O patriarcado é o sistema social que produz a dominação masculina na sociedade. Dessa forma, há 3 leis do patriarcado para os meninos que eles devem aprender para que cresçam e se tornem os homens que garantirão a manutenção dessa estrutura de poder, que sustenta-se através da exploração sexual e reprodutiva de mulheres.
Esses conceitos embora não sejam ditos abertamente, tampouco são ensinados de maneira “sutil”, ao contrário, estão presentes em cada elemento da nossa cultura, nos valores das nossas instituições, nos nossos símbolos, no nosso imaginário social. E por isso é preciso muita atenção tanto para reconhecer quanto para assumir uma postura crítica cada vez que uma dessas três normas são apresentadas aos meninos:
homens têm a supremacia: para onde meninos olham são apresentados a modelos da supremacia, dominação e onipotência masculina. Deus é homem. Assim como os reis, a maioria esmagadora dos líderes mundiais, todas as grandes figuras históricas, cientistas, artistas. Todas as figuras admiráveis por seus feitos e contribuições para a humanidade. Nos filmes, desenhos, os protagonistas são homens. Se não são protagonistas tem mais tempo de tela, mais falas. E quando se olha em volta vê o pai, amigos, parentes, vizinhos, todos homens comuns, sendo sempre em alguma medida servidos por mulheres. E ele nota como, mesmo sendo criança, já possui privilégios de tratamento em relação a meninas, seja no próprio núcleo familiar, seja na escola, ou em outros ambientes. É muito fácil para um menino, principalmente se for branco, com dinheiro, crescer com a noção de que é o centro do universo. O mundo é masculino e são homens que dominam a história, economia, os governos, a produção cultural, a ciência, indústria, mercado, tecnologia, entretenimento. Em toda parte são homens produzindo sobre si e para si e meninos aprendem muito claramente que são os herdeiros da terra. Mas não existe um dominador sem os seus dominados e a segunda lei do patriarcado que meninos aprendem é sobre reconhecer quem serão seus servos.
mulheres são inferiores e existem para servir ao homens: a primeira coisa que meninos aprendem sobre si é que eles não são meninas. E que ser uma menina é a pior coisa que pode acontecer visto que elas são a medida de tudo que é inferior e indesejado na sociedade: se meninos são fortes, meninas são fracas, se meninos são rápidos, meninas são lentas, se meninos são espertos, meninas são tolas, se meninos são inventivos, meninas são fúteis, meninos são legais, meninas são chatas. “Menina”, “mulher”, é sinônimo de imperfeição e motivo de escárnio, e nenhum menino quer “parecer mulherzinha”, “correr como menina”, “chorar como menina”, “andar como menina”. O que meninos aprendem sobre meninas é que elas são o outro, são a negação de si, são o oposto, o fraco. Se meninos aprendem que são superiores, muito rapidamente entendem a quem são superiores: às meninas. Homens não aprendem a amar mulheres. Não aprendem a admirá-las, não conhecem seus feitos, suas grandes obras, suas descobertas. Não se interessam pelo que pensam, pelo que produzem. Ao contrário, aprendem a desprezar mulheres, a sentir “nojo”, e isso tem nome: misoginia. Uma única coisa é mostrada à exaustão sobre mulheres como aquilo que deve ser desejado, ambicionado e conquistado: o corpo feminino, seu sexo. Porque mulheres são desumanizadas e objetificadas. Uma única coisa é ensinada que mulheres tem a oferecer para homens: seus serviços de cuidado do lar e dos filhos, preferencialmente homens, para que ele transmita seu legado. Meninos aprendem que mulheres existem para servi-lo, que o corpo feminino existe para excitá-lo e dar prazer, que o ventre da mulher existe para gerar seus filhos, e que ele tem o direito de tomar uma mulher para si quando quiser. E mais, aprendem que só são homens com H maiúsculo quanto tomam o maior número de mulheres possível para si. Essa é a mensagem que é passada em toda parte, desde a Bíblia, até repaginada em qualquer comédia romântica blockbuster da Netflix. E meninos aprendem então a terceira lei do patriarcado, que é qual a estratégia para manter a dominação sobre mulheres, e sobre tudo mais que quiserem.
