Está tudo bem se você não ama o seu pai

Olha, está tudo bem se você não ama o seu pai. Não sinta culpa por isso. Você não está só nesse sentimento, na verdade boa parte de nós tem sentimentos confusos sobre essa relação, mas se sente coagido demais pela sociedade para ter coragem de confessar.

Nós vivemos no país do abandono paterno, temos mais de 5 milhões de pessoas que sequer o registro do pai possui na certidão de nascimento. Isso fora aqueles que se dignaram a registrar mas não seguraram nem um minuto dessa onda e simplesmente se foram, deixando o filho nos braços de uma mãe perdida, solitária, e um tanto desesperada.

Nós vivemos em um país de índices assustadores de violência doméstica. Uma sociedade machista, autoritária, punitivista. Onde a necessidade de “disciplina” é sinônimo de parentalidade bem sucedida. Onde a “obediência” é obtida através da violência e do medo. Uma cultura que odeia mulheres e crianças e que quer submetê-las a todo custo.

Nós vivemos em uma cultura sexista onde está tudo bem se o pai cumprir o papel de provedor e nada mais. “Colocar comida em casa” é o bastante. Não importa se o pai é ausente, se não participa de verdade da vida dos filhos. Não importa se o pai não é carinhoso ou empático. Se é distante. Se o pai permanece e alimenta, se o pai “não bate”, já é o suficiente para ser um herói.

Nós vivemos em uma cultura onde homens não lidam com os próprios sentimentos e aprendem a lidar com a pressão através da fuga e da violência. E eles fogem. De alguma maneira fogem. Para o álcool, para todo tipo de outras drogas que ofereçam algum alívio temporário. Se retiram da realidade deixando quase sempre uma família ferida, assustada, exaurida, ao redor.

Então está tudo bem se você não ama seu pai como você acha que deveria. Se você não o ama. Está tudo bem inclusive se você não gosta dele em absoluto. Tudo que cerca a paternidade é moldado muito mais para ferir do que para curar. Por mais que haja uma idealização em torno da figura do “pai”, cuidador e protetor, a realidade é que homens são criados em um caldo de masculinidade que torna quase impossível que eles exerçam essa função de cuidado e proteção como se esperaria.

Então, está tudo bem se às vezes você sente uma inveja surda daqueles que tiveram uma figura presente, positiva, carinhosa. Dos amigos que tinham alguém sentado na primeira fila da cadeira, na apresentação do dia dos pais da escola. Dos que tinham um nome no seu registro de nascimento. Que não tinham que responder perguntas sobre onde está o seu pai. Que não sentiram vontade de inventar histórias. Que não enganavam a si mesmos dizendo que aquele pai não estava ali porque não podia e não porque não queria.

Está tudo bem admitir que ainda que você tenha sentimentos confusos, esse pai fez falta. Porque faz falta sim. Não que sua mãe não tenha feito o melhor que pôde, dentro das possibilidades dela. Não que sua mãe tenha sido perfeita. Mas ela não é uma heroína. Ela é apenas uma mulher cansada que teria tido uma vida muito mais simples e muito mais feliz, e você também teria tido uma vida muito mais simples e muito mais feliz, se a pessoa que também te gerou cumprisse a parte dela na responsabilidade que é gerar uma criança para este mundo.

Está tudo bem se você se sente triste, frustrada, desamparada. Se você sempre sonhou em ter um pai. Um pai melhor. Se você acredita que as coisas seriam muito melhores se ele fosse diferente. Exceto que ele não é. E lidar com isso dói sim. Não reprima, nem se envergonhe da sua dor.

Está tudo bem também se você não consegue amar como gostaria o pai que estava lá. Se você sente raiva das atitudes dele. Da sua violência, do seu descaso. Está tudo bem se você se revolta e se rebela e às vezes preferia não ter nascido. Se a presença dele na sua família causa tantos transtornos e tanto sofrimento que você preferia que ele tivesse partido. Que ele tivesse te abandonado ao invés de te criar em meio a tanta brutalidade. Está tudo bem cada vez que você o odiou por vê-lo espancar sua mãe. Por vê-lo espancar você ou aos seus irmãos. Está tudo bem se você o odiou por ele sempre estar bêbado, ou drogado. Por nunca ajudar de fato e ainda sobrecarregar a todos.

Está tudo bem se você tem raiva dele por tê-lo visto explorando domesticamente sua mãe, tratando-a mal, desrespeitando, traindo. Está tudo bem se só hoje você entende que sua mãe esteve trancada em um relacionamento abusivo com esse homem, que se beneficiou a vida inteira enquanto ela definhava. Não há como separar o homem, o marido, o pai. Isso é balela. São sentimentos conflitantes, e nada disso é sobre você.

Está tudo bem se você odeia seu pai porque ele abusou de você. Porque ele te estuprou. Você não tem que perdoá-lo. Você não precisa perdoar seu abusador a não ser que isso vá trazer algum benefício psicológico para você mesma.

Você não precisa amar o seu pai se ele te feriu a vida inteira. Se ele feriu as pessoas que você amava. Se ele não estava lá por você. Amor é um vínculo que se constrói. E construir vínculo de amor com os filhos é responsabilidade dos pais. Nada disso é culpa sua.

Homens nascem e são socializados da pior maneira possível. São socializados para a dominância e para a violência. Mas também são inseridos em um mundo de privilégios. Um mundo em que a paternidade é facultativa para eles. Eles não são punidos se não exercê-la. Portanto eles podem e devem ser responsabilizados pelos seus atos. Eles, diferente da maioria das mulheres, têm escolha e tem autonomia para escolher entre ficar ou partir, cuidar ou não dos filhos, ser ou não um bom pai. Então eles precisam ser cobrados e precisam ser responsabilizados pelas ações e pelas escolhas que fazem.

Você não precisa se punir e se culpar porque a sociedade quer obrigar você a amar um homem, a qualquer custo. Porque a sociedade quer que você respeite o “pai”, quando esse pai nunca esteve lá por você. Culpa é a sensação de que estamos quebrando alguma norma. A sociedade empurra essa norma para nós. É a lei do patriarcado. Homens devem ser venerados acima de tudo, façam o que for. Sem consequências.

Saiba. Esta norma está errada.

Não tenha filhos: como se fosse fácil

Circulou por aí um texto do palestrante sobre parentalidade Marcos Piangers, orientando que pessoas que não tem condições de criar filhos adequadamente não deveriam tê-los. Como se fosse fácil. Embora a premissa seja bastante correta, valem aí algumas ponderações bastante importantes que foram deixadas de fora.

Bom, em primeiro lugar, é importante destacar que a premissa de que pessoas que não querem se comprometer com a criação de crianças não deveriam ter filhos é tão correta quanto falaciosa. Existe pouquíssima conscientização sobre contracepção, planejamento familiar, os impactos de uma gravidez, e, principalmente, na nossa sociedade a responsabilidade pela contracepção sempre recai 99% das vezes no colo da mulher. Homens estão lá a passeio, só querem usar camisinha sob ameaça de uma escopeta, e aproveitam a primeira oportunidade para chantagear a parceira com o papo de que “agora que estamos num relacionamento sério podemos abrir mão da camisinha”.

E aqui uma informação bacana: nenhum método contraceptivo oferece uma margem de 100% de segurança. NEM LAQUEADURA. NEM VASECTOMIA. O ideal é usar métodos combinados, ou seja, se o homem e a mulher não estiverem ativamente envolvidos na ideia de contracepção, ela pode simplesmente falhar.

Outro ponto importante a ser abordado é como é cruel o argumento de “não tenha filhos se não vai ter tempo”. É o tipo de fala que ignora a realidade da esmagadora maioria da população que trabalha 14 horas por dia e dá graças a Deus porque conseguiu comprar carne moída nas compras de supermercado de mês. E aqui, diga-se de passagem, mais uma vez, as mulheres. Porque elas que são as chefes da família tradicional brasileira. É bastante insensível sugerir que uma mulher que realmente não conseguiu controlar o surgimento daquela gravidez e está se esfolando para criar os filhos, quase sempre sozinha, que ela é culpada por toda a dificuldade que está passando e que “não deveria ter tido filhos”.

Eu até entendo que esse argumento do “não tenha filhos” pode ressoar com alguma razoabilidade para um público que tem dinheiro, esclarecimento, acesso a recursos e para quem a existência de filhos obedece a um planejamento de vida e não a uma consequência quase sempre cercada de desespero de uma relação sexual. E ainda assim isso pode ser discutível porque sabemos que mulheres estão sempre desiguais nas relações. Mas o fato é que ainda estamos longe de ser uma sociedade organizada para o melhor bem-estar de uma criança, desde a concepção, e precisamos pensar isso coletivamente, com políticas sérias de planejamento e suporte a parentalidade e não simplesmente colocando tudo na conta da “escolha” das pessoas. Isso simplesmente não funciona.

Todo choro deve ser consolado

Ora, mas vejam só, agora nós somos uma sociedade moderna que finalmente percebeu que não devemos espancar crianças, que acredita que todo choro deve ser consolado. Agora nós temos métodos mais modernos, arejados, “positivos”, “não violentos”. É o cantinho da calma, é a escuta ativa. Agora vai.

Aí corta para a historinha, totalmente real.

Estava eu aguardando meu marido e meu filho na saída do banheiro que também era a saída do cinema. Sentado na escada de saída do cinema estava um pai, placidamente, conversando em voz baixa, com toda a calma do mundo com seu filho. O menino era visivelmente bem jovem e depois eu descobri que ele tinha apenas 2 anos. E chorava copiosamente. Copiosamente. E o pai o mantinha (apenas com calmos comandos verbais) de pé junto a parede. De castigo.

Enquanto o castigo prosseguia o pai ia dando o sermão da montanha e eu, que acompanhava a cena mortificada com o canto do olho, pude me inteirar da história. A família estava no cinema, a mãe, o pai, um bebê de colo, o menino de 2 anos, e mais um irmão (possivelmente mais velho). O menino de 2 anos começou a se agitar e a chorar, e a querer o colo da mãe. O pai ofereceu o colo, o menino não quis. Queria o colo da mãe. E aí estava armada a celeuma. O garotinho pode ter se “comportado mal” (sabe-se lá o que isso quer dizer para um menino de 2 anos), e ganhou com isso a retirada do cinema e a punição de ficar em pé do lado de fora (tudo bem, ele poderia sentar se quisesse, pelo que entendi) até o filme terminar.

O menino pedia a mãe e ouvia como resposta: “não, sua mãe está lá dentro do cinema vendo filme com seus irmãos ela não vai vir te ver”. O menino pedia colo e ouvia: “não! eu quis te dar colo lá dentro e você não quis! Agora fica aí”. O menino, estoicamente, pedia pra ir pra outro lugar e ouvia: “não, vamos ficar aqui até o filme acabar”. Tudo pontuado por “pode chorar à vontade, não tem problema”. O menino tinha 2 anos e estava completamente desconsolado.

Olha, eu realmente acredito que aquele pai estivesse completamente bem intencionado no que estava fazendo e até estivesse orgulhoso de si mesmo se achando o rei da pedagogia porque estava ali ‘disciplinando’ o seu filhinho ao invés de simplesmente tê-lo espancado para ele calar a boca.

Mas

Nenhuma técnica, nenhuma filosofia de “disciplina” vai funcionar se você não acalmar seus demônios internos, meu amigo, minha amiga. E se você não partir de uma premissa elementar, básica mesmo: crianças são pessoas.

Se uma criança está chorando desconsoladamente, não seja a pessoa babaca que acha isso edificante. Console-a.

Há uma diferença aliás entre o choro de “birra”, que é frustração por não ter conseguido algo. O choro de raiva, o choro de tristeza. E quer saber? Todos eles precisam ser consolados. Consolar e acalmar uma criança não significa “ceder”, não significa “perder”. Significa que você está ali pelo seu filho e está mostrando pra ele que você se importa com os sentimentos dele e que você estará ao lado dele para ajudá-lo.

Aliás, que obsessão que pais tem por disciplina, autoridade, bla bla bla. Que queda de braço com crianças que ainda estão provando o próprio cocô. Deixa eu explicar aqui uma coisa que deveria ser óbvia: vocês têm esse empenho por disciplinar seus filhos mas isso é muito mais uma necessidade SUA de domesticar essa criança pra ela dar menos trabalho pra VOCÊ, do que uma coisa que você está fazendo por ela. E de mostrar serviço para sociedade que sutilmente dá status social para pais carrascos, que têm filhos “comportados”. Filhos que, embora crianças, ajam como adultos na cerimônia do chá da rainha da Inglaterra. Vai se saber a que custo psicológico.

O que pais devem transmitir aos filhos são valores, o que devem ensinar são bons hábitos, o que devem explicar são as regras para se viver em sociedade e ajudá-los a se adequar, o que devem demonstrar são bons exemplos e o que devem ser são companheiros, pessoas em que essas crianças possam confiar, possam amar devotadamente como já fazem, sem sofrer por isso. Sem sofrer porque ama alguém que o magoa.

O pai que estava mantendo o filho aos prantos fora do cinema, certamente estava muito convencido de que estava ensinando uma lição ótima para aquela criança. Se ele olhasse para ela como uma pessoa, se olhasse para suas necessidades, entenderia que: a) ela ainda era pequena demais para assistir um filme de sei lá quantas horas entendendo tudo que estava acontecendo e mantendo a atenção, portanto obviamente ia se sentir entediada; b) sentindo-se entendiada, ou com sono, ou com frio, ou com qualquer outro sentimento que ela talvez nem soubesse identificar ainda, obviamente que ela iria buscar a mãe, que é a sua principal fonte de aconchego; c) o colo que era dela estava ocupado por um outro bebê e sabe-se lá se ela estava lidando bem com isso. O que esse pai poderia fazer? Consolar o filho, tirá-lo do cinema e levá-lo para a piscina de bolinhas, para tomar um sorvete, para fazer qualquer outra coisa. Mas não, “olha uma criança que não se comporta como eu preciso: vamos “discipliná-la!”.

E o que a criança estava vendo ali? O que ela está aprendendo com essa lição? Que as necessidades dela não são importantes diante das necessidades dos pais e dos irmãos. Que ela não tem a quem pedir ajuda e consolo quando se sentir sozinha. Que ela deve aprender a se virar sozinha sem o apoio do pai. Que o único recurso que ela tem para tentar comunicar as emoções dela (chorar) não são ouvidas. Não demora muito aliás ela vai parar de chorar e vai se comportar, papai, não se preocupe. E você vai sentir que tudo deu “muito certo”. Mais uma criança domada na conta do terapeuta.

E sabe o que mais que essa criança aprendeu? A ser autoritário. A ignorar o sentimento das outras pessoas. A ser intransigente. A ser frio. Porque é isso que ela estava vendo ali. É o comportamento que ela estava assimilando. De que você não precisa se preocupar com os sentimentos do outro.

Quer outra regra de ouro na hora de se relacionar com os seus filhos? Pense sempre “que mensagem eu estou passando”. Que não é o que você DIZ, mas é o que você FAZ. É isso que ela está apreendendo. E é nessa chave que você vai definindo que tipo de orientações e interdições (porque sim, educar é também se o primeiro a realizar interdições nos desejos dos filhos) você vai realizar.

E avaliem sempre se a criança está em uma idade que ela tem condições de assimilar o que você está tentando ensinar. Não existe uma “janela de oportunidade” que se você não ensinar coisa x na idade y nunca mais a criança aprende. Socialização é um processo complexo e múltiplo e vamos aprendendo a vida inteira e nos moldando. Fica difícil aprender quando crescemos porque somos esse saco ambulante de traumas justamente porque nossos pais exigiram de nós quando crianças elaborações e comportamentos que não éramos capazes de corresponder.

E olha, na dúvida do que fazer, dê afeto. Afeto sempre afeta e todo choro deve ser consolado.

Como proteger nossos filhos da cultura do estupro?

Como proteger nossos filhos da cultura do estupro? Esta é uma pergunta que assombra toda e qualquer pessoa comprometida com a criação dos filhos.

Todo homem é um estuprador em potencial, dizem. Essa frase é incomoda para homens e um choque para muitas mulheres. Principalmente para mães de meninos. Como assim aquele menino tão doce que ela aninha no colo é um potencial estuprador de mulheres? Pois é. Isso não quer dizer que todo homem estupra. Mas quer dizer que qualquer homem poderia estuprar uma mulher. Porque homens estupram. Não tem uma etiqueta na testa com selo de decência para sabermos quais oferecem segurança e quais não oferecem.

Quando pensamos em estupro, pensamos no ato violento, forçado, coercitivo. E então muitos homens respiram aliviados por sentirem-se fora dessa equação. No entanto se pensarmos nas fronteiras embaçadas de consentimento que nos são ensinadas, o número de homens que cometeu alguma violência sexual é infinitamente maior do que imaginamos. Quantos não roubam beijos, acariciam mulheres de maneira inconsentida? Quantos homens não fazem sexo com sua parceira sem estar realmente preocupado se ela está com vontade, ou mesmo se ela também está aproveitando a experiência?

