Escritora, feminista, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e das crianças. Criadora do projeto Militância Materna, falo sobre feminismo, maternidade e infância, disputando consciências por um mundo melhor. Vamos juntas?
Sempre me perguntam como eu ensino meu filho sobre gênero. Uma boa resposta é a história sobre como meu filho aprendeu que era um menino. É muito fácil constatar que ensinamentos sobre estereótipos de gênero são absolutamente desnecessários para crianças.
Até os 3 anos meu filho não sabia “oficialmente” que era um menino. Nunca tinha surgido uma oportunidade ou a necessidade que eu lhe desse essa informação.
Vamos pensar um pouco: que diferença faz para uma criança, principalmente uma muito jovem, se ela é menino ou menina?
Uma vez, ele tinha cerca de dois anos e estava vendo um desenho aleatório na TV onde tinha um casal de gatos. Os animais eram desenhados de maneira absolutamente igual sendo diferenciados somente por um efusivo batom vermelho e um par de longos cílios (recurso usado para demarcar qual seria a fêmea). Num determinado momento, só a fêmea ficou enquadrada na tela e meu filho disse “olha o gatinho”. Meu primeiro impulso foi corrigir e dizer “é uma gatinha, ela é menina”, mas me contive. O que eu ia dizer para ele ali? Que aquela gata era fêmea porque usava batom? Que era porque tinha cílios compridos e olhos oblíquos para simular sensualidade? É isso que define uma fêmea? Batom nos lábios? Que diabos isso queria dizer? E a ausência de sentido dessa explicação fez com que meu alerta vermelho acendesse para que eu não colocasse meus pés na longa estrada do reforço dos estereótipos de feminilidade e aí eu me calei. Ele tinha 2 anos, em nada, absolutamente nada, a informação que eu ia dar espontaneamente sobre ser um menino ou uma menina, ou mesmo se os amiguinhos com que ele brincava eram meninos ou meninas faria diferença para ele.
Já nessa época eu comecei a instruí-lo sobre o próprio corpo, com noções de prevenção de abuso, ensinando o nome de todas as partes corpo, quais deveriam ter mais atenção, ser mais protegidas. Isso aumentou a consciência corporal dele e o um dia, no banho, veio a pergunta inevitável: “mamãe, cadê o seu piupiu?”. “Eu não tenho piupiu, tenho “perereca” (nos meus sonhos engajados eu planejava dizer que mulheres tem “vulva” bla bla bla, mas foi o que saiu). Meu filho fez alguns instantes de silêncio e a questão definidora, que importa, surgiu: “por que?”. “Porque eu sou uma menina. Meninas tem perereca e meninos tem piupiu”. “O papai tem piupiu?”, ele perguntou. “O papai tem piu piu.”, respondi. “O papai tem piupiu, ele é menino. A mamãe tem peleleca (sic), ela é menina!”, ele aferiu.
A partir daí seguiu-se um período entre engraçado e constrangedor porque ele passou um tempo perguntando para pessoas mais próximas se elas tinham “pinto” ou “perereca” e checando a informação sobre ser menino ou menina. E aos poucos ele passou a observar também outros caracteres secundários como presença de barba ou seios.
Isto não significa, tampouco, que eu o estava criando “sem gênero”, ou coisa parecida, isso é impossível. Crianças são bastante perceptivas e muito rapidamente ele percebeu que ele mesmo era um menino, e que o grupo de pessoas que era classificado como “menino”, a qual ele pertencia, tinha códigos próprios de comportamento e vestimenta, assim como o grupo que era classificado como “menina”. Ele aos poucos (para o bem e para o mal) vai percebendo qual é a sua “turma”.
Eu, da minha parte, sempre busquei comprar todo tipo de brinquedos e sempre privilegiei critérios como conforto e qualidade para escolha de suas roupas, por exemplo, mas — obviamente — acabo comprando suas roupas prioritariamente na seção masculina (embora ela vista feliz várias camisetas das primas). Quando a gente se esforça (e realmente demanda muito esforço, muita desconstrução pessoal) para socializar uma criança minimizando os impactos dos estereótipos de gênero, é meio assim.
Na real, a gente entende que não existe nem uma pergunta para qual a resposta seja: “porque você é menino / menina”, assim como nenhuma orientação específica a ser dada . Exceto para questões biológicas específicas. Por exemplo: “por que eu faço xixi sentada?”, “porque você é menina, tem uma vulva, e anatomicamente é mais confortável fazer assim, meninos podem fazer das duas maneiras, em pé e sentado, porque eles têm um pênis que facilita anatomicamente”. É isso. Todo o resto (“meninos não choram”, “meninas não gritam”, “meninos não brincam de boneca”, etc, etc) são estereótipos, completamente ausentes de sentido lógico, que não seja condicionar o comportamento dessas crianças para dominação/submissão.
Meu filho agora está com 6 anos e há coisas que — até agora — ele conseguiu passar em branco. O mundo dele é muito mais dividido em um mundo de crianças e adultos que de meninos e meninas. Cores, por exemplo. As preferidas dele são azul e vermelho, e ele acha rosa uma cor linda. Ele gosta de Pokemon tanto quando da Barbie Sereia (e acha o cabelo delas “lindo”). Tem vários heróis e heroínas. E uma vez eu perguntei “me diz uma coisa que seja uma coisa de menina?”, e ele respondeu: “não tem nada, só a perereca”. Eu ri. Tá eu também chorei. Porque isso é uma vitória pessoal que eu trago — até aqui. Amanhã eu não sei. É uma batalha diária. A vida está aí, socialização não é algo que a gente consiga controlar completamente. Existe o meu menino, e existe o mundo. E o mundo é patriarcal e ardiloso.
Mas nós podemos sim, ensinar a nossas crianças que elas são meninos e meninas, por um detalhe anatômico que não faz a menor diferença pra elas porque são crianças. E podemos sim poupá-las o máximo possível da socialização de gênero, minimizar este impacto enquanto conseguirmos. Deixar pelo menos a infância delas mais leve, mais rica de experiências. Porque o que gênero ensina é sobre opressão, não é sobre liberdade. É sobre meninos serem fortes e meninas serem fracas. Sobre meninos odiarem rosa — e odiarem meninas. É sobre meninas serem princesas lindas, frágeis, à espera de um menino que vai querer casar com elas. Sobre meninos serem agressivos uns com os outros. Gênero ensina sobre quem manda e quem obedece. Ensina hierarquia. E crianças são apenas crianças. Nada disso faz sentido ou faz falta pra elas. Somos nós adultos que, irrefletidamente, fazemos um esforço continuado nessa domesticaçao. Capatazes que somos, do patriarcado. Adultizando crianças, querendo transformá-las em homens e mulheres em miniatura, em hábitos, vestuário, e comportamentos.
Sexo e gênero são coisas bastante distintas que tem — propositadamente — se confundido na mente de todas. Precisamos demarcar essa diferença. Porque nosso sexo não deveria nos condicionar a nada. Não condiciona como somos, o que gostamos, sentimos, queremos. E gênero é uma opressão. É sobre cumprir um papel social baseado no seu sexo. Estereótipos de gênero são uma prisão. Vamos criar nossas crianças livres para serem o que precisarem ser para estarem felizes. É mais simples do que parece, basta tentar.
Há coisas fundamentais para se dizer a meninas durante sua socialização que certamente farão muita diferença sobre a maneira como elas irão para um mundo patriarcal que espera delas uma postura de subalternidade e submissão aos homens. Vamos ver?
1. Não existem “coisas de menina” e “coisas de menino”
Você sabia que antigamente azul é que era uma cor de menina? E que o rosa é que era uma cor de menino? Cores são apenas cores. Adultos é que inventam classificações arbitrárias que de repente mudam. Você tem o direito de escolher o que gosta e o que não gosta, entre roupas, brinquedos, o seu jeito de ser. Não é porque você não gosta das “coisas de menina”, ou prefere as tais “coisas de menino” que tem alguma coisa errada. Ao contrário. É perfeitamente normal gostar de tudo um pouco com tantas opções legais que têm por aí. Você pode correr, pular, se sujar, gritar, gargalhar, subir em coisas. Você é rápida, é esperta, e é forte. Você também pode ser uma princesa, ou uma heroína, ou o que a sua imaginação permitir. Ou brincar de casinha e comidinha. E se os meninos quiserem brincar disso com você também, que bacana! Quando todos brincam juntos é sempre muito mais legal. Também não existe “brinquedo de menina” e “brinquedo de menino”. Você pode brincar com bola, videogames, carrinhos e aeronaves. Pode brincar com super-heróis, jogos de tabuleiro, jogos de montar. Ler gibis de ação e aventura. Bonecas, jogos de cozinha, pintura também são super divertidos. Você pode gostar do que quiser, ser como quiser, e está tudo bem. Você é apenas uma menina e deve experimentar o mundo.
Você não tem namoradinhos. Criança não namoram. Crianças brincam e estudam. Você não precisa se preocupar com seu comportamento ou sua aparência para que alguém “goste de você e queira namorar com você”. Você não precisa ceder se algum amigo seu disser que “quer namorar com você” ou que é seu “namorado. Crianças são amigas umas das outras. Apenas isso. E adultos, de maneira nenhuma “namoram” crianças. Namoro é coisa de adultos. Há pessoas adultas que namoram e pessoas adultas que não namoram, inclusive. Quando você crescer vai gostar de alguém e vai poder namorar, se você quiser. Alguém que também goste de você exatamente como você é, te respeite, te admire e queira estar com você.
3. Ninguém pode tocar o corpo de ninguém sem consentimento
Seu corpo é apenas seu e não deve ser tocado por ninguém sem seu consentimento expresso. Você não precisa receber nem dar abraços ou beijos se não quiser. Se alguém tocar o seu corpo sem pedir sua permissão se afaste e diga “eu não quero que você me toque. Ninguém pode tocar no meu corpo sem a minha permissão”. E conte tudo para um adulto da sua confiança que possa ajudá-la com isso. E não se preocupe se o outro vai ficar “triste”. Fazer algo que você não quer só para agradar também é uma forma de abuso psicológico com você mesma. Nunca diga “sim” quando você não tem certeza absoluta do que deseja. E sempre peça permissão antes de tocar o corpo de alguém, principalmente o de outra menina. Para qualquer coisa. “Posso pegar sua mão?”, “Posso te abraçar?”. Sempre peça. E se a resposta for não: é não. Não insista.
4. Você tem o direito de dizer “não”. Use-o sem moderação.
Recusar é tão ou mais importante quando consentir. Se algo a incomoda ou a deixa desconfortável, diga ‘não’. E se alguém não estiver respeitando o seu ‘não’ se afaste e comunique outros adultos. Você não precisa se preocupar em agradar pessoas. Não precisa concordar ou consentir com algo para preservar os sentimentos de ninguém. Os seus sentimentos e a sua segurança física e emocional devem sempre vir em primeiro lugar. Você não precisa aceitar ou concordar com tudo o que dizem que você deve fazer, ser ou sentir. Principalmente se estas orientações levarem você a situações desagradáveis. Na dúvida, diga não e se proteja.
5. Proteja-se e defenda-se sempre
A primeira coisa que você levar em consideração em qualquer relação que você esteja é a sua própria integridade física e emocional. Se alguém fere seu corpo ou fere seus sentimentos, defenda-se, proteja-se, avise outras pessoas, afaste-se. Não importa se essa pessoa é um amigo, é um professor, é um de seus pais. Não aceite chantagens emocionais. Você é forte, não precisa de um homem protegendo você, e é importante que você saiba a proteger a si mesma. Que aprenda a reconhecer ocasiões mais inseguras, seja capaz de criar um círculo de confiança e estratégias de proteção para si mesma. Que cultive uma desconfiança saudável das pessoas e situações. Afaste-se sempre de pessoas autoritárias, controladoras, ciumentas e abusivas. Sempre. Nada disso é amor. Infelizmente este é um mundo muito perigoso para meninas. É um mundo onde pessoas são atacadas, assediadas, violentadas, apenas por serem mulheres. Você é uma menina forte, inteligente e sempre será amada por ser quem você é. Não aceite ser tratada por menos do que você merece. E você é uma menina fantástica que merece ser tratada com total respeito por todos. Fortaleça seu coração e aprenda a lutar.
6. Nada justifica o uso da violência
Violência é apenas violência. É injustificável. Não sinaliza que alguém é forte e sim que é incapaz de resolver qualquer questão de forma honrada, respeitosa e civilizada. É sinal de fraqueza e não de fortaleza. Se você sentir raiva, o que é normal, pode extravasar por outros mecanismos. Ferir outras pessoas é absolutamente inadmissível. E nunca, em hipótese nenhuma, admita que ninguém cometa nenhum tipo de violência contra você. Nem física, nem verbal, nem psicológica. Mesmo que chamem de amor. Mesmo que peçam desculpa. a dor existe, ela é real e você não precisa suportar nada. Defenda-se. Procure ajuda. Proteja-se sempre.
7. Você é uma criança e não uma “mocinha”
Sabemos que ser criança neste mundo é muito complicado. E que ser menina tem uma carga bastante difícil de lidar. Que os adultos cobram que você aja como um “mocinha” e exigem de você posturas que você nem entende direito o que significa. Que querem que você tenha responsabilidades, que aprenda desde cedo a arrumar, limpar, que você muitas vezes já é obrigada a cuidar de crianças menores. Que você é levada a ter um comportamento de pessoa adulta, inclusive nas roupas e acessórios que te dão. Saiba que isso é errado. Você é uma criança e tem direito a viver sua infância como uma. Tem direito a brincar despreocupadamente sem ter que cuidar de nada nem de ninguém. Tem direito a ter seu corpo de criança protegido. Este é o momento de você aproveitar, experimentando o mundo e descobrindo aos poucos o que você é, sua personalidade, seu temperamento, o que gosta ou não. Você não tem que ser nada agora exceto uma aprendiz atenta, não tem que atender expectativa de ninguém. Você ainda está crescendo, não deixe que cobranças sem sentido roubem sua infância.
8. Você deve cuidar de si mesma em primeiro lugar
É importante saber escolher, comprar e cozinhar os próprios alimentos. Cuidar da limpeza da própria roupa. Saber como manter limpa a casa onde vive. É importante saber como cuidar-se. Ninguém tem nenhuma obrigação de fazer isso por você e se um dia você estiver numa relação onde compartilha uma mesma casa essas responsabilidades devem ser divididas, portanto você deve saber executar a sua parte. Mas lembre-se sempre que cuidar de si mesma é sua principal responsabilidade e sua prioridade. Você não tem nenhuma obrigação exclusiva com o cuidado doméstico ou cuidado de outras pessoas. Você não tem responsabilidade de cuidar de ninguém além de sim mesma e qualquer relação de cuidar com a qual você vier a se comprometer pela vida deve ser muito bem ponderada e avaliada para que você esteja doando-se de maneira muito consciente, sem sentimento de culpa ou obrigação envolvido, e principalmente sem ser explorada no processo.
9. Não é a sua aparência que define quem você é
Este é um mundo que faz com que meninas se tornem muito infelizes caso não sejam vistas como “bonitas” e um tremendo esforço sempre será feito para te convencer que ser “bela” é o que há de mais importante sobre você. Só que você não é definida por como se parece. Se uma pessoa se aproximar ou se afastar de você apenas pela maneira como você aparenta e não pela maneira como você é, então ela não serve de verdade para você. Você é uma pessoa inteligente, engraçada, esperta, forte e verdadeiramente especial. E é isso que é o que verdadeiramente importa sobre você. Se alguém não é capaz de ver, valorizar e te desejar pelos motivos certos, então essa pessoa não serve para te amar. E a validação dela não significa nada. Você não existe em função de “embelezar” os ambientes onde esteja. Você não precisa se preocupar em estar o tempo todo sendo vista, analisada e catalogada… Você é uma pessoa completa e não precisa da aprovação de ninguém sobre você. Você é muito mais que algo para ser visto, admirado e elogiado em função da beleza. Você é uma pessoa completa.
10. O universo não gira ao redor do umbigo dos meninos
Muitas vezes você vai ter a impressão que tudo que existe de legal e importante no mundo é sobre e feito para meninos. São eles que estão no centro de todas as coisas que você assiste, escuta, aprende na escola. E sim, por muito tempo e ainda hoje são os meninos que protagonizam tudo mas eles não são o centro do universo. Eles não são o mais importante, meninos são apenas meninos e o mundo não gira em torno deles, por mais que possa parecer. O seu mundo deve girar em torno de você mesma porque ainda é muito difícil ser uma menina na nossa sociedade, e tudo que você vai conhecer vai tentar te convencer que você deve colocar meninos no centro e em primeiro lugar. Que meninos são mais importantes que meninas, que eles são mais fortes, especiais. Nada disso é verdade. Seja você o centro da sua vida.