a violência é o recurso para transitar no mundo: meninos aprendem que a violência e a agressividade são características não só aceitas, mas desejáveis e valorizadas, na sua personalidade. São incitados a demonstrar uma pretensa “virilidade” traduzida em um comportamento agressivo, dominante, impaciente, vendido como característica “intrínseca” a “machos”, como sinal de “muita testosterona”. Meninos são estimulados a “não deixar barato”, a “falar grosso”, a gritar para se impor. Toda a nossa cultura vende a ideia de homens “fortes”, “conquistadores”, “heróis”, sempre usando a violência. Intimidar, humilhar, bater e matar pessoas são recursos validados desde sempre como forma de “defesa”. E meninos são massacrados com essa ideia, precisam o tempo inteiro provar sua “virilidade”, “que não choram”, “que não tem frescura”, “que aguentam”, que “não são mulherzinhas”. Meninos que não demonstram força, agressividade, disposição para violência, impiedade, são rejeitados, humilhados, taxados de “afeminados”. Quando não agredidos, “para aprender”. Porque é através da intimidação e do medo, que meninos aprendem que devem buscar o que querem. Para homens ser amado, respeitado é o mesmo que ser temido. E eles esbaldam-se nessa sensação de onipotência que essa sensação de poder confere, e protegem uns aos outros em sua violência, são cúmplices, omissos. Porque são irmanados na profunda desintegração de toda sua sensibilidade e empatia, o preço que pagam para receber os privilégios do patriarcado.
Essas três regras, em conjunto, organizam o comportamento dos homens no mundo. Meninos crescem realizando a soma desse bombardeio incessante de mensagens que dizem o tempo inteiro: “você é especial apenas por ser menino”, “meninas são inferiores”, “você deve ser forte, você deve ser vencedor, você deve dominar o inimigo”, “você não pode aceitar que te desafiem”, “você não deve aceitar não como resposta”. E como resultado concluem que “você é um ser superior às mulheres e portanto pode usar a força e a violência para dominá-las”, ou “você deve sempre ser atendido em todos os seus desejos e nunca deverá ser frustrado, principalmente por uma mulher, não permita que isso aconteça”, ou “é você e os seus desejos que importam e você deve sempre cuidar de si, e não se preocupar com mais nada”, ou “mulheres existem para servi-lo e nada mais”, ou “você é homem e pode fazer o que quiser e nenhuma mulher poderá impedi-lo”.
Homens aprendem que são os donos do mundo, que podem e devem conquistar tudo e que mulheres são seu espólio de guerra.
E portanto, se há um caminho possível na educação de meninos para um mundo menos sexista ela está em começar a combater esses valores que são incrustrados desde o nascimento. A ideia de que são especiais demais apenas por terem um pênis. A ideia de que meninas são seres desimportantes, inferiores, indignos e sulbalternos e toda a misoginia insidiosa que a sociedade injeta na veia, e principalmente o repúdio da violência como linguagem de estar no mundo. Meninos precisam ativamente repudiar e combater a agressividade dos seus pares, abandonarem a ideia de que tudo podem apenas porque querem, porque gritam, porque batem, porque intimidam. Aprender a transitar pela via do diálogo, aprender a lidar com a frustração, com a recusa, com a rejeição, recusar a onipotência oferecida pelo patriarcado.
E minar esses valores passa pela vigilância constante, pelo reconhecimento, nomeação e crítica. O que significa dizer o tempo inteiro ao seu filho “isso que você está vendo parece bom, mas é errado porque está te ensinando que (insira aqui alguma lei do patriarcado). E esse valor tem como resultado um mundo em que meninas e mulheres são exploradas e mortas. E queremos um mundo melhor que esse.” Difícil? É sim. Funcionará? Não sei. Mas é o melhor que temos pra hoje para nossas crianças. Olhar de frente para o problema e continuar lutando.