Que mulher nunca transou com o marido ou namorado sem estar com nenhuma vontade, por senso de “obrigação”? Pela ameaça velada de traição “se não transar com você vou ter que transar outra”? Ou porque o “não estou com vontade” foi solenemente ignorado e homens permaneceram insistindo tanto que ela acabou cedendo para ter sossego? A ponto de originar a clássica piada sobre a desculpa da “dor de cabeça” para não transar. Ou a de ficar “escolhendo a cor que vai pintar o teto” enquanto faz sexo. Isso não é engraçado. Isso é muito violento. Mulheres terem que inventar que estão doentes ou indispostas para que seus companheiros desistam de querer um sexo que ela não está com vontade de realizar é cruel demais. Um sexo que muitas vezes aquela mulher não quer fazer simplesmente porque é ruim. É um sexo onde ela não tem nenhum prazer, não é uma experiência que ela aproveite. Que ela finge ter um orgasmo para ver se aquilo acaba de uma vez e ela pode voltar pra ver novela. Um sexo que é visto como um mal necessário a alguma estabilidade e paz na união que ela está, que “não custa nada”.

“É rapidinho”, “depois você vai gostar”, “não custa nada”, eles dizem.

Vejam que perverso:

Homens aprenderam que sexo é para eles, é sobre eles. Que apenas eles têm prazer dessa experiência. Que seu corpo tem “necessidades”. Que é “instinto”. Que ele é um animal sexual cujas gônadas vão explodir se ele não transar. Que ele não pode se conter. Que eles devem conquistar e foder o maior número de mulheres possível porque é isso que prova que ele é macho e viril.

Mulheres aprenderam que sexo é uma coisa “suja”, que boas mulheres sequer gostam de sexo, aprenderam que homens é que devem “fazer a mulher gozar”, como se apenas eles soubessem os segredos sobre o corpo de uma mulher. Mulheres aprenderam que não sentem desejo. Que são frígidas. Que gozar é difícil. Que não devem tocar-se. Que é normal o sexo ser ruim. Que devem fazer sexo com o menor número de homens possível, porque isso é prova que ela tem dignidade moral. E mulheres aprenderam que só são valorizadas se forem dignas. Se forem “direitas”, se forem “puras”. Porque o sexo macula.

O sexo é uma coisa mundana. E o homem é que é do “mundo”. Mulheres são do confinamento do lar, da domesticidade.

Homens aprenderam que mulheres valorosas não devem gostar de sexo. Ou melhor, mulheres podem até gostar depois que conhecerem “o homem certo”. Então homens tem a noção distorcida de que mulheres acham que não gostam de sexo e nunca querem sexo porque ainda ninguém lhes mostrou como sexo é bom. E que por isso recusam. Por isso O recusam. Então ele deve insistir, insistir, insistir, até ela ceder. Porque no final, ela vai gostar.

Mulheres aprenderam que não devem demonstrar que querem sexo, mesmo que queiram muito. Porque mulheres que cedem na primeira tentativa já sabem que sexo é bom. Portanto já tiveram sexo com outro homem. Já gostam. Não são mais “puras”, já não tem mais tanta moral e dignidade. Perderam o “valor”. Porque o “valor” de uma mulher está exatamente localizado entre suas pernas na nossa sociedade. Não à toa mulheres são, por séculos, coagidas e punidas por não manterem suas “virgindades”. Não à toa, até hoje, um hímen intacto faz fortuna em leilões.

Dessa forma, quanto mais rápido mulheres cedem, mais isso indica que elas tiveram muitos parceiros, porque talvez ela goste muito mesmo dessa coisa de sexo e vá transar com qualquer um. E mulheres não podem transar com quem quiserem, porque vai que ela engravida, como saber quem é o pai? Como garantir que o homem que está espalhando sua semente está criando um herdeiro que é seu?

Então mulheres aprenderam que devem sempre dizer não, numa tentativa de “valorizar-se” e que deve deixar o homem “conquistá-la”, que nada mais é do que tentar persuadi-la a ter sexo com ele, e quem sabe nesse meio tempo descobrir que ela é uma mulher digna o bastante para ele querer ter uma família com ela. Se a fórmula funcionar bem e ela conseguir sustentar esse jogo por tempo o suficiente, homens podem inclusive casar com ela no recurso último de finalmente transarem. E assim mulheres obtém o que elas aprenderam que é importante — e que não é sexo — mas “ter um lar e um marido”.

Portanto a boa mulher sempre nega sexo, o bom homem sempre insiste apesar do não. A vontade da mulher que gera um consentimento verdadeiro é relegado a segundo plano. A recusa da mulher é sempre desconsiderada porque faz parte do jogo da conquista. Mulheres não tem direito real de dizer não às investidas sexuais masculinas.

Essa lógica tem um nome. É cultura do estupro.

E como isso opera, na prática? Antigamente, essa ideia desdobrava-se simplesmente com homens capturando mulheres e estuprando-as abertamente, para satisfazer seus “instintos primitivos”. Ou comprando-as dos seus pais em casamento quando queriam aliar a necessidade de sexo com a obrigação social de constituir família, deixar herdeiros e outros arranjos de ordem puramente comercial.

Modernamente o homem não compra mais a mulher em casamento, cultiva-se a ideia de “amor romântico” mas permanece a lógica comercial nas relações de que ele deve conquistá-la através de exibicionismo financeiro, seja porque mulheres são fúteis e gostam mesmo “é de dinheiro”. Seja porque mulheres aprendem que um “homem bom” é aquele que demonstra solvência financeira para prover uma família. Então a lógica da negociação sexual que não passa pela violência direta ou velada pula direto para a estratégia de compra. Presentes, jantares, jóias, viagens.

Antes da violência pura e simples, tenta-se comprar o consentimento com o nome de “conquista”.

Pense em todos os contos de fada que você já leu. Quem é o príncipe? O homem rico que dá a mulher uma vida de “princesa”. E o que é ter uma vida de “princesa”? Uma vida de luxo, riqueza e ostentação. O príncipe é desobrigado de ser um cara minimamente decente. O príncipe da Branca de Neve dá o primeiro beijo nela quando ela está desacordada (!!!), o príncipe da Bela e a Fera… é uma fera, literalmente. O príncipe da Cinderela dá uma festa pra escolher um mulher como se fosse fazer compras no supermercado. Nem nome esses personagens tem. Nem muito bonitos eles precisam ser também (a Fera que o diga), mas o que todos eles têm em comum? São estupidamente ricos.

Pense em todos os filmes românticos que você já viu. Nos livros que você já leu. O homem ideal, ideal mesmo, é sempre rico e bem sucedido, ou pelo menos muito promissor. Ele não precisa ser bonito necessariamente. E ela sempre é estonteantemente bela. A ideia de “romance” e “conquista” começa a acontecer quando o homem começa a dar coisas ou levar a mulher para fazer coisas (jantares, festas, etc). Já é pré-estabelecido no ritual da paquera que homens pagam a conta ao passo que mulheres devem comparecer estupidamente bonitas para agradar e alimentar o desejo masculino. Ele paga o motel já que ela… fez sexo?

Aprendemos a ser “sensuais”, “sedutoras”. A manter a chama do desejo e a imaginação masculina sempre ligada nessa voltagem da caçada. Por que homens não aprendem que precisam ser sensuais? Por que não existem signos de sensualidade para homens? Porque o homem não precisa se preocupar com o desejo feminino de maneira nenhuma. Não é importante.

Mulheres casam e ficam reféns dos seus maridos caso não tenham autonomia financeira. Porque o trabalho doméstico e de cuidado com os filhos não é visto como trabalho e a mulher muitas vezes está presa em casa sem nenhuma possibilidade de gerar a própria renda e homens lhes cobram sexo como se elas lhe devessem um favor. Que ela faz porque “ele coloca tudo dentro de casa”. Como se comer a comida que ele compra e que ela cozinha todos os dias precisasse ser paga. E sexo paga. E homens cobram. Muitos homens não querem que mulheres trabalhem ou tenham sua própria renda porque mantém essa lógica de dominação nos seus lares. Querem sua escrava sexual particular.

Normalizou-se uma lógica de coerção financeira para a negociação sexual onde como sempre a vontade da mulher em fazer sexo é secundária. Ela é um corpo sendo negociado. Sexo é deslocado do lugar de uma coisa que é feita por duas pessoas que se desejam e querem obter prazer daquilo, para ser um “serviço” que mulheres podem prestar aos homens.

“Mulheres são interesseiras” eles aprendem, “só querem o seu dinheiro”. “Homens só pensam em sexo”, elas aprendem, “fazem qualquer coisa por isso”. “Por que não? Não custa nada.”

A prostituição não é um trabalho mas talvez seja realmente uma das práticas mais antigas do mundo porque mulheres sempre foram mais vulneráveis financeiramente e são coagidas de inúmeras formas a fazer sexo com homens desde tempos imemoriais. Já que a vontade dela, a necessidade dela, o desejo dela, o orgasmo dela, o querer dela, é desprezível, e desprezado. A prostituta ocupa o lugar de fornecer o sexo com o menor esforço possível antes de se apelar para o uso da violência física.

E no desdobramento mais violento homens simplesmente tomam mulheres à força. Porque “no fundo ela quer”, ela está “fazendo cu doce”. Homens aproveitam-se de mulheres bêbadas, homens dopam mulheres, homens aproveitam-se de mulheres dormindo, mulheres inconsciente, mulheres em coma. E saem rindo e pensando “tenho certeza que ela está gostando”.

Estupro é sobre poder porque homens nesse momento expressam toda sua misoginia e todo seu ódio e sentem prazer na subjugação do corpo feminino e no seu sofrimento explícito. Mas estupro é também sobre sexo porque homens aprendem que o consentimento feminino não é importante e que ele pode obter sexo de qualquer mulher, a qualquer momento, usando qualquer recurso, caso queira. Muitos homens sequer se dão conta de que aquilo que estão fazendo com aquela mulher é estupro, “porque ela não gritou”.

Isso é tão extremo que muitos homens que não conseguem obter sexo passam a odiar tanto mulheres que se declaram celibatários voluntários. Também conhecidos como Incels. E se reúnem online para planejar, noite e dia, o massacre de mulheres que acreditam que nunca fariam sexo com eles espontaneamente. E depois saem metralhando escolas e cinemas.

Na pornografia você vê mulheres sofrendo violências terríveis que são mostradas como sendo um ato sexual. São penetradas violentamente, são espancadas, são humilhadas, são xingadas. E as atrizes, apesar da dor física, emocional e psicológica que estão sentindo estão ali coagidas e sendo pagas para fingir que gostam. Homens aprendem que mesmo com violência, elas gostam.

Pornografia é estupro filmado. É como meninos e meninas aprendem que sexo se parece.

Cultura do estupro.

Todo homem é um estuprador em potencial. É no que a sociedade transforma os nossos meninos. É a mensagem que é passada para eles o tempo inteiro. Que o consentimento, que a vontade feminina, não é importante. Que eles devem obter sexo custe o que custar, porque é isso que homens fazem.

Ensinem suas meninas a dizerem sim quando quiserem dizer sim, a conhecerem o próprio corpo, o próprio desejo, permitir que sejam seres sexuados e que possam relacionar-se de maneira saudável com isso. Que elas não entrem nesses jogos perversos e desnecessários de conquista. Ensine a ela que se tudo o que um menino quer dela é obter sexo, ela fará se estiver com desejo, com vontade honesta. Que ela fará porque quer obter prazer da experiência. Sempre, não apenas às vezes. Não apenas em um evento mágico e aleatório. Mulheres podem e devem ter orgasmos em 100% dos seus intercursos sexuais assim como homens conseguem. E que elas possam fazer sexo ou ter qualquer contato físico, seja um beijo, seja um aperto de mão, no exato momento em que tiverem vontade. Seja na primeira vez que se conheceram, seja no décimo encontro. E que se aquele rapaz que ela está saindo não puder esperar e respeitar isso, então ele simplesmente não vale a pena.

Diga a sua menina para dizer não quando quiser dizer não. Que consentimento não se compra. Que custa sim. Que um beijo sem vontade custa. Que receber toques no seu corpo quando não se está com desejo custa. Que transar sem estar excitada de verdade custa muito. Que ela é o corpo dela. Que ela não deve desassociar-se. Afastar a mente do corpo de tal forma que ele possa ser usado por um homem como se fosse uma casca vazia. Diga a sua menina que ela não tem preço e que ela é uma pessoa.

Diga a seu menino que ele é uma pessoa inteira e que a vida não gira em torno das proezas que o pênis dele realiza. Que ele não é apenas um ser sexuado e que seu valor não pode ser medido em função do número de mulheres que ele transou. Porque sexo é uma coisa íntima, privada, e não é dá conta de ninguém. Não é um troféu que ele deve ostentar. Mulheres não são troféus. Sexo não é olimpíada onde ele ganha medalhas pelo número de coitos obtidos. Ele não precisa provar nada para ninguém. Que o peso da virilidade é pesado demais. Vamos tentar desassociar essa ideia da competitividade sexual entre os homens que querem provar sua macheza a todo custo.

Diga ao seu menino que ele deve acatar o não quando ouvir o não. Que consentimento não se compra. Que o sexo é algo que deve servir para satisfação de todos os envolvidos. Que se a pessoa que estiver com ele não tiver dado o consentimento expresso da vontade e do desejo dela em estar envolvida no ato, ele está cometendo uma violência. Que o universo não gira em torno do desejo dele. Que nenhum desejo é soberano à custa da violência sobre o outro.

Vamos desmistificar a ideia da “conquista”. Esse conceito parece romântico mas embute uma noção extremamente perigosa. Para todo conquistador existe um conquistado. E esta é uma relação de dominação, de subjugação do outro. Vamos ensinar as nossas crianças que sexo é fruto do desejo surgido através do feliz encontro entre duas pessoas. É decorrência de sentimentos que naturalmente surgem quando sentimos atração, temos compatibilidade e vamos nos relacionando com o outro. Que sexo não é o objetivo final do relacionamento entre um homem e um mulher, mas sim uma relação de afeto, companheirismo e amizade. Onde esse casal faz sexo um com o outro porque se deseja e porque é bom. E onde o sexo não é uma obrigação e sua falta não será o fim, porque uma relação contém inúmeros outros elementos igualmente ou muito mais importantes.

Vamos ensinar homens a verdadeiramente amar mulheres. Querê-las como amigas, companheiras, parceiras. Querer unirem-se a elas porque as admiram, e não porque elas são um corpo a mais para que eles consumam sexualmente. Só assim vamos conseguir algum avanço nesta sociedade onde sim, todo homem é um estuprador em potencial, vivemos imersos em uma cultura do estupro, então precisamos conversar sobre sexo com nossas crianças, mas precisamos deslocar toda a lógica que rege a maneira como nos relacionamos com o tema. Precisamos conversar sobre amor.

10 coisas que realmente ninguém diz sobre a maternidade

Você notou a quantidade de coisas que realmente ninguém diz sobre a maternidade? Quando ainda não temos filhos ouvimos falar da maternidade sempre de maneira distante, romantizada ou ainda de maneira que nos soa sempre exagerada demais para parecer real. E o fato é que parece que há alguns aspectos que ninguém aborda de verdade, que só vamos descobrir quando nos tornamos mães. Vamos ver alguns agora?

1. Não existe nenhuma maneira 100% segura de evitar gravidez

É exatamente isso. Não existe nenhuma maneira completamente efetiva para se evitar uma gravidez. Pílulas, camisinhas, DIU, Diafragma, mesmo vasectomia e laqueadura não oferecem 100% de garantia. Sua melhor opção é SEMPRE utilizar métodos combinados (camisinha + alguma coisa). Portanto não existe muito escolha na maternidade e “só é mãe quem quer” é uma falácia. Se você faz sexo com homens, corre o risco de engravidar. Você pode minimizar a possibilidade ao máximo, até margens bastante seguras. Mas eliminar o risco por completo só abrindo mão de sexo heterossexual.

2. O sistema de saúde não está preparado para atender gestantes

Essa você nem imaginava não é? Mas é mais pura verdade. Ambos os sistemas— publico e particular — são cesaristas e utilizam protocolos obstétricos e pediátricos completamente desatualizados. Isso mesmo. São práticas que não estão exatamente de acordo com as últimas evidências científicas. Muitas técnicas de atendimento utilizadas estão obsoletas ou mesmo condenadas resultando em muita violência obstétrica. E para fugir dessa situação sequer é somente uma questão de ter dinheiro (não à tôa vira e mexe você vê artistas famosas e endinheiradas que caem na conto da cesárea – mas com muito glamour, é claro). Sua melhor opção é se informar ao máximo, pesquisar muito sobre profissionais que atuem por protocolos atualizados, buscar hospitais da rede pública mais humanizados, e aí entra realmente o fator sorte de encontrar atendimento público decente ou poder aquisitivo para pagar algo semelhante ao valor de um rim por profissionais da rede particular. Nesse caso se você tiver boas indicações de profissionais o dinheiro fará diferença. Na média, é tudo bastante aterrorizante porque o atendimento duvidoso começa já no pré-natal e quase sempre só resta a resignação ou passar toda a gestação peregrinando de médico em médico até acertar um.