11. Você não precisa disfarçar seus sentimentos
Expresse seus sentimentos. Todos eles. Principalmente os considerados “ruins”. Você tem o direito de ficar brava. Sentir-se com raiva. Todos têm sentimentos intensos e você não precisa sentir culpa por isso. Você tem o direito de expressar sua indignação. Você pode brigar sim, e falar alto, contestar, protestar. Você não precisa perdoar nada, nem ninguém se ainda não se sentir preparada. Inclusive não precisa perdoar se não quiser. Nem precisa buscar a conciliação o tempo todo. Há momentos, inclusive, em que será justamente esta energia que vai te proteger de relações abusivas. Permita-se enfurecer porque é sua fúria que vai ter proteger.
12. Você não precisa disfarçar sua personalidade
Seja educada. Educação, polidez e gentileza são virtudes importantes para todos os seres humanos conviverem em sociedade. Mas você não precisa ser simpática, ou sorridente, ou delicada, ou doce, ou cordata, ou mesmo amável se você não quiser. Você não existe em função de atender as expectativas das outras pessoas. Você não precisa agradar a todas as pessoas e principalmente você não precisa concordar com tudo que os meninos pensam apenas para parecer atrativa para eles. Você não precisa fingir que está sentindo algo que não sente, que gostou de algo que não gosta, que aceita algo que não concorda. Permita-se ser você.
13. Ame as suas amigas
Amigas são o bem mais precioso que uma menina pode ter. Elas vão ser suas companheiras, compartilhar alegrias, tristezas, aventuras. Vocês poderão contar umas com as outras e vão viver coisas muito parecidas. Mas fique atenta porque vão de todo modo tentar te convencer que outras meninas e mulheres podem ser rivais. Vão te dizer que meninas são mais invejosas, fofoqueiras, falsas, ou fúteis. Vão criar em você um sentimento de “não ser como as outras”. Não caia nessa armadilha. Meninas são pessoas e são as melhores pessoas que você terá ao seu lado, sempre. São as pessoas que vão salvar sua vida. Não vale a pena competir pela atenção dos meninos, tire-os do centro das suas preocupações. Nenhum menino pode ser tão especial quanto a amizade das suas amigas. Homens chegam e vão embora na vida de mulheres. As amigas estarão lá por você para sempre.
14. Escolha mulheres
Existem mulheres maravilhosas por aí, que pesquisam, produzem, constroem, inventam, criam, cantam, dançam, interpretam, dirigem, coordenam, constroem, empreendem… mulheres estão por toda parte, fazendo de tudo, e se você tiver a chance, sempre escolha mulheres. Compre , assista, leia, contrate o trabalho de outras mulheres. Vote em mulheres, opte por mulheres. Não acredite se te disserem que algo feito por uma mulher é inferior, ou imperfeito. Não entre em competição desnecessária com mulheres. Coopere com elas. Una-se a elas. Privilegiar outras mulheres é fortalecer uma rede que vai fortalecer a você mesma. Metade do mundo é feito de mulheres, o que acontece se começarmos a escolher umas às outras?
15. O casamento pode ser uma armadilha para mulheres
Eu sei que tudo que você vê e tudo que te falam fazem você pensar que o casamento é a melhor coisa que pode acontecer na vida de uma menina e que quando ela se apaixona e se casa finalmente sua vida tem um “final feliz”. Mas na realidade relacionamentos são coisas complicadas, que exigem maturidade de todos os envolvidos para funcionar. E na nossa sociedade, quase sempre, o casamento é uma maneira de prender mulheres na função do cuidado da casa e dos filhos sem muita ajuda dos homens. O casamento também pode afastar uma menina se sonhos muito particulares que ela tenha porque ela será cobrada muito fortemente a dedicar-se integralmente ao “lar”. Então tenha em mente que tipo de vida e que tipo de realizações você deseja para si e como essas coisas vão combinar com uma vida compartilhada com outra pessoa, principalmente se essa pessoa for um homem. E lembre-se, não é se apaixonar, casar e ter filhos que precisa definir o objetivo da sua vida, por mais que queiram te convencer disso. Isso são coisas que acontecem ou não entre várias outras coisas que podem acontecer ou não na vida de uma pessoa. E sequer são as coisas mais importantes. O seu destino não é ser escolhida por alguém, o seu destino é escolher a você mesma e fazer o melhor que conseguir com isso.
16. A maternidade pode ser um fardo
Na nossa sociedade a maternidade pode ser (e quase sempre é) um fardo pesado para a mulher. Ser mãe não é a coisa mais importante da sua vida, não é algo que vá te completar em nada. Você vai ver e ouvir por aí que a maternidade é uma coisa sagrada, e que mães são seres especiais, mas isso é uma mentira. Ser mãe é um trabalho. E um trabalho dificílimo de realizar e que exige uma dedicação intensa e extrema e o envolvimento de várias outras pessoas. Quase não há apoio social nem institucional para as mães e o meninos não recebem a mesma pressão para assumir sua parte na responsabilidade de criar seus filhos deixando a mulher sobrecarregada. Crianças são uma responsabilidade de toda a sociedade e nenhuma mulher consegue dar conta de um filho sozinha sem abrir mão de muita coisa da própria vida. Somente com apoio é possível aproveitar bem a parte boa de ter filhos que é poder ajudar na formação de uma outra pessoa, vê-la crescer e poder curtir o amor que surge entre uma mãe e seu filho que é uma coisa bastante especial.
17. Você pode amar quem você quem quiser
Pode ser que você cresça e goste de meninos, pode ser que você cresça e goste de meninas, pode ser que você goste dos dois. E não tem nenhum problema com isso. Basicamente, de quem você gosta ou deixa de gostar, com quem você se relaciona ou não, é um assunto particular seu. Respeite seus sentimentos e desejos e não os reprima. Ainda vivemos em um mundo que tem dificuldade de aceitar todas as formas de amor. E mais, vivemos em um mundo que quer fazer parecer que meninos e meninas se amarem é a única forma de amor possível, aceitável e “normal” de existir, e isso simplesmente não é verdade. Você é uma pessoa. E pessoas se apaixonam por outras pessoas. Precisamos entender e respeitar isso. Portanto saiba que para nós não importa realmente com quem você vai se relacionar desde que isso resulte numa história bacana que faça você feliz. E lembre-se de levar essa regra com você: com quem as pessoas se relacionam não é um problema seu. Nunca desrespeite ninguém por causa disso e nem permita que outros a sua volta o façam.
18. Conheça seu corpo. E ame-o.
Conheça seu corpo. Cada pedaço dele, completamente. Ame seu rosto, sua pele, o formato do seu corpo. Não queira transformar nada. Se puder trabalhar algo dentro de você, trabalhe a aceitação. Você é ótima do jeito que você é. Sem subterfúgios. Saiba como funciona seu sistema reprodutivo, a maravilhosa máquina de gestar que você carrega. Entenda seu ciclo hormonal. Seus período fértil. Aprenda a conhecer como os hormônios te afetam, seu humor, sua libido. Nós mulheres somos cíclicas. E isso é lindo. Há todo um ciclo perfeito em funcionamento, onde cada etapa te transforma até culminar no momento da sua menstruação. É seu sangue. Seu organismo operando. Não tenha nojo do seu corpo. De nada dele. Aprenda a admirar-se no espelho. Conheça sua vulva, intimamente. Seu clitóris. Não tenha vergonha de explorar você — e apenas você — o que o seu corpo pode lhe proporcionar.
19. Você merece ser amada
Sim, eu sei que ninguém ensina como se ama uma menina. Porque sempre parece que todos os outros são melhores, mais bonitos, mais importantes, mais valorizados. Que você só recebe atenção quando atende a um determinado tipo de expectativa que exige um preço muito alto para acatar. E que você parece sempre ter sempre que se esforçar para agradar, cuidar, resolver problemas. Isso não tem a ver com você. O mundo infelizmente manda sinais por todo o lado de que mulheres são meros objetos decorativos desimportantes. Meninas sempre são mostradas como fracas, dependentes, o trabalho das mulheres não tem visibilidade. Mas você merece ser amada. E eu não estou falando de desejo. De desejo sexual pelo seu corpo. Estou falando de amor. Amor incondicional. Que é aquele amor que não condiciona. Que te aceita exatamente do jeito que você é. Toda mulher merece ser amada assim e não deve aceitar menos que isso. Não tenha medo de ser inteira, completa, e exigir amor, cuidado, apoio, carinho, compreensão, ao invés de apenas dar. Nunca esqueça disso. Nunca aceite menos que isso.
20. Este ainda não é um mundo bom para as mulheres
Este é um mundo em que meninas ainda não são tratadas tão bem quanto os meninos. Portanto você deve estar sempre atenta para não sofrer injustiças e nem perder direitos. Deve estar vigilante para não sofrer abusos e violências. Há mulheres maravilhosas por aí brigando todo dia para tornar esse mundo um lugar melhor para meninas como você viverem. Mas por enquanto ainda é preciso tomar muito cuidado. Eu sei que o mundo não vai te tratar como você merece. Que vai tentar te obrigar a entrar num padrão de aparência física. De comportamento. Que vai tentar esmagar sua auto-estima, dizer que você não é boa o suficiente, o tempo inteiro. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer de que você é inferior aos meninos, menos especial, inteligente e poderosa que eles e que você deve obedecê-los e admirá-los. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer que as outras meninas são suas inimigas, que você deve combatê-las para agradar outros garotos. Mas eu sei também que você é uma menina única. Que você não é como todo mundo e que sua grande batalha e mostrar ao que você veio. Quem você é de verdade. Sem padrões. Sem manual de instrução a seguir. E eu sei que isso pode ser especialmente difícil porque você terá que lutar. Você nasceu uma menina e terá que lutar o tempo inteiro para ser quem você é. Saiba que você não está sozinha na sua batalha. Há outras meninas por aí, como você, preparadas. Vamos juntas.
Você sabe o que é maternidade compulsória? Você consegue separar, no seu imaginário sobre maternidade, o que é uma necessidade sua e o que é socialização, pressão social, necessidade de adequar-se? Difícil, não é? A ideia de que somos completas apenas se parirmos, que a maternidade é sagrada, que a mulher é cuidadora, que bebês são criaturas angelicais entre outros é uma coisa tão enraizada que dificilmente conseguimos discernir quais são nossos desejos legítimos em relação a maternidade e o que é uma projeção social sobre como nós deveríamos nos sentir. E esse fenômeno, que acontece com absolutamente todas, tem nome e função: é maternidade compulsória que serve a nos manter reféns de um sistema de exploração reprodução reprodutiva.
O que significa dizer que a maternidade é “compulsória”?
Compulsórioé um adjetivo com origem no Latim compellere, que significa “levar a um lugar, levar à força” — palavra formada por com-, que quer dizer “junto” e pellere, que quer dizer “guiar, levar”. O significado de “compulsório” é entendido como algo que obriga ou compele a fazer alguma coisa. Compulsório é aquilo em que há obrigação ou possui caráter obrigatório (…). Compulsório é toda força interna ou externa a uma pessoa que impele a realização de alguma coisa — o termo é mais usado para se referir às forças de ação externa, se tornando a qualidade daquilo que é feito obrigatoriamente.
O termo compulsório vem da mesma raiz que a palavra compulsão, algo imposto ou mesmo que deve ser cumprida forçosamente ou obrigatoriamente, sendo também uma tendência interior enorme por fazer algo, como, por exemplo, a compulsão por comida.
Quando usamos o termo “maternidade compulsória” para definir como a maternidade se apresenta para as mulheres estamos literalmente falando de “maternidade obrigatória”. Estamos dizendo que toda mulher é “obrigada” a ter filhos. E isso acontece de maneira subjetiva, através da nossa socialização e de maneira bem objetiva, pela impossibilidade de mecanismos que eficazmente impeçam mulheres de engravidar.
A impossibilidade de evitar uma gravidez — o jeito objetivo
A única maneira de uma mulher evitar ter filhos é usando algum método anticoncepcional. Essa possibilidade coloca todo o peso da contracepção nas costas da mulher, visto que a maior parte dos métodos foram desenvolvidos para ela utilize. Homens não foram socializados para se preocupar com a paternidade. Isso faz com que se excluam completamente do processo de contracepção. São ensinados que isso é uma responsabilidade exclusiva da mulher se abstendo de se prevenir contra gravidezes indesejadas. Se houver alguma falha, ele a culpa e simplesmente vai embora. E pior, a mulher costuma internalizar essa culpa por acreditar que realmente era dever exclusivo dela evitar a ocorrência de uma gestação. O que essa mulher não sabe é que é simplesmente impossível evitar sozinha que uma gravidez aconteça, não existe nenhum método que ofereça a ela, isoladamente, uma margem total de segurança.
Mulheres não aprendem a conhecer o próprio corpo, o seu ciclo hormonal, a entender como funciona seu sistema reprodutivo, saber quando estão ovulando. Tampouco existe informação de qualidade sobre todos os métodos contraceptivos disponíveis, seus prós, contras, eficácia, custo, efeitos adversos, forma de utilizar. O mais comum é que mulheres comprem pílulas anticoncepcionais por conta própria, ou recebam uma prescrição à revelia do ginecologista (que tampouco costuma fazer exames ou investigações mais detalhadas). E isso falando da assistência particular e de mulheres minimamente mais informadas e de maior poder aquisitivo.
O SUS distribui um número relativamente variado de métodos contraceptivos como pílula, diafragma e DIU, mas a distribuição esbarra, mais uma vez, na desinformação sistêmica. Apesar dos métodos estarem acessíveis não há orientação eficiente de como utilizá-los. Dificilmente o tema do controle reprodutivo e do planejamento familiar é abordado corretamente nas escolas, sensibilizando os jovens para a importância do seu uso correto, e para o conhecimento do funcionamento do próprio corpo.
Muitas mulheres também simplesmente não sabem que não podem ou não devem tomar remédios a base de hormônios que são os mais acessíveis. Esses remédios afetam profundamente como o organismo feminino funciona trazendo muitas vezes alterações significativas e desconfortáveis, além de casos em que o uso representa risco de doenças graves.
Além do mais, nenhum método contraceptivo existente, usado isoladamente, oferece 100% de eficácia. Nenhum. E mais, os métodos mais comuns de prevenção, a saber: pílula, camisinha, coito interrompido possuem taxas significativas de falha. Significativas.
Nos métodos cirúrgicos, que oferecem a melhor taxa de sucesso (mas não 100%, ou seja, nem vasectomia, nem laqueadura são completamente seguros), o atendimento público é demorado e burocrático. Para conseguir a esterilização cirúrgica pelo SUS é necessário ter mais de 25 anos de idade, ou, no mínimo, dois filhos nascidos vivos. O SUS também exige que um prazo de 60 dias seja respeitado entre a manifestação da vontade de operar e o ato cirúrgico em si e — a cereja do bolo — a autorização expressa do cônjuge (caso exista) para que a esterilização aconteça. A outra alternativa a isso é pagar pelo menos R$ 5000 reais por uma laqueadura em um consultório particular.
Na prática, a maneira mais segura para evitar filhos é usar métodos combinados de barreira física, hormonal ou cirúrgica, ou seja: camisinha + pílula, camisinha + diafragma, camisinha + laqueadura + tabelinha. Camisinha sempre. Até porque você não quer engravidar, tampouco pegar alguma doença sexualmente transmissível.
E aí começa outro problema: desde quando homens estão dispostos a usar camisinha? Homens fazem de tudo para a mulher “começar a se prevenir” para que eles possam se livrar da responsabilidade do uso do preservativo. Fazer um homem usar camisinha numa relação estável é quase motivo para crise, é “prova de desconfiança”. E essa cultura que responsabiliza completamente as mulheres pela contracepção é de uma crueldade sem tamanho visto que é impossível para a mulher realizar essa tarefa sozinha. E quando ela “falha”, é culpabilizada e o filho é visto como uma punição social por causa do “erro” que cometeu, afinal “quem mandou abrir as pernas?”, “quem mandou não se cuidar?”.
E os homens são completamente excluídos dessa equação porque eles não são educados para assumirem responsabilidade sobre filhos, eles são educados para fertilizar mulheres, para “comer todas”. A função do homem é fazer sexo com o maior número de mulheres possíveis. A função das mulheres é parir e cuidar desses filhos. Essa é a armadilha que o patriarcado cria para nós.
E para completar o ciclo de impossibilidades, o Brasil é um dos países com a legislação mais rígida em relação ao aborto, que só é permitido, até a 12ª semana, em caso de estupro ou riscos de vida para o feto ou a gestante. Isso é sobre obrigar mulheres a serem mães, custe o que custar.
A socialização para a maternidade — o jeito subjetivo
Quando a menina nasce, um dos seus primeiros brinquedos (senão o primeiro) é justamente uma boneca, com quem vai realizar suas primeiras brincadeiras, possivelmente imitando sua própria cuidadora. Todas as pessoas em volta dessa criança vão se referir a essa boneca como “a filhinha dela”. Todas as pessoas vão se referir a essa menina como “mãe” dessa boneca. É a primeira função que é ensinada para uma criança do sexo feminino, pouquíssimo tempo depois dela nascer.