Há 3 leis do patriarcado para as meninas que elas devem aprender. Toda sua socialização será conduzida em torno dessas máximas implacáveis que conduzirão toda sua experiência de ser mulher. Vejamos então:
homens têm a supremacia e definem quem as mulheres serão Primeiro meninas entendem que homens são pessoas e aprendem a perceber-se a partir de tudo aquilo que um homem não é. Então, por exemplo, se o homem é ser o forte, dominante, potente, etc; para mulheres só resta ser o fraco, o dominado, o impotente. Se o masculino é a “luz”, o “dia”, o feminino é a “sombra”, a “noite”. E daí em diante. Não há espaço na sociedade para que mulheres sejam outra coisa que não o oposto complementar dos homens. Há todo um princípio essencializante que opõe homens e mulheres como se suas psiques fossem distintas por natureza, quando na verdade é a socialização que vai moldando a menina na ausência, no silêncio, no não-ser, na domesticação dos seus talentos e capacidades para cultivar apenas os atributos que interessam para construção desse estado de subserviência a que chamamos de feminilidade. Toda menina passa por um completo esmagamento da sua estima e noção de valor pessoal fazendo com que tenha uma total perda de referencial sobre o que ela pode tornar-se, ficando completamente refém de parâmetros completamente definidos por homens. Tudo que é produzido sobre nós, como somos descritas nos livros, retratadas nas produções audiovisuais, pinturas, fotografias, a moda que vestimos, toda nossa autoimagem, nossa função social e nossas possibilidades de estar no mundo são produzidas por homens, por sua interpretação sobre nós e com objetivo de mantê-los dominantes. E por isso mulheres são profundamente dependentes da aprovação masculina sobre si, porque internalizam todo o ódio que a sociedade demonstra para com elas e precisam sempre de um homem, o olhar do “criador”, avaliando, aceitando, e validando sua existência enquanto fêmea. Mulheres sob o patriarcado não tem a oportunidade, enquanto classe, de pensarem-se para fora do binômio que são obrigadas a realizar com homens, pensarem-se fora do olhar, do julgamento e da opressão masculina. Uma mulher que foge dos estereótipos de feminilidade que são impostos é chamada de “homem”, porque eles são o padrão. E mulheres só podem existir de acordo com as regras masculinas e a serviço dos homens. E para sedimentar isso que a toda menina conhece desde sempre a segunda lei do patriarcado.
mulheres são inferiores e existem para servir aos homens Na sociedade patriarcal mulheres existem com um único propósito: cuidar e servir aos homens. E esse estado mental de subalternidade é preparado com muito esmero pela socialização feminina. Em primeiro lugar meninas são bombardeadas com a mensagem de que seu principal talento é a capacidade de cuidar. Escutam que são mais cuidadosas, mais atenciosas, mais delicadas. Escutam que tem o “dom” da limpeza e da organização, que são mais asseadas. Que tem o “dom” da maternidade, um “relógio biológico”, uma “missão”. Ela será chamada de “rainha” do lar e acreditará realmente que possui algum dom especial para o cuidado sem se dar conta que isso só é verdade porque ela foi treinada nessas tarefas desde antes que pudesse sentar sem ajuda, já com uma boneca de brinquedo no colo e um conjunto de panelinhas. E ela vai sentir-se culpada se não ocupar esse lugar de responsabilizar-se por tudo e por todos. E será esmagada pela ideia incessante de que a melhor coisa que pode acontecer com ela é ter um marido e ouvirá com muita naturalidade que deverá “cuidar” dele, a ponto de mal se questionar do porquê esse homem não poderá cuidar-se sozinho, já que é adulto. Muito facilmente essa menina entenderá que o lugar dela no mundo é “cuidando” de tudo e de todos, porque ela tem “instinto maternal”, “instinto feminino”, porque é “coisa de mulher”. Que uma mulher só é completa se estiver casada com um homem, cuidado dele, da casa, dos filhos. Essa é a mensagem que ela escuta. Esse é o final de todos os livros, todos os filmes, todas as histórias que ela lerá, e isso