3. Você será atormentada pela “indústria da maternidade

Prepare o coração e o bolso. Há toda uma indústria focada em vender um sonho de maternidade romantizada que vai tentar extorquir todo o seu dinheiro criando necessidades surreais e rituais desnecessários para o advento do nascimento do seu filho. Você duvidará de si mesma e da sua capacidade de ter e criar essa criança tamanha a quantidade de geringonças e apetrechos que serão empurrados para você. A maioria desnecessária. Mais uma vez você terá que mergulhar por conta própria em busca de informação de qualidade para entender quais costumam ser exatamente as demandas de uma criança, que tipo de criação combina mais com o seu perfil, e exatamente que tipo de coisas você precisa para conciliar isso. E economizar milhões. Você será incentivada e cobrada para fazer books, enxovais, mesversários, chás de tudo que é jeito e caso não sucumba terá a opção de sair de circulação, se aborrecer, ou passar toda a gestação se justificando.

4. Você será massacrada por estereótipos de gênero

Bem vinda ao mundo dos chá de revelação, meu mundo rosa, meu mundo azul, onde o sexo do seu bebê define tudo, até a cor da chupeta que ele levará na boca e não na genitália. Será impossível comprar qualquer item por mais inofensivo que seja sem responder à inútil pergunta: “é menino ou menina?”, e você será o tempo todo muito bem orientada sobre que tipo de educação que esperam que você dê para sua “princesa” ou para o seu “príncipe” e ai de você se ousar dizer que não vai seguir à risca o manual dos estereótipos de gênero. Resistir a essa pressão é uma tarefa difícil, solitária e bastante aborrecida porque todo o sistema da nossa sociedade hoje parece obcecado em dividir o mundo em coisas de menino e coisas de menina e decidido a não deixar os mundo se misturarem.

5. Você se sentirá infeliz, sozinha e abandonada após parir

Você se sentirá assim e essa percepção será real. Porque as pessoas em geral abandonam mesmo as mulheres assim que elas têm seus filhos. Depois que a parte da curiosidade social cessa mães ficam confinadas com os bebês largadas à própria sorte enquanto a vida de todos continua. Inclusive — na maioria das vezes — do pai do bebê. Muitos amigos se afastarão porque não saberão como se encaixar nessa nova fase da sua vida. As amigas que já são mães estarão envolvidas nos seus próprios problemas, que são muitos. Se você trabalha vai sentir culpa e alívio ao término da licença-maternidade. Culpa porque uma parte de você vai querer estar ali para o seu bebê. Alívio porque você não aguentava mais o confinamento e estava ansiosa para voltar a sua forma humana. Aliás, culpa e alívio serão sentimentos conflitantes que te acompanharão para sempre em relação aos seus filhos.

6. O seu corpo vai mudar para sempre e talvez você nunca mais se aceite

Você receberá pressões absurdas em relação ao seu corpo. O seu corpo “perdido”. Você mal terá saído da maternidade e já estarão te cobrando para que você tenha seu corpo “de volta”. Vão querer enfiar você em uma cinta quando você ainda estiver tentando encontrar uma posição para sentar após o parto. Vão te pressionar a fazer exercícios quando você mal consegue dormir. E vão fiscalizar o que você come. Talvez a única alegria que você tenha nesse momento da sua vida: comer. Exceto que o seu corpo agora é esse mesmo. Diferente do que era antes. Seu. Mas como somos criadas em uma cultura que valoriza mulheres somente pela sua aparência e uma aparência que é adequada a um padrão cruel e impossível de ser alcançado, talvez você nunca mais goste completamente do que vê. Não por culpa sua. Não porque o seu corpo não é bom. Mas porque a sociedade e a indústria da beleza que está sempre pronta para arrancar o seu dinheiro estarão sempre ali à postos, te cobrando e fazendo você lembrar das estrias e da flacidez ou de qualquer outra coisa que não deveriam ter importância nenhuma, afinal, pelo amor da Deusa, você está ocupada tentando manter um bebê vivo. O corpo do pós-parto, que é um corpo renovado porque fabricou um ser-humano deveria ser motivo de orgulho para cada mulher. Deveria ser não, é.

7. Você nunca mais será independente e autônoma

Essa é uma constatação muito dura. Depois de ter filhos, até que eles se tornem adultos, você nunca mais poderá se dizer independente. No sentido de que sozinha você não tem como dar conta de cuidar dos filhos, de si e do seu sustento ao mesmo tempo então você sempre estará dependendo de alguém. Independente da sua situação financeira. Você dependerá de um parceiro que cumpra sua parte como pai e alivie sua carga de trabalho te liberando para fazer outras coisas. Caso não exista esse parceiro você dependerá da ajuda de amigos ou familiares. Caso tenha dinheiro você dependerá da ajuda de mão-de-obra terceirizada. E é dependência mesmo, porque mesmo que você tenha um caminhão de dinheiro, você precisa que os profissionais cumpram a sua parte ali no acordo, já que você não pode simplesmente deixar a criança sozinha amarrada no pé da cama com um pote de ração do lado. Sua relação com o emprego vai mudar, porque você sabe que a inserção de mulheres-mãe no mercado de trabalho é muito mais difícil então talvez você se submeta a situações que nunca se submeteria caso não tivesse filhos. Porque antes era só você e você se virava e talvez passasse o dia só com um sanduíche de pão com manteiga na barriga. Mas agora você tem filhos e você não quer que eles tenham apenas uma refeição diária. Você se sentirá vulnerável e com o peso do mundo em suas costas e é um sentimento acertado. O Estado não oferece apoio para as mães pobres, para as mães trabalhadoras, os companheiros quase nunca cumprem seu papel de pai e marido como deveriam (isso quando estão lá), e é isso, por mais que você tenha rede de apoio você terá que aturar muita coisa simplesmente porque agora você tem um filho sob sua responsabilidade e isto te deixa vulnerável.

8. O seu relacionamento vai mudar, não necessariamente para melhor

O seu relacionamento com seu parceiro vai mudar. Este é um fato irrevogável. Pode ser para a melhor e pode ser para a pior. O seu companheiro pode simplesmente não dar conta da ideia de ser pai e ir embora. Ele pode agir feito uma criança e querer continuar te fazendo cobranças que você não tem como corresponder — como muito sexo por exemplo — e usar isso como desculpa para te trair. Ele pode fingir que nada está acontecendo e continuar com a mesma vida de sempre enquanto você está afogada em um turbilhão de mudanças e completamente sobrecarregada com as novas tarefas. Ele pode abraçar o projeto com você, como deveria ser, e tornar sua vida mais fácil e até prazerosa e juntos vocês se descobrirem mais fortes e unidos. Mesmo assim será difícil: vocês não terão mais tanto tempo um para o outro. Você sentirá falta de como vocês costumavam ser. Você se sentirá carente muitas vezes. Você pode não sentir mais vontade nenhuma de estar com ele. Ou pode levar muito tempo para vocês se reencontrarem. Esta não é uma situação permanente porque crianças crescem. E uma vez que elas estejam mais autônomas a vida vai voltando pro lugar. Mas é preciso muita maturidade para lidar com esse período e essas mudanças. Um filho pode ser uma oportunidade para que um casal cresça junto e a melhor opção é desde a gestação o casal conversar muito sobre as expectativas, procurar ouvir outros casais, chegar num entendimento de como vai ser a vida que os espera, saber que terão aí pelo menos uns 5 anos pela frente em que uma criança será o centro de tudo até que vocês possam voltar a uma rotina mais ou menos própria. Filhos são uma nova fase no relacionamento, o que essa nova fase vai reservar muitas vezes é uma caixinha de surpresas.

9. A maternidade é a arte de conciliar contradições internas e nem todos os sentimentos são publicáveis

Com a maternidade você vai se deparar o tempo inteiro com sentimentos contraditórios dentro de si, nem todos publicáveis principalmente porque existe uma romantização muito grande que fará você se sentir culpada por boa parte dos seus sentimentos. Mas acredite, todas as mulheres sentem-se assim. Só que algumas reconhecem os sentimentos de si, outras não. E quase todas negam. Para si mesma e com os outros. A vontade de estar sempre junto ao filho, a necessidade de estar sozinha. O amor despertado pela presença da criança e pela nova vida que isto representa, a saudade da vida antiga onde não tinha tanto perrengue. A raiva por ter que se submeter a tanta coisa por causa da criança, a culpa por sentir raiva sabendo que a criança não tem nada a ver com isso. Transitamos o tempo todo entre o amor e a dor, com muita culpa causada por um sociedade que responsabiliza mães por tudo, romantiza maternidade e não nos dá nenhum apoio. Seja generosa consigo mesma nesse processo e saiba que todos os seus sentimentos são perfeitamente legítimos. Reconhecer os próprios sentimentos é uma estratégia importante para não transferir para os filhos (e puni-los) por algumas frustrações — que sim são recorrentes — com relação ao que a vida se tornou em função da difícil vivência da maternidade. Porque fato é nisso tudo que mulheres não tem culpa nesse processo, mas as crianças muito menos. E nessa equação mãe-filho, os filhos são os vulneráveis.

10. Ninguém liga para mães e crianças

Pois é. Isso é algo que você só descobre realmente depois que tem filhos. Na prática ninguém liga para mulheres e crianças e há inclusive um sutil discurso de ódio em uma sociedade que é movida pela cultura do estupro e da pedofilia e profundamente adultizada e etarista. Mulheres precisam de uma lei que as proteja para que possam amamentar seus filhos em paz onde necessitarem. Quantos equipamentos sociais existem que são adequados para receber mães com seus filhos? Transportes, áreas de lazer, restaurantes? Sair com crianças na rua é uma verdadeira operação de guerrilha. Se você não estiver bastante atento algo realmente sério pode acontecer com ela porque esta não é uma sociedade em que você transita sentindo-se acolhida sabendo que a comunidade toda do entorno está zelando pelas suas crianças. Ao contrário, a comunidade é predadora e pode roubar o seu filho e vendê-lo na deep web. Tudo é pensado para receber pessoas adultas. Pessoas adultas essas que ainda torcem o nariz para crianças e pressionam os pais a discipliná-las inclusive violentamente para que “se comportem”, leia-se, para que não se comportem como crianças no espaço público. O discurso da sociedade em relação a crianças é autoritário, estimula a agressividade como forma de disciplina. Pais são incitados a uma síndrome de pequeno poder e muitos se tornam pequenos ditadores em relação aos seus filhos. Onde a “imposição de limites” é a desculpa para a violência. A criança nasce e rapidamente começa um esforço para que ela se torne adulta sob a falácia do “tornar-se independente”. O bom filho é o filho independente. O que significa isso afinal? Precocemente crianças são treinadas para fazer tudo sozinhas, dar o menor “trabalho” possível, se tornarem produtivas. Se tornarem adultas. E as mães, capatazes do patriarcado, seguem nesse baile. Igualmente desprezadas.

Precisamos conversar abertamente sobre os impactos da maternagem sobre as mulheres, só assim teremos condições de pensar políticas de apoio que sejam verdadeiramente eficientes e libertadoras.

O que o sucesso da criação com apego revela sobre a sociedade que vivemos

O que o sucesso da criação com apego revela sobre a sociedade que vivemos? A teoria do apego é uma teoria criada por um psicólogo britânico que reza sobre técnicas para criação de filhos calcada em proximidade física, criação de vínculo e não violência. Ainda que muitíssimo correto, tudo que é dito por essa cartilha deveria ser da alçada do capitão óbvio, e o seu sucesso estrondoso esconde, ou melhor evidencia, algo que não queremos encarar conscientemente: o quanto vivemos em uma sociedade que não se importa com crianças.

O quão estranho é uma pessoa ter que ser “ensinada” que ela deve tratar seu filho com “apego” (também conhecido como carinho) e ouvir as necessidades dele?

Porque no fim, a criação com apego se trata justamente disso, você ter que explicar a adultos que eles não podem ceder aos piores instintos que cuidar de uma criança pode despertar: o egoísmo, a tirania, a megalomania, a impaciência, a violência, já que você de repente detém completo poder sobre a vida de um outro ser humano, completamente vulnerável, e que lhe tem total devoção. A síndrome do pequeno poder impera, confessemos.

E então, o que a teoria do apego diz na verdade é: você não é dono do seu filho. Ele é uma pessoa, tem necessidades, e precisa de você. E convenhamos que nada, absolutamente nada, do que é pregado é revolucionário, o que torna tudo muito mais triste e deprimente. Deixar um bebê mamar quando tem fome e pelo tempo que ele precisa, deixar ele dormir com você enquanto ele se sente inseguro para dormir sozinho, confortá-lo quando chora, dar colo, não espancá-lo, deveria ser evidente já que crianças são seres dependentes, vulneráveis, carentes e que não tem nenhum portfólio sobre como viver nesse mundo. E que decadência civilizatória ter que falar isso. Ter que explicar aos pais que eles devem amar e respeitar o próprio filho.

Admitamos que vivemos em uma sociedade que odeia crianças. O amor que dispensamos a elas é o que dispensamos a um souvenir. Bebês são ótimos na foto fazendo fofurices, mas queremos que durmam rápido e a noite toda como adultos, que comam sozinhos o quanto antes, desfraldem em duas semanas, não chorem, não se irritem. Parem dar trabalho. Uma sociedade onde fazem sucesso as “Encantadoras de Bebês”, com a solução mágica que deixa claro uma realidade terrível: vemos as particularidades e necessidades de um bebê como um problema que precisa de passe mágica para ser resolvido.

E quando eu falo “sociedade”, que fique claro, eu falo dessa que vivemos: patriarcal e capitalista que enfia todos nós dentro de uma lógica massacrante, individualista e consumista onde mulheres devem ser produtivas, lindas, fazer a roda do consumo girar e ao mesmo tempo também devem continuar domésticas e reproduzindo a espécie. Afinal precisamos de mão de obra. Homens e mulheres são engolidas pela rotina produtiva e a necessidade de sobreviver e quase não tem tempo de cuidar com qualidade dos seus filhos.

Crianças não são produtivas. Não são mão de obra aproveitável até entrarem na vida adulta, então não são consideradas tão importantes. Na verdade só servem para gerar mercado consumidor. Alguém já parou para pensar como a chegada de um bebê é embalada como um grande produto? Enxoval, chá disso, chá daquilo, festa na maternidade, e depois do nascimento, mãe e criança são atiradas no ostracismo e o recém-nascido vira um empecilho a ser resolvido. Buscamos o tempo todo soluções mirabolantes para que os bebês parem de se comportar como bebês e sejam independentes o mais rápido possível.

Chegamos ao ponto em que precisamos de técnicas”, de livros e cursos e vídeos para dizer o óbvio: crianças são pessoas. São seres em desenvolvimento em situação de completa vulnerabilidade e necessitam de compreensão, paciência e empatia. São seres que precisam de carinho e cuidado. Dar colo e aconchego ao filho virou uma “técnica”. Somos uma civilização em que amor, carinho e respeito por crianças precisa de prescrição.

She-Ra e as Princesas do Poder

A Netflix lançou recentemente um reboot do popular desenho da She-Ra, e as Princesas do Poder, muito famoso nos anos 80. O desenho é uma agradável surpresa e recomendadíssimo para assistir com crianças já que finalmente apareceu alguma coisa que traz uma mensagem decente sobre o tal empoderamento feminino.

A premissa do desenho é a mesma: Adora é uma órfã que foi criada e treinada pela Horda para supostamente lutar para salvar o mundo em que vivia. Após um acidente, se perde na floresta dos Sussurros e é capturada pela princesa Cintilante e pelo Arqueiro, que lutam pelos Rebeldes, que a mostram que tudo que aprendeu sobre o mundo onde estava vivendo estava equivocado e que ela estava lutando do lado errado. Nesse meio tempo ela descobre uma espada mágica que a transforma na princesa prometida She-Ra, uma guerreira de 3 metros cheia de poderes muito loucos, como transformar um cavalo comum em um unicórnio. Então a trama se desenvolve com Adora na busca por entender seus novos poderes e lidando com as conseqüências das suas escolhas, enquanto fortalece seus laços de amizade com as pessoas que vai conhecendo entre os Rebeldes com quem se une para ajudar a combater a Horda e proteger Etéria.

O desenho é formado por 95% de personagens mulheres. Mesmo. E os personagens masculinos ou são acessórios, escada para um personagem feminino ou alívio cômico. Só por isso o desenho é bastante revolucionário. O personagem do Arqueiro, por exemplo, melhor amigo da princesa Cintilante, é um adolescente sensível, companheiro, que se emociona freqüentemente e serve muito mais como recurso para mostrar o desenvolvimento da Cintilante, que é um personagem muito rico, sempre em conflito com sua mãe, a Rainha de Lua Clara, para ter autonomia, independência e mostrar suas potencialidades.