Dificilmente essa menina vai ver seu próprio pai dispensando tantos cuidados com ela quanto sua mãe. E ainda que seus pais não sejam os principais cuidadores muito certamente ela estará sob os cuidados de uma mulher: a avó, uma tia, as crecheiras. Se ela tiver irmãos homens, verá que eles brincam com carrinhos, bolas e nunca, ou quase nunca, são referenciados como “pai” de qualquer coisa. Muito menos de uma boneca.
Essa menina vai crescer e nos contos de fada verá que a princesa é feliz quando se casa e tem filhos com o príncipe. Ela assistirá desenhos, novelas, filmes, e em todos eles o final feliz envolve o casamento e uma barriga gestante. Vai ver por aí que entre a carreira e a família a mulher deve escolher a família. Que uma mulher bem-sucedida sem marido e filhos é infeliz. Que uma mulher solteira sem filhos está perdida, carente, desesperada.
Ela vai ouvir que a maternidade é sagrada. Que esse é o maior e mais verdadeiro amor do mundo. Que uma mulher só está completa quando tem filhos. Verá as mulheres adultas ao seu redor engravidando e festejando em público enquanto choram suas dores, dificuldades e frustrações no privado. Verá essas mulheres serem tratadas de maneira “diferente”, “especial”, por estarem grávidas e ingenuamente passará a acreditar que ser mãe realmente sacraliza. Ela será estimulada a superhomenagear a própria mãe, por sua “bravura”, “dedicação”, “cuidado”, “carinho” e será sutilmente orientada a não se importar com os atos negligentes e omissos do pai. Ela aprenderá que “mãe é mãe”, que “ser mãe é padecer no paraíso”, que “mãe é sagrada”, que “ser mãe é um dom divino”. Verá as pessoas adultas ao seu redor criticando o tempo inteiro as “mães negligentes” e começará a acreditar que a maior virtude de uma mulher é ser uma boa mãe.
Essa menina vai crescer e apesar de em toda parte ela ser bombardeada com o imaginário romântico do amor, da paixão, do casamento e da maternidade, dificilmente ela será orientada sobre sua sexualidade. Crescerá com pouca ou nenhuma informação de qualidade sobre sexo, vida sexual, relações afetivas, métodos contraceptivos, consentimento. E não, não é “todo mundo sabe disso hoje em dia” porque não se trata de saber como bebês são feitos. Se trata de conversar abertamente com essa menina sobre como são os relacionamentos heterocentrados. Sobre como os homens agem e como se proteger de verdade. Sobre conhecimento concreto e domínio sobre o próprio corpo.
Talvez essa menina ultrapasse a adolescência sem engravidar porque adiou o início da sua vida sexualmente ativa, talvez porque tenha introjetado tanto pavor de ter filhos antes de “estar preparada” que seja absolutamente rigorosa com métodos anticonceptivos. Ela vai chegar na vida adulta, ansiará por um relacionamento estável e uma vez nele começará a ser cobrada para ter filhos. Ela mesma dirá que está sentindo o seu “relógio biológico”.
Entenda: relógio biológico não existe. O nome disso é socialização. É uma vida inteira sendo ensinada, sendo doutrinada por todos os lados para a função da maternidade. Onde está o relógio biológico masculino? Está quebrado?
Mesmo que a mulher não se case, com o passar do tempo ela será cobrada para ter um filho. “Se não quer engravidar, então por que não adota?”. Não importa como, ela DEVE se tornar mãe. Nem que seja mãe de um pet. Uma vida inteira de doutrinação para que ele cuide e ame incondicionalmente outro ser humano não passam em branco para nenhuma mulher. E ela será levada a acreditar que toda mulher sem filhos possui um vazio existencial, uma vida sem propósitos, uma velhice infeliz e solitária.
E mais, mulheres ainda são levadas a acreditar que estão escolhendo esse destino, da maternidade, que realmente escolheram engravidar, ou falharam ao não se prevenir, e não são levadas a refletir sobre o que realmente constitui fazer uma escolha.
No entanto, perceba, escolher algo pressupõe eleger entre duas ou mais opções de peso equivalente, fazendo valer critérios pessoais de satisfação pessoal. Dessa forma, escolher entre entregar a carteira ao assaltante ou morrer, não é escolha. Escolher entre passar fome ou aceitar um subemprego também não. Outro cenário ilustrativo: Você entra na sorveteria, você quer sorvete, tem vários sabores. Todos parecem saborosos. Você indica que quer o de chocolate. Fez uma escolha.
Agora, se, hipoteticamente, você passou a sua vida inteira ouvindo que sorvete de chocolate é que é o melhor, que você só deveria ser tomar sorvete de chocolate e que se você não tomar sorvete de chocolate é uma péssima pessoa, que você só será uma pessoa completa quando tomar sorvete de chocolate. Se você fosse repudiada ao dizer que quer tomar um sorvete de outro sabor… será que poderíamos afirmar que tomar sorvete de chocolate é um desejo legítimo seu? Que é algo que você realmente quer e que está escolhendo?
Mulheres são induzidas o tempo inteiro a acreditar que estão realmente no controle de suas próprias vidas. Naturalizam toda pressão e toda a opressão que sofrem desde o nascimento. Vivem tão completamente submergidas num estado de permanente coação que sequer conhecem ou reconhecem uma situação em que possam realizar escolhas legítimas sobre si mesma. E essa falácia liberal da escolha é importante para manter mulheres permanentemente culpadas por tudo que acontece em suas vidas e para que não reconheçam quem é o verdadeiro responsável: o sistema machista e patriarcal em que estamos inseridas.
É possível dizer que aquela mulher que passou toda sua vida ouvindo que ser mãe é o ápice da própria existência; que cresceu vendo todos os modelos de como uma mulher deve ser necessariamente passando pela experiência da maternidade como redenção; que sabe que vai ser repudiada, questionada, criticada caso recuse a ideia de ser mãe; realmente escolheu gestar? Com todo o cenário que envolve a questão da maternidade, é possível separar o que é realmente desejo pessoal pleno do que é socialização para ser mãe?
Escolher pressupõe opções equilibradas. Quando as opções são ser uma pária social ou ceder a toda a pressão que a mulher sofre desde o nascimento é escolha? Quando as possibilidades disponíveis para garantir que a escolha de não ser mãe não são cem por cento seguras, quando não há NENHUM dispositivo que realmente impeça uma gravidez, quando não é possível interromper uma gestação não planejada, a maternidade é uma escolha?
Quantas mulheres realmente podem se dar ao luxo de sentir que escolheram ser mães? Que não se sentiram pressionadas pela família, pelo companheiro, pelo tal “relógio biológico”? Que não foram impelidas a alcançar o pseudo status de importância e “divindade” que atribuem às mães? Mulheres que engravidaram por estarem completamente mal orientadas sobre o funcionamento do próprio corpo, dos contraceptivos disponíveis e que carregavam sozinhas o fardo da contracepção que FALHA se não for realizado pelo casal conjuntamente?
Mulheres não “escolhem” ser mãe. Isto é imposto como o único destino digno possível para a vida delas. E um dia elas simplesmente atendem a essa profecia auto-realizável. Seja conscientemente ou não. Isso é maternidade compulsória. O que é facultativo, na nossa sociedade, é a paternidade.
Há algumas coisas que você deve começar a dizer ao seu menino durante sua socialização que certamente farão muita diferença sobre a maneira como eles irão para um mundo patriarcal que espera delas uma postura de dominação e violência contra mulheres. Vamos ver?
1. Não existem “coisas de meninos” e “coisas de meninas”
Você sabia que antigamente rosa era uma cor de menino e que o azul é que era uma cor de menina? Cores são apenas cores. Adultos é que inventam classificações arbitrárias que de repente mudam. Você tem o direito de escolher o que gosta e o que não gosta, entre roupas, brinquedos, o seu jeito de ser. Não é porque você não gosta das “coisas de menino”, ou prefere as tais “coisas de meninas” que tem alguma coisa errada. Ao contrário. É perfeitamente normal gostar de tudo um pouco com tantas opções legais que têm por aí. Se meninas gostam de bola, gibis, videogames, carrinhos e aeronaves, são boas em jogos de tabuleiro, jogos de montar, por que você não pode se divertir com bonecas, jogos de cozinha, pintura e tudo mais? E brincar de casinha, comidinha ou princesas é super legal sim. Se você pode brincar com tudo, por que brincar só com a metade? Não faz sentido não é mesmo? O bacana é poder todo mundo brincar junto. Meninas podem correr, pular, se sujar. Elas não são mais lentas ou mais frágeis. Excluir meninas das brincadeiras só faz com que não se aproveite toda a diversão possível. Meninos e meninas são crianças e não há diferença nenhuma entre vocês que seja importante.
Você não tem” namoradinhas”. Crianças não namoram. Crianças brincam e estudam. E você não precisa se sentir coagido quando disserem que você tem que conquistar as meninas da escola. Adultos podem ser muito inconvenientes. Você não precisa ceder se alguma coleguinha disser que “quer namorar com você” ou que é sua “namorada”. Crianças são amigas umas das outras. Apenas isso. E adultos, de maneira nenhuma “namoram” crianças. Namoro é coisa entre adultos. Há pessoas adultas que namoram e pessoas adultas que não namoram, inclusive. Quando você crescer vai gostar de alguma pessoa e vai poder namorar com ela. Uma pessoa de cada vez. Porque namorar é ter compromisso com o sentimento da outra pessoa e isso deve ser sempre respeitado.
3. Ninguém pode tocar o corpo de ninguém sem consentimento
Seu corpo é apenas seu e não deve ser tocado por ninguém sem seu consentimento expresso. Você não precisa receber nem dar abraços ou beijos se não quiser. Se alguém tocar o seu corpo sem pedir sua permissão se afaste e diga “eu não quero que você me toque. Ninguém pode tocar no meu corpo sem a minha permissão”. E conte tudo para um adulto da sua confiança. E sempre peça permissão antes de tocar o corpo de alguém, principalmente o de outra menina. Para qualquer coisa. “Posso pegar sua mão?”, “Posso te abraçar?”. Sempre peça. E se a resposta for não, é não. Não insista.
4. Quando alguém diz “não”, é não. Sempre.
Quando uma menina diz “não”, ela realmente está querendo dizer “não”. Se ela ficar em silêncio e não disser nada, também considere como um “não”. Se ela disser “talvez”, na dúvida, igualmente será um “não”. Não insista. Sempre garanta que as meninas estejam confortáveis e que estejam consentindo nas suas ações para com elas. É ruim quando não podemos fazer algo que queremos, eu sei. Mas acredite, a frustração passa e você sobreviverá. Meninas não devem nada a você só porque você quer e elas tem o direito de proteger-se. Respeite se elas tiverem medo ou desconfiança. Isso não é sobre você é sobre a experiência de mundo delas. Escute-as, aprenda e respeite se elas forem incapazes de confiar em você. Não é pessoal.
Meninas não são mais fracas, ou mais frágeis, ou incapazes de proteger-se mas tem um mundo absolutamente violento contra elas. E precisam de apoio porque alguns meninos crescem e tornam-se homens verdadeiros predadores , perseguindo-as, machucando-as de muitas maneiras. Então fique alerta, se você vir alguma menina em dificuldades, seja qual for, ajude-a. Isso vai significar muitas vezes ir contra os seus amigos. Pode significar muitas vezes que você vai estar sozinho contra o seu próprio grupo. Mas significa também que você não estará compactuando com toda a violência que homens comentem contra meninas e mulheres. Defenda meninas pelo motivo certo. Não porque “você é homem” e deve protegê-las porque elas são “frágeis”, mas porque você é uma pessoa que sabe que esse grupo está vulnerável a ataques e precisa de toda ajuda possível.
6. A violência não é um recurso válido
Violência é apenas violência. É injustificável. E não só violência física, mas também a verbal, psicológica. Não sinaliza que você é forte e sim que você é incapaz de resolver qualquer questão de forma honrada, respeitosa e civilizada. É sinal de fraqueza e não de fortaleza. Eu sei que as pessoas ao seu redor estão o tempo inteiro querendo que você se mostre “forte” e “bravo”, e que parecem admirar quem é agressivo e violento, mas isto está profundamente errado. Não devemos nunca admitir que ferir outras pessoas é uma hipótese viável. Violência só traz sofrimento. Se você sentir raiva, o que é normal, pode extravasar por outros mecanismos, mas a sua raiva não te dá o direito de agir violentamente. E agir sem violência não te torna um “covarde”, te torna uma pessoa boa. E também nunca admita que ninguém cometa nenhum tipo de violência contra você. Nem física, nem verbal, nem psicológica. Defenda-se. Procure ajuda. Proteja-se sempre.
7. Você é um menino, não um homem
Sabemos que ser criança neste mundo é muito complicado. E que ser menino tem uma carga bastante difícil de lidar. Que os adultos cobram que você aja como um “homem” e exigem de você posturas que você nem entende direito o que significa. Mas se você se sentir ameaçado ou coagido, seja por qualquer motivo, não guarde segredo. Conte conosco. Nós sempre acreditaremos em você e vamos ter proteger. Nós não queremos que você “aja como um homem”, isto é uma bobagem. Queremos que você seja criança, experimentando o mundo e descobrindo aos poucos o que você é, sua personalidade, seu temperamento, o que gosta ou não. Você não tem que ser nada agora exceto um aprendiz atento, não tem que atender expectativa de ninguém. Você ainda está crescendo, não deixe que esta cobrança sem sentido te defina.
8. Saiba cuidar de si mesmo
É importante saber escolher, comprar e cozinhar os próprios alimentos. Cuidar da limpeza da própria roupa. Saber como manter limpa a casa onde vive. É importante saber como cuidar-se. Ninguém tem nenhuma obrigação de fazer isso por você e se um dia você estiver numa relação de casamento essas responsabilidades devem ser divididas, portanto você deve saber executar a sua parte. Eu sei que você pode se sentir tentado a achar que meninas é que são responsáveis pelas tarefas cotidianas e domésticas, porque é muito do que você vê em toda parte. Mas isso não é correto e nem justo. Talvez você encontre meninas que acreditem que é obrigação delas fazer as coisas por você. Não permita isso, isso é exploração. A verdadeira autonomia tem a ver com você ser capaz de cuidar completamente de si sem transferir essa responsabilidade para ninguém, muito menos para mulher alguma. Responsabilize-se e aprenda a cuidar de si mesmo.
9. Meninas não são definidas por como se parecem
Meninas são inteligente, espertas, engraçadas, amigas, divertidas. Tem todas as qualidades e defeitos que qualquer pessoa tem. Meninas são pessoas. Amigas, companheiras de aventuras. A aparência delas não é importante. Ser bonito ou ser feio não é a principal qualidade de ninguém. E a aparência de uma menina não é um assunto que lhe diga respeito. Assim como as roupas que ela veste. Meninas não existem para serem objetos decorativos do ambiente. Se ela é alta, baixa, gorda, magra, branca, negra, realmente não é da sua conta. Nada disso define quem uma menina é. Eu sei que você será bombardeado com imagens e estímulos que vão te fazer cobiçar meninas de um determinado padrão, e que você vai aprender que o corpo delas é o mais importante a ser desejado. Mas focar nisso fará apenas que você deixe de se concentrar na parte mais importante de qualquer pessoa que é sua personalidade, inteligência, ideias, e a maneira como essa pessoa consegue fazer você se sentir com o jeito que ela tem. Meninas são pessoas e não coisas. Respeite-as sempre como o ser humano completo que elas são.
10. O universo não gira ao redor do seu umbigo
O mundo vai fazer você pensar que está no centro do universo. Tudo o que você lerá, assistirá, ouvirá falar, tem a ver com pessoas como você. Outros meninos. Suas conquistas, suas descobertas. Você verá outros homens em cargos importantes, vivendo aventuras, protagonizando por toda parte. Sim, é muito fácil acreditar que tudo é sobre você, seus sentimentos e suas possibilidades. Mas não é. Mulheres não possuem o mesmo status que os homens porque elas foram proibidas por muito tempo de fazer as mesmas coisas que os homens sempre fizeram. E com muita luta elas buscam ocupar espaços na sociedade em que vivemos. Então entenda que você não é melhor, nem especial, nem mais importante. Você apenas possui uma coisa chamada privilégio, que faz com que você seja tratado de forma melhor por todos simplesmente porque nasceu um menino.
11. Você não precisa disfarçar seus sentimentos
Nós somos responsáveis por lidar com nossas próprias emoções e nosso grande desafio é conseguir nos conhecer para que elas não nos levem a tomar más decisões. Somos pessoas, falhamos, estamos aqui aprendendo uns com os outros a sermos pessoas melhores. Não tenha medo de expor seus sentimentos. Converse, entenda o que é tristeza, alegria, raiva, dor, angústia, medo, aprenda a reconhecer isso dentro de si. Seja autêntico e honesto consigo mesmo. Você não tem que provar nada para ninguém escondendo ou fingindo seus sentimentos. Você não precisa substituir sua dor, sua confusão, tristeza, pela raiva cega apenas porque esse é o único sentimento desejado em meninos. Deixe sua sensibilidade, delicadeza, amabilidade e gentileza transparecerem, não significa que você é nada, apenas que é uma pessoa empática e muito bacana. Fragilidade não é defeito. Sensibilidade também não. Muito pelo contrário. Nos dias de hoje, essas características são fundamentais pra gente viver juntos em sociedade.