será chamado de “final feliz”. E ela será inundada por promessas de que é o amor de um homem que vai finalmente tampar essa enorme carência que a socialização cria nas mulheres e também muito precocemente será instruída sobre como sexualizar-se para atrair a atenção masculina e será levada a acreditar que ser desejada sexualmente é “como homens amam mulheres”. E vai aprender qual é o padrão de beleza definido pelos homens para ela e fará qualquer coisa para atingi-lo. E jovem demais começará a ser assediada (e isso será considerado bom, afinal significa que ela está “tornando-se mulher”) e talvez seja engravidada antes que se dê conta, e mal terá a chance de pensar em qualquer outro destino para si que não esteja a serviço do cuidado não-remunerado da vida de algum homem. E ela não verá nada de errado nisso afinal aprendeu muito bem o que é ser mulher e para que elas servem. E ela verá o que acontece com todas as mulheres que fogem desse destino inexorável, que recusam-se a amar homens, desposá-los, ter filhos, ou que recusam-se a dedicar-se a tarefas domésticas. A terceira lei do patriarcado se encarrega bem desse ensinamento.
se você não seguir as leis patriarcais será punida violentamente O primeiro sentimento que meninas aprendem a cultivar e que carregam consigo por toda vida é o medo. Por toda parte, muitas antes que possam realmente lembrar-se, elas tomam contato direta ou indiretamente com a violência masculina. Toda mulher tem uma história de horror pra contar, e essa história invariavelmente vai envolver um homem. A agressividade masculina é naturalizada e celebrada como sinal de virilidade, a ponto de mulheres aceitarem pequenos e grandes abusos como fazendo parte da “natureza” do homem. A violência sexual sempre foi tradicionalmente uma arma de guerra, e é um recado silencioso que homens enviam para mulheres, o tempo inteiro. Vivemos aterrorizadas, inseguras, e aprendemos erroneamente que o perigoso é o que está lá fora, o estranho, e que precisamos de estar sob a tutela de um homem para nos proteger, enquanto a realidade é que os índices de relacionamentos abusivos, violência doméstica, abuso sexual intrafamiliar explodem. Embora nenhuma mulher esteja livre de violência, um recado claro é enviado: a que é atingida é a “desviante”, aquela que estava “procurando”, e por “procurando” é inserido todo e qualquer comportamento que fuja da agenda patriarcal da mulher servil e obediente. E isso é tão cruelmente entranhado na nossa socialização que muitas mulheres vítimas de violência realmente acham que “mereceram”, que “provocaram”, que “fizeram alguma coisa”. Sentem culpa pela violência que sofreram e não só muitas vezes justificam como protegem seus abusadores. Porque o estado mental da mulher sob o patriarcado é o da Síndrome de Estocolmo. A justiça é um sistema criado por homens para servir aos seus interesses e não proteger mulheres e crianças da violência masculina, e nem teria como, porque esta violência endêmica é a estratégica para manter mulheres caladas, amedrontadas, dentro de suas casas recolhidas, temendo rebelar-se, temendo ser mortas, violentadas, perder seus filhos. O medo é a estratégia final pela qual homens controlam mulheres e para isso meninas são aterrorizadas e fragilizadas desde cedo.
Essas três regras, em conjunto, organizam o comportamento das mulheres no mundo. Meninas crescem realizando a soma desse bombardeio incessante de mensagens que foram todas organizadas e mantidas por um sistema controlado por homens. E cujo resultado passa uma mensagem muito clara: “ser mulher é ser a sobra, o resto, tudo aquilo homens não querem ser por ser o “negativo”, por não ser conveniente aos seus interesses de dominação. Homens são pessoas e mulheres são um objeto que dão forma. Você deve existir para servi-los, em qualquer esfera, e principalmente sexualmente. Você deve existir para cuidar da reprodução da vida enquanto eles conquistam o mundo. E se você recusar-se a obedecer, se você recusar-se a seguir as leis patriarcais, você irá pagar muito caro. Talvez com sua própria vida.”