Do lado da Horda, as antagonistas são maravilhosas e complexas. Felina tem um relação complicada de amor e ódio por Adora, que era sua amiga até sua partida e união com rebeldes. A relação delas inclusive é um fio condutor importante da trama pois Adora passa o tempo todo lidando com sentimentos contraditórios por ter deixado a amiga para trás, por vê-la escolher o lado dos vilões, por ter que lutar contra ela. E Felina por sua vez tem que lidar com o sentimento de abandono, rejeição, vingança e ambição de se tornar a capitã da Horda, agora que Adora estava fora do caminho. O Hordak aqui é um vilão completamente insípido totalmente nublado pela complexidade da Sombria, que tem uma estranha relação quase maternal com Adora enquanto maltrata e humilha Felina.

she-ra e as princesas do poder
Felina e Adora, amigas e rivais

As Princesas também são um show à parte, e ajudam no alívio cômico, cada uma com poderes bem específicos e personalidades exóticas. E palmas aqui para a preocupação com a representatividade de biotipos (Cintilante é baixinha e gordinha, por exemplo), raças e etnias. E um adendo para falar do Ventania, lembra dele? Aqui ele se torna um unicórnio falante revolucionário que quer libertar todos os cavalos do mundo!

Os conflitos da trama são na verdade muito mais sobre questões psicológicas e emocionais dos personagens do que sobre a luta pra libertar Etéria. She-Ra não é uma guerreira pronta, na verdade muito longe disso. Adora recebe uma missão que não sabe como lidar e é o seu caminho para aprender como usar toda a força que descobre que tem que dá uma belíssima lição de empoderamento para meninas.

Em primeiro lugar essa força, esse poder, que Adora descobre que tem não a deixa pronta, nem traz resultados, muito longe disso na verdade. She-Ra é uma guerreira em construção, falha, e cheia de crises existenciais. E toda sua descoberta de si mesma passa por restaurar a Aliança das Princesas que foi desfeita no passado porque elas acreditaram que não havia resultado em lutarem juntas, que se saíam melhor sozinhas. Durante toda a série, Adora e Cintilante buscam reustarar e fortalecer os laços de confiança e amizade entre as Princesas do Poder, busca romper as diferenças, os medos, para que possam somar suas potencialidades e enfrentar o inimigo em comum. Então o desenho fala de muita coisa, mas fala principalmente de mulheres conhecendo sua força, de mulheres aprendendo a lidar com suas dificuldades pessoais, de mulheres aprendendo a importância de lutarem juntas, de mulheres aprendendo a confiar umas nas outras. E é apenas quando elas decidem se unir que o empoderamento acontece. Porque empoderamento é uma força coletiva. É a força de um grupo que consegue mudar uma realidade, não é um sentimento individual. She-Ra não é empoderada, mas a Aliança das Princesas é poderosíssima.

E por isso que o desenho vale cada minuto, para meninas verem princesas que valem a pena querer ser. Para meninos aprenderem a admirar meninas por suas habilidades, força, inteligência, coragem, e não por sua aparência. Que sorte que essa geração tem coisas assim para assistir, saudosismo com a She-Ra da sainha dos anos 80, nem pensar.

Dia dos pais sem ter o que comemorar

Este é um dia dos pais sem ter o que comemorar. Queria dizer a todas as mulheres que criam os seus filhos sozinhas que esse dia não é delas e não deve ser celebrado. Não há nada para comemorar. Uma mulher que cria o seu filho sozinha é uma mulher extremamente sobrecarregada que tenta minimizar as lacunas deixadas pela ausência do genitor, e que efetivamente ela não conseguirá cumprir esse papel de “pai”. Porque ela é a mãe. Uma mãe exausta, uma mãe solitária, uma mãe cheia de perguntas sem resposta. A mãe. O pai que deveria estar lá e não está, quase sempre por abandono, descaso, displicência, irresponsabilidade é o que é. Uma ausência. Filhos crescerão com esse peso. Com esse tema para levar para a terapia, caso tenham a oportunidade de fazê-lo.

No país do abandono paterno, do machismo, da paternidade de ocasião, de pais de selfie, este é um dia de denúncia e pouca comemoração. É um dia para que homens reflitam como estão exercendo sua paternidade, para que reflitam sobre que tipo de modelos de paternidade tiveram e se esse modelo foi realmente positivo, carinhoso, contributivo para que eles se tornassem homens melhores, ou apenas reprodutores do que há de mais violento e machista na sociedade.

E não é apenas uma questão de ausência. É de presença ausente. De abster-se do cuidado, do fortalecimento de vínculo, por acreditar que o papel de pai limita-se a colocar comida na mesa em troca da eterna gratidão e subserviência da família. A existência dos homens na lembrança de boa parte das pessoas quando pensam sobre paternidade está quase sempre ligada a episódios de violência, alcoolismo, descaso, desleixo, irresponsabilidade, omissão, abuso. Pessoas que crescem buscando tampar esse buraco, suprir essa carência, que se agarram às poucas migalhas de afeto que receberam na infância dos seus pais como se fossem tesouros sagrados.

É um momento para que se faça um exame de consciência e uma admissão coletiva de culpa: homens, vocês não são bons pais. Vocês não estão exercendo a paternidade de forma a criar pessoa melhores, vocês não estão presentes na vida dos seus filhos. Assim como o pai de vocês provavelmente não esteve. Esse sequer é um fenômeno local: já notou como a maior parte das narrativas de filmes, séries e novelas tem a ver com pessoas tentando resolver seus traumas com os pais, via de regra o pai? O pai que não está lá. O pai que não dá afeto. O pai, o eterno atrapalhado bobalhão.

E por favor, me poupem do discurso “mas nem todo pai”. Se você não é assim, ou seu pai não é assim, toma aqui sua medalha de honra ao mérito. Você é exceção, não é regra. Onde estão os homens nos grupos que falam sobre cuidados dos filhos, pediatria, escola, fraldas, comida, roupas? Por que homens sentem-se confortáveis conversando sobre futebol enquanto suas mulheres estão conversando sobre seus filhos? Por que homens simplesmente esquecem dos filhos quando separam-se da mães? Por que é preciso uma lei que precise prender homens para que eles façam o mínimo que é pagar pensão para sustentar os filhos das relações que se romperam? Por que homens não combatem homens que demonstram desejos pedófilos? Por que homens não protegem a infância? Não protegem as crianças?

Falar de criação de filhos é falar de afeto, de cuidado, de presença. De querer estar ali para cuidar, amar e socializar uma criança. Essa é a função do pai. Dividir esta tarefa com a mãe. Sendo companheiro dela ou não. Se você não faz isso, não dá afeto, cuidado de verdade e presença, sua paternidade não é o bastante. Você não merece parabéns por nada. Aproveite este dia para pensar na sua parte, para pensar na sua função social. Para pensar se você merece algum presente.

Não há nada de feliz no dia dos pais.

Educar filhos é sobre escolher batalhas e não deixar feridos

Educar filhos é sobre escolher batalhas e não deixar feridos. A menina devia ter uns 2 ou 3 anos no máximo. Estávamos no meio do saguão da Receita Federal. Ela chorava desconsolada junto ao pai que estava ajoelhado na sua frente e impenetrável exigia que a criança pegasse um objeto que ela tinha atirado para longe num rompante de raiva.

A mãe, ao lado, observava impassível a cena. Decerto havia uma lógica naquilo tudo e talvez uma lógica correta dentro daquilo que aqueles pais acreditavam. Era preciso educar a criança, não importa onde, não importa como, não importa quanto tempo levasse. Ela atirou um objeto em um momento de birra e deveria portanto ajustar seu comportamento imediatamente, apresentando sua compreensão do ato, as mais sinceras desculpas e a correção do destempero. E os pais estavam ali naquela árdua missão. Certo? Todos concordamos?

Bom, sei lá. Às vezes eu acho que mesmo no meio das nossas boas intenções podemos ser projetos de ditadores com nossos filhos. Somos obcecados em mostrar e estabelecer nossa autoridade e sim isso é importante para nos posicionarmos como referência mas tampouco é a única estratégia, ou mesmo a mais acertada. Muitas vezes o que essa possibilidade faz é despertar a megalomania que há em nós. Queremos ser mais que pais. Queremos ser chefes. Comandantes. Que os filhos PRECISAM respeitar. PRECISAM obedecer. Porque somos os PAIS. E isto nos investiu com o poder sagrado sobre a vida dos filhos.

Mas toda essa reflexão me veio também porque a menininha lá chorava desconsoladamente, as vezes estendia os braços pedindo colo… Ela visivelmente já não estava entendendo mais nada, não sabia porque o pai ainda estava ali abaixado com cara de bravo e não a deixava sair. O que ela queria mesmo era um abraço, um picolé, ver Patati Patatá. Era uma menina de no máximo 3 anos, que teve um arroubo emocional.

Adultos fazem isso o tempo todo, gritam, saem batendo portas. É difícil mesmo se controlar às vezes e a maioria passa a vida tentando sem sucesso. Eu não acho que essa sociedade de adultos exaltados de hoje é formada por pessoas que foram crianças “sem limites”. Crianças cujos pais não tentaram controlá-las sob a desculpa de que as estavam ensinando. Ao contrário, a maioria de nós foi adestrada à base de muita violência física, verbal e psicológica, e isso resultou num total de muitos nadas porque crescemos e formamos essa sociedade de pessoas destemperadas, pouco afeitas ao diálogo e que naturalizam agressão.

Enfim, talvez, naquela situação, fosse mais fácil pegar a criança no colo, consolá-la, tentar ensinar outras maneiras de lidar com a raiva. Não estou dizendo também que devemos simplesmente ser permissivos com tudo que os filhos fazem. Mas é preciso escolher as batalhas na maioria das vezes e é preciso manter o foco para não ser engolido pela necessidade de mostrar autoridade a qualquer custo. É possível ensinar de muitas maneiras, acolhendo, dando o exemplo, algumas vezes sendo mais enérgico, mas sem esquecer o que estamos fazendo ali: tentando ensinar a essas pequenas criaturinhas estratégias para sobreviver nessa selva chamada planeta Terra. Ensiná-las a serem empáticas, a conhecerem suas emoções e lidar com elas. No ritmo e no tempo que elas consigam fazer isso. Repito, muita gente chega na vida adulta e ainda não conseguiu fazer metade do que se exige das crianças.

Até por isso, se dê algum desconto também. Porque você pode inclusive nem ser a melhor pessoa para essa tarefa: educar uma criança. Acontece. Pais acham que só porque geraram um filho se graduaram em psicologia, pedagogia, sociologia, pediatria, tudo junto. O conjunto de habilidades e conhecimentos necessários para se criar uma criança não brota por mágica com o nascimento da mesma. A necessidade de preparar-se para a parentalidade é uma realidade, nós simplesmente desconhecemos o funcionamento de bebês, crianças e adolescentes até nos deparamos com a necessidade de lidar com eles (e fazê-los sobreviver).

E estamos longe de saber alguma coisa né? Na maioria das vezes estamos tateando muito mais agarrados em convicções do que em certezas. Reproduzimos aquilo que achamos que deu certo na nossa socialização, que quase sempre é um desastre completo. Não que a gente se dê conta disso também. Vamos levando adiante. Pensamos “eu não matei, não roubei, não fui preso, devo ser uma boa pessoa, obrigada mamãe e papai”. Mas só você sabe o peso emocional que você carrega para se manter de pé todos os dias. A carência que você tem de recursos para lidar com a vida. E é isso. Seguimos reproduzindo a espécie. E sim, você simplesmente pode estar bastante coisa errada por aí, e seus pais podem ter feito bastante coisa errada com você. Culpa sua? Não. Culpa deles? Sim e não, também. Todo mundo está fazendo o seu melhor e os consultórios de terapia consertando os estragos para quem consegue ter acesso a eles.

E tudo isso para dizer que educação sem acolhimento não resolve muita coisa, no fim. E acolhimento não é aceitar tudo, abrir mão de ensinar valores, ética, as regras sociais. Acolhimento é perceber que seu filho está chorando desconsoladamente e naquele momento precisa de um abraço, não de uma bronca. A gente não devia deixar ninguém chorar desconsoladamente em nome de nada. Muito menos aos nossos filhos. Se a gente não tem muita certeza do que está ensinando, se somos todos meio cegos tateando para tentar sobreviver neste mundo, que ao menos seja de mãos dadas. Acolhendo uns aos outros. Que seu filho tenha a lembrança de que você foi a pessoa que o ensinou a ser uma “pessoa de bem”, mas também a pessoa que esteve ao seu lado e o ajudou a ser mais feliz.

E que com filhos a gente está o tempo todo escolhendo as batalhas que vai travar, porque tudo é desgastante. E nem tudo vale a pena, às vezes é só desgaste mesmo. É fácil perder o foco do que se está fazendo e dos motivos pelos quais estamos fazendo algo aos filhos. A gente tenta ensinar muita coisa que nem a gente aprendeu direito. Acho até que a gente consegue ensinar mais quando admite pra si mesmo que sabe muito pouco e que também tem vontade de sentar no chão e espernear junto para ver se alguém se compadece e resolve o seu problema.

Não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”

Acho que uma das partes mais complicadas de se criar filhos hoje em dia é conseguir passar os valores de que não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”. Uma vez me perguntaram se eu deixaria meu filho sair com vestidos, unhas pintadas e coisas que são atribuídas às meninas. Eu fui bastante honesta na resposta: que dependeria. Se ele estivesse indo para algum lugar onde suas roupas fora do padrão de gênero não fossem causar grandes transtornos a ele, deixaria sim. Mas se fosse algum lugar onde ele pudesse ser fortemente rechaçado ou rejeitado, talvez eu não o expusesse, tão jovem (ele tem 3 anos e meio) a uma situação que ele não entenderia, não saberia lidar e ainda poderia magoá-lo profundamente.

E como eu lido com o desejo, muito natural, do meu filho usar coisas ditas “femininas”? Pessoalmente, eu nem ligo. Até porque ele não vê as coisas divididas dessa forma. Roupas são roupas, cores são cores, brinquedos são brinquedos. Com o tempo, inevitavelmente, ele vai ser apresentado a essas classificações arbitrárias e aí teremos um novo desafio que é diminuir o peso disso, para que ele continue se relacionando da maneira menos danosa possível com os estereótipos de gênero.

E por que meu filho não sabe o que são “coisas de meninas” e “coisas de meninos”? Porque até agora ninguém ensinou. Ele chegou até aqui sem ouvir a famigerada frase “isso não é para você”, ou “ isso é de menina”, ou “meninos fazem assim”, e sai por aí feliz na bicicleta cor-de-rosa que herdou da prima sem nenhum trauma ou dor na consciência. Assim como brinca com ela com as bonecas e com os carrinhos e com todos os brinquedos possíveis à disposição.

E aí é importante dizer que sim, é perfeitamente possível atravessar boa parte da primeira infância da educação de um filho sem ter que entrar no mérito do que teoricamente pertence ao mundo das meninas e o que pertence ao mundo dos meninos. Esse tipo de informação e instrução não representa nada além de uma limitação do universo. O que crianças precisam entender é que há coisas que são adequadas e permitidas a ela e outras que não são, que só são adequadas e permitidas quando elas crescerem. E isso já resolve muita coisa. O mundo para elas, na verdade é muito mais dividido em “coisas de crianças” e “coisas de adultos” que qualquer outra coisa. E essa é uma noção muito importante, inclusive para a segurança delas.

E que resolve muita coisa. “posso jogar Resident Evil?”, “não, isso é coisa de adultos”, “posso beber esse vinho?”, “não, você ainda é pequeno”, “posso mexer nessa faca?”, “melhor crescer mais um pouco”. Acredito inclusive que consigo manter essa lógica com adaptações até ele completar 18 anos.

Até porque, há uma infinidade de outras informações mais relevantes que uma criança deve saber desde bebê que não passam por dividir o mundo em azul e rosa. Tipo, o nome das partes do corpo. Inclusive, e principalmente dos genitais. Deve saber que não pode deixar ninguém encostar a não ser quem é o responsável por dar banho nele e higienizar. Deve saber que ele não deve encostar nos genitais de ninguém, mesmo que peçam. Que beijo na boca é coisa de adulto. Que crianças e adultos não ficam sem roupas juntos. Que ele deve pedir permissão para abraçar outras crianças caso queira e que se elas não quiserem, ele não deve insistir. Por exemplo.

E é isso, não se preocupe em antecipar-se, o seu filho vai entender os códigos. É fácil notar que o mundo é binário e ele vai se identificar ou não com um determinado grupo, e aí cabe a você apoiá-lo para que se sinta confortável e consiga expressar sua autenticidade. Porque em algum momento ele vai ser cobrado para que defenda as leis do gênero em que nasceu inserido. E se ele conseguir chegar nesse momento consciente de que essas regras não tem o menor sentido, de que ele não precisa se submeter, vai ter força para, quem sabe, realizar os enfrentamentos necessários para gente combater tanta coisa ruim que os estereótipos de gêneros nos trazem, tanto machismo estrutural. Quem sabe? São sementes que a gente planta, tentativas que nós fazemos.