12. Você não precisa disfarçar sua personalidade
Seja educado. Educação, polidez e gentileza são virtudes importantes para todos os seres humanos conviverem em sociedade. Mas você não precisa fingir ser mais extrovertido, ou firme, ou ativo, ou viril do que você é. Você não tem que atender as expectativas de ninguém mostrando ser alguém que você não é. Você não precisa “agir como um homem”, afinal o que isso significa? Você é um menino. Uma criança. Uma pessoa em formação. Você não precisa se preocupar com nada além de aprender sobre o mundo, se divertir, brincar, e não tem que provar nada para ninguém. Você é amado exatamente do jeito que é e será amado sempre. Ninguém espera que você seja nada além de uma pessoa feliz que consiga viver na sociedade respeitando suas regras.
13. Saiba escolher seus amigos
Este é um mundo especialmente difícil para um menino viver em grupo. Os outros garotos vão impor regras de comportamento bastante equivocadas para que você seja aceito entre eles. Eles podem pedir que você maltrate outras pessoas, especialmente meninas. Vão incentivar você a provar sua “macheza” demonstrando uma abordagem profundamente abusiva para com o corpo e o espaço delas. Eles vão incitar você a humilhar e até agredir outros meninos que não se mostrarem tão “machos”. Vão querer que você demonstre “força” sendo agressivo com os outros e vão premiar esse comportamento fazendo você se sentir muito querido e admirado. Este é um preço que não vale a pena pagar, acredite. Saiba escolher amigos que prezem pelos mesmos valores que você e não tenha medo de afastar-se daqueles que comportam-se com agressividade e violência. Existe sim o que é o certo e o que é o errado. E maltratar pessoas certamente é uma coisa errada, por mais que isso seja exaltado em certos grupos. E não tenha medo de confrontar comportamentos dos seus amigos que você sabe que são inadequados. Afinal, de que lado você quer estar? Que tipo de garoto você quer ser?
14. Priorize mulheres
Existem mulheres por aí, que pesquisam produzem, constroem, inventam, criam, cantam, interpretam, escrevem. Eu sei que você está completamente acostumado a só ver homens por toda parte como protagonistas a ponto de acreditar que o mundo somente foi realizado por eles. Eu sei que tudo que você aprende sobre meninas é que elas são inferiores a você, mas isso é não é a verdade. A história é contada pelos vencedores e todo o legado das mulheres foi usurpado. Suas conquistas e descobertas foram apropriadas ou simplesmente escondidas. Muito do mundo que conhecemos foi realizado também graças a muitas mulheres que nos antecederam tendo o triplo de dificuldade que qualquer homem porque tiveram que enfrentar muita resistência. Portanto seja um aliado, priorize mulheres. Compre, assista , leia, contrate o trabalho de outras mulheres. Não acredite se te disserem que algo feito por uma mulher é inferior, ou imperfeito. Não boicote, desvalorize ou subestime o trabalho de mulheres. Coopere com elas.
15. Tenha responsabilidade emocional
Você vai ser estimulado a se relacionar com o maior número de pessoas que conseguir e ao mesmo tempo, como se isso provasse que você é uma pessoa muito poderosa. E a pressão pode ser tão forte que você se sentirá frustrado e rejeitado caso não consiga concretizar esse tipo de comportamento. Não caia no erro de assumir o papel de caçador e tratar os outros como se fossem uma caça. Permita-se viver boas histórias. Histórias que você gostaria de recordar com carinho no futuro. Relacionamentos são coisas complicadas que exigem dedicação, comprometimento e honestidade. Não tenha medo de ser verdadeiro e expor seus sentimentos. Seja honesto sempre. Aprenda a lidar com o fato de que algumas pessoas vão querer estar com você e outras simplesmente não vão querer, e tudo bem por isso. Ninguém te deve nada. Não te devem carinho, atenção, afeto. Não te devem cuidado. Não são sua propriedade. Ninguém tem obrigação de gostar de você ou de estar com você. E você deve respeitar e aceitar isso. E deve também respeitar o sentimento de quem se afeiçoar a você, não usando isso a seu favor. O nome disso é responsabilidade emocional.
16. A paternidade é um compromisso intransferível
Criar uma criança para este mundo é uma das coisas mais importantes que uma pessoa pode fazer. Embora você possa ter a percepção que cuidar de bebês é um assunto de mulheres, esta é uma tarefa também de homens. E se um dia você quiser viver a experiência de ter um filho saiba que esse é um compromisso irrevogável e intrasferível, da qual não podemos fugir. Ser pai é para sempre e um filho é uma coisa muito séria, é um ser vulnerável que estará contando com sua presença, apoio, cuidado e amor. E essa experiência pode ser incrível sim porque é realmente uma grande responsabilidade criar pessoas para este mundo.
17. Você pode amar quem você quiser
Pode ser que você cresça e goste de meninas, pode ser que você cresça e goste de meninos, pode ser que você goste dos dois. E não tem nenhum problema com isso. Basicamente, de quem você gosta ou deixa de gostar, com quem você se relaciona ou não, é um assunto particular seu. Respeite seus sentimentos e desejos e não os reprima. Ainda vivemos em um mundo que tem dificuldade de aceitar todas as formas de amor. E mais, vivemos em um mundo que quer fazer parecer que meninos e meninas se amarem é a única forma de amor possível, aceitável e “normal” de existir, e isso simplesmente não é verdade. Você é uma pessoa. E pessoas se apaixonam por outras pessoas. Precisamos entender e respeitar isso. Portanto saiba que para nós não importa realmente com quem você vai se relacionar desde que isso resulte numa história bacana que faça você feliz. E lembre-se de levar essa regra com você: com quem as pessoas se relacionam não é um problema seu. Nunca desrespeite ninguém por causa disso e nem permita que outros a sua volta o façam.
18. Entenda como os corpos funcionam
Conheça seu corpo. Cada pedaço dele, completamente. Aprenda como ele funciona. Aprenda onde dói, onde formiga, onde faz cócegas, onde relaxa, onde é muito bom. E aprenda sobre o corpo das meninas. O que há de igual e o que há de diferente. Saiba que meninas quando crescem possuem tantos pelos quanto você e que isso é tão natural nelas quanto é em você. Meninas tem cheiros, fluidos, gases, como você. Mais semelhanças que diferenças. Aliás, conheça a fundo as diferenças. Saiba como funciona seu sistema reprodutivo, e como funciona o sistema reprodutivo delas. Saiba que meninas são cíclicas, menstruam, entenda como e porquê isso acontece e como isso é fantástico. E saiba que acima de tudo que o corpo, qualquer corpo, não te pertence, é inviolável e merece absoluto respeito. Você vai sempre ser ensinado que o sexo é uma parte muito importante da sua vida e que você deve se preocupar com isso talvez mais do que você gostaria. Respeite a si mesmo, seu tempo, seus processos
19. Aprenda a amar mulheres
Eu sei, ninguém te ensinou como se ama meninas. Em toda parte você só escuta que elas são chatas, inferiores, frágeis. Que são fúteis, burras, só se interessam por coisas superficiais. O que você vê na televisão é que elas só servem para decorar o ambiente sendo belas. Que elas não servem para ser admiradas como pessoas, mas sim como um objeto bonito. Que elas se dividem entre as que vão te amar e servir e as que vão te rejeitar e fazer sofrer. Que elas devem cuidar de você não importa o que você faça. Eu sei que é difícil amar essa imagem que te vendem de como as meninas são. Você aprende que mulher é um xingamento não é? Te chamam de “menininha” quando querem te diminuir. Só que nada disso é verdade. Meninas são pessoas. E pessoas maravilhosas, inteligentes, cheias de particularidades fascinantes. E você deve amá-las incondicionalmente. Não por sua beleza, ou por desejo ao seu corpo, ou por ser cuidado, ou para ter alguém para te servir. Mas por elas serem… pessoas. Como você. Cheias de particularidades. Defeitos e qualidades. Pessoas que serão suas amigas, companheiras de trabalho, de diversão, e de aventuras. Te ensinar a odiar mulheres é um projeto que você deve recusar. Desconfie de qualquer proposta que coloca mulheres numa posição inferior.
20. Este ainda não é um mundo bom para as mulheres
Este é um mundo em que meninas ainda não são tratadas tão bem quanto os meninos são tratados. Portanto você deve estar sempre atento para não cometer injustiças e nem retirar direitos das meninas. Deve estar vigilante para não cometer abusos e violências. Há mulheres maravilhosas por aí brigando todo dia para tornar esse mundo um lugar melhor para meninas viverem. Não colabore para uma cultura que as obriga a cumprir um padrão de aparência física e comportamento só para agradar você e não seja mais um a tentar esmagar a autoestima delas, fazendo-as pensar que não são boas o suficiente. Eu sei que o mundo vai tentar te convencer de que você é superior às meninas, mais especial, inteligente e poderoso. E que meninas devem obedecê-lo, admirá-lo e servi-lo. Que você verá meninas competindo pela sua atenção e isso vai fazer você se sentir único. Mas resista aos seus privilégios da maneira que puder porque são eles que tornam o mundo um lugar muito perigoso para meninas. Muitos meninos crescem e se tornam homens que perseguem, assassinam, violam, e fazem muito mal para as mulheres. Você não precisa se tornar parte desse problema. Você é um menino bom. Você pode se tornar um homem bom.
Há sempre o risco de se perder dos filhos quando a adolescência chega. Este é um período extremamente delicado para toda a família. Para o adolescente, que está passando por uma série transformações físicas, emocionais e sociais, para os pais que têm aprender como desenvolver um relacionamento com uma pessoa completamente diferente daquela criança que estavam acostumados a lidar.
Fatalmente nessa fase, é comum acontecer algum afastamento entre pais e filhos. Os jovens se isolam porque querem autonomia, querem se desgarrar do sentimento de dependência dos pais e projetar uma imagem de auto-suficiência. Ou sentem-se incompreendidos. Ou simplesmente querem ficar consigo mesmos. Ou tudo isso junto.
Os pais, que estavam acostumados com uma criança que minimamente obedecia suas ordens, muitas vezes não sabem lidar com os surtos de independência e autonomia da cria. De repente se deparam com um mini adulto, cheio de vontades, questionando, rejeitando suas intervenções e arrumando problemas. Uma criaturinha que antes se conhecia como a palma mão e que de repente não quer mais ninguém por perto, se isola, fica voltado para coisas que você não conhece ou não se interessa.
Ou então a criança vai se tornando um adolescente “exemplar”, “que não dá trabalho”, simplesmente porque não apresenta demandas, se vira sozinho e “é responsável”, e os pais acreditam que não há necessidade de zelar por eles porque eles “estão bem”. E ainda, simplesmente os pais não se interessam mais tanto pela pessoa adulta que o filho vai se tornando. Que não é mais uma criança fofa e graciosa que os idolatrava cegamente. E dão sua participação na educação do jovem meio que por concluída.
É compreensível que haja também um certo alívio por finalmente ver terminada fase de maior dependência funcional e ser possível algum descanso para os pais, já que minimamente aquela pessoa que dependia de você para tudo, agora se banha, come sozinha, e veste-se sem ajuda. E aí na correria da sobrevivência, muitas vezes é difícil abrir mão da aparente calmaria para ficar investigando como está a performance do filho no planeta adolescência.
É muito difícil sim.
Por outro lado você tem o adolescente. Que até pouquíssimo tempo mal limpava a bunda sozinho. Está crescendo, o corpo está mudando. Talvez fisicamente já esteja quase tão desenvolvido como um adulto. E isto o confunde. O mundo (inclusive os pais) muitas vezes o cobra como se fosse um adulto, mas o restringe como se fosse uma criança. Isto o angustia. A mídia não ajuda. Essa criança acha que cresceu, que sabe muito. Mas ela se sente terrivelmente só e perdida. É um ser híbrido. Que não recebe mais o mesmo carinho, atenção e ponderação que recebia quando era criança. Mas também não recebe o mesmo status, deferência e consideração dos adultos.
Este ser intermediário, chamado adolescente, é um poço de medos e alegrias. Começa a conquistar o mundo sem ainda ter tantas responsabilidades. E tem o mundo lá fora. Esperando tanto dele. Tem as outras pessoas e suas expectativas. Tem os padrões toscos de feminilidade e masculinidade. Um adolescente é o retrato do medo da rejeição. É um bicho trocando de casca, absolutamente frágil. Ele não sabe ainda o que está se tornando. Está vulnerável, tem medo de não ser querido. Medo de decepcionar pais. Medo de não ser aceito pelos amigos. Medo de não estar se tornando um novo bicho bom e belo, com uma carapaça forte o bastante para seguir sobrevivendo.
Seu filho adolescente precisa de você. Talvez tanto ou mais do que quando era um bebê indefeso. Ele precisa saber que ainda é amado mesmo mudando. Que será amado não importa o que ele se torne.
É tão fácil se perder dos nossos filhos quando eles são adolescentes. Eles fogem dos pais e se refugiam longe. É tão fácil não estabelecer diálogo, não criar intimidade, não participar do seu mundo. Ver o tempo passar e de repente ter um adulto completamente desconhecido ali morando na mesma casa. Que sequer consegue ser seu amigo. Que sequer consegue sentir-se pertencendo àquele núcleo familiar.
As experiências que temos na adolescência são tão determinantes para a nossa vida. Tão indicativas sobre nossos vícios e virtudes. As influências que recebemos são tão decisivas. O professor que nos encanta e faz com que apaixonemos pelo curso que vamos fazer na faculdade. A primeira paixão. Os amigos que fazemos ou não conseguimos estabelecer.
Quanto medo, insegurança, depressão, baixa-estima, vícios, se instalam justamente nessa época da vida?
Adolescentes não são mais crianças. Seus corpos estão mudando, eles têm desejos, capacidade de performar de maneira autônoma para cuidar de suas necessidades básicas pessoais. Tampouco adolescentes são adultos. Eles não tem experiências, parâmetros, conhecimento, amadurecimento emocional. E estes jovens estão absurdamente sozinhos. Desorientados. Desassistidos. Buscando respostas no Google para suas dúvidas e temores.
Há um certo vácuo geracional criado pela rápida disseminação das tecnologias de comunicação nos últimos anos. Os pais de adolescentes de hoje são ainda bastante analógicos e podem não ter uma noção clara dos desafios enfrentados pelos filhos que são bem diferentes dos desafios que eles enfrentaram. É um mundo nudes, exposição de intimidades, bullying virtual, hackeamento. Um mundo em que a rede de amigos é virtual e é na casa de centenas de pessoas. Em que com um clique um mundo de informação instrumentaliza esse adolescente sobre o tema que ele tiver interesse. Para o bem e para o mal. Possibilidades ilimitadas.
Os pais precisam estar próximos mais do que nunca. E vigilantes também. Atentos. Participativos. Ajudando esse jovem a transitar no mundo fortalecendo seus valores. Esse é um momento da educação parental em que todos os valores recebidos vão ser testados e reforçados ou renegados. É um momento em pais em filhos podem se aproximar e estabelecer uma relação de parceria definitiva ou se afastar. E não falo de se tornar “amigo” do seu filho adolescente, e sim de manter-se firme numa relação de carinho, aceitação e orientação, que permita que esse jovem saiba, acredite e aceite que os pais estão lá por ele.
Não se afaste do seu filho só porque ele cresceu, ou já que ele cresceu. Esteja lá por ele. Ele precisa muitíssimo de você, acredite. Talvez, mais do que nunca. Não se perca dele. Mantenha-o aconchegado, acolhido, protegido pela certeza de que você o ama e o aceita.
Vivemos em uma sociedade onde a paternidade é facultativa e a maternidade é compulsória. Mulheres aprendem que a maternidade é um destino, uma função que devem cumprir para serem completas. Desde o seu nascimento recebem todo um treinamento que a encaminham para a culminância da sua vida que, segundo lhe dizem, acontece quando ela engravida e se torna mãe.
Homens, por outro lado, aprendem muito claramente que paternidade é uma atividade facultativa, que podem ou não exercer sem muitos constrangimentos sociais. O menino nasce e desde já tudo a sua volta gira em torno de ensiná-lo sobre transitar no mundo agressivamente, exercendo dominância e recolhendo recompensas na forma de dinheiro e sexo. Ele recebe carros, bolas, bonecos de guerreiros, soldados, super-heróis. Ele assiste por toda a parte homens em combate. E fantasia matar inimigos e ser o herói.
Se o treinamento da menina é para a vida doméstica e o cuidado (do lar, de si mesma, dos menores, dos pais); o treinamento do menino é para enfrentar o inimigo (o ladrão, o vilão, o alienígena, o monstro). A mídia, as propagandas, desenhos, filmes, livros, situam sempre o homem na posição de homem conquistador, resolvedor dos problemas, em que tudo gira a sua volta. Ele cresce com a superestimada noção de que o universo existe esperando por ele para salvar o dia.