E portanto, se há um caminho possível na educação de meninas para um mundo menos sexista ela está em criar medidas eficientes para proteger meninas e mulheres da violência masculina, porque apenas sem tanto medo é possível começar a rebelar-se de fato. Precisamos desde já a ensinar meninas e mulheres a defender-se com eficiência, com técnicas de autodefesa corporal e o que mais for necessário.
Precisamos nos manter atentas para cotidianamente fazer a crítica, junto as nossas meninas, de tantas mensagens de heterossexualidade compulsória, maternidade compulsória, socialização para o cuidado, romantização dos relacionamentos, que empurram mulheres muito precocemente para esse lugar de servidão aos propósitos masculinos.
Precisamos proteger a estima das nossas meninas, tirar a centralidade da sua importância do corpo, da aparência física. Vamos abandonar esse discurso de beleza, que é preciso ser bela, que é preciso “se aceitar” (que nada mais é que uma variação do discurso de que só a beleza importa”. Meninas precisam-se entender-se como seres completos. Como pessoas. Como indivíduos com permissão a parecer-se como quiser, vestir-se como quiser, sem precisar da validação de ninguém sobre sua aparência — como homens fazem.
Precisamos dar as meninas a chance de descobrirem por sim mesmas afinal o que é ser mulher, que não passa por ser bela, usar batom, saia, cabelos dessa ou daquela maneira. Que não passa por ser “feminina”, “doce”, “frágil”, e toda a gama de estereótipos que existem apenas para reforçar esse lugar de subalternidade aos homens.
Meninas precisam da oportunidade de serem pessoas. De serem como quiser e continuarem sendo meninas, mulheres. Livres. Finalmente livres.
Eu sou feminista, e sou mãe de um menino que hoje tem 8 anos e cresce para meu orgulho e espanto como um produto perfeito das disputas diárias que travo contra o patriarcado na sua socialização.
Ele é um menino doce, sensível, engraçado e com poucos amigos possíveis porque eu o ensinei a repudiar a linguagem da violência nas suas relações. É o que percebo que ele vem tentando fazer. E isso já está cobrando um preço.
Meu filho não se enturma muito com os outros meninos. E também não encontra lugar junto das meninas. Na escola, a esta altura, quase todas as brincadeiras envolvem brigas, disputas e bullying. Ele acha tudo “muito violento” e já sofre suas primeiras punições, sendo ostracizado, ou então abertamente ofendido por seu comportamento um tanto desengajado desses dramas.
“Mamãe, na escola ficam me xingando quando eu não quero brigar”, ele me conta. “E você fica chateado?”, eu pergunto. “Não. Eles são muito violentos.” Ele responde.
Um lado meu sente orgulho. O outro lado sente a dor de saber que ele está sendo rejeitado, que está sendo provocado, está solitário, precisa encontrar um lugar para si no meio dessa balburdia.
“A vida é uma selva, meu filho”, eu digo. Ele ri. Não sabe que eu estou falando muito sério.
O meu filho precisa de bons amigos. Acho que é por isso que eu passo os dias dizendo as outras mulheres que é possível socializar crianças com mais amor, menos violência, mais consciência. Eu não sei por quanto tempo ele vai sustentar os valores que vamos ensinando, em nome de não se sentir um outsider. Em nome de participar do pique-pega. Não é justo que eu tenha que entregar a alma e o coração do meu filho a este sistema tão injusto, que vai devorá-lo, que vai consumi-lo e vai cuspir de volta um homem sem alma, que tem a violência e dominação como linguagem de estar no mundo para que ele possa ter alguns amigos.
