara das famílias mais ricas do mundo:

Representatividade sem revolução é uma armadilha
as famílias mais ricas do mundo: brancas, do norte global

Lá de cima da pirâmide, homens brancos cada vez mais ricos e poderosos refastelam-se. Nada os afeta. Nunca estiveram tão protegidos, tão blindados, tão tranquilos. E isso porque aqui, no rés do chão, ao invés de organizamos a revolução que vai pôr abaixo essa estrutura que nos esmaga, estamos brigando, batendo boca e disputando migalhas, achando muito bacana sermos “representados”. Sabe o que a representatividade é na prática? um mimo dos opressores. Um petisco que jogam da mesa para apaziguar os ânimos quando sentem que ideias subversivas demais estão a correr. Onde estão as mulheres pretas e pardas, onde estão as mães, sendo consideradas DE VERDADE nessa equação? Olhem para a REALIDADE. Na hora do vamos ver, mães são chutadas dos espaços políticos, pessoas negras são escorraçadasse não dobram sua retórica.

Nenhuma introdução de ideais contra-hegemônicos, nenhum movimento que realmente desafie o status quo, será bem recebido ou terá espaço para florescer sem uma forte resistência ou tentativas sistemáticas de descaracterização e enfraquecimento. Lutamos contra duas estruturas muito bem articuladas e poderosas — o patriacardo e o capitalismo. E essa super-estrutura também é fluida e muito eficiente em abarcar as dissidências e transformá-las em acessórios colaboracionistas disfarçados.

A representatividade que precisamos precisa ser reflexo de reparação histórica e social. Precisa ser o resultado de um processo revolucionário que desmonte a lógica de exploração a qual todos estamos submetidos. Precisa vir através do desmantelamento das estruturas e instituições que corroboram para nos manter nesse estágio de exército de reserva, marionetes do sistema. E esse processo só pode se dar através de construção coletiva, pelo reconhecimento do que nos une, pelo reconhecimento de quem nos ataca, pela nomeação de quem nos oprime.

Representatividade sem revolução é uma armadilha. O que precisamos é da ocupação natural dos espaços que vem depois da revolução de uma sociedade que nos mantém cativos.

Os mitos que romantizam a maternidade

São muitos os mitos que romantizam a maternidade. A romantização constrói uma narrativa sobre algo, escondendo seus aspectos opressivos, e idealizando e hiperdimensionando aspectos positivos. Esta é uma estratégia muito astuta dentro das estruturas de opressão para criar amarras psicológicas que garantem que as pessoas submetam-se a determinados papeis sociais e naturalizem situações onde são imensamente prejudicadas, sem dar-se conta disso. Para mulheres, a romantização da maternidade é fundamental para garantir a compulsoriedade dessa tarefa. A despeito dos dispositivos mais diretos e objetivos (como a dificuldade de garantir a contracepção ou a impossibilidade de interromper a gravidez), são esses gatilhos psíquicos que são construídos durante toda nossa socialização que garantem que quase toda mulher necessariamente acabe se tornando mãe em algum momento da sua vida, ou que sintam-se compelidas a maternar animais, plantas, seus companheiros, ou qualquer outra coisa que apareça no caminho.

Aprendemos sobre a maternidade e sobre o que é ser mãe de muitíssimas maneiras. Recebemos instruções diretas e também observamos o mundo. Vemos nossa própria mãe e a de outras pessoas, e também representações culturais, artísticas e midiáticas: teatro, livros, músicas, filmes, novelas, séries, matérias jornalísticas, e etc. É a nossa cultura — machista, a serviço dos valores do patriarcado — que oferecem todo um referencial com o qual vamos organizando mentalmente todo um aparato simbólico sobre o que significa ser mãe. Sobre o que a sociedade espera de nós nesse lugar. Como devemos agir, pensar, sentir e nos comportar. Somos moldadas para a maternagem atravessadas por mitos românticos que funcionam tanto como uma isca para este lugar, quanto uma medida de controle do comportamento da mulher que materna.