Eu, como mãe feminista, realmente não tenho nenhuma garantia de que meu filho não vai ser machista. Eu não tenho ilusões de que ele será imune. Mas enquanto eu puder mostrar a ele como o mundo pode ser bem mais fácil, para todos, quando a gente não se submete a este chicote do gênero, vamos lá. É um dia de cada vez. Quem sabe a revolução não será materna?

Como meu filho aprendeu que era um menino

Sempre me perguntam como eu ensino meu filho sobre gênero. Uma boa resposta é a história sobre como meu filho aprendeu que era um menino. É muito fácil constatar que ensinamentos sobre estereótipos de gênero são absolutamente desnecessários para crianças.

Até os 3 anos meu filho não sabia “oficialmente” que era um menino. Nunca tinha surgido uma oportunidade ou a necessidade que eu lhe desse essa informação.

Vamos pensar um pouco: que diferença faz para uma criança, principalmente uma muito jovem, se ela é menino ou menina?

Uma vez, ele tinha cerca de dois anos e estava vendo um desenho aleatório na TV onde tinha um casal de gatos. Os animais eram desenhados de maneira absolutamente igual sendo diferenciados somente por um efusivo batom vermelho e um par de longos cílios (recurso usado para demarcar qual seria a fêmea). Num determinado momento, só a fêmea ficou enquadrada na tela e meu filho disse “olha o gatinho”. Meu primeiro impulso foi corrigir e dizer “é uma gatinha, ela é menina”, mas me contive. O que eu ia dizer para ele ali? Que aquela gata era fêmea porque usava batom? Que era porque tinha cílios compridos e olhos oblíquos para simular sensualidade? É isso que define uma fêmea? Batom nos lábios? Que diabos isso queria dizer? E a ausência de sentido dessa explicação fez com que meu alerta vermelho acendesse para que eu não colocasse meus pés na longa estrada do reforço dos estereótipos de feminilidade e aí eu me calei. Ele tinha 2 anos, em nada, absolutamente nada, a informação que eu ia dar espontaneamente sobre ser um menino ou uma menina, ou mesmo se os amiguinhos com que ele brincava eram meninos ou meninas faria diferença para ele.

Já nessa época eu comecei a instruí-lo sobre o próprio corpo, com noções de prevenção de abuso, ensinando o nome de todas as partes corpo, quais deveriam ter mais atenção, ser mais protegidas. Isso aumentou a consciência corporal dele e o um dia, no banho, veio a pergunta inevitável: “mamãe, cadê o seu piupiu?”. “Eu não tenho piupiu, tenho “perereca” (nos meus sonhos engajados eu planejava dizer que mulheres tem “vulva” bla bla bla, mas foi o que saiu). Meu filho fez alguns instantes de silêncio e a questão definidora, que importa, surgiu: “por que?”. “Porque eu sou uma menina. Meninas tem perereca e meninos tem piupiu”. “O papai tem piupiu?”, ele perguntou. “O papai tem piu piu.”, respondi. “O papai tem piupiu, ele é menino. A mamãe tem peleleca (sic), ela é menina!”, ele aferiu.

A partir daí seguiu-se um período entre engraçado e constrangedor porque ele passou um tempo perguntando para pessoas mais próximas se elas tinham “pinto” ou “perereca” e checando a informação sobre ser menino ou menina. E aos poucos ele passou a observar também outros caracteres secundários como presença de barba ou seios.

Isto não significa, tampouco, que eu o estava criando “sem gênero”, ou coisa parecida, isso é impossível. Crianças são bastante perceptivas e muito rapidamente ele percebeu que ele mesmo era um menino, e que o grupo de pessoas que era classificado como “menino”, a qual ele pertencia, tinha códigos próprios de comportamento e vestimenta, assim como o grupo que era classificado como “menina”. Ele aos poucos (para o bem e para o mal) vai percebendo qual é a sua “turma”.

Eu, da minha parte, sempre busquei comprar todo tipo de brinquedos e sempre privilegiei critérios como conforto e qualidade para escolha de suas roupas, por exemplo, mas — obviamente — acabo comprando suas roupas prioritariamente na seção masculina (embora ela vista feliz várias camisetas das primas). Quando a gente se esforça (e realmente demanda muito esforço, muita desconstrução pessoal) para socializar uma criança minimizando os impactos dos estereótipos de gênero, é meio assim.

Na real, a gente entende que não existe nem uma pergunta para qual a resposta seja: “porque você é menino / menina”, assim como nenhuma orientação específica a ser dada . Exceto para questões biológicas específicas. Por exemplo: “por que eu faço xixi sentada?”, “porque você é menina, tem uma vulva, e anatomicamente é mais confortável fazer assim, meninos podem fazer das duas maneiras, em pé e sentado, porque eles têm um pênis que facilita anatomicamente”. É isso. Todo o resto (“meninos não choram”, “meninas não gritam”, “meninos não brincam de boneca”, etc, etc) são estereótipos, completamente ausentes de sentido lógico, que não seja condicionar o comportamento dessas crianças para dominação/submissão.

Meu filho agora está com 6 anos e há coisas que — até agora — ele conseguiu passar em branco. O mundo dele é muito mais dividido em um mundo de crianças e adultos que de meninos e meninas. Cores, por exemplo. As preferidas dele são azul e vermelho, e ele acha rosa uma cor linda. Ele gosta de Pokemon tanto quando da Barbie Sereia (e acha o cabelo delas “lindo”). Tem vários heróis e heroínas. E uma vez eu perguntei “me diz uma coisa que seja uma coisa de menina?”, e ele respondeu: “não tem nada, só a perereca”. Eu ri. Tá eu também chorei. Porque isso é uma vitória pessoal que eu trago — até aqui. Amanhã eu não sei. É uma batalha diária. A vida está aí, socialização não é algo que a gente consiga controlar completamente. Existe o meu menino, e existe o mundo. E o mundo é patriarcal e ardiloso.

Mas nós podemos sim, ensinar a nossas crianças que elas são meninos e meninas, por um detalhe anatômico que não faz a menor diferença pra elas porque são crianças. E podemos sim poupá-las o máximo possível da socialização de gênero, minimizar este impacto enquanto conseguirmos. Deixar pelo menos a infância delas mais leve, mais rica de experiências. Porque o que gênero ensina é sobre opressão, não é sobre liberdade. É sobre meninos serem fortes e meninas serem fracas. Sobre meninos odiarem rosa — e odiarem meninas. É sobre meninas serem princesas lindas, frágeis, à espera de um menino que vai querer casar com elas. Sobre meninos serem agressivos uns com os outros. Gênero ensina sobre quem manda e quem obedece. Ensina hierarquia. E crianças são apenas crianças. Nada disso faz sentido ou faz falta pra elas. Somos nós adultos que, irrefletidamente, fazemos um esforço continuado nessa domesticaçao. Capatazes que somos, do patriarcado. Adultizando crianças, querendo transformá-las em homens e mulheres em miniatura, em hábitos, vestuário, e comportamentos.

Sexo e gênero são coisas bastante distintas que tem — propositadamente — se confundido na mente de todas. Precisamos demarcar essa diferença. Porque nosso sexo não deveria nos condicionar a nada. Não condiciona como somos, o que gostamos, sentimos, queremos. E gênero é uma opressão. É sobre cumprir um papel social baseado no seu sexo. Estereótipos de gênero são uma prisão. Vamos criar nossas crianças livres para serem o que precisarem ser para estarem felizes. É mais simples do que parece, basta tentar.

20 coisas fundamentais para se dizer a meninas

Há coisas fundamentais para se dizer a meninas durante sua socialização que certamente farão muita diferença sobre a maneira como elas irão para um mundo patriarcal que espera delas uma postura de subalternidade e submissão aos homens. Vamos ver?

1. Não existem “coisas de menina” e “coisas de menino”

Você sabia que antigamente azul é que era uma cor de menina? E que o rosa é que era uma cor de menino? Cores são apenas cores. Adultos é que inventam classificações arbitrárias que de repente mudam. Você tem o direito de escolher o que gosta e o que não gosta, entre roupas, brinquedos, o seu jeito de ser. Não é porque você não gosta das “coisas de menina”, ou prefere as tais “coisas de menino” que tem alguma coisa errada. Ao contrário. É perfeitamente normal gostar de tudo um pouco com tantas opções legais que têm por aí. Você pode correr, pular, se sujar, gritar, gargalhar, subir em coisas. Você é rápida, é esperta, e é forte. Você também pode ser uma princesa, ou uma heroína, ou o que a sua imaginação permitir. Ou brincar de casinha e comidinha. E se os meninos quiserem brincar disso com você também, que bacana! Quando todos brincam juntos é sempre muito mais legal. Também não existe “brinquedo de menina” e “brinquedo de menino”. Você pode brincar com bola, videogames, carrinhos e aeronaves. Pode brincar com super-heróis, jogos de tabuleiro, jogos de montar. Ler gibis de ação e aventura. Bonecas, jogos de cozinha, pintura também são super divertidos. Você pode gostar do que quiser, ser como quiser, e está tudo bem. Você é apenas uma menina e deve experimentar o mundo.

2. Crianças não namora

Você não tem namoradinhos. Criança não namoram. Crianças brincam e estudam. Você não precisa se preocupar com seu comportamento ou sua aparência para que alguém “goste de você e queira namorar com você”. Você não precisa ceder se algum amigo seu disser que “quer namorar com você” ou que é seu “namorado. Crianças são amigas umas das outras. Apenas isso. E adultos, de maneira nenhuma “namoram” crianças. Namoro é coisa de adultos. Há pessoas adultas que namoram e pessoas adultas que não namoram, inclusive. Quando você crescer vai gostar de alguém e vai poder namorar, se você quiser. Alguém que também goste de você exatamente como você é, te respeite, te admire e queira estar com você.

3. Ninguém pode tocar o corpo de ninguém sem consentimento

Seu corpo é apenas seu e não deve ser tocado por ninguém sem seu consentimento expresso. Você não precisa receber nem dar abraços ou beijos se não quiser. Se alguém tocar o seu corpo sem pedir sua permissão se afaste e diga “eu não quero que você me toque. Ninguém pode tocar no meu corpo sem a minha permissão”. E conte tudo para um adulto da sua confiança que possa ajudá-la com isso. E não se preocupe se o outro vai ficar “triste”. Fazer algo que você não quer só para agradar também é uma forma de abuso psicológico com você mesma. Nunca diga “sim” quando você não tem certeza absoluta do que deseja. E sempre peça permissão antes de tocar o corpo de alguém, principalmente o de outra menina. Para qualquer coisa. “Posso pegar sua mão?”, “Posso te abraçar?”. Sempre peça. E se a resposta for não: é não. Não insista.

4. Você tem o direito de dizer “não”. Use-o sem moderação.

Recusar é tão ou mais importante quando consentir. Se algo a incomoda ou a deixa desconfortável, diga ‘não’. E se alguém não estiver respeitando o seu ‘não’ se afaste e comunique outros adultos. Você não precisa se preocupar em agradar pessoas. Não precisa concordar ou consentir com algo para preservar os sentimentos de ninguém. Os seus sentimentos e a sua segurança física e emocional devem sempre vir em primeiro lugar. Você não precisa aceitar ou concordar com tudo o que dizem que você deve fazer, ser ou sentir. Principalmente se estas orientações levarem você a situações desagradáveis. Na dúvida, diga não e se proteja.

5. Proteja-se e defenda-se sempre

A primeira coisa que você levar em consideração em qualquer relação que você esteja é a sua própria integridade física e emocional. Se alguém fere seu corpo ou fere seus sentimentos, defenda-se, proteja-se, avise outras pessoas, afaste-se. Não importa se essa pessoa é um amigo, é um professor, é um de seus pais. Não aceite chantagens emocionais. Você é forte, não precisa de um homem protegendo você, e é importante que você saiba a proteger a si mesma. Que aprenda a reconhecer ocasiões mais inseguras, seja capaz de criar um círculo de confiança e estratégias de proteção para si mesma. Que cultive uma desconfiança saudável das pessoas e situações. Afaste-se sempre de pessoas autoritárias, controladoras, ciumentas e abusivas. Sempre. Nada disso é amor. Infelizmente este é um mundo muito perigoso para meninas. É um mundo onde pessoas são atacadas, assediadas, violentadas, apenas por serem mulheres. Você é uma menina forte, inteligente e sempre será amada por ser quem você é. Não aceite ser tratada por menos do que você merece. E você é uma menina fantástica que merece ser tratada com total respeito por todos. Fortaleça seu coração e aprenda a lutar.

6. Nada justifica o uso da violência

Violência é apenas violência. É injustificável. Não sinaliza que alguém é forte e sim que é incapaz de resolver qualquer questão de forma honrada, respeitosa e civilizada. É sinal de fraqueza e não de fortaleza. Se você sentir raiva, o que é normal, pode extravasar por outros mecanismos. Ferir outras pessoas é absolutamente inadmissível. E nunca, em hipótese nenhuma, admita que ninguém cometa nenhum tipo de violência contra você. Nem física, nem verbal, nem psicológica. Mesmo que chamem de amor. Mesmo que peçam desculpa. a dor existe, ela é real e você não precisa suportar nada. Defenda-se. Procure ajuda. Proteja-se sempre.

7. Você é uma criança e não uma “mocinha”

Sabemos que ser criança neste mundo é muito complicado. E que ser menina tem uma carga bastante difícil de lidar. Que os adultos cobram que você aja como um “mocinha” e exigem de você posturas que você nem entende direito o que significa. Que querem que você tenha responsabilidades, que aprenda desde cedo a arrumar, limpar, que você muitas vezes já é obrigada a cuidar de crianças menores. Que você é levada a ter um comportamento de pessoa adulta, inclusive nas roupas e acessórios que te dão. Saiba que isso é errado. Você é uma criança e tem direito a viver sua infância como uma. Tem direito a brincar despreocupadamente sem ter que cuidar de nada nem de ninguém. Tem direito a ter seu corpo de criança protegido. Este é o momento de você aproveitar, experimentando o mundo e descobrindo aos poucos o que você é, sua personalidade, seu temperamento, o que gosta ou não. Você não tem que ser nada agora exceto uma aprendiz atenta, não tem que atender expectativa de ninguém. Você ainda está crescendo, não deixe que cobranças sem sentido roubem sua infância.

8. Você deve cuidar de si mesma em primeiro lugar

É importante saber escolher, comprar e cozinhar os próprios alimentos. Cuidar da limpeza da própria roupa. Saber como manter limpa a casa onde vive. É importante saber como cuidar-se. Ninguém tem nenhuma obrigação de fazer isso por você e se um dia você estiver numa relação onde compartilha uma mesma casa essas responsabilidades devem ser divididas, portanto você deve saber executar a sua parte. Mas lembre-se sempre que cuidar de si mesma é sua principal responsabilidade e sua prioridade. Você não tem nenhuma obrigação exclusiva com o cuidado doméstico ou cuidado de outras pessoas. Você não tem responsabilidade de cuidar de ninguém além de sim mesma e qualquer relação de cuidar com a qual você vier a se comprometer pela vida deve ser muito bem ponderada e avaliada para que você esteja doando-se de maneira muito consciente, sem sentimento de culpa ou obrigação envolvido, e principalmente sem ser explorada no processo.

9. Não é a sua aparência que define quem você é

Este é um mundo que faz com que meninas se tornem muito infelizes caso não sejam vistas como “bonitas” e um tremendo esforço sempre será feito para te convencer que ser “bela” é o que há de mais importante sobre você. Só que você não é definida por como se parece. Se uma pessoa se aproximar ou se afastar de você apenas pela maneira como você aparenta e não pela maneira como você é, então ela não serve de verdade para você. Você é uma pessoa inteligente, engraçada, esperta, forte e verdadeiramente especial. E é isso que é o que verdadeiramente importa sobre você. Se alguém não é capaz de ver, valorizar e te desejar pelos motivos certos, então essa pessoa não serve para te amar. E a validação dela não significa nada. Você não existe em função de “embelezar” os ambientes onde esteja. Você não precisa se preocupar em estar o tempo todo sendo vista, analisada e catalogada… Você é uma pessoa completa e não precisa da aprovação de ninguém sobre você. Você é muito mais que algo para ser visto, admirado e elogiado em função da beleza. Você é uma pessoa completa.