Eu me recuso a criar um homem escroto para ele ser “aceito”. Eu me esforço todo dia para que meu filho possa ser uma pessoa melhor em um mundo melhor, mas eu também preciso convencer outras pessoas sobre isso. Que vale a pena criar crianças melhores. Para que todas essas crianças que hoje estão sendo criadas de um jeito diferente, por corajosas mulheres que vão tateando, meio aterrorizadas, ensinando-as a ir contra a corrente, possam um dia se encontrar, se reconhecer, saber que não estão sozinhas. Como suas mães, em algum momento também se encontraram, e também souberam.
Eu não temos realmente certeza que isso vai dar certo. Mas, qual a outra opção? Como conhecer todo o horror que representa crescer numa estrutura patriarcal, como olhar para si e ver tudo que te foi tirado, toda a violência que sofremos, como podemos criar nossos filhos impassíveis depois que a gente aprende a ver o que fizeram de nós? Não é como se eu quisesse provar um ponto, eu apenas tento, todo dia, proteger o meu filho desse trator que se aproxima chamado patriarcado.
E eu sei. Eu sei que não posso te proteger completamente, meu filho. Eu não tenho controle. Eu não posso evitar que você seja atingido por essa correnteza, eu só posso lutar com as armas que eu tenho que é te ensinar a ver os sinais, te ensinar a sobreviver na selva e quem sabe arregimentar companheiros, quem sabe criar uma tribo, a famosa tribo, que é necessária para criar uma criança.
Precisamos ter coragem de ensinar nossos filhos a serem mais conscientes, críticos e firmes no enfrentamento das mazelas desse mundo, mas também precisamos entender que essa não é uma trajetória fácil, que precisamos estar juntos. Que quando caminhamos juntos é mais fácil, faz mais sentido.
Este é um pequeno manual de instruções para vida – para meninos e homens. E porquê uma manual tão básico se torna necessário, para não dizer imprescindível? Acompanhem comigo.
A divisão do trabalho, neste mundo patriarcal, obedece a uma lógica de hierarquia sexual onde todas as tarefas consideradas “produtivas”, “ativas”, são de domínio dos homens, e todas as tarefas da esfera “reprodutiva”, “passiva”, são relegadas às mulheres. Dessa forma, há um número infindável de atividades que são classificadas como sendo “coisas de homem” ou “coisas de mulher”.
Como a sociedade é hierarquizada, homens sendo dominantes e mulheres dominadas, tudo aquilo que está na esfera do “masculino” é importante, valorizado, desejado, ou aceitável, e tudo aquilo que está na esfera do “feminino” é considerado inferior, menor, desimportante, ou um sinalizador de fragilidade.
Uma das funções da mulher na sociedade é ser um objeto que deve ser permanentemente belo e desejado. E mulheres são orientadas, incentivadas e “premiadas” para estarem permanentemente mantendo-se dentro de um determinado padrão. Mulheres sabem que seu corpo é seu principal atributo de valorização e que ele é medido e avaliado em cada pedaço, como carne no açougue. Então o corpo feminino é sempre alvo de intensos “cuidados”, e precisa sempre estar “impecável”: limpo, depilado, macio, cheiroso. E inclusive, como resultado direto disso, temos mulheres que são tão obcecadas com os cuidados do corpo a ponto de achar que coisas absolutamente naturais como seus pelos, são “anti-higiênicos”. Que acham que suas vaginas “cheiram mal”. Que acham que unhas não-manicuradas são sinal de “desleixo”.
Dessa forma, limpeza, higiene, cuidados básicos com o corpo e a pele acabam não sendo tão associados a saúde, e sim a resultados de beleza. E beleza, estar bela, é uma preocupação feminina, e portanto vista como “fútil”, “inferior”. E como pensar em limpeza e cuidados é “coisa de mulher”, do outro lado temos homens que são incentivados a serem completamente relapsos com seu autocuidado ou até constrangidos se demonstram asseio, que é confundida com “vaidade” e portanto “frescura”.