Qual é a função do homem na sociedade? O que ensinamos a esses meninos? Que eles devem ter sucesso, dinheiro, mulheres, aventuras, e aproveitar a vida enquanto podem. Que o mundo está a disposição deles e devem se divertir. Devem ser fortes, viris, conquistadores. Machos. Provedores. Gostar de coisas de “homem”. Carros, esportes, sexo, drogas e diversão. Que mulheres existem para limpar o que eles sujam, cozinhar para que eles comem, servi-los , cuidá-los e fazer muito sexo com eles. Porque é sua função enquanto mulheres.
Que parte da educação de um menino o orienta sobre a importância da família? Do cuidado? De se respeitar mulheres? De valorizar o amor não-sexual? Um relacionamento? A família? Que parte da educação de um menino orienta sobre sua responsabilidade com seus futuros filhos? Nenhuma.
Crianças fazem suas primeiras brincadeiras imitando o que elas vêem no seu cotidiano. Se um menino demonstra interesse em brincar de imitar aquilo que vê sua mãe fazer (limpar, cuidar, cozinhar), o que acontece? é imediatamente reprimido e orientado que “aquilo não é brincadeira de homem”. Se ousar brincar com uma boneca, alimentá-la, vesti-la, banhá-la, penteá-la, fazê-la dormir, pode até ser castigado. Quantas famílias compram para seus meninos conjuntos de panelinha, vassoura, boneca, para que eles exercitem e naturalizem no seu repertório sua parte nos cuidados com a casa onde vive e com as outras pessoas do ambiente? Quantos meninos convivem em um ambiente ondem vêem os homens atuando ativamente com o cuidado dele, da casa e de todos a sua volta? Quantos conseguem crescer em um ambiente onde não assistem o trabalho doméstico de mulheres sendo explorado? Ou um ambiente sem violência?
Limpar o que suja, cozinhar a própria comida, ser capaz de dar conta da organização do ambiente onde vive, ter auto-cuidado, cuidado com o outro, não são habilidades femininas. São pré-requisitos básicos para uma sobrevivência autônoma na vida adulta. Exaltamos tanto uma criação que valorize a independência, mas no caso dos meninos alimentamos uma cultura que os torna co-dependentes a vida inteira de alguém que vai lhe garantir a estrutura mínima para sua sobrevivência, como comida, organização e limpeza pessoal.
No entanto, meninos são, quase sempre, completamente impossibilitados, desde a infância de treinar habilidades de cuidado doméstico, cuidado com si mesmo e com o próximo. São ensinados que CUIDADO é uma tarefa de mulheres. Crescem sem desenvolver nenhuma noção de responsabilidade com nada, principalmente com crianças que exigem dedicação absoluta. E se tornam homens que primeiro são dependentes da mãe para que lhes frite um ovo, passando essa tarefa para uma esposa, ou então para uma trabalhadora doméstica.
E meninos não aprendem como encaixar as responsabilidades que ter uma família significa dentro das ambições que são cultivadas no seu mundo. A família é um dilema, uma armadilha. É o ponto de ruptura entre uma vida de direitos, aventura, esbórnia e diversão das suas fantasias e uma vida de deveres, tédio, previsibilidade. E muitos crescem e se casam como quem vai para a execução na guilhotina. É o “game over”.
A família para o homem é um símbolo de “status” , uma prova de que agora se tornou um “homem responsável”, que “tomou juízo”, “tomou jeito”. É uma prova de amadurecimento que ele oferece à sociedade. A mulher é tida como sua propriedade, como uma aquisição que vai cuidar dele e da casa. E os filhos são os acessórios necessários para provar sua virilidade e fertilidade. E só são importantes na medida que representam o vínculo com a mulher. Porque o homem aprende que os filhos são dela, e um desejo e uma necessidade da mulher. E que a única relação que eles precisam desenvolver com os filhos é o de provedor, a única responsabilidade que devem ter em relação a filhos é a de pagar pensão. E sentem-se muito orgulhosos de si mesmos quando pagam, porque mesmo isso já é uma exceção.
Quantas e quantas crianças não crescem sofrendo inúmeras violências e abusos por parte do seu pai? Vendo sua mãe apanhar cotidianamente? Para quantas famílias o homem é a figura a ser temida, “respeitada”, acatada? É a figura que é suportada apenas em função dele ser aquele que coloca comida dentro de casa. Olhem os índices de violência doméstica, de abuso sexual intra familiar. São assustadores. Quem são os perpetradores? Homens. Que fazem da sua mulher e filhos seus escravos particulares, exercendo sobre eles toda sorte de agressões. Olhem os números.
A paternidade é uma mentira. Fingimos todos que homens estão ali fazendo parte afetivamente daquela família, mas quase sempre ele é o elemento autoritário, abusivo e desagregador. Aquele que tem permissão para entrar e sair do acordo a hora que quiser. Nenhum homem é constrangido por não registrar seus filhos, por não contribuir para o seu sustento, por abandoná-los emocionalmente. Quantos e quantos homens que após separar-se e formar uma nova família simplesmente esquecem a existência dos filhos crescidos?
A função do pai na sociedade patriarcal não é o de cuidador dos seus filhos. O que é esperado do homem é o papel de macho-alfa conquistador. E esse lugar da paternidade só existe socialmente se for exercida nesses moldes. É isso sim que lhes é cobrado todo dia, incessantemente. Que homens sejam MACHOS, todo o tempo e qualquer desvio dessa norma, qualquer performance que ele execute que se aproxime vagamente de uma ideia de feminilidade ou qualquer tarefa que execute que esteja no espectro que é designado a uma mulher será criticado, punido, execrado. E é nesses moldes que a paternidade é exercida e é por isso que aos homens é facultado o direito de cuidar ou não dos seus filhos, de estar ou não presente. Por isso a eles é facultado o direito de abandonar, de sair para o mundo em aventuras, fazendo mais filhos, abusando, conquistando. Ou de ficarem e serem donos de uma família, onde podem fazer o que bem entender.
Esse pai sorridente, presente, de propaganda de margarina é uma exceção total, completa e absoluta sob o patriarcado. Eleger e vender esse modelo como padrão só serve para jogar para debaixo do tapete a verdadeira função do pai, e nos impede de discutir, nos defender, e rechaçar e convocar a transformação desse modelo.
O principal desafio da paternidade hoje é um desafio anterior que é o de romper com o padrão de masculinidade a que todo homem é submetido. Porque sem rever o que é o papel do homem na sociedade, sem quebrar o pacto com os estereótipos de gênero e com a hierarquia sexual, não há pai cuidador possível. É preciso ressignificar completamente a posição do homem no núcleo familiar a começar pelas razões com que as famílias são formadas e isso passa por ter coragem de rasgar a cômoda cartilha do papel social que diz quais as funções deveriam ser do homem ou da mulher. As regras dessa cartilha que, implícita e explicitamente exigem que o homem reine tiranicamente no lar e explore o trabalho de uma mulher.
Se um homem quer ser um bom pai, deve começar parando de explorar sua mulher. Assumindo que foi educado para ter privilégios e romper com isso. Assumindo que é o modelo de homem que seus filhos estão observando e vão reproduzir e/ou inconscientemente buscar. Envolvendo-se de verdade na ética do cuidado. Com si, com seu espaço, com o outro. Responsabilizando-se. E devem romper com a violência, romper com a agressividade como modo de estar no mundo e se relacionar com mulheres, crianças e demais populações vulneráveis.
E sim, sabemos que homens não são socializados para isso e que acham que o mundo está nas suas mãos. Mas homens também são seres pensantes, dotados de capacidade crítica e perfeitamente capazes de buscar a desconstrução desse conjunto de instruções em que é socializado. E esse papel que se cumpre sem refletir também tem um preço. E as mulheres, estão cobrando. E não vão parar de cobrar.
Nenhuma mulher tem um corpo que é só seu. Quando nascemos mulher a demarcação do nosso corpo como um objeto de beleza e apreciação (não admiração) é uma coisa completamente naturalizada. A partir do momento em que o médico informa nosso sexo feminino aos nossos pais, todo um arsenal começa a ser providenciado para que nos apresentemos à sociedade sempre bela e recatada. “Sexy sem ser vulgar”.
Quando somos recém-nascidas, nossas orelhas são perfuradas, a despeito da dor, do desconforto, da nossa incapacidade de expressar consentimento, porque precisamos rapidamente informar ao mundo que somos meninas.
Pré-púbere, o corpo feminino já está “pronto” para ser rifado e impiedosamente é empurrado a se apresentar como “feito”, sexualizado. A sensualidade precoce é glamourizada, cobiçada (“novinha”, “ninfeta”, “Lolita”). E as adolescentes sofrem, adoecem, se mutilam, se suicidam, caso não se encaixem no padrão imposto de como devem se parecer: “bonita”. Essa característica que toda menina aprende que é a principal qualidade de uma mulher, o seu grande atributo e atrativo. O principal (e muitas vezes único) elogio que uma mulher recebe na vida.
Ser “bonita”. Que quer dizer, na verdade, ser um objeto sexualmente atrativo para outros homens.
Por toda a vida, a mulher aprende que o próprio corpo não lhe pertence. Que ele existe para atender expectativas das outras pessoas. Da sociedade. Dos homens. E ela paga, literalmente, um preço alto por essa aceitação social. Para se adequar ao que é considerado correto sobre como uma mulher deve parecer. Todas ou quase todas as intervenções que são feitas rotineiramente no corpo feminino envolvem algum nível de dor, desconforto, privação, custo financeiro, tempo: manicure, pedicure, tratamento facial, tratamento corporal, maquiagem, depilação, tratamentos capilares, tinturas, dietas, preenchimentos diversos, enchimentos, implantes. Um cardápio diversificado de cirurgias plásticas estéticas: na face, seios, barriga, pernas, nádegas, mãos, pés, vagina. Nenhuma parte do corpo feminino está livre de policiamento.
Somos doutrinadas para agir assim, achar normal, achar que é “porque gostamos”, “porque queremos”. Estar “bem”, na verdade é estar “bela”. E não suportamos a ideia de não sermos bonitas o bastante. Nossa estima é construída em torno disso. Para delírio do mercado. Que tudo vende para alimentar essa necessidade construída. Vivemos o eterno dilema entre a repulsa por sermos objetificadas e a necessidade de sermos queridas. Sendo que não há aceitação possível para uma mulher em uma sociedade machista como a nossa que não passe pela objetificação de seu corpo.
E o que acontece quando a mulher engravida? Quando esse corpo, que a sua vida inteira não lhe pertenceu de fato, se transforma radicalmente e sua principal função, pelo menos temporariamente, muda? O que acontece com a mulher quando deixa de ser prioritariamente um objeto de consumo sexual para ser um corpo que gesta outro?
Note que apesar da função do corpo feminino mudar com uma gestação, a tutela não cessa. Só se reconfigura. Toda a sociedade se encarrega de vigiá-la para que se cumpra as regras implícitas que estão muito bem demarcadas para a maternidade. O que vestir, o que comer, como se sentir, como se comportar, o que comprar. Já está tudo pré-definido, assim como os limites até onde ir: o quanto engordar, como não adquirir estrias, ou manchas. E esse corpo que gesta também não é só da mulher. Ele é um binômio mãe-bebê. Indissociável. Um duplo.
Mas então finalmente o bebê nasce. E o corpo é devolvido à mulher. Irreconhecível, transformado. Que nunca mais será como foi. Um híbrido que não tem mais a função da gestação e tampouco um corpo que atende ao padrão de objeto sensual.
O corpo depois dos filhos é outro. Que pode ter diástase. Barriga. Estrias, flacidez, manchas. Que pode ter cicatrizes. Seios diferentes. Que ostenta as marcas da batalha da gravidez.
A sociedade rejeita e repele esse corpo novo. O que vemos nas revistas, sites, televisão, são mulheres que parecem as mesmas de antes de engravidarem. Como se nunca tivessem parido. A pressão para recuperar o corpo “perdido” é absurda e as mulheres vivem um verdadeiro luto por conta da “perda” desse corpo. E são estimuladas a terem asco de si mesmas após o parto ao invés de ficarem maravilhadas com sua própria biologia e o que ela é capaz de realizar.
Mas esse tal corpo “perdido” que era destinado a ser apreciado e sexualmente desejável pertencia de fato à mulher? A quem se destina tantos rituais de feminilidade e beleza? Para agradar a quem? Para o olhos de quem? Precisamos mesmo disso?
E se nesse caminho entre uma coisa e outra, em meio a barriga flácida, as marcas, as olheiras, os seios inchados. E se nesse momento em que não se tem mais tanto tempo para se ocupar dos rituais de feminilidade, talvez (e repito, apenas talvez) haja uma janela de oportunidade para repensar a relação com o próprio corpo? De se reapropriar de si mesma? Nem que seja por esse instante? Não é pouca coisa, numa vida inteira de objetificação.
O corpo do pós-parto é um corpo transgressor que grita aos quatro cantos que aquela mulher gestou uma vida. É um corpo que deveria ser orgulhoso e não envergonhado. Reapropriado, onde cada marca, cada dobra tem uma memória que é só sua. Metamorfoseado.
Mulher, esse corpo é teu. Orgulhe-se dele. É um corpo que fez outro ser humano das suas próprias células. Que acomodou no ventre um bebê em crescimento pleno de si, o alimentou, o aconchegou e o pariu. Não percebe como isso é fantástico? Como não amar esse corpo? Como não achar isso belo?
Não vamos seguir deixando que os homens nos validem segundo seus desejos. Nós não somos meros objetos de apreciação estética. De desejo sexual. Nossos corpos tem valor para além dos padrões de beleza. Sim, é muito difícil romper com isso. Mas podemos tentar fazer isso por nós mesmas. Nos emancipar da validação masculina é tomar nosso corpo de volta.
Dicas importantes sobre amamentação, reunidas especialmente para você, com um compilado do principal que você precisa saber.
1. O leite não desce imediatamente
O primeiro líquido que vai sair do seu peito (e que já pode estar saindo desde o final da gravidez), na verdade se chama COLOSTRO. Ele é um líquido rico em anticorpos e leucócitos, vitamina A, que protege contra infecções e alergias, previne doenças oculares, entre muitos outros benefícios. O colostro também é laxante e ajuda o bebê a expulsar o mecônio e a prevenir icterícia. É importantíssimo pro sistema imunológico do recém-nascido e funciona como sua primeira “vacina”.
aspecto do colostr
2. A apojadura é dolorida
O colostro continua a ser secretado até mais ou menos 3 dias após o parto e durante esse período acontece a APOJADURA: a preparação da mama para a produção efetiva do leite, com a dilatação de toda sua estrutura. É normal, nesse período, haver alguma dor e desconforto, e as mamas ficarem inchadas e quentes. É importante não confundir os sintomas da apojadura com a mastite que evolui para um quadro infeccioso de febre alta e dor intensa ou empedramento das mamas.
3. É normal o bebê chorar desesperamente
Em até 3 dias, com a apojadura, o leite começa a descer. É normal o bebê chorar desesperadamente, não é fome. É adaptação ao planeta-terra mesmo. Também é normal que o bebê acorde toda hora para mamar. Não é porque você não está produzindo leite o suficiente e sim porque o estômago dele ainda é muito pequeno e ele precisa mamar aos poucos, muitas vezes. Não há necessidade de complementar o leite.
o tamanho do estômago do bebê
4. O formato dos mamilos não interfere na amamentação
A apojadura pode ser um processo desconfortável e a abertura dos poros do mamilo na descida do leite também pode ser dolorida. O formato dos mamilos não interfere na amamentação, o bebê não abocanha o mamilo e sim a auréola inteira. Se o seu bebê estiver abocanhando somente o mamilo significa que a pega está incorreta e isso pode machucar o seu seio.
5. Procure ajuda se a amamentação demorar a se estabelecer
Se APÓS esse período de até uns 3 ou 4 dias a apojadura não ocorrer ou você sentir que a produção do leite não estiver se estabelecendo é recomendável que se procure ajuda especializada. O ideal seria ter acesso a consultores de amamentação, mas na falta destes, pediatras que tenham uma conduta primeira de apoiar o aleitamento podem ajudar. No geral, é uma questão de checar se a pega está correta, se o bebê está mamando em livre demanda, se o bebê consegue sugar bem e seu reflexo de sucção está bem estruturado. Toda mulher, quando bem orientada, tem possibilidade de amamentar, mas SIM, há mulheres que tem dificuldade para produzir seu leite por n fatores sejam físicos, emocionais e psicológicos. Mulheres que não conseguem produzir leite existem e precisam de orientação, apoio e acolhimento.