10. O universo não gira ao redor do umbigo dos meninos

Muitas vezes você vai ter a impressão que tudo que existe de legal e importante no mundo é sobre e feito para meninos. São eles que estão no centro de todas as coisas que você assiste, escuta, aprende na escola. E sim, por muito tempo e ainda hoje são os meninos que protagonizam tudo mas eles não são o centro do universo. Eles não são o mais importante, meninos são apenas meninos e o mundo não gira em torno deles, por mais que possa parecer. O seu mundo deve girar em torno de você mesma porque ainda é muito difícil ser uma menina na nossa sociedade, e tudo que você vai conhecer vai tentar te convencer que você deve colocar meninos no centro e em primeiro lugar. Que meninos são mais importantes que meninas, que eles são mais fortes, especiais. Nada disso é verdade. Seja você o centro da sua vida.

11. Você não precisa disfarçar seus sentimentos

Expresse seus sentimentos. Todos eles. Principalmente os considerados “ruins”. Você tem o direito de ficar brava. Sentir-se com raiva. Todos têm sentimentos intensos e você não precisa sentir culpa por isso. Você tem o direito de expressar sua indignação. Você pode brigar sim, e falar alto, contestar, protestar. Você não precisa perdoar nada, nem ninguém se ainda não se sentir preparada. Inclusive não precisa perdoar se não quiser. Nem precisa buscar a conciliação o tempo todo. Há momentos, inclusive, em que será justamente esta energia que vai te proteger de relações abusivas. Permita-se enfurecer porque é sua fúria que vai ter proteger.

12. Você não precisa disfarçar sua personalidade

Seja educada. Educação, polidez e gentileza são virtudes importantes para todos os seres humanos conviverem em sociedade. Mas você não precisa ser simpática, ou sorridente, ou delicada, ou doce, ou cordata, ou mesmo amável se você não quiser. Você não existe em função de atender as expectativas das outras pessoas. Você não precisa agradar a todas as pessoas e principalmente você não precisa concordar com tudo que os meninos pensam apenas para parecer atrativa para eles. Você não precisa fingir que está sentindo algo que não sente, que gostou de algo que não gosta, que aceita algo que não concorda. Permita-se ser você.

13. Ame as suas amigas 

Amigas são o bem mais precioso que uma menina pode ter. Elas vão ser suas companheiras, compartilhar alegrias, tristezas, aventuras. Vocês poderão contar umas com as outras e vão viver coisas muito parecidas. Mas fique atenta porque vão de todo modo tentar te convencer que outras meninas e mulheres podem ser rivais. Vão te dizer que meninas são mais invejosas, fofoqueiras, falsas, ou fúteis. Vão criar em você um sentimento de “não ser como as outras”. Não caia nessa armadilha. Meninas são pessoas e são as melhores pessoas que você terá ao seu lado, sempre. São as pessoas que vão salvar sua vida. Não vale a pena competir pela atenção dos meninos, tire-os do centro das suas preocupações. Nenhum menino pode ser tão especial quanto a amizade das suas amigas. Homens chegam e vão embora na vida de mulheres. As amigas estarão lá por você para sempre.

14. Escolha mulheres

Existem mulheres maravilhosas por aí, que pesquisam, produzem, constroem, inventam, criam, cantam, dançam, interpretam, dirigem, coordenam, constroem, empreendem… mulheres estão por toda parte, fazendo de tudo, e se você tiver a chance, sempre escolha mulheres. Compre , assista, leia, contrate o trabalho de outras mulheres. Vote em mulheres, opte por mulheres. Não acredite se te disserem que algo feito por uma mulher é inferior, ou imperfeito. Não entre em competição desnecessária com mulheres. Coopere com elas. Una-se a elas. Privilegiar outras mulheres é fortalecer uma rede que vai fortalecer a você mesma. Metade do mundo é feito de mulheres, o que acontece se começarmos a escolher umas às outras?

15. O casamento pode ser uma armadilha para mulheres

Eu sei que tudo que você vê e tudo que te falam fazem você pensar que o casamento é a melhor coisa que pode acontecer na vida de uma menina e que quando ela se apaixona e se casa finalmente sua vida tem um “final feliz”. Mas na realidade relacionamentos são coisas complicadas, que exigem maturidade de todos os envolvidos para funcionar. E na nossa sociedade, quase sempre, o casamento é uma maneira de prender mulheres na função do cuidado da casa e dos filhos sem muita ajuda dos homens. O casamento também pode afastar uma menina se sonhos muito particulares que ela tenha porque ela será cobrada muito fortemente a dedicar-se integralmente ao “lar”. Então tenha em mente que tipo de vida e que tipo de realizações você deseja para si e como essas coisas vão combinar com uma vida compartilhada com outra pessoa, principalmente se essa pessoa for um homem. E lembre-se, não é se apaixonar, casar e ter filhos que precisa definir o objetivo da sua vida, por mais que queiram te convencer disso. Isso são coisas que acontecem ou não entre várias outras coisas que podem acontecer ou não na vida de uma pessoa. E sequer são as coisas mais importantes. O seu destino não é ser escolhida por alguém, o seu destino é escolher a você mesma e fazer o melhor que conseguir com isso.

16. A maternidade pode ser um fardo

Na nossa sociedade a maternidade pode ser (e quase sempre é) um fardo pesado para a mulher. Ser mãe não é a coisa mais importante da sua vida, não é algo que vá te completar em nada. Você vai ver e ouvir por aí que a maternidade é uma coisa sagrada, e que mães são seres especiais, mas isso é uma mentira. Ser mãe é um trabalho. E um trabalho dificílimo de realizar e que exige uma dedicação intensa e extrema e o envolvimento de várias outras pessoas. Quase não há apoio social nem institucional para as mães e o meninos não recebem a mesma pressão para assumir sua parte na responsabilidade de criar seus filhos deixando a mulher sobrecarregada. Crianças são uma responsabilidade de toda a sociedade e nenhuma mulher consegue dar conta de um filho sozinha sem abrir mão de muita coisa da própria vida. Somente com apoio é possível aproveitar bem a parte boa de ter filhos que é poder ajudar na formação de uma outra pessoa, vê-la crescer e poder curtir o amor que surge entre uma mãe e seu filho que é uma coisa bastante especial.

17. Você pode amar quem você quem quiser

Pode ser que você cresça e goste de meninos, pode ser que você cresça e goste de meninas, pode ser que você goste dos dois. E não tem nenhum problema com isso. Basicamente, de quem você gosta ou deixa de gostar, com quem você se relaciona ou não, é um assunto particular seu. Respeite seus sentimentos e desejos e não os reprima. Ainda vivemos em um mundo que tem dificuldade de aceitar todas as formas de amor. E mais, vivemos em um mundo que quer fazer parecer que meninos e meninas se amarem é a única forma de amor possível, aceitável e “normal” de existir, e isso simplesmente não é verdade. Você é uma pessoa. E pessoas se apaixonam por outras pessoas. Precisamos entender e respeitar isso. Portanto saiba que para nós não importa realmente com quem você vai se relacionar desde que isso resulte numa história bacana que faça você feliz. E lembre-se de levar essa regra com você: com quem as pessoas se relacionam não é um problema seu. Nunca desrespeite ninguém por causa disso e nem permita que outros a sua volta o façam.

18. Conheça seu corpo. E ame-o.

Conheça seu corpo. Cada pedaço dele, completamente. Ame seu rosto, sua pele, o formato do seu corpo. Não queira transformar nada. Se puder trabalhar algo dentro de você, trabalhe a aceitação. Você é ótima do jeito que você é. Sem subterfúgios. Saiba como funciona seu sistema reprodutivo, a maravilhosa máquina de gestar que você carrega. Entenda seu ciclo hormonal. Seus período fértil. Aprenda a conhecer como os hormônios te afetam, seu humor, sua libido. Nós mulheres somos cíclicas. E isso é lindo. Há todo um ciclo perfeito em funcionamento, onde cada etapa te transforma até culminar no momento da sua menstruação. É seu sangue. Seu organismo operando. Não tenha nojo do seu corpo. De nada dele. Aprenda a admirar-se no espelho. Conheça sua vulva, intimamente. Seu clitóris. Não tenha vergonha de explorar você — e apenas você — o que o seu corpo pode lhe proporcionar. 

19. Você merece ser amada

Sim, eu sei que ninguém ensina como se ama uma menina. Porque sempre parece que todos os outros são melhores, mais bonitos, mais importantes, mais valorizados. Que você só recebe atenção quando atende a um determinado tipo de expectativa que exige um preço muito alto para acatar. E que você parece sempre ter sempre que se esforçar para agradar, cuidar, resolver problemas. Isso não tem a ver com você. O mundo infelizmente manda sinais por todo o lado de que mulheres são meros objetos decorativos desimportantes. Meninas sempre são mostradas como fracas, dependentes, o trabalho das mulheres não tem visibilidade. Mas você merece ser amada. E eu não estou falando de desejo. De desejo sexual pelo seu corpo. Estou falando de amor. Amor incondicional. Que é aquele amor que não condiciona. Que te aceita exatamente do jeito que você é. Toda mulher merece ser amada assim e não deve aceitar menos que isso. Não tenha medo de ser inteira, completa, e exigir amor, cuidado, apoio, carinho, compreensão, ao invés de apenas dar. Nunca esqueça disso. Nunca aceite menos que isso.

20. Este ainda não é um mundo bom para as mulheres

Este é um mundo em que meninas ainda não são tratadas tão bem quanto os meninos. Portanto você deve estar sempre atenta para não sofrer injustiças e nem perder direitos. Deve estar vigilante para não sofrer abusos e violências. Há mulheres maravilhosas por aí brigando todo dia para tornar esse mundo um lugar melhor para meninas como você viverem. Mas por enquanto ainda é preciso tomar muito cuidado. Eu sei que o mundo não vai te tratar como você merece. Que vai tentar te obrigar a entrar num padrão de aparência física. De comportamento. Que vai tentar esmagar sua auto-estima, dizer que você não é boa o suficiente, o tempo inteiro. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer de que você é inferior aos meninos, menos especial, inteligente e poderosa que eles e que você deve obedecê-los e admirá-los. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer que as outras meninas são suas inimigas, que você deve combatê-las para agradar outros garotos. Mas eu sei também que você é uma menina única. Que você não é como todo mundo e que sua grande batalha e mostrar ao que você veio. Quem você é de verdade. Sem padrões. Sem manual de instrução a seguir. E eu sei que isso pode ser especialmente difícil porque você terá que lutar. Você nasceu uma menina e terá que lutar o tempo inteiro para ser quem você é. Saiba que você não está sozinha na sua batalha. Há outras meninas por aí, como você, preparadas. Vamos juntas.

O que é maternidade compulsória?

Você sabe o que é maternidade compulsória? Você consegue separar, no seu imaginário sobre maternidade, o que é uma necessidade sua e o que é socialização, pressão social, necessidade de adequar-se? Difícil, não é? A ideia de que somos completas apenas se parirmos, que a maternidade é sagrada, que a mulher é cuidadora, que bebês são criaturas angelicais entre outros é uma coisa tão enraizada que dificilmente conseguimos discernir quais são nossos desejos legítimos em relação a maternidade e o que é uma projeção social sobre como nós deveríamos nos sentir. E esse fenômeno, que acontece com absolutamente todas, tem nome e função: é maternidade compulsória que serve a nos manter reféns de um sistema de exploração reprodução reprodutiva.

O que significa dizer que a maternidade é “compulsória”?

Compulsório é um adjetivo com origem no Latim compellere, que significa “levar a um lugar, levar à força” — palavra formada por com-, que quer dizer “junto” e pellere, que quer dizer “guiar, levar”. O significado de “compulsório” é entendido como algo que obriga ou compele a fazer alguma coisa. Compulsório é aquilo em que há obrigação ou possui caráter obrigatório (…). Compulsório é toda força interna ou externa a uma pessoa que impele a realização de alguma coisa — o termo é mais usado para se referir às forças de ação externa, se tornando a qualidade daquilo que é feito obrigatoriamente.

O termo compulsório vem da mesma raiz que a palavra compulsão, algo imposto ou mesmo que deve ser cumprida forçosamente ou obrigatoriamente, sendo também uma tendência interior enorme por fazer algo, como, por exemplo, a compulsão por comida.

Quando usamos o termo “maternidade compulsória” para definir como a maternidade se apresenta para as mulheres estamos literalmente falando de “maternidade obrigatória”. Estamos dizendo que toda mulher é “obrigada” a ter filhos. E isso acontece de maneira subjetiva, através da nossa socialização e de maneira bem objetiva, pela impossibilidade de mecanismos que eficazmente impeçam mulheres de engravidar.

A impossibilidade de evitar uma gravidez — o jeito objetivo

A única maneira de uma mulher evitar ter filhos é usando algum método anticoncepcional. Essa possibilidade coloca todo o peso da contracepção nas costas da mulher, visto que a maior parte dos métodos foram desenvolvidos para ela utilize. Homens não foram socializados para se preocupar com a paternidade. Isso faz com que se excluam completamente do processo de contracepção. São ensinados que isso é uma responsabilidade exclusiva da mulher se abstendo de se prevenir contra gravidezes indesejadas. Se houver alguma falha, ele a culpa e simplesmente vai embora. E pior, a mulher costuma internalizar essa culpa por acreditar que realmente era dever exclusivo dela evitar a ocorrência de uma gestação. O que essa mulher não sabe é que é simplesmente impossível evitar sozinha que uma gravidez aconteça, não existe nenhum método que ofereça a ela, isoladamente, uma margem total de segurança.

Mulheres não aprendem a conhecer o próprio corpo, o seu ciclo hormonal, a entender como funciona seu sistema reprodutivo, saber quando estão ovulando. Tampouco existe informação de qualidade sobre todos os métodos contraceptivos disponíveis, seus prós, contras, eficácia, custo, efeitos adversos, forma de utilizar. O mais comum é que mulheres comprem pílulas anticoncepcionais por conta própria, ou recebam uma prescrição à revelia do ginecologista (que tampouco costuma fazer exames ou investigações mais detalhadas). E isso falando da assistência particular e de mulheres minimamente mais informadas e de maior poder aquisitivo.

O SUS distribui um número relativamente variado de métodos contraceptivos como pílula, diafragma e DIU, mas a distribuição esbarra, mais uma vez, na desinformação sistêmica. Apesar dos métodos estarem acessíveis não há orientação eficiente de como utilizá-los. Dificilmente o tema do controle reprodutivo e do planejamento familiar é abordado corretamente nas escolas, sensibilizando os jovens para a importância do seu uso correto, e para o conhecimento do funcionamento do próprio corpo.

Muitas mulheres também simplesmente não sabem que não podem ou não devem tomar remédios a base de hormônios que são os mais acessíveis. Esses remédios afetam profundamente como o organismo feminino funciona trazendo muitas vezes alterações significativas e desconfortáveis, além de casos em que o uso representa risco de doenças graves.

Além do mais, nenhum método contraceptivo existente, usado isoladamente, oferece 100% de eficácia. Nenhum. E mais, os métodos mais comuns de prevenção, a saber: pílula, camisinha, coito interrompido possuem taxas significativas de falha. Significativas.

Nos métodos cirúrgicos, que oferecem a melhor taxa de sucesso (mas não 100%, ou seja, nem vasectomia, nem laqueadura são completamente seguros), o atendimento público é demorado e burocrático. Para conseguir a esterilização cirúrgica pelo SUS é necessário ter mais de 25 anos de idade, ou, no mínimo, dois filhos nascidos vivos. O SUS também exige que um prazo de 60 dias seja respeitado entre a manifestação da vontade de operar e o ato cirúrgico em si e — a cereja do bolo — a autorização expressa do cônjuge (caso exista) para que a esterilização aconteça. A outra alternativa a isso é pagar pelo menos R$ 5000 reais por uma laqueadura em um consultório particular.

maternidade compulsória

Na prática, a maneira mais segura para evitar filhos é usar métodos combinados de barreira física, hormonal ou cirúrgica, ou seja: camisinha + pílula, camisinha + diafragma, camisinha + laqueadura + tabelinha. Camisinha sempre. Até porque você não quer engravidar, tampouco pegar alguma doença sexualmente transmissível.

E aí começa outro problema: desde quando homens estão dispostos a usar camisinha? Homens fazem de tudo para a mulher “começar a se prevenir” para que eles possam se livrar da responsabilidade do uso do preservativo. Fazer um homem usar camisinha numa relação estável é quase motivo para crise, é “prova de desconfiança”. E essa cultura que responsabiliza completamente as mulheres pela contracepção é de uma crueldade sem tamanho visto que é impossível para a mulher realizar essa tarefa sozinha. E quando ela “falha”, é culpabilizada e o filho é visto como uma punição social por causa do “erro” que cometeu, afinal “quem mandou abrir as pernas?”, “quem mandou não se cuidar?”.

E os homens são completamente excluídos dessa equação porque eles não são educados para assumirem responsabilidade sobre filhos, eles são educados para fertilizar mulheres, para “comer todas”. A função do homem é fazer sexo com o maior número de mulheres possíveis. A função das mulheres é parir e cuidar desses filhos. Essa é a armadilha que o patriarcado cria para nós.