Os mitos que existem sobre a maternidade são a armadilha que nos atraem, nos mantém presas e condicionadas e que embaçam nossa reflexão crítica sobre nosso verdadeiro papel no patriarcado. Por isso é muito importante conhecê-los, para reconhecê-los e principalmente, combatê-los:

  • a mãe sagrada: 
    O sagrado é algo conectado diretamente a uma força superior, imaculada. O sagrado é venerado, infalível e existe para servir a humanidade e ao mesmo tempo ser adorado. Desde mitos antigos, com o arquétipo da “deusa mãe”, cristalizando com Maria, mãe de Jesus, aprendemos que ser mãe é um ser “divino”, “sagrado”, “puro”. Envolvemos o tema da maternidade em uma aura mística, onde a grávida é a mulher “escolhida” e filhos são uma bênção “dos céus”, uma missão sagrada que mulheres devem aceitar custe o custar, estejam prontas ou não, queiram ou não. Uma missão cuja recusa é tida como heresia. A ideia da mãe sagrada vai ancorada na de que a maternidade é um “sacro ofício”, que a dor, o sofrimento, o sacrifício, fazem parte do ato de criar crianças e que nenhuma mulher deve reclamar ou rebelar-se, mas sim resignar-se, e mais sentir-se agraciada afinal “filhos são um presente divino”. A ideia de que a maternidade é um lugar de divindade, e que toda mãe deve ser “adorada”, “reverenciada”, como uma Deusa, também abre espaço para muito abuso de poder onde mulheres incorporam esse mito e comportam-se com total onipotência perante seus filhos exigindo amor e respeito porque sim.
  • a mãe especial:
    esse é um mito muito ancorado no da sacralidade da maternidade. Vende-se a ideia de que mães são seres “especiais”. Isso cria uma falsa sensação de status na maternidade e mascara toda a opressão dessa condição, a ponto de mulheres que não são mães afirmarem que há “privilégios de tratamento” para as que são, antagonizando esses dois grupos. Mulheres deixam de se enxergar como iguais, pressionadas pelo patriarcado para o exercício da maternidade, para verem-se como rivais, onde mães se tornam as “preferidas”, as “paparicadas”, por terem cumprido o seu destino como mulher. Essa promessa é especialmente potente porque a estima das meninas é desde muito sendo esmagada e todas as outras possibilidades de existência e potencialidades vão sendo minadas. Meninas muito precocemente vão entendendo que seus talentos não servem ao mundo, a não ser que estejam a serviço da sedução de um homem ou da criação de filhos. Esse discurso da “mulher especial”, então, torna a maternidade um lugar desejado para muitas mulheres, um lugar onde elas entendem que finalmente terão atenção, reconhecimento social, terão algo que é uma criação sua (sim, um bebê). E é um choque para muitas quando, ao terem filhos, percebem que caíram em uma armadilha, e que se tornaram-se completamente invisíveis.
  • a mãe guerreira/heroína:
    a função do mito da mãe guerreira ou mãe heroína é romantizar o sofrimento e o abandono materno. É uma estratégia eficiente que faz com que mulheres assumam esse arquétipo diante de dados desafios da criação dos filhos, trazendo para si toda a responsabilidade de resolvê-los, e que faz com que a sociedade também “lave as mãos” diante de suas dificuldades, já que toda mãe “é guerreira”. É um prêmio de consolação emocional, uma espécie de “biscoito” psíquico que jogamos para mulheres manterem-se firmes enquanto sofrem todo tipo de horror e aniquilação na tarefa de criarem de seus filhos. Via de regra a mãe “guerreira” foi abandonada por todos e teve que fazer os maiores sacrifícios e abrir mão completamente da própria vida. E muitas vezes esse “elogio” vem dos próprios filhos como forma de gratidão e reconhecimento para a mãe pelo tremendo esforço que aquela mulher fez para criá-los. Mas de fato, quase sempre, por trás de uma mãe “guerreira”. de uma “mãe heroína” o que existe mesmo é miséria, violência, abandono do Estado, e muita exploração.
  • a mãe dotada naturalmente:
    esse é um mito muito presente e muito nocivo: a ideia de que é natural para mulheres cuidar do outro. Que mulheres “levam jeito”, que mulheres tem um “dom”, um “instinto” maternal e de cuidado. Isso não é verdade em absoluto e traz como único resultado uma idealização absurda sobre o tipo de mãe que mulheres devem se tornar. Mães que não erram, que estão sempre ali à disposição dos filhos, mães que amam naturalmente tudo que tem a ver com suas crias e com a maternidade. Essa ideia de que pode haver algum elemento inerente às mulheres para o cuidar de filhos é injusta e profundamente misógina. Injusta porque sequer considera homens nessa equação colocando todo o peso e expectativa nas costas das mulheres e misógina porque enxerga mulheres necessariamente sob uma ótica de serviço e dedicação às necessidades do outros. E esse mito também é a desculpa perfeita para homens fugirem da responsabilidade do cuidado, e para meninas serem socializadas com muito mais afinco nessa direção enquanto não é feito nenhum investimento no ensinamento dos meninos. Mulheres muito facilmente assumem todo tipo de tarefa de cuidado e sentem-se desestimuladas a cobrar ou ensinar ou delegar essas mesmas tarefas aos homens porque “eles não levam jeito pra isso”.
  • a mãe que ama incondicionalmente:
    um dos mitos mais perniciosos que ronda a maternidade é sobre o amor. Tanto o que mães sentem pelos filhos quanto o que filhos sentem pelas mães. Na maternidade, este sentimento é imposto como absolutamente necessário, verdadeiro e inequívoco, que surge sem reservas e de maneira intensa. Para as mulheres é uma espécie de “salário”, a “compensação” por todo o trabalho que ela realiza sozinha, tanto o amor que ela sentirá pelo filho (“você nunca sentirá nada igual”), quando o amor que ela aprende que filhos deverão sentir por ela (“ninguém nunca vai te amar tanto”). E essa lenda que atravessa a relação parental traz também uma visão romântica do amor. Das mães espera-se um amor abnegado, aquele que tudo doa e nada espera, o amor carinhoso e dedicado, sempre a serviço da necessidades dos filhos. Dos filhos o reconhecimento devotado de todos os sacrifícios que a maternidade impôs àquela mulher e a gratidão eterna. Como resultado existe uma série de distorções de relacionamento entre mães e filhos, onde mulheres agarram-se aos filhos e ao seu sentimento por eles como a única coisa importante e que justifica suas vidas, e cobram afeto e gratidão dos seus filhos apenas porque sim, mesmo que sua relação e sua criação seja permeada por equívocos e violências. Do outro lado há filhos romantizando as possibilidades afetivas de suas mães, querendo delas total dedicação e serviço, desumanizando essas mulheres, tirando delas o direito ao erro, muitas vezes patologizando como “narcisista” comportamentos que distem do ideal de “mãe amorosa e dedicada”. E sempre há culpa, muita culpa. Mães que sentem que não amam seu filho o bastante, ou que sentem que não tem o seu trabalho reconhecido. Filhos culpados por não sentirem todo o amor e gratidão que são cobrados o tempo inteiro.
  • a mãe perfeita:
    esse mito constrói a narrativa de que mães são perfeitas e não tem direito ao erro, ao equívoco, à dúvida, no exercício da sua maternagem. E é uma excelente e uma das principais ferramentas de controle do comportamento das mulheres porque, na expectativa de corresponder a esse ideal de perfeição, mulheres aceitam muito facilmente todas dificuldades, o abandono, a dor, a solidão, o desamparo e a exploração do seu trabalho por parte do homens. Elas envergonham-se de sentir as dificuldades de maternar, acham que o problema é com elas, que não são boas o suficiente, e tem muito constrangimento em reclamar e contar suas dores e medos. E ai não conversam sobre o que realmente acontece, não conseguem sair do personagem de mãe infalível. Porque admitir que está dificil demais é lidar com o fato de que não correspondem ao ideal de mãe perfeita, sagrada, que a tudo se doa sem reclamar. Que não são capazes de serem gratas pela benção que é ter um filho. E mulheres que ousam verbalizar para si que não se sentem “abençoadas”, que a experiência da maternidade para elas tem sido na verdade um problema, são escrachadas socialmente, punidas, e invariavelmente sentem-se culpadas.