6. Amamente em livre demanda
O que vai ajudar no sucesso do estabelecimento da amamentação é a orientação sobre como o processo funciona, para que se tenha calma para passar pelos primeiros dias. Há diversos grupos de apoio na internet com diversas informações. É uma adaptação muito difícil, de muito choro do bebê e da mãe, dor, desconforto, insegurança e descobertas. O ideal é que a mãe tenha sossego para ficar com a cria amamentando em livre demanda. Sem horários, sem restrições de tempo. É o bebê amamentando que dá o “sinal” pro seio que ele tem que produzir leite. Quanto mais ele sugar, mais chance da produção engrenar. Então estabelecer horários para mamadas não é uma boa recomendação.
7. Observe se a pega está correta
Outro segredo fundamental para estabelecer uma amamentação bem sucedida é a pega. Uma mamada eficiente acontece quando o bebê consegue sugar adequadamente o seio. Se isso não ocorre o bebê pode ficar lá pendurado por um longo tempo mas não estar se alimentando direito. Aí o choro continua e a mãe entra em desespero achando que seu leite está “fraco” ou é insuficiente. Outro problema da pega inadequada é o risco de fissuras e hipersensibilização do mamilo, causando dor, sangramento e muito sofrimento para a mulher continuar a amamentação.
8. Busque posições confortáveis para amamentar.
Bebês não nascem sabendo realizar a pega. Cabe à mãe observar e corrigir sempre que necessário puxando o queixo da criança levemente para baixo para que ela se encaixe corretamente no seio. Também é importante observar uma posição que facilite a pega para o bebê e permita que a mãe fique confortável. Você vai passar bastante tempo fazendo isso.
9. Cuidado com mastite e empedramento
Nos primeiros meses (os 3 primeiros aproximadamente) da amamentação o nosso corpo ainda não sabe que quantidade de leite deve produzir. Por isso é comum os seios ficarem cheios e transbordando e o excesso de leite pode causar episódios de mastite e empedramento. É importante manter a atenção sobre isso e observar para que as mamas sejam sempre esgotadas. Em caso de início de empedramento, massagens e jatos de água fria ajudam a reverter o processo.
10. É normal o seio murchar depois de um tempo
Depois dos primeiros 2 ou 3 meses o peito automaticamente ajusta sua demanda ao que o bebê precisa e passa a produzir o leite à medida que o seio é sugado. É normal, portanto, que os seios desinchem e as mães tenham aquela primeira impressão de que “o leite secou”, mas isso não aconteceu. O leite continua sendo produzido, só que agora em um processo automático quando o bebê suga.
11. O indicador da amamentação eficaz é o peso do bebê
O melhor indicador se a amamentação está bem sucedida é o ganho de peso de peso e o crescimento do bebê. Isto se acompanha com visitas mensais ao pediatra que vai pesar e medir a criança. Peça para anotar a evolução na própria caderneta de vacinação que possui uma tabela de curva de peso e crescimento. O importante é que essa curva apresente crescimento contínuo, mesmo que discreto.
12. O jeito do beber mamar muda
Bebês passam por mudanças que tem a ver com o próprio desenvolvimento que afetam o jeito que dormem, que se alimentam, podendo ficar mais demandantes ou até simplesmente quererem deixar de mamar.
13. A mãe não precisa fazer restrição de nenhum alimento
Não há nenhuma pesquisa conclusiva que indique a necessidade de restrição alimentar durante o período de amamentação. Afirmar que determinados alimentos causam gases ou cólicas no bebê é bastante inconclusivo e rodeado de mitologia. Os únicos casos indicados de dieta para a mãe são no caso do bebê apresentar alguma alergia como no caso do APLV.
14. Não precisa beber mais água do que tem vontade
Amamentar dá muita sede e o principal elemento formador do leite é água, mas a mulher não precisa se obrigar a beber água para além da sua vontade. Também não há nenhum estudo conclusivo que indique que o aumento do consumo de água ou chás interfira no aumento da produção do leite.
15. Sossego e tranquilidade são importantes
Por outro lado, o estado psicológico/emocional da mãe pode sim afetar a amamentação. Mães em DPP precisam de amor, atenção e apoio reforçado para passar por esta etapa.
16. Mamar também é amor
Para o bebê, mamar não tem só aspecto nutritivo, mas também emocional e afetivo e é normal que peçam peito por outras coisas que não fome, como medo, dor, angústia, consolo, etc. Não é “manha”, é o recurso que eles para autoregular-se.
17. O leite é o principal alimento até o 1 ano de vida
Até o 1º ano de vida o leite materno é o principal alimento do bebê. É normal que ele ainda queira mais mamar do que comer.
18.O desejado é que se amamente até os 2 anos de idade
A OMS recomenda aleitamento exclusivo até os 6 meses de idade do bebê e complementar até os 2 anos.
19. Amamentar cansa
Amamentar é exaustivo e sacrificante. É normal, às vezes, ficar de saco cheio.
20. Cuidar de um bebê é um ato de amor. Amamentar é nutricional.
E o mais importante: cuidar de um bebê é um ato de amor, amamentá-lo é um ato nutricional que sim, também envolve muito amor, ou não. Há mulheres que amamentam (porque querem e conseguem) e fazem com muito prazer, outras fazem detestando profundamente a tarefas. E há mulheres que não amamentam, conscientes da sua decisão, e tudo bem por isso também.
Precisamos falar dos limites do tal limite pelo qual adultos são tão obcecados em impor. Para crianças especialmente. “Tem que ter educação”, “tem que obedecer”, “tem que saber que lidar com o não”.
Crianças têm que atender expectativas que nem mesmo adultos conseguem corresponder.
Eu quero muito conhecer onde estão essas pessoas que sabem ouvir “não” com tanta resiliência. Que respeitam os limites. Todos. Os impostos pela sociedade, pelo Estado, pelo próprio corpo. Que suportam suas perdas com resignação, sem fazer birra. Mesmo que a birra não seja mais espernear no chão aos prantos.
Quero conhecer essas adultos que não gritam, não choram, não praguejam, não resmungam, não batem telefone nem porta na cara de ninguém, não xingam, não fazem textão no Facebook, não se exaltam de maneira nenhuma porque estão putos da vida com alguma coisa. Porque estão frustrados.
Me digam por favor a localização desse sagrado lugar onde vivem esses seres humanos controlados. Esse lugar onde ninguém discute, ninguém briga, ninguém se agride, ninguém se excede, ninguém estoura limite do cartão de crédito nem do cheque especial comprando baboseiras para compensar o próprio vazio. Ninguém se embriaga. Ninguém se dopa. Ninguém se empanturra de comida. Ninguém perde o sono. Ninguém perde a calma. Porque queriam algo de suas vidas ou para suas vidas e não conseguiram.
Convoquem, por favor, estes fantásticos adultos que sabem conviver tão bem com limites para uma demonstração. Um TEDx. Onde estão? Na internet? Estes que estão se digladiando, se expondo? Metendo o dedo uns na cara dos outros? Julgando a tudo e a todos?
Vamos, aliás, dar o Prêmio Paradoxo para aqueles que propõem ensinar limites excedendo justamente todo o limite possível que é espancando uma outra pessoa! Verdadeiros baluartes do controle emocional.
Quando você se engalfinha trocando insultos com outro adulto, onde estão os limites? Quando você expõe outras pessoas e as joga na berlinda do escrutínio público, onde estão os limites? Quando você entra numa guerra de ego com outro adulto usando uma criança como desculpa, onde estão os limites? Cadê os limites de quem chama crianças de mimadas, ranhentas, peido? Cadê os limites de quem ameaça jogar uma criança pela janela?
Somos ainda uma geração de pessoas que apanhou dos pais. Estamos tateando recursos para lidar com crianças que não seja através de castigo, violência, repressão. E somos a sociedade violenta que somos. É só olhar pela janela pra percebermos como a educação cheia dos tais limites que recebemos não vem dando muito certo. As pessoas, em sua maioria, estão todas angustiadas, deprimidas, confusas, infelizes, buscando compensações das mais diversas justamente para o fato de não saberem lidar com aquilo que tem e principalmente com o que não tem.
Não queremos “dar limites” para crianças, queremos justiçamento. Queremos ver crianças apanhando, sendo “corrigidas”, sendo tolhidas, sendo retiradas do caminho. Queremos mini-adultos, apáticos, submissos. Queremos passar adiante sem refletir essa educação para obediência cega, sem reflexão, porque queremos que as crianças não “incomodem”. Não deem trabalho. Não sejam crianças.
Tentamos a qualquer custo colocar crianças numa linha que nenhum adulto segue de verdade. Essas mesmas pessoas que lidam com sua própria frustração a base de excessos de todos os tipos, não consegue gerenciar a frustração de uma criança e orientá-la. Uma geração que acha que sabe ouvir não, mas não sabe. Sabe ditar regras. Porque no fundo todos querem se sentir muitíssimo importantes e são as crianças, que não podem se defender, as vítimas ideais dessa síndrome de pequeno poder.
Se todo o limite que essas pessoas estão clamando para as crianças existisse de verdade viveríamos em outra sociedade. Sem violência. Sem corrupção. Sem agressividade. Sem desigualdade social. Porque tudo isso, todas essas mazelas que nos massacram estão ligadas diretamente com o ato de RESPEITAR LIMITES. E são os adultos os responsáveis por esse caos.
Então, por favor, vamos ser menos hipócritas, e deixar as crianças em paz.
Você já parou para pensar que crianças são pessoas? Sei que essa pergunta parece meio despropositada mas nós costumamos pensar, agir e tratar crianças como se fossem uma categoria a parte, uma outra espécie situada mais ou menos entre humanos e animais. Não tão racionais quanto humanos, não tão irracionais quanto animais. E talvez muito mais próximo dos animais que dos humanos.
Não tratamos crianças como pessoas. Inclusive existe amplamente disseminada a ideia de “treinar” um bebê nas suas diversas habilidades (dormir, comer, usar o banheiro), usando técnicas que partem do mesmo princípio do adestramento de cães. Além de “ensinar” disciplina através de castigo e violência. Dessa última, inclusive, cães talvez escapem com mais facilidade.
Não lembramos de como éramos no início da vida. O que pensávamos exatamente, o que sentíamos. Tudo é muito nebuloso na memória. Então crianças são um território desconhecido cujas ações costumam ser interpretadas com a mesma régua usada para lidar com pessoas adultas. E isto é uma ótica completamente equivocada pois lhes atribuímos intenções que são incapazes de ter. Crianças não manipulam, desafiam, provocam, pelo menos não no sentido clássico que estamos acostumados a lidar. Elas estão o tempo todo fazendo experiências, testando o mundo, as pessoas, a realidade a sua volta.
Crianças são seres em formação que estão apreendendo e aprendendo o mundo.
Mais importante que uma criação com apego, cuja cartilha vai se tornando cada vez mais difícil de seguir, é preciso praticar uma criação com empatia. Com um olhar de empatia, um olhar que tenta os compreender sentimentos e emoções, e procura experimentar de forma objetiva e racional o que sente o outro indivíduo, conseguimos mudar completamente a forma de nos relacionar com os nossos filhos, e com qualquer criança. Mas para isso é necessário que primeiro se trate a criança como o que ela é: um indivíduo.
Assim, num exercício, perceba por exemplo que um recém-nascido é uma PESSOA que acaba de chegar num lugar absolutamente estranho. Ele passou várias semanas dentro da mãe, num universo aquático, cheio de sons, sabores, luzes. Era como um peixe que vivia no grande oceano chamado útero. Aquele era o mundo dele. Ele ouvia vozes, coração batendo, vísceras trabalhando. E de repente ele está em outro lugar, completamente diferente. Ele está em outro meio físico, não aquático, agora ele respira ar, precisa engolir alimento. Antes tudo funcionava automaticamente, imediatamente, organicamente. Agora, quando ele sente fome, frio, calor, dor, medo, ele não consegue fazer nada. Exceto gritar.
É como se hoje você estivesse sentado tranquilo e confortável no seu sofá e em seguida fosse transportado para um planeta alienígena selvagem, onde todos voassem e suas capacidades físicas não lhe trouxessem nenhuma possibilidade de adaptação imediata e você não soubesse como sobreviver e nem como se comunicar. Você também gritaria um bocado, acredite.
Um bebê não chora muito porque quer manipular alguém. Ou porque é mimado. Ou porque é mandão. Um bebê chora assim porque o mundo realmente é coisa demais de uma vez só. Se imagine nesse lugar. Tenha empatia. Ele quer se sentir seguro. Quer um ponto de referência. Ele não tem a menor idéia do que aconteceu com ele. Você sabe que ele nasceu. Ele não. O que pra você é um nascimento para o bebê é uma espécie de morte: morte do mundo seguro onde ele vivia para um mundo novo, hostil, e que ele está aprendendo a conhecer. Isto é aterrorizante, convenhamos.
E isso não se esgota apenas enquanto bebê. A criança vai se desenvolvendo muito rápido, descobrindo o mundo e se descobrindo. Imagina o que é de repente aprender a comer comida, mastigar, andar, falar. Nos 3 primeiros anos da vida de um bebê as mudanças são tão brutais, aceleradas, desnorteadoras. Se até os pais têm dificuldade de lidar com isso, imagina para a pessoa que está vivendo. Não dá pra exigir que ela tenha as mesmas habilidades, as mesmas capacidades, a mesma maturidade para lidar com as coisas que os adultos, teoricamente, deveriam ter. Elas são seres agitados, curiosos, imaginativos. Imagina como você se sentiria se nesse mesmo planeta alienígena que eu usei como exemplo, você estivesse aprendendo finalmente a voar? Você ficaria sentado quietinho em um canto, ou você iria querer explorar os ares? Conhecer as nuvens?
Crianças não são uma outra categorias de seres humanos que por estarem sob tutela e cuidado de adultos são hierarquicamente inferiores e devem se submeter a tudo. Eu sugiro inclusive um exercício interessante: de que se pensem em crianças como um “adulto” em habilitação. Que ainda está se desenvolvendo, aprendendo a usar todas as suas potencialidades, físicas, emocionais, laborais, para transitar pelo mundo. Assim como muitos adultos em reabilitação. E aí eu deixo a pergunta: você bateria em um adulto em reabilitação? O deixaria chorando, gritando, para “aprender” algo? Você forçaria um adulto em reabilitação a adquirir independência a todo custo, mesmo que ele não estivesse preparado? Você declararia repulsa a presença desse adulto em lugares públicos? Você diria “odeio adultos em reabilitação?”.
Esse adultismo que é a tônica da nossa sociedade nos torna prepotentes e um tanto cruéis. Todo mundo já foi criança. E um dia seremos idosos. Um outro jeito de ser criança de novo, caminhando mais uma vez para a fragilidade física. É um ciclo que todo ser humano passa, e é necessário um tanto de ajuda mútua para fazer essa travessia. Sobretudo, essa tal de empatia que tanto falamos. De pessoa para pessoas.
Quando um bebê nasce começa o primeiro grande teste de qualquer relacionamento amoroso. Começa o amor em tempos de cólica. Filhos trazem muitas coisas para a relação e também retiram muitas coisas. É ilusão acreditar que nada vai mudar. A expectativa fantasiosa da família margarina cultivada durante a gestação muitas vezes dá lugar a profundas crises profundamente calcadas na maneira como homens e mulheres são socializados para lidar com família, filhos e relacionamento.
Homens aprendem que tudo na relação é sobre eles e que a mulher existe para gravitar em torno de suas necessidades. Mulheres aprendem que devem satisfazer a todas as necessidades masculinas sob pena de serem rejeitadas, caso não façam. Aprendem que devem ser mães devotadas, entregues, cuidadoras. Aprendem que devem administrar todos os detalhes do funcionamento do lar com excelência, caso contrário não serão consideradas boas.
Para o homem, a família é como se fosse um símbolo de status. Algo que eles “possuem” e que demonstra para a sociedade que já são “homens”, são responsáveis. O homem aprende que precisa cuidar da família da porta pra fora. Cuidar da imagem, da reputação, da respeitabilidade, da segurança, do sustento. E que é função da mulher cuidar da família da porta pra dentro, do gerenciamento do lar, do cuidado de todos.
Como resultado disso, muitos relacionamentos começam a trincar com a chegada de crianças, porque o homens e mulheres recusam-se — ou não conseguem — entregar-se à profunda transformação pessoal que esse evento familiar exige. Homens por um lado ressentem-se porque percebem que não estão mais no centro das atenções da companheira, porque são cobrados de tarefas que nunca entenderam como suas, porque sentem-se abandonados, porque recusam a responsabilidade, porque não conseguem lidar com o fato de que a vida mudou, de que a diversão transformou-se, de que será mais exigido por um longo tempo. Mulheres ressentem-se porque sentem-se rejeitadas, sobrecarregadas, coagidas, solitárias e profundamente infelizes, além de frustradas no seu imaginário de como seria o casal brincando de boneca com o filho.