E para completar o ciclo de impossibilidades, o Brasil é um dos países com a legislação mais rígida em relação ao aborto, que só é permitido, até a 12ª semana, em caso de estupro ou riscos de vida para o feto ou a gestante. Isso é sobre obrigar mulheres a serem mães, custe o que custar.

A socialização para a maternidade — o jeito subjetivo

Quando a menina nasce, um dos seus primeiros brinquedos (senão o primeiro) é justamente uma boneca, com quem vai realizar suas primeiras brincadeiras, possivelmente imitando sua própria cuidadora. Todas as pessoas em volta dessa criança vão se referir a essa boneca como “a filhinha dela”. Todas as pessoas vão se referir a essa menina como “mãe” dessa boneca. É a primeira função que é ensinada para uma criança do sexo feminino, pouquíssimo tempo depois dela nascer.

Dificilmente essa menina vai ver seu próprio pai dispensando tantos cuidados com ela quanto sua mãe. E ainda que seus pais não sejam os principais cuidadores muito certamente ela estará sob os cuidados de uma mulher: a avó, uma tia, as crecheiras. Se ela tiver irmãos homens, verá que eles brincam com carrinhos, bolas e nunca, ou quase nunca, são referenciados como “pai” de qualquer coisa. Muito menos de uma boneca.

Essa menina vai crescer e nos contos de fada verá que a princesa é feliz quando se casa e tem filhos com o príncipe. Ela assistirá desenhos, novelas, filmes, e em todos eles o final feliz envolve o casamento e uma barriga gestante. Vai ver por aí que entre a carreira e a família a mulher deve escolher a família. Que uma mulher bem-sucedida sem marido e filhos é infeliz. Que uma mulher solteira sem filhos está perdida, carente, desesperada.

Ela vai ouvir que a maternidade é sagrada. Que esse é o maior e mais verdadeiro amor do mundo. Que uma mulher só está completa quando tem filhos. Verá as mulheres adultas ao seu redor engravidando e festejando em público enquanto choram suas dores, dificuldades e frustrações no privado. Verá essas mulheres serem tratadas de maneira “diferente”, “especial”, por estarem grávidas e ingenuamente passará a acreditar que ser mãe realmente sacraliza. Ela será estimulada a superhomenagear a própria mãe, por sua “bravura”, “dedicação”, “cuidado”, “carinho” e será sutilmente orientada a não se importar com os atos negligentes e omissos do pai. Ela aprenderá que “mãe é mãe”, que “ser mãe é padecer no paraíso”, que “mãe é sagrada”, que “ser mãe é um dom divino”. Verá as pessoas adultas ao seu redor criticando o tempo inteiro as “mães negligentes” e começará a acreditar que a maior virtude de uma mulher é ser uma boa mãe.

Essa menina vai crescer e apesar de em toda parte ela ser bombardeada com o imaginário romântico do amor, da paixão, do casamento e da maternidade, dificilmente ela será orientada sobre sua sexualidade. Crescerá com pouca ou nenhuma informação de qualidade sobre sexo, vida sexual, relações afetivas, métodos contraceptivos, consentimento. E não, não é “todo mundo sabe disso hoje em dia” porque não se trata de saber como bebês são feitos. Se trata de conversar abertamente com essa menina sobre como são os relacionamentos heterocentrados. Sobre como os homens agem e como se proteger de verdade. Sobre conhecimento concreto e domínio sobre o próprio corpo.

Talvez essa menina ultrapasse a adolescência sem engravidar porque adiou o início da sua vida sexualmente ativa, talvez porque tenha introjetado tanto pavor de ter filhos antes de “estar preparada” que seja absolutamente rigorosa com métodos anticonceptivos. Ela vai chegar na vida adulta, ansiará por um relacionamento estável e uma vez nele começará a ser cobrada para ter filhos. Ela mesma dirá que está sentindo o seu “relógio biológico”.

Entenda: relógio biológico não existe. O nome disso é socialização. É uma vida inteira sendo ensinada, sendo doutrinada por todos os lados para a função da maternidade. Onde está o relógio biológico masculino? Está quebrado?

Mesmo que a mulher não se case, com o passar do tempo ela será cobrada para ter um filho. “Se não quer engravidar, então por que não adota?”. Não importa como, ela DEVE se tornar mãe. Nem que seja mãe de um pet. Uma vida inteira de doutrinação para que ele cuide e ame incondicionalmente outro ser humano não passam em branco para nenhuma mulher. E ela será levada a acreditar que toda mulher sem filhos possui um vazio existencial, uma vida sem propósitos, uma velhice infeliz e solitária.

E mais, mulheres ainda são levadas a acreditar que estão escolhendo esse destino, da maternidade, que realmente escolheram engravidar, ou falharam ao não se prevenir, e não são levadas a refletir sobre o que realmente constitui fazer uma escolha.

No entanto, perceba, escolher algo pressupõe eleger entre duas ou mais opções de peso equivalente, fazendo valer critérios pessoais de satisfação pessoal. Dessa forma, escolher entre entregar a carteira ao assaltante ou morrer, não é escolha. Escolher entre passar fome ou aceitar um subemprego também não. Outro cenário ilustrativo: Você entra na sorveteria, você quer sorvete, tem vários sabores. Todos parecem saborosos. Você indica que quer o de chocolate. Fez uma escolha.

Agora, se, hipoteticamente, você passou a sua vida inteira ouvindo que sorvete de chocolate é que é o melhor, que você só deveria ser tomar sorvete de chocolate e que se você não tomar sorvete de chocolate é uma péssima pessoa, que você só será uma pessoa completa quando tomar sorvete de chocolate. Se você fosse repudiada ao dizer que quer tomar um sorvete de outro sabor… será que poderíamos afirmar que tomar sorvete de chocolate é um desejo legítimo seu? Que é algo que você realmente quer e que está escolhendo?

Mulheres são induzidas o tempo inteiro a acreditar que estão realmente no controle de suas próprias vidas. Naturalizam toda pressão e toda a opressão que sofrem desde o nascimento. Vivem tão completamente submergidas num estado de permanente coação que sequer conhecem ou reconhecem uma situação em que possam realizar escolhas legítimas sobre si mesma. E essa falácia liberal da escolha é importante para manter mulheres permanentemente culpadas por tudo que acontece em suas vidas e para que não reconheçam quem é o verdadeiro responsável: o sistema machista e patriarcal em que estamos inseridas.

maternidade compulsoria

É possível dizer que aquela mulher que passou toda sua vida ouvindo que ser mãe é o ápice da própria existência; que cresceu vendo todos os modelos de como uma mulher deve ser necessariamente passando pela experiência da maternidade como redenção; que sabe que vai ser repudiada, questionada, criticada caso recuse a ideia de ser mãe; realmente escolheu gestar? Com todo o cenário que envolve a questão da maternidade, é possível separar o que é realmente desejo pessoal pleno do que é socialização para ser mãe?

Escolher pressupõe opções equilibradas. Quando as opções são ser uma pária social ou ceder a toda a pressão que a mulher sofre desde o nascimento é escolha? Quando as possibilidades disponíveis para garantir que a escolha de não ser mãe não são cem por cento seguras, quando não há NENHUM dispositivo que realmente impeça uma gravidez, quando não é possível interromper uma gestação não planejada, a maternidade é uma escolha?

Quantas mulheres realmente podem se dar ao luxo de sentir que escolheram ser mães? Que não se sentiram pressionadas pela família, pelo companheiro, pelo tal “relógio biológico”? Que não foram impelidas a alcançar o pseudo status de importância e “divindade” que atribuem às mães? Mulheres que engravidaram por estarem completamente mal orientadas sobre o funcionamento do próprio corpo, dos contraceptivos disponíveis e que carregavam sozinhas o fardo da contracepção que FALHA se não for realizado pelo casal conjuntamente?

Mulheres não “escolhem” ser mãe. Isto é imposto como o único destino digno possível para a vida delas. E um dia elas simplesmente atendem a essa profecia auto-realizável. Seja conscientemente ou não. Isso é maternidade compulsória. O que é facultativo, na nossa sociedade, é a paternidade.

20 coisas que você deve começar a dizer ao seu menino

Há algumas coisas que você deve começar a dizer ao seu menino durante sua socialização que certamente farão muita diferença sobre a maneira como eles irão para um mundo patriarcal que espera delas uma postura de dominação e violência contra mulheres. Vamos ver?

1. Não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”

Você sabia que antigamente rosa era uma cor de menino e que o azul é que era uma cor de menina? Cores são apenas cores. Adultos é que inventam classificações arbitrárias que de repente mudam. Você tem o direito de escolher o que gosta e o que não gosta, entre roupas, brinquedos, o seu jeito de ser. Não é porque você não gosta das “coisas de menino”, ou prefere as tais “coisas de meninas” que tem alguma coisa errada. Ao contrário. É perfeitamente normal gostar de tudo um pouco com tantas opções legais que têm por aí. Se meninas gostam de bola, gibis, videogames, carrinhos e aeronaves, são boas em jogos de tabuleiro, jogos de montar, por que você não pode se divertir com bonecas, jogos de cozinha, pintura e tudo mais? E brincar de casinha, comidinha ou princesas é super legal sim. Se você pode brincar com tudo, por que brincar só com a metade? Não faz sentido não é mesmo? O bacana é poder todo mundo brincar junto. Meninas podem correr, pular, se sujar. Elas não são mais lentas ou mais frágeis. Excluir meninas das brincadeiras só faz com que não se aproveite toda a diversão possível. Meninos e meninas são crianças e não há diferença nenhuma entre vocês que seja importante.

2. Crianças não namoram

Você não tem” namoradinhas”. Crianças não namoram. Crianças brincam e estudam. E você não precisa se sentir coagido quando disserem que você tem que conquistar as meninas da escola. Adultos podem ser muito inconvenientes. Você não precisa ceder se alguma coleguinha disser que “quer namorar com você” ou que é sua “namorada”. Crianças são amigas umas das outras. Apenas isso. E adultos, de maneira nenhuma “namoram” crianças. Namoro é coisa entre adultos. Há pessoas adultas que namoram e pessoas adultas que não namoram, inclusive. Quando você crescer vai gostar de alguma pessoa e vai poder namorar com ela. Uma pessoa de cada vez. Porque namorar é ter compromisso com o sentimento da outra pessoa e isso deve ser sempre respeitado.

3. Ninguém pode tocar o corpo de ninguém sem consentimento

Seu corpo é apenas seu e não deve ser tocado por ninguém sem seu consentimento expresso. Você não precisa receber nem dar abraços ou beijos se não quiser. Se alguém tocar o seu corpo sem pedir sua permissão se afaste e diga “eu não quero que você me toque. Ninguém pode tocar no meu corpo sem a minha permissão”. E conte tudo para um adulto da sua confiança. E sempre peça permissão antes de tocar o corpo de alguém, principalmente o de outra menina. Para qualquer coisa. “Posso pegar sua mão?”, “Posso te abraçar?”. Sempre peça. E se a resposta for não, é não. Não insista.

4. Quando alguém diz “não”, é não. Sempre.

Quando uma menina diz “não”, ela realmente está querendo dizer “não”. Se ela ficar em silêncio e não disser nada, também considere como um “não”. Se ela disser “talvez”, na dúvida, igualmente será um “não”. Não insista. Sempre garanta que as meninas estejam confortáveis e que estejam consentindo nas suas ações para com elas. É ruim quando não podemos fazer algo que queremos, eu sei. Mas acredite, a frustração passa e você sobreviverá. Meninas não devem nada a você só porque você quer e elas tem o direito de proteger-se. Respeite se elas tiverem medo ou desconfiança. Isso não é sobre você é sobre a experiência de mundo delas. Escute-as, aprenda e respeite se elas forem incapazes de confiar em você. Não é pessoal.

5. Defenda meninas

Meninas não são mais fracas, ou mais frágeis, ou incapazes de proteger-se mas tem um mundo absolutamente violento contra elas. E precisam de apoio porque alguns meninos crescem e tornam-se homens verdadeiros predadores , perseguindo-as, machucando-as de muitas maneiras. Então fique alerta, se você vir alguma menina em dificuldades, seja qual for, ajude-a. Isso vai significar muitas vezes ir contra os seus amigos. Pode significar muitas vezes que você vai estar sozinho contra o seu próprio grupo. Mas significa também que você não estará compactuando com toda a violência que homens comentem contra meninas e mulheres. Defenda meninas pelo motivo certo. Não porque “você é homem” e deve protegê-las porque elas são “frágeis”, mas porque você é uma pessoa que sabe que esse grupo está vulnerável a ataques e precisa de toda ajuda possível.

6. A violência não é um recurso válido

Violência é apenas violência. É injustificável. E não só violência física, mas também a verbal, psicológica. Não sinaliza que você é forte e sim que você é incapaz de resolver qualquer questão de forma honrada, respeitosa e civilizada. É sinal de fraqueza e não de fortaleza. Eu sei que as pessoas ao seu redor estão o tempo inteiro querendo que você se mostre “forte” e “bravo”, e que parecem admirar quem é agressivo e violento, mas isto está profundamente errado. Não devemos nunca admitir que ferir outras pessoas é uma hipótese viável. Violência só traz sofrimento. Se você sentir raiva, o que é normal, pode extravasar por outros mecanismos, mas a sua raiva não te dá o direito de agir violentamente. E agir sem violência não te torna um “covarde”, te torna uma pessoa boa. E também nunca admita que ninguém cometa nenhum tipo de violência contra você. Nem física, nem verbal, nem psicológica. Defenda-se. Procure ajuda. Proteja-se sempre.

7. Você é um menino, não um homem

Sabemos que ser criança neste mundo é muito complicado. E que ser menino tem uma carga bastante difícil de lidar. Que os adultos cobram que você aja como um “homem” e exigem de você posturas que você nem entende direito o que significa. Mas se você se sentir ameaçado ou coagido, seja por qualquer motivo, não guarde segredo. Conte conosco. Nós sempre acreditaremos em você e vamos ter proteger. Nós não queremos que você “aja como um homem”, isto é uma bobagem. Queremos que você seja criança, experimentando o mundo e descobrindo aos poucos o que você é, sua personalidade, seu temperamento, o que gosta ou não. Você não tem que ser nada agora exceto um aprendiz atento, não tem que atender expectativa de ninguém. Você ainda está crescendo, não deixe que esta cobrança sem sentido te defina.

8. Saiba cuidar de si mesmo

É importante saber escolher, comprar e cozinhar os próprios alimentos. Cuidar da limpeza da própria roupa. Saber como manter limpa a casa onde vive. É importante saber como cuidar-se. Ninguém tem nenhuma obrigação de fazer isso por você e se um dia você estiver numa relação de casamento essas responsabilidades devem ser divididas, portanto você deve saber executar a sua parte. Eu sei que você pode se sentir tentado a achar que meninas é que são responsáveis pelas tarefas cotidianas e domésticas, porque é muito do que você vê em toda parte. Mas isso não é correto e nem justo. Talvez você encontre meninas que acreditem que é obrigação delas fazer as coisas por você. Não permita isso, isso é exploração. A verdadeira autonomia tem a ver com você ser capaz de cuidar completamente de si sem transferir essa responsabilidade para ninguém, muito menos para mulher alguma. Responsabilize-se e aprenda a cuidar de si mesmo.

9. Meninas não são definidas por como se parecem

Meninas são inteligente, espertas, engraçadas, amigas, divertidas. Tem todas as qualidades e defeitos que qualquer pessoa tem. Meninas são pessoas. Amigas, companheiras de aventuras. A aparência delas não é importante. Ser bonito ou ser feio não é a principal qualidade de ninguém. E a aparência de uma menina não é um assunto que lhe diga respeito. Assim como as roupas que ela veste. Meninas não existem para serem objetos decorativos do ambiente. Se ela é alta, baixa, gorda, magra, branca, negra, realmente não é da sua conta. Nada disso define quem uma menina é. Eu sei que você será bombardeado com imagens e estímulos que vão te fazer cobiçar meninas de um determinado padrão, e que você vai aprender que o corpo delas é o mais importante a ser desejado. Mas focar nisso fará apenas que você deixe de se concentrar na parte mais importante de qualquer pessoa que é sua personalidade, inteligência, ideias, e a maneira como essa pessoa consegue fazer você se sentir com o jeito que ela tem. Meninas são pessoas e não coisas. Respeite-as sempre como o ser humano completo que elas são.

10. O universo não gira ao redor do seu umbigo

O mundo vai fazer você pensar que está no centro do universo. Tudo o que você lerá, assistirá, ouvirá falar, tem a ver com pessoas como você. Outros meninos. Suas conquistas, suas descobertas. Você verá outros homens em cargos importantes, vivendo aventuras, protagonizando por toda parte. Sim, é muito fácil acreditar que tudo é sobre você, seus sentimentos e suas possibilidades. Mas não é. Mulheres não possuem o mesmo status que os homens porque elas foram proibidas por muito tempo de fazer as mesmas coisas que os homens sempre fizeram. E com muita luta elas buscam ocupar espaços na sociedade em que vivemos. Então entenda que você não é melhor, nem especial, nem mais importante. Você apenas possui uma coisa chamada privilégio, que faz com que você seja tratado de forma melhor por todos simplesmente porque nasceu um menino.