Os mitos maternos agem assim. Romantizam. Criam a imagem de que a maternidade é um lugar especial, de júbilo, plenitude e amor. Cria um cenário tão idílico que torna-se atraente para mulheres, enquanto elas crescem sendo desprovidas de todas as outras possibilidades de estar no mundo, enquanto elas são massacradas pela ideia de que possuem um “dom” natural para maternar, que possuem um “relógio biológico”, que não possuem nenhum talento, ou utilidade, ou que não há nada mais importante que possam fazer que não seja tornar-se mãe. E uma vez lá, mães, estas mulheres se vêem completamente perdidas e ficam reféns desses mitos e de toda essa romantização porque tentam a todo custo fazer a lenda acontecer, e a sociedade, que opera essa narrativa para garantir que mulheres permaneçam desejosas e “sonhando” com a maternidade, reforça e reforça o discurso e pune as mães que ousam romper o pacto com a mitologia e falar sobre a realidade de de exploração laboral que é a maternidade. E isso opera tão consistentemente que até o tal discurso da “maternidade real” já está sendo romantizado.

Homens sabem muito bem o que significa ser pai. Tanto que adiam ao máximo esse momento (quando pretendem assumir) ou simplesmente fogem. Onde está a romantização da paternidade?

De tantas saudades

Meu filho, você completa seis anos. Seis longos anos se passaram desde que te peguei no colo pela primeira vez e hoje quando te vejo assim, já um menino, meu coração é só saudades. Sim, eu já sinto agora saudades desse garoto divertido e esperto que você é porque descobri que o tempo passa muito rápido. Eu ainda não esqueci teu cheiro de bebê, eu ainda não esqueci teus primeiros passos e agora tudo são saltos e pulos pela casa. Eu ainda não esqueci teus balbucios e agora você matraqueia sem parar. Eu sinto tantas saudades, saudades de tudo. Saudades de você, saudades de mim antes de você. Meu coração é só confusão, eu sinto falta de poder dormir tranquila até a hora que quiser e sinto falta do seu sorriso que me acompanha incansavelmente todas as manhãs. Eu sinto falta do meu corpo antes que você o invadisse e sinto falta de sentir você se transformando em você dentro da minha barriga. Eu sinto falta da minha vida antes de tudo ser sobre você e sinto falta cada vez que você não está aqui. Como é possível tanta contradição num coração?

Você na minha vida me impulsionou a ser coisas que jamais sonhei. A olhar para lugares e abrir portas que nunca mais conseguirei fechar. Tua presença cotidiana, que me tornou mãe, também me tornou uma mulher que anseia e luta por uma possibilidade de mundo melhor para todas as mulheres e para todas as crianças. Mas foi você, é por você. É por não querer perder sua alma, por não querer deixar você entregá-la, num pacto por privilégios. Eu sinto saudades. Saudades de quando a vida parecia mais fácil apenas porque eu não entendia, eu não via, eu não sentia. Eu não sentia nada, e agora eu sinto tudo, meu filho. E foi você, rasgando minhas vísceras com a tua chegada.

Eu sei que foi a socialização que me trouxe até aqui, mas não posso negar a intensidade desse vínculo, de amor, de afeto. Tudo passa tão rápido, e eu sinto alívio também, porque foi tudo tão difícil, e então eu penso que bom que passou, nunca mais faria de novo, mas aí me doem as saudades de um jeito que não tem jeito. E digo “não tenham filhos”, como dizer o contrário? Mas não, eu não vou negar, a maternidade me transformou, ela me trouxe até aqui, ela me forjou essa mulher melhor. E não, não acontece com todas. E sim, acontece com muitas. E às vezes um sorriso apaga tudo, mas é sempre só por um instante. Você tem seis anos, meu filho, e eu não odeio ser mãe. Eu não odeio mesmo. Mas odeio o patriarcado, eu odeio esse mundo que explora mulheres e que nos impede de mergulhar no mar intenso dessa experiência sem medo de rachar a cabeça no fundo.

Você faz seis anos e eu sou só saudades. Saudades de quando você não estava aqui. Saudades de cada versão de você que se vai enquanto você cresce, assim tão rápido.

5 tipos de exemplos que adultos devem dar às crianças

A socialização de crianças ocorre a partir do dizemos para elas mas principalmente a partir daquilo que ela vê, os modelos de comportamento que ela apreende do mundo. Crianças aprendem o que ensinamos e, principalmente, apreendem o mundo a partir daquilo que elas vêem dos seus adultos de referência. Vamos para o mundo imitando esses adultos e com a maturidade é que vamos tendo possibilidade emocional e bagagem crítica para reorganizar esses comportamentos na vida. Por isso os tipos de exemplos que adultos devem dar às crianças podem ser determinantes no futuro:

  1. homens realizando trabalho doméstico
    não adianta apenas dar panelinhas para os meninos ou subtraí-las das meninas, crianças precisam ver homens e mulheres realizando todos os tipos de trabalho doméstico nos ambientes que ela frequenta, a ponto dela não ser capaz de fazer nenhuma associação de atividades a um sexo pois vê todos fazendo de tudo: lavando, passando, cozinhando, limpando, cuidando dos outros. E idealmente, ela precisa ver isso dentro da própria casa, ver todos os adultos ali conversando e realizando a divisão das tarefas da maneira mais justa possível para todos, e inclusive incluindo a criança nas pequenas tarefas.
  2. mulheres divertindo-se
    Traga na mente a imagem de mulheres da infância? Quantas estavam à toa, rindo, fazendo nada, apenas curtindo um pouco a vida? Possivelmente pouquíssimas, porque mulheres não aprendem que têm direito a isso quando chegam na vida adulta. Homens cultivam seus hobbies, tem seus esportes, carteado, videogame, encontro com os amigos no bar, e toda uma série de coisas que ocupa esse lugar de lazer e entretenimento. Para mulheres resta o trabalho doméstico, o trabalho invisível que nunca termina, e quando sobra tempo, uma novela ou série. E convenientemente mulheres ainda aprendem que “lazer” é embelezar-se, então gastam o seu pouco tempo livre dedicadas a rituais de beleza que são tudo, menos divertidos. Então faça um favor as suas crianças e divirta-se. Deixa a louça na pia e senta pra jogar videogame também, saia com suas amigas ou receba-as em casa e passe a tarde gargalhando com elas. Cultive também seus hobbies, escute suas músicas, cante alto, dance pela sala. Deixe as crianças saberem que mulheres são pessoas que existem para além do serviço, da utilidade pública e do embelezamento de ambientes.
  3. homens emocionando-se e falando sobre sentimentos
    Quase tudo que crianças veem sobre homens é com eles envolvidos em conflitos. Homens gritando, com raiva, socando coisas, resolvendo tudo no tapa e no tiro. Homens demonstrando força, brutalidade. Crianças precisam saber que homens possuem sentimentos e que emocionar-se, ter empatia, ter sensibilidade, gentileza, fragilidade não é uma prerrogativa feminina. Que os homens da vida da criança chorem junto com ela assistindo desenho animado, usem roupas coloridas, não tenham medo de dizer que erraram, pedir desculpas, dizer que não sabem, que estão com medo. Que crianças possam conhecer homens que sejam humanizados, despreocupados do compromisso de serem dominantes, desvinculados do compromisso de serem heróis, guerreiros, príncipes. Homens rebelados com o pacto de dureza que o patriarcado exige de todos eles. E que haja cada vez mais retratos desses homens (e meninos) nas narrativas midiáticas para além da caricatura das comédias românticas.
  4. mulheres reais, despreocupadas em serem belas
    Crianças precisam tomar contato com mulheres reais. Mulheres que têm pêlos, marcas, cicatrizes, seios flácidos, celulites, cabelos desgrenhados, rugas. Precisam ver mulheres despreocupadas com roupa, maquiagem, comendo e bebendo com prazer, sem contar calorias compulsivamente. Crianças precisam ver mulheres parando de autodepreciar ou supervalorizar a própria aparência e a de outras mulheres, falando coisas do tipo “nossa, como fulana engordou”, ou “meu cabelo está horrível”. Precisam ver mulheres elogiando-se sem ser pela forma física, aparência ou roupas. E parar de ver mulheres gastando horas do dia em rituais de roupa, unha, cabelo, depilação, maquiagem, para somente depois disso as ouvirem dizer que “estão ótimas”. E parar de ver concursos de beleza e mídias onde mulheres e meninas tem uma aparência absolutamente irreal e falsificada. Parar de ganhar bonecas que já chegam magras, loiras e maquiadas. Meninos e meninas precisam ter contato o tempo inteiro com mulheres reais, validando outras mulheres reais e levando suas vidas sem angústia de estar “bela”.
  5. adultos repudiando violência
    esse é o mais difícil e o mais importante. Crianças precisam testemunhar homens e mulheres repudiando a violência. E isso implica ver homens não sendo violentos com mulheres nem crianças. Isso implica mulheres não sendo violentas com seus filhos. Isso implica rever toda a nossa produção cultural que exalta a força e a violência como maneira de transitar no mundo. Crianças precisam, no mínimo, de um ambiente onde haja um esforço contínuo pelo estabelecimento de acordos, de conversas, de estratégias para resolver problemas que não envolvam gritos, agressões verbais, chantagem emocional, ameaças, agressões físicas. De um ambiente formados por adultos que abandonem o punitivismo como forma de relacionamento e aprendizado. Crianças precisam conviver com isso, e casa, na escola, na maior parte de ambientes possível. Precisam ver adultos conscientes e críticos, empenhados em combater todos os males que uma sociedade tão agressiva, violenta e voltada para a dominação dos mais vulneráveis nos causa. E como adultos, esse é o nosso principal desafio. Combater a dominância, a hierarquia e a violência que nos rege e mostrar a todas as nossas crianças que é possível vivem em comunidade sem tanto sofrimento.

Dessa forma, há algumas coisas que crianças precisam começar a VER acontecendo por aí, não esporadicamente, mas o tempo todo, na sua casa, na casa dos parentes e amigos, nas histórias que lê, que assiste. São mensagens simples mas poderosas que vão mostrando outras possibilidades, que ajudam a quebrar a lógica da exploração patriarcal e da hierarquia entre homens e mulheres, que é afinal contra o que lutamos.