E é claro que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco e mulheres são o lado mais vulnerável. Com a chegada do bebê, são cobradas pesadamente para manter uma performance que é impossível de ser cumprida. Não só pelo companheiro mas por toda a sociedade. Chega a ser cruel. Já no puerpério as mensagens são de que a “normalidade” deve ser instaurada o quanto antes pelo “bem do casal”. E por normalidade entenda-se o corpo de “antes”, o sexo de “antes”, a atenção e leveza de “antes”. São ameaçadas. “Se você não transar com seu marido ele vai procurar outra”, “se você não emagrecer ele vai procurar outra”, “se você deixar a casa essa bagunça ele vai procurar outra”. São pressionadas a escolher entre as demandas da criança e as demandas do companheiro que vê o filho como um rival da atenção da mulher que antes era exclusiva dele. Sentem que estão cuidando sozinha do bebê (e quase sempre estão mesmo), além de administrar de todo o resto e estão sempre cansadas demais.
E o bebê, muitas vezes, é atropelado nesse processo para que a “normalidade” seja restaurada. E aí ele precisa o mais rápido possível dormir a noite toda, preferencialmente no próprio quarto “para preservar a intimidade do casal”. A mãe é cobrada para tornar o filho “independente” o quanto antes, para não “sobrecarregar” os pais. Desmame, desfralde. Tudo feito o quanto antes, de qualquer jeito, de forma a transformar aquele bebê num mini adulto que não vai ser mais um empecilho para os pais viverem como antes dele ter nascido. Crianças não podem chorar, não podem gritar, não podem brincar, não podem atrapalhar.
E o homem, nesse processo, vai de coação em coação, rejeição em rejeição, chantagem emocional em chantagem emocional, manipulando a mulher para que ela atenda a todas as suas necessidades. E que não o cobre para assumir sua responsabilidade no cuidado dos filhos e da casa onde reside. E ameaça partir quando é confrontado. Fica agressivo. Ameaça tirar os filhos. Ameaça financeiramente. E se ele quiser cumprir o que sugere, ele pode. E talvez ele vá.
O homem — diferente da mulher — tem a opção de abdicar da paternidade, e ele abdica. Ele age como se aquela criança não existisse, caso queira. Abandona o projeto e parte para outro, como se nunca tivesse tido um filho. Sem nenhuma culpa.
Você conhecerá um lado importante do seu parceiro ao ter um filho com ele. É nesse momento que o “na saúde e da doença, na alegria e na tristeza” vai ser posto à prova: seu corpo não será mais o mesmo que ele está acostumado a desejar, sua disponibilidade sexual não será mais a mesma, sua libido, sua liberdade de ir e vir. A intimidade do casal será sequestrada. A privacidade praticamente extinguida. E o cansaço será a tônica dos dias. Aquele casal que existia antes simplesmente não terá mais espaço pra existir e será convocado a romper com sua socialização.
Entenda, quando você tem filhos a matemática da vida pára de funcionar. Você não consegue mais dar conta de “tudo”, “tirar de letra”. Quando mulheres são as únicas que se responsabilizam e se ocupam da organização doméstica, dos filhos, do relacionamento, de si mesma, ela se vêem forçadas a estar constantemente fazendo escolhas muito cruéis. Dar atenção ao filho ou ao companheiro? Cuidar da casa ou de si mesma? E o trabalho? E o descanso? E o lazer. Essa conta só fecha se for compartilhada. Ela precisa ser dividida com a outra parte interessada que é o parceiro. E se ele não assumir essa responsabilidade, que é dele, mulheres ficam completamente reféns no relacionamento e forçadas ou a aceitar uma situação de completa exploração do seu trabalho ou a romper e lidar com as consequências, já que quase sempre homens dão um jeito de punir mulheres que o rejeitam.
E mulheres-mães também sentem falta de como era suas vidas antes dos filhos. De poder namorar tranquilamente. De se sentirem desejáveis. De fazerem sexo sem pressa. De não estarem sempre sujas, cheirando a leite, cocô, vômito, comida. De não estarem sempre com um bebê nos braços. Mulheres-mãe sentem saudade de andar de mãos dadas. De beijar na boca, sem testemunhas. De tomar um longo banho, se arrumar, sair para ir a um cinema, ao bar. Paquerar. De dormir 8 horas por dia, estudar, dedicar-se ao trabalho sem pressão nem interrupções. De ter a atenção de alguém toda pra si. Essas necessidades não são exclusividades masculinas.
Se os homens se envolvessem na criação dos filhos com a mesma medida que as mulheres, no mínimo compartilhariam do mesmo cansaço, dos mesmos dilemas, das mesmas dificuldades. E cada momento de intimidade reconquistada, seria um prêmio para o casal. Cada instante de privacidade seria degustado entre risos e suspiros. Para além da oportunidade de desenvolver o mesmo vínculo emocional que mães compartilham com seus filhos, quase sempre formados ali na convivência do cuidado. Se tornarem pais, de verdade.
Quando você tem filhos vai poder entender a força do seu relacionamento. Porque manter- se juntos, manter uma unidade para criar crianças, administrar a vida, não é sobre amor. É sobre vontade e capacidade de trabalhar em equipe. Sobre entender que os dois estão ali num projeto de longuíssimo prazo, transformador para ambos. Individualmente e como casal. E isso é avassalador. De muitas maneiras. O casal pode se afastar definitivamente ou pode se unir mais do que nunca em torno dos desafios.
O “segredo” talvez seja entender que alguns primeiros anos serão mais difíceis, mas que aquilo vai passar. E que nunca mais será como antes mas que isso não quer dizer que será ruim, ao contrário pode até ser muito melhor. E afinal, não tem uma história aí que era pra ser até que a morte os separe? Por que não é possível vivenciar juntos todas as dores e delícias do cuidado das crianças e suportar por um tempo as impossibilidades que filhos pequenos trazem para um casal? Quando os dois estão verdadeiramente envolvidos na tarefa da criação dos filhos o “romance” ressignifica. Basta apenas que haja maturidade para ajustarem expectativas e para que possam agir como companheiros de um jornada que nem sempre é fácil mas não precisa ser sofrida. E que se entenda que relacionamentos acabam, mas os filhos são para sempre, então acertar essa relação e essa divisão de cuidado é algo fundamental e que vai estar sempre presente.
Uma escola no Rio Grande do Sul promoveu uma festa para seus alunos adolescentes com o tema “E se nada der certo”. Mergulhados na proposta, os jovens compareceram fantasiados de profissionais da área operacional e serviços, como faxineiro, atendente, mecânico, e outros, comprovando que realmente essa vida não foi feita pra dar certo.
A tônica da crítica em torno desse acontecimento, girou, acertadamente, sobre como esta situação é um reflexo da mentalidade elitista da nossa sociedade que divide as pessoas (e suas vidas) de acordo com os símbolos de status que conseguem adquirir pra si, tendo como divisor de águas sua entrada no ensino superior, em cursos de primeiro escalão preferencialmente (a saber, direito, medicina, engenharias).
No entanto, seria injusto dizer que este pensamento é somente das elites. Toda a nossa sociedade, todas as classes sociais, equacionam sucesso a partir das variáveis: “estudos” →profissão → bom emprego → dinheiro = vida dando certo. Não é, portanto, uma questão pura e simples de ter dinheiro. Isso é sobre fazer um determinado percurso que necessariamente passa pelo ensino superior, pela cultura do diploma, pelo menosprezo pelo saber não escolarizado.
Também seria hipocrisia apontar dedos aos jovens classe-média da festa e também à escola, sem fazer uma própria mea-culpa. Eles não estão reproduzindo nenhum valor que não seja de toda nossa sociedade, que divide o mundo entre primeira e segunda classe. E ninguém quer ser cidadão de segunda classe. Poucos são os que estão agarrados aos estudos por puro amor ao saber. Diploma é ferramenta de ascensão social e é símbolo de status. E educamos nossos filhos para “entrar em uma boa universidade e ter um futuro”. Aqueles que podem o fazem. Os que não podem, o sonham. Mas todos querem.
E então o que eu gostaria de refletir aqui é: que modelo de vida estamos ensinando para os nossos filhos? O que acontece com eles quando eles atingem esse lugar, que ensinamos que é o ápice do sucesso e estabilidade e eles ainda se encontram infelizes, frustrados, deprimidos? Nós, pessoas cuidadoras, temos realmente esse direito, ou devemos ter esse dever, de passar para frente uma fórmula de felicidade que mal funciona para nós mesmos?
A vida não está dando certo. Não precisa muito esforço para entender, é só ligar a televisão. É só conversar abertamente com as pessoas. Sem performance. De coração aberto. Trabalhamos demais. Adquirimos coisas que não sabemos muito bem para que serve. Não conseguimos realizar muitas conexões emocionais profundas. Estamos isolados. Politicamente decepcionados, frustrados, deprimidos. Sentimos medo. Estamos cansados. Desamparados.
A vida não é como nossos pais disseram que seria. Não é como a televisão mostra. Quando olhamos pela janela, não vemos esse mundo que está na TV. Será que estamos preparando nossos filhos para viver nesse mundo que existe de fato? O que acontece com a pessoa cuja vida “não deu certo”? E com aquela que rejeita essa fórmula, simplesmente porque tudo que ela quer é ser atendente da loja da esquina e ir andando pro trabalho para ter mais tempo pra fazer qualquer outra coisa que não trabalhar? Porque o que ela gosta mesmo é de passar as tarde jogando videogame?
Somos doutrinados para admirar e valorizar uma vida voltada para o trabalho. E isso é uma manobra muito bem posta simplesmente para que continuemos produzindo e produzindo e produzindo. Até que um dia percebemos que todas as horas da nossa vida foram doadas para gerar riqueza para pessoas desconhecidas, que nos exploram e em nada valorizam. E não conhecemos direito as pessoas que moram na nossa casa porque não temos tempo para conversar com elas. E as vidas são tão diferentes e tão parecidas!
Sim, nós vivemos como nossos pais em certa medida. Mas plantamos a semente de expectativas que pouco tem solo para florescer e criamos filhos que se tornam adultos frustrados quando descobrem que são pessoas comuns, limitadas, falhas. E que vivem uma vida “medíocre”, como todas as outras pessoas do mundo. E não ensinamos a lidar com o fato de que tudo bem por isso. As pessoas não são especiais, embora secretamente todos acreditem nisso. E passem a vida buscando ser reconhecidas por isso.
E criamos, e fomos criados, para morrer tentando. Tentando ser o melhor ‘alguma coisa’. Isso está nos destruindo. E olhamos para nossa vida, que pode ser boa, mas enxergamos fracasso. E desviamos o olhar das pequenas grandes coisas cotidianas que adoçam o coração e fazem valer a pena prosseguir.
E essa não é uma apologia ao fim do trabalho. Esse é um chamado para a reflexão que a nossa sociedade deu muito errado. Não é esse tipo de vida e esse tipo de valores que vão trazer alguma felicidade para nós, nem individual, nem coletivamente.
Esta vida, como esta posta na nossa sociedade, não foi feita pra dar certo.
Porque se ela der certo, as pessoas parar de consumir tanto. Porque consumir é uma maneira de se compensar por todo o sacrifício que é feito para viver essa vida que é vendida na TV. Olhem pela janelas dos seus carros. Olhem pela janela do ônibus. É lá onde a vida está. Como é possível dizer as nossas crianças que se elas tiverem um profissão, um emprego, e “estabilidade”, a vida dela “deu certo”? Você realmente acredita nisso? Aposta nisso? Você que se preocupa tanto em “preparar” o seu filho, e o matricula em mil cursos para aprender habilidades técnicas (inglês, informática, idiomas), o está preparando para viver que tipo de vida exatamente? Onde estão essas pessoas felizes, satisfeitas, produtivas, transformadoras?
Colocamos nossos filhos boa parte da vida em escolas onde parte do conteúdo se perde por completa desvinculação com a vida cotidiana. Obrigamos adolescentes que mal aprenderam a ajeitar o absorvente na calcinha e a fazer a própria barba a decidirem por uma profissão que vão exercer pelo resto das suas vidas. Vendemos para estas meninas e meninos a ideia de que existe um único modelo de vida que funciona. E punimos com a “decepção paterna” caso eles rejeitem esse modelo. Se não estudam o que gostaríamos, se não trabalham com o que admiramos, se não querem fazer sexo com quem aprovaríamos.
O que estamos fazendo com nossos filhos? Temos realmente completa certeza de que este caminho é o que vai torná-los felizes? É isso que deveríamos esperar para eles, não? Queremos nossos filhos felizes, ou queremos que “suas vidas deem certo”?
Os modelos precisam ser questionados. Precisam ser discutidos. Precisamos entender que tipo de instrumentalização uma pessoa precisa de fato para enfrentar o cotidiano e sobreviver. Para transitar nessa sociedade de maneira transformadora, propositiva. Precisamos rever nossa escala de valores onde estar com quem se ama se torna menos importante que “ter sucesso”. Onde receber o reconhecimento de desconhecidos mobiliza mais o nosso empenho que o afeto dos nossos filhos. Onde reproduzimos um comportamento e ensinamos valores que nos transforma em pessoas individualistas, egoístas, solitárias. Onde nos separamos, nos desunimos, nos violentamos.
Precisamos parar de tentar fazer essa vida dar certo. Isso não vai acontecer. Vamos repensar o que é de fato importante e tentar construir um modelo em que fazer a vida dar certo não precise ser um objetivo. Uma sociedade em que não existam pessoas divididas em vidas que deram certo e vidas que deram errado.
Existe uma distância – considerável – da mãe que queremos ser para a mãe que conseguimos ser. E talvez por isso, toda mulher-mãe em algum momento (ou quase sempre) já se sentiu incompetente enquanto mãe. Perceba o peso dessa palavra: “incompetência”. Não ter competência de. Não ser capaz de. Toda mãe em algum momento (ou quase sempre) já se sentiu incapaz. Será que estamos olhando pro que fazemos ou pro que acreditamos que deveríamos ser feito? E aquilo que acreditamos que deveria ser feito, porque a mídia disse, a família disse, o blog disse. É possível? É realmente possível ser essa mulher-mãe com tantas competências?
Nessa hora em que nós sentimos aniquiladas porque não ticamos todos os itens do check list das nossas expectativas é preciso um pouco de generosidade. Generosidade com nós mesmas. Que é tão difícil de nos oferecer porque fomos ensinadas a sempre dar e nada receber. Porque aprendemos que verdadeira e boa mãe sempre se sacrifica.
É importante sermos generosas com nós mesmas para podermos contemplarmos sem chicote na mão os resultados que conseguimos obter. Que estão ali na nossa frente. Tirar um pouco o foco de tudo que ainda não fizemos e admirar com orgulho aquilo que conseguimos fazer.
Porque somos mulheres, humanas e limitadas. E a maternidade, ao contrário do que apregoam, não dá super poderes. Não nos torna divinas. E o custo de dar conta de tudo é alto demais. Pra qualquer um. Porque é preciso uma aldeia pra cuidar de uma criança e via de regra nos sobra fazer tudo sozinha. Não dá.
A sociedade capitalista cria problemas o tempo inteiro para a maternagem para vender as soluções. A maternidade é a única função possível que o patriarcado nos ofereceu e ela tem que ser cumprida à risca segundo seus parâmetros. Mulheres são treinadas para vigiar umas às outras e a competirem incessantemente pelo posto de melhor esposa, melhor mãe, mulher mais bonita.
Aceite com generosidade e orgulho aquilo que você consegue oferecer ao seu filho. Se dê algum crédito. Tem uma sociedade inteira de dedos apontados querendo te colocar nesse lugar de angústia, dúvidas e incertezas. Há toda uma máquina que lucra com seu medo. Há toda uma socialização que te empurra para esse lugar de achar que toda a responsabilidade pela criação de um filho é sua, que faz você sentir culpa o tempo inteiro. Que faz você dar mais do que realmente pode. Te faz infeliz. Tem gente plantando expectativas para lucrar com tuas frustrações.
Olha pra tua cria com o amor que você tem pra dar, que é o que você tem, e acolhe a ti mesma com o abraço carinhoso que certamente tua cria pode te ofertar. Acolhe a ti mesma, mulher. Aceita a mãe possível que tu és. O mundo já é duro demais para nós.
Muitas mulheres me perguntam: “devo ter filhos”, “qual a parte boa de ser mãe?”. E eu confesso que são das perguntas mais difíceis que me surgem porque a maternidade enquanto função social em um mundo onde mulheres tem sua capacidade reprodutiva completamente explorada é um massacre. Mas eu estaria mentindo se dissesse que não há nada bom ou não há felicidade possível, levando em conta a experiência individual e subjetiva das mulheres.
Para aquelas que conseguiram estar em um ponto de suas vidas que avaliam conscientemente a opção de ter filhos, o que fazer? Não sei.
Mas sei que há fatores importantes sobre a decisão de ter filhos que precisam ser considerados:
1. É preciso pelo menos duas pessoas:
Primeiro, é preciso pelo menos duas pessoas desejosas e empenhadas nessa missão porque sozinha as chances de se afogar nessa empreitada é muita alta. “Nossa, eu não posso então tentar uma maternidade solo?”. Pode, claro, mas na prática isso não se realiza, você necessariamente precisará de alguma rede de apoio para conseguir caminhar, a matemática de criar um filho completamente sozinha não fecha. Então ter alguém ali dividindo a carga de criação da criança, seja o pai, um companheiro ou companheira, uma pessoa amiga, não importa. Sozinha é da ordem do impossível para a saúde mental.