11. Você não precisa disfarçar seus sentimentos

Nós somos responsáveis por lidar com nossas próprias emoções e nosso grande desafio é conseguir nos conhecer para que elas não nos levem a tomar más decisões. Somos pessoas, falhamos, estamos aqui aprendendo uns com os outros a sermos pessoas melhores. Não tenha medo de expor seus sentimentos. Converse, entenda o que é tristeza, alegria, raiva, dor, angústia, medo, aprenda a reconhecer isso dentro de si. Seja autêntico e honesto consigo mesmo. Você não tem que provar nada para ninguém escondendo ou fingindo seus sentimentos. Você não precisa substituir sua dor, sua confusão, tristeza, pela raiva cega apenas porque esse é o único sentimento desejado em meninos. Deixe sua sensibilidade, delicadeza, amabilidade e gentileza transparecerem, não significa que você é nada, apenas que é uma pessoa empática e muito bacana. Fragilidade não é defeito. Sensibilidade também não. Muito pelo contrário. Nos dias de hoje, essas características são fundamentais pra gente viver juntos em sociedade.

12. Você não precisa disfarçar sua personalidade

Seja educado. Educação, polidez e gentileza são virtudes importantes para todos os seres humanos conviverem em sociedade. Mas você não precisa fingir ser mais extrovertido, ou firme, ou ativo, ou viril do que você é. Você não tem que atender as expectativas de ninguém mostrando ser alguém que você não é. Você não precisa “agir como um homem”, afinal o que isso significa? Você é um menino. Uma criança. Uma pessoa em formação. Você não precisa se preocupar com nada além de aprender sobre o mundo, se divertir, brincar, e não tem que provar nada para ninguém. Você é amado exatamente do jeito que é e será amado sempre. Ninguém espera que você seja nada além de uma pessoa feliz que consiga viver na sociedade respeitando suas regras.

13. Saiba escolher seus amigos

Este é um mundo especialmente difícil para um menino viver em grupo. Os outros garotos vão impor regras de comportamento bastante equivocadas para que você seja aceito entre eles. Eles podem pedir que você maltrate outras pessoas, especialmente meninas. Vão incentivar você a provar sua “macheza” demonstrando uma abordagem profundamente abusiva para com o corpo e o espaço delas. Eles vão incitar você a humilhar e até agredir outros meninos que não se mostrarem tão “machos”. Vão querer que você demonstre “força” sendo agressivo com os outros e vão premiar esse comportamento fazendo você se sentir muito querido e admirado. Este é um preço que não vale a pena pagar, acredite. Saiba escolher amigos que prezem pelos mesmos valores que você e não tenha medo de afastar-se daqueles que comportam-se com agressividade e violência. Existe sim o que é o certo e o que é o errado. E maltratar pessoas certamente é uma coisa errada, por mais que isso seja exaltado em certos grupos. E não tenha medo de confrontar comportamentos dos seus amigos que você sabe que são inadequados. Afinal, de que lado você quer estar? Que tipo de garoto você quer ser?

14. Priorize mulheres

Existem mulheres por aí, que pesquisam produzem, constroem, inventam, criam, cantam, interpretam, escrevem. Eu sei que você está completamente acostumado a só ver homens por toda parte como protagonistas a ponto de acreditar que o mundo somente foi realizado por eles. Eu sei que tudo que você aprende sobre meninas é que elas são inferiores a você, mas isso é não é a verdade. A história é contada pelos vencedores e todo o legado das mulheres foi usurpado. Suas conquistas e descobertas foram apropriadas ou simplesmente escondidas. Muito do mundo que conhecemos foi realizado também graças a muitas mulheres que nos antecederam tendo o triplo de dificuldade que qualquer homem porque tiveram que enfrentar muita resistência. Portanto seja um aliado, priorize mulheres. Compre, assista , leia, contrate o trabalho de outras mulheres. Não acredite se te disserem que algo feito por uma mulher é inferior, ou imperfeito. Não boicote, desvalorize ou subestime o trabalho de mulheres. Coopere com elas.

15. Tenha responsabilidade emocional

Você vai ser estimulado a se relacionar com o maior número de pessoas que conseguir e ao mesmo tempo, como se isso provasse que você é uma pessoa muito poderosa. E a pressão pode ser tão forte que você se sentirá frustrado e rejeitado caso não consiga concretizar esse tipo de comportamento. Não caia no erro de assumir o papel de caçador e tratar os outros como se fossem uma caça. Permita-se viver boas histórias. Histórias que você gostaria de recordar com carinho no futuro. Relacionamentos são coisas complicadas que exigem dedicação, comprometimento e honestidade. Não tenha medo de ser verdadeiro e expor seus sentimentos. Seja honesto sempre. Aprenda a lidar com o fato de que algumas pessoas vão querer estar com você e outras simplesmente não vão querer, e tudo bem por isso. Ninguém te deve nada. Não te devem carinho, atenção, afeto. Não te devem cuidado. Não são sua propriedade. Ninguém tem obrigação de gostar de você ou de estar com você. E você deve respeitar e aceitar isso. E deve também respeitar o sentimento de quem se afeiçoar a você, não usando isso a seu favor. O nome disso é responsabilidade emocional.

16. A paternidade é um compromisso intransferível

Criar uma criança para este mundo é uma das coisas mais importantes que uma pessoa pode fazer. Embora você possa ter a percepção que cuidar de bebês é um assunto de mulheres, esta é uma tarefa também de homens. E se um dia você quiser viver a experiência de ter um filho saiba que esse é um compromisso irrevogável e intrasferível, da qual não podemos fugir. Ser pai é para sempre e um filho é uma coisa muito séria, é um ser vulnerável que estará contando com sua presença, apoio, cuidado e amor. E essa experiência pode ser incrível sim porque é realmente uma grande responsabilidade criar pessoas para este mundo.

17. Você pode amar quem você quiser

Pode ser que você cresça e goste de meninas, pode ser que você cresça e goste de meninos, pode ser que você goste dos dois. E não tem nenhum problema com isso. Basicamente, de quem você gosta ou deixa de gostar, com quem você se relaciona ou não, é um assunto particular seu. Respeite seus sentimentos e desejos e não os reprima. Ainda vivemos em um mundo que tem dificuldade de aceitar todas as formas de amor. E mais, vivemos em um mundo que quer fazer parecer que meninos e meninas se amarem é a única forma de amor possível, aceitável e “normal” de existir, e isso simplesmente não é verdade. Você é uma pessoa. E pessoas se apaixonam por outras pessoas. Precisamos entender e respeitar isso. Portanto saiba que para nós não importa realmente com quem você vai se relacionar desde que isso resulte numa história bacana que faça você feliz. E lembre-se de levar essa regra com você: com quem as pessoas se relacionam não é um problema seu. Nunca desrespeite ninguém por causa disso e nem permita que outros a sua volta o façam.

18. Entenda como os corpos funcionam

Conheça seu corpo. Cada pedaço dele, completamente. Aprenda como ele funciona. Aprenda onde dói, onde formiga, onde faz cócegas, onde relaxa, onde é muito bom. E aprenda sobre o corpo das meninas. O que há de igual e o que há de diferente. Saiba que meninas quando crescem possuem tantos pelos quanto você e que isso é tão natural nelas quanto é em você. Meninas tem cheiros, fluidos, gases, como você. Mais semelhanças que diferenças. Aliás, conheça a fundo as diferenças. Saiba como funciona seu sistema reprodutivo, e como funciona o sistema reprodutivo delas. Saiba que meninas são cíclicas, menstruam, entenda como e porquê isso acontece e como isso é fantástico. E saiba que acima de tudo que o corpo, qualquer corpo, não te pertence, é inviolável e merece absoluto respeito. Você vai sempre ser ensinado que o sexo é uma parte muito importante da sua vida e que você deve se preocupar com isso talvez mais do que você gostaria. Respeite a si mesmo, seu tempo, seus processos

19. Aprenda a amar mulheres

Eu sei, ninguém te ensinou como se ama meninas. Em toda parte você só escuta que elas são chatas, inferiores, frágeis. Que são fúteis, burras, só se interessam por coisas superficiais. O que você vê na televisão é que elas só servem para decorar o ambiente sendo belas. Que elas não servem para ser admiradas como pessoas, mas sim como um objeto bonito. Que elas se dividem entre as que vão te amar e servir e as que vão te rejeitar e fazer sofrer. Que elas devem cuidar de você não importa o que você faça. Eu sei que é difícil amar essa imagem que te vendem de como as meninas são. Você aprende que mulher é um xingamento não é? Te chamam de “menininha” quando querem te diminuir. Só que nada disso é verdade. Meninas são pessoas. E pessoas maravilhosas, inteligentes, cheias de particularidades fascinantes. E você deve amá-las incondicionalmente. Não por sua beleza, ou por desejo ao seu corpo, ou por ser cuidado, ou para ter alguém para te servir. Mas por elas serem… pessoas. Como você. Cheias de particularidades. Defeitos e qualidades. Pessoas que serão suas amigas, companheiras de trabalho, de diversão, e de aventuras. Te ensinar a odiar mulheres é um projeto que você deve recusar. Desconfie de qualquer proposta que coloca mulheres numa posição inferior.

20. Este ainda não é um mundo bom para as mulheres

Este é um mundo em que meninas ainda não são tratadas tão bem quanto os meninos são tratados. Portanto você deve estar sempre atento para não cometer injustiças e nem retirar direitos das meninas. Deve estar vigilante para não cometer abusos e violências. Há mulheres maravilhosas por aí brigando todo dia para tornar esse mundo um lugar melhor para meninas viverem. Não colabore para uma cultura que as obriga a cumprir um padrão de aparência física e comportamento só para agradar você e não seja mais um a tentar esmagar a autoestima delas, fazendo-as pensar que não são boas o suficiente. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer de que você é superior às meninas, mais especial, inteligente e poderoso. E que meninas devem obedecê-lo, admirá-lo e servi-lo. Que você verá meninas competindo pela sua atenção e isso vai fazer você se sentir único. Mas resista aos seus privilégios da maneira que puder porque são eles que tornam o mundo um lugar muito perigoso para meninas. Muitos meninos crescem e se tornam homens que perseguem, assassinam, violam, e fazem muito mal para as mulheres. Você não precisa se tornar parte desse problema. Você é um menino bom. Você pode se tornar um homem bom.

Do risco de se perder dos filhos quando a adolescência chega

Há sempre o risco de se perder dos filhos quando a adolescência chega. Este é um período extremamente delicado para toda a família. Para o adolescente, que está passando por uma série transformações físicas, emocionais e sociais, para os pais que têm aprender como desenvolver um relacionamento com uma pessoa completamente diferente daquela criança que estavam acostumados a lidar.

Fatalmente nessa fase, é comum acontecer algum afastamento entre pais e filhos. Os jovens se isolam porque querem autonomia, querem se desgarrar do sentimento de dependência dos pais e projetar uma imagem de auto-suficiência. Ou sentem-se incompreendidos. Ou simplesmente querem ficar consigo mesmos. Ou tudo isso junto.

Os pais, que estavam acostumados com uma criança que minimamente obedecia suas ordens, muitas vezes não sabem lidar com os surtos de independência e autonomia da cria. De repente se deparam com um mini adulto, cheio de vontades, questionando, rejeitando suas intervenções e arrumando problemas. Uma criaturinha que antes se conhecia como a palma mão e que de repente não quer mais ninguém por perto, se isola, fica voltado para coisas que você não conhece ou não se interessa.

Ou então a criança vai se tornando um adolescente “exemplar”, “que não dá trabalho”, simplesmente porque não apresenta demandas, se vira sozinho e “é responsável”, e os pais acreditam que não há necessidade de zelar por eles porque eles “estão bem”. E ainda, simplesmente os pais não se interessam mais tanto pela pessoa adulta que o filho vai se tornando. Que não é mais uma criança fofa e graciosa que os idolatrava cegamente. E dão sua participação na educação do jovem meio que por concluída.

É compreensível que haja também um certo alívio por finalmente ver terminada fase de maior dependência funcional e ser possível algum descanso para os pais, já que minimamente aquela pessoa que dependia de você para tudo, agora se banha, come sozinha, e veste-se sem ajuda. E aí na correria da sobrevivência, muitas vezes é difícil abrir mão da aparente calmaria para ficar investigando como está a performance do filho no planeta adolescência.

É muito difícil sim.

Por outro lado você tem o adolescente. Que até pouquíssimo tempo mal limpava a bunda sozinho. Está crescendo, o corpo está mudando. Talvez fisicamente já esteja quase tão desenvolvido como um adulto. E isto o confunde. O mundo (inclusive os pais) muitas vezes o cobra como se fosse um adulto, mas o restringe como se fosse uma criança. Isto o angustia. A mídia não ajuda. Essa criança acha que cresceu, que sabe muito. Mas ela se sente terrivelmente só e perdida. É um ser híbrido. Que não recebe mais o mesmo carinho, atenção e ponderação que recebia quando era criança. Mas também não recebe o mesmo status, deferência e consideração dos adultos.

Este ser intermediário, chamado adolescente, é um poço de medos e alegrias. Começa a conquistar o mundo sem ainda ter tantas responsabilidades. E tem o mundo lá fora. Esperando tanto dele. Tem as outras pessoas e suas expectativas. Tem os padrões toscos de feminilidade e masculinidade. Um adolescente é o retrato do medo da rejeição. É um bicho trocando de casca, absolutamente frágil. Ele não sabe ainda o que está se tornando. Está vulnerável, tem medo de não ser querido. Medo de decepcionar pais. Medo de não ser aceito pelos amigos. Medo de não estar se tornando um novo bicho bom e belo, com uma carapaça forte o bastante para seguir sobrevivendo.

Seu filho adolescente precisa de você. Talvez tanto ou mais do que quando era um bebê indefeso. Ele precisa saber que ainda é amado mesmo mudando. Que será amado não importa o que ele se torne.

É tão fácil se perder dos nossos filhos quando eles são adolescentes. Eles fogem dos pais e se refugiam longe. É tão fácil não estabelecer diálogo, não criar intimidade, não participar do seu mundo. Ver o tempo passar e de repente ter um adulto completamente desconhecido ali morando na mesma casa. Que sequer consegue ser seu amigo. Que sequer consegue sentir-se pertencendo àquele núcleo familiar.

As experiências que temos na adolescência são tão determinantes para a nossa vida. Tão indicativas sobre nossos vícios e virtudes. As influências que recebemos são tão decisivas. O professor que nos encanta e faz com que apaixonemos pelo curso que vamos fazer na faculdade. A primeira paixão. Os amigos que fazemos ou não conseguimos estabelecer.

Quanto medo, insegurança, depressão, baixa-estima, vícios, se instalam justamente nessa época da vida?

Quantos relacionamentos abusivos, assédios?

Quantos suicídios? Distúrbios alimentares?

Adolescentes não são mais crianças. Seus corpos estão mudando, eles têm desejos, capacidade de performar de maneira autônoma para cuidar de suas necessidades básicas pessoais. Tampouco adolescentes são adultos. Eles não tem experiências, parâmetros, conhecimento, amadurecimento emocional. E estes jovens estão absurdamente sozinhos. Desorientados. Desassistidos. Buscando respostas no Google para suas dúvidas e temores.

Há um certo vácuo geracional criado pela rápida disseminação das tecnologias de comunicação nos últimos anos. Os pais de adolescentes de hoje são ainda bastante analógicos e podem não ter uma noção clara dos desafios enfrentados pelos filhos que são bem diferentes dos desafios que eles enfrentaram. É um mundo nudes, exposição de intimidades, bullying virtual, hackeamento. Um mundo em que a rede de amigos é virtual e é na casa de centenas de pessoas. Em que com um clique um mundo de informação instrumentaliza esse adolescente sobre o tema que ele tiver interesse. Para o bem e para o mal. Possibilidades ilimitadas.

Os pais precisam estar próximos mais do que nunca. E vigilantes também. Atentos. Participativos. Ajudando esse jovem a transitar no mundo fortalecendo seus valores. Esse é um momento da educação parental em que todos os valores recebidos vão ser testados e reforçados ou renegados. É um momento em pais em filhos podem se aproximar e estabelecer uma relação de parceria definitiva ou se afastar. E não falo de se tornar “amigo” do seu filho adolescente, e sim de manter-se firme numa relação de carinho, aceitação e orientação, que permita que esse jovem saiba, acredite e aceite que os pais estão lá por ele.

Não se afaste do seu filho só porque ele cresceu, ou já que ele cresceu. Esteja lá por ele. Ele precisa muitíssimo de você, acredite. Talvez, mais do que nunca. Não se perca dele. Mantenha-o aconchegado, acolhido, protegido pela certeza de que você o ama e o aceita.

Por mais difícil que seja.