A maternidade é um mar bravio em que é preciso que se entenda bem onde está entrando e como navegar sem enlouquecer e naufragar. E preciso entender como manejar o barco e é preciso uma tripulação. Sempre.
2. É preciso entender quais as suas motivações:
Há inúmeras justificativas que damos a nós mesmas sobre isso que são um sintoma claro da nossa socialização para maternagem e da romantização da maternidade. E nem é tão difícil identificar porque que sempre são coisas falam de necessidades que não elaboramos por conta própria, mas que são clichês sociais que foram repetidos à exaustão até que nós adotássemos: como “formar família”, “atender ao chamado do relógio biológico”, “cumprir o destino de toda mulher”. Ou como solução para coisas que falam de nossas carências e questões que estamos vivendo e que creditamos a um filho a missão de resolver, como: “unir mais o casal”, “dar um irmão pra fazer companhia ao primeiro filho”, “ter alguém pra amar”, “completar um vazio”, etc. E fora a pior motivação de todas, e infelizmente a mais comum: ter um filho porque todos estão insistindo e você quer que parem de encher o seu saco.
E o problema de iniciarmos essa empreitada com motivações equivocadas ou expectativas pouco elaboradas é que é muito fácil se perder no caminho da criação dos filhos e odiar tudo aquilo. Inclusive o filho. Criar uma criança pode até atender sim a expectativas e sonhos pessoais que tenhamos mas isso será pura casualidade. Não sabemos o resultado dessa experiência, não temos controle. Criar filhos não é nunca sobre nós, nossos sonhos, desejos, sentimentos ou carências afetivas e sim sobre preparar da melhor maneira possível um ser humano para o mundo. Viver isso. Fazer parte disso. Sabendo inclusive que em muitas partes da jornada teremos um grau de dor muitas vezes mais agudo que de prazer. É algo que nos propomos a fazer pelo outro. Um outro que não se conhece ainda, que pode ou não ser como se espera, que aliás tem muita chance de não ser nem um pouco como você espera. Que não nos deve nada.
Nós navegamos nesse mar da maternidade pelo prazer de navegar, de guiar o barco, sentir a ondas, o vento no rosto. A beleza do nascer e do pôr do sol. É pelo céu estrelado. Porque não há um mapa indicando qual terra está à vista. Qualquer bússola não nos serve para muito. Não há uma terra para aportar, um filho não é um objetivo, ele não tem que nos dar nada. Crianças são pessoas.
Qualquer coisa fora disso pode criar uma relação de dívida para com um indivíduo que nem nasceu ainda e na real poderia nem nascer porque o mundo está aí lotado de gente, não é mesmo? Se isso está acontecendo dentro de um movimento consciente e minimamente planejado, é importante entender que a criança realmente não tem que atender a expectativas de ninguém porque efetivamente é o popular “ela não pediu para nascer”.
Ter filhos é sobre empregar seu tempo e sua energia para criar crianças pro mundo da melhor maneira possível, sem recompensas no horizonte. É um trabalho sim, que exige demais, exige apoio, exige ajuda, exige dedicação e que vai exigir entrega também. De TODOS os envolvidos, repito. E o ganho é fazer parte desse processo.
3. É preciso entender o que é a maternidade e o que é ser mãe de fato, para a sociedade patriarcal:
A despeito do que nós entendemos e como nos pensamos enquanto mães, da porta para fora a conversa muda. A sociedade tem muito bem desenhado o papel da mulher-mãe, o que ela pode e não pode fazer, o que ela deve realizar, como ela será cobrada, que lugares ela pode estar, como ela pode se comportar e principalmente, que punições irá receber. Há limitações objetivas que a maternidade impõe às mulheres, e é preciso conhecê-las.
Então quando você pensar em ser “mãe”, é importante não se concentrar apenas naquilo que você pensa que uma mãe deve ser, mas sobre como você passará a ser vista, pensada e tratada socialmente. Entender que, como mulher, você será sempre responsabilizada. Que a presença inicial de um pai (mesmo consciente, ativo, engajado) não garante nada pro futuro porque homens são socializados de uma maneira completamente diferente para a paternidade e que se eles quiserem realmente fugir à responsabilidade… irão. É importante saber que não há um sistema a seu favor, não há um Estado a seu favor, não há uma sociedade a seu favor. É importante saber que existe uma romantização tremenda em cima da maternidade, que mulheres mentem sobre suas realidades porque sentem-se coagidas, perdidas e um tanto enganadas. E que é especialmente confuso porque muitas vezes elas amam e odeiam na mesma medida o que estão fazendo. Você será vigiada, culpabilizada e monitorada e terá um outro tipo de vida pela frente talvez bastante diferente do atual, onde por um tempo muita coisa deixa de ser sobre você e passa a ser sobre esse filho.
E portanto, para mulheres, decidir-se por ter filhos requer sim é algum planejamento. Que não passa só por tomar vitaminas, mas uma organização de vida, emocional, profissional, financeiro, de rede de apoio. Tentar entender as diversas demandas decorrentes da criação de crianças e salvaguardar-se para atender sem tantos sacrifícios.
É preciso ressaltar também que, enquanto experiência objetiva, as possibilidades de uma vivência mais plena e tranquila da da maternidade são bem mais aumentadas com o acesso a determinados privilégios de raça e classe que são capazes de atenuar muitos dos desafios impostos a essa tarefa. Por exemplo, ter segurança alimentar, segurança de moradia, uma rede de apoio consistente, fazem toda diferença (e isso quase sempre está relacionado a ter dinheiro). Isso é um fato dado, mães de filhos brancos de classe média não precisam se preocupar, por exemplo, em ensinar aos seus filhos como entrar em lojas sem serem seguidos pelo segurança.
A parte boa em ser mãe
Do ponto de vista pessoal, a maternidade te oportuniza uma profunda mudança interna e a possibilidade de uma visão bastante integrada e consciente da sociedade. São mudanças profundas que podem nos tornar uma pessoa completamente diferente, muitas vezes num aspecto positivo. E maternidade não santifica, não reforma caráter, não cura dores da alma, mas te desafia e te coloca em lugares que você não esteve, e te exige coisas que você nem sabia que tinha pra dar. E isto pode ser transformador sim. Quase sempre é.
(Pessoalmente, eu aprendi tanto nesses anos de maternidade, com uma criança, quanto em trinta e tantos anos anteriores. Aprendi sobre mim, sobre o outro, sobre o mundo. Eu não estaria aqui hoje, escrevendo para vocês se não fosse essa experiência.)
Há também a possibilidade de acompanhar o crescimento de uma pessoa e acredite isso é uma das experiências mais lindas que se pode ter. Ver o seu desenvolvimento, ensinar coisas, mostrar o mundo. Compartilhar as primeiras descobertas de uma criança conhecendo o mundo nos dá a oportunidade de tomar contato com sentimentos muito belos e apaziguadores, como a ternura e a esperança.
Há a responsabilidade de oferecer instrução, valores e explicar o mundo para um pessoa que irá crescer e tomar seu lugar nessa selva que é a vida. Nós mulheres somos educadas para sermos as capatazes do patriarcado, não me canso em dizer. E observar atentamente os valores que passamos para a frente pode ser revolucionário.
E há o amor. Que não posso afirmar que seja universal, que sei eu do coração de todas as mulheres? O amor não é uma coisa automática, que surge só porque se tornou mãe, mas sim uma construção fortalecida pelo vínculo que se estabelece no cuidado, no convívio, na responsabilização pelo outro. Mas é um fato, uma vez lá, é um sentimento colossal. Tão intenso que chega a doer. Mães não estão loucas, ou inventando, ou romantizando quando falam sobre isso, e vocês podem atribuir ao que quiser, a hormônios, a socialização, no fim não importa tanto.
E sim, é muito difícil separar o que é maternidade compulsória e romantização da maternidade do legítimo desejo de viver essa experiência. É muito difícil dizer se a maternagem, individualmente falando, e a despeito de todas as variáveis que uma mulher tenha a sua disposição (favoráveis e desfavoráveis) vai ser plena e feliz ou não. Social e politicamente falando, a maternidade é um grande problema para mulher. Mas fato é que, individualmente, é uma experiência que pode sim oferecer muita alegria e plenitude. E realização. Não há como tirar isso de tantas mulheres que chegaram nesse lugar. Negar essa vivência legítima.
E sim, em uma sociedade de maternidade compulsória, falar sobre motivos “válidos” para ter filhos pode parecer um tanto “elitista” no sentido de que hoje apenas pessoas muito privilegiadas conseguem dar-se ao luxo de cercar-se de tantas variáveis para poder vivenciar uma parentalidade mais plena. E é justamente por isso que precisamos politizar e discutir esse tema. Porque mulheres não deveriam ser fábricas de produzir gente. Mulheres são pessoas e não ter filhos deveria ser o padrão, e não o contrário. Não deveríamos ser tratadas como máquinas de produzir pessoas, assim, todas aquelas que finalmente decidissem pela tarefa de gestar e criar crianças o fariam pelo melhores motivos possíveis para si e para o outro e receberiam todo o reconhecimento, apoio e valorização pela realização da árdua tarefa de produzir cidadãos para manter a sociedade funcionando.
Então, para as mulheres que estão navegando nesse mar da maternidade, ou querem navegar, eu desejo que todas possam curtir plenamente a parte boa de ser mãe. E que a luta política de tantas pessoas em torno das pautas maternas possa permitir que todas as mulheres possam escolher de fato caso queiram ter a experiência da maternidade e ter apoio para isso. Para uma vivência mais feliz e plena. Tendo mais tempo com seus filhos. Tendo apoio da família. Tendo a correta divisão de responsabilidades sobre tudo com o pai da criança. Tendo políticas de Estado. Tendo apoio dos sistemas de saúde e dos sistemas educacionais. Tendo seus filhos respeitados no espaço público. Tendo apoio da comunidade.
E que a parte boa, essa possibilidade de aprender, se transformar, ajudar na educação de um novo ser, vivenciar esse amor intenso e belo, se sobressaia a toda dificuldade inerente. E que possamos chegar em um momento que a maternidade não seja mais uma coisa compulsória que atravessa a vida das mulheres sem elas pensarem a respeito munidas de todas as informações possíveis.
Exercer a maternidade é dançar uma estranha dança da solidão. Como é possível sentir tão só em um momento da vida que é quase que literalmente todo preenchido pela presença dos filhos é possível?
Conversando com outras mulheres, é possível notar como o maternar pode ser desalentador e opressivo. Quase nenhuma mulher, atualmente, está preparada de verdade para o que significa a maternidade. Não há literatura, filmes, novelas, séries, publicidade, escola, família… nada que de fato faça entender o que a espera, em termos físicos, emocionais, sociais, psicológicos. Antes, a maternidade é apresentada como um privilégio, como bênção, como um dom divino que nos arrebata a um patamar sagrado. A ponto de mulheres desejarem engravidar para alcançar um novo status na sua comunidade. E esse “altar” a que somos elevadas nos condena a uma vida de solidão, desamparo e profundo silenciamento.
De onde vem a solidão materna?
1. O silenciamento das emoções
Quando uma mulher engravida, já há todo um script ditando como ela deve se comportar, pensar, agir e principalmente sentir. Há um manual, um guia invisível de boa conduta que rege o comportamento da futura mãe. Ela é tutelada e perde autonomia. Vira uma “mãezinha”. Gestantes não podem se sentir mal e reclamar da dor física, da confusão emocional, do desconforto, do desequilíbrio psicológico, do medo, e da fragilidade que uma gestação traz, afinal “está carregando um milagre”. A quem uma mulher-mãe consegue dizer “eu não gosto de estar grávida”? ou “eu não estou feliz por ser mãe”? ou simplesmente “estou com medo”?. Que mulher não sente culpa por se sentir assim? Já que é doutrinada por todos os cantos para achar que uma gestação e filhos devem ser a coisa mais importante do universo para ela?
Com quem conversar? Amigos sem filhos se afastam ou simplesmente não compreendem como é o novo mundo daquela mulher e o abismo entre as realidades muitas vezes causa afastamento emocional ressentido. A família, na expectativa de ajudar, pode acabar atropelando a autonomia da mãe e igualmente lhe nega o direito de se sentir infeliz ou confusa ou angustiada com a maternidade.
Com quem uma mãe consegue desabafar sem julgamentos?
2. Ausência do pai
O pai da criança, quando ainda está lá, via de regra, se faz apenas de corpo presente, não assumindo sua parte na responsabilidade dos cuidados com os filhos e a casa. E ainda acaba sendo mais um problema que uma solução, comportando-se como um segundo filho, fazendo cobranças extras para a mulher já sobrecarregada, e sendo incapaz de compartilhar as questões que assombram as mães no cuidado com os filhos.
Quantos pais você conhece que estão ativos em grupos de cuidado com crianças buscando ou compartilhando informações? Quantos grupos de pais-cuidadores existem discutindo criação e cuidado com os filhos? Quantos pais aparecem apresentando dúvidas em grupos de pediatria? Quantos em grupos de alimentação, carregamento de bebês, sono, educação, escola? Quem, no fim das contas, carrega sozinha o peso de aprender como cuidar de uma criança? E acertar sempre? Quantas mães conseguem compartilhar com seus companheiros todas as dúvidas, questões, problemas, medos, angústias, e decisões inerentes a criação e cuidado das crianças? Quantas mulheres conseguem compartilhar com seus companheiros suas angústias em relação a transformação que ocorre na sua vida com a maternidade, na sua individualidade, e serem aceitas e compreendidas nas suas dificuldades?
3. A exclusão social das mães
Mulheres-mães vivem uma quarentena sem fim onde tudo o que existe no seu mundo obrigatoriamente tem que ter a ver com o seu filho. São expulsas do espaço público. Constrangidas por amamentar em espaços abertos. Suas crias são abertamente alvo de ódio por conta do comportamento infantil. Essa é uma sociedade intolerante com crianças. Não há acolhimento para as mães e suas demandas. Não há acolhimento para as pautas maternas. Crianças e suas mães são vistas como um problema. Uma carga. Um peso vulnerável. Mulheres são coagidas a manter seus filhos sempre “sob controle”, longe de espaços onde podem ser um “incômodo”. São integralmente culpadas por qualquer comportamento desviante da norma que seus filhos possam apresentar. Poucos são os olhares solidários. Fique longe, é o que a sociedade sutilmente diz.
4. A sobrecarga de responsabilidades
De repente a mãe se torna praticamente a unica responsável pela gestação, nascimento, sobrevivência e socialização de outro ser humano. Para a sociedade, o pai é uma figura absolutamente acessória e secundária. E não é possível falar em escolha da mulher quando não existe nenhum contraceptivo que realmente a proteja. Não quando meninas ganham como primeiro brinquedo uma boneca e são massacradas pela ética do cuidar como principal aprendizado. Não quando é vendido para a mulher que a felicidade e completude se realiza através da maternidade. Homens não conhecem esse peso. Não são educados para paternidade. Meninos ganham carros, aviões e promessas de uma vida de aventuras e é isso que saem em busca por toda sua vida.
Mulheres estão sobrecarregadas. Estão, na prática, sozinhas na tarefa de criar os filhos. Todos os dedos apontados. Com quem ela pode contar de fato? Não há políticas de Estado que apoiem efetivamente uma boa maternagem. Não há uma cultura de compartilhar socialmente a responsabilidade pela criação das crianças. Sequer há uma cultura que constranja os homens a assumirem seus próprios filhos. Por mais que possam existir as condições satisfatórias para algumas mulheres, essas são a exceção na sociedade. A regra é a maternidade ser uma empreitada feminina, sempre.
A dança da solidão
Nós, mulheres, somos forjadas no aço da solidão e do desamparo. Não somos socializadas para sermos irmãs, companheiras ou amigas e sim mães, cuidadoras, responsáveis, carregadoras do peso do mundo. Não precisamos ir muito longe, inclusive, pra entender isso, está nas novelas, nos filmes, na publicidade, na literatura. Quantas belas histórias você conhece sobre amizade entre mulheres? Sobre amor entre mulheres? Sobre companheirismo entre irmãs? E quantas histórias lhe foram contadas sobre o amor entre uma mulher e um homem, e sobre como a vida finalmente encontra um sentido, principalmente quando nascem os filhos?
E nos são atiradas todo dia as migalhas da expectativa da felicidade através do amor. Senão o amor do marido, o amor dos filhos. Maternidade não é somente sobre amor. É sobre cuidado. E cuidar de outro ser de maneira tão intensa é exaustivo. Não é possível de ser feito sozinho. Mulheres estão sendo atiradas nesta empreitada por conta própria e naufragando num mar de solidão. Silenciadas, incompreendidas, isoladas, excluídas e obrigadas a ostentar eternamente um ar de felicidade. Porque são mães.
Dizem então que “ser mãe é padecer no paraíso”. Perceba a crueldade dessa frase. Você vai chegar no paraíso. E vai padecer. Não há nada mais solitário que isso.