E o resultado prático disso? Homens que tem zero preocupação com cuidados mínimos de higiene corporal e que cultivam com orgulho e como prova de masculinidade a imagem de “porcalhão”. Quando mais tosco e rude, mais “macho” e celebrado entre os pares. Temos homens que mal se preocupam em tomar banho e ostentam por aí cuecas freadas com a maior naturalidade do mundo, ignorando que isso acontece por sua inabilidade (e preconceito) em limpar a própria bunda. Que têm um estado geral de cabelos, dentes, unhas, sempre de discutível a deplorável, além de outros hábitos bastante reprováveis como sempre deixar banheiros imundos por onde passam e a ideia de que tem permissão para urinar em qualquer lugar.
E a sociedade — machista — incentiva, ainda que não abertamente, esses hábitos, deixando bem claro para homens que quanto mais afastado de qualquer característica que possa ser associada com o “feminino”, mais “macho”, mais “viril” ele é.
E essa ideia começa a ser formada desde que eles são meninos, quando são muito menos cobrados para serem asseados ou quando são constrangidos (parece “viadinho”) se demonstram qualquer traço de preocupação com cuidado pessoal que possa ser confundida com “vaidade feminina”, tipo pentear os cabelos.
Dessa forma aqui vão algumas regras que parecem óbvias a serem aplicadas por todos os seres humanos, mas acredite, não o são por boa parte da metade da população nascida com pênis . E que homens podem fazer o seu check-list, e todos podem usar como um guia do que meninos não podem deixar de aprender, para a vida.
Higiene corporal e autocuidado em geral
Use um bom produto para o cheiro de suor das axilas.
Use algum produto para o suor dos pés.
Use um perfume, se gostar.
Aplique filtro solar todos os dias pelo menos no rosto.
Use filtro labial se julgar necessário.
Penteie os cabelos sempre que estiverem despenteados.
Escove os dentes pelo menos 3 vezes por dia. Use fio dental e visite o dentista regularmente para cuidar da saúde bucal.
Lave o rosto quando estiver com excesso de oleosidade e considere visitar um dermatologista.
Limpe as orelhas com regularidade para além do banho.
Corte as unhas, das mãos e dos pés.
Apare os pelos. Não precisa depilar nem raspar se não quiser e é até melhor que não faça. Pelos são proteção para o corpo. Mas mantenha-os aparados e limpos. Todos eles. Da axila, da virilha, do nariz, da barba.
Atente se possui caspa, dermatite seborréica, piolhos, etc para usar os produtos adequados para tratamento.
Beba água.
Busque dormir um número adequado de horas para um devido descanso diário.
Alimente-se de maneira balanceada e de acordo com suas necessidades fisiológicas.
Exercite-se minimamente.
Tome pelo menos um banho por dia. Do jeito certo.
Tomando banho
Tome pelo menos um banho por dia, com bastante sabão, lavando todas as partes do seu corpo. Todas.
Se você não sabe o que significa tomar um banho decente, saiba agora: Lave todo o corpo, tórax, abdômen, ombros, braços, pernas, costas, mãos, pés. Use uma esponja, esfregue, para tirar o acúmulo da sujeira.
Lave o seu pênis. Todo ele, afaste a pele do prepúcio e higienize com sabão até tirar todo e qualquer resíduo.
Lave o seu ânus com sabão até ter certeza que está realmente limpo, sem nenhum resíduo de fezes.
Lave o rosto com sabão para tirar o excesso de oleosidade.
Lave as orelhas pois elas acumulam cera de ouvido na parte exterior.
Lave os cabelos com xampu e um condicionador adequados ao seu tipo de cabelo, e lave-os pelo menos a cada 2 dias.
Enxugue-se completamente.
Verifique se as roupas não estão muito suadas, com mal cheiro, sujas, antes de vesti-las novamente, caso queira repeti-las.
Troque de cuecas todos os dias mesmo que elas aparentem estar limpas.
Usando banheiro
Aprenda definitivamente como se usa um banheiro. Ao urinar, lave as mãos antes de tocar no seu pênis;
Levante a tampa do vaso sanitário ou se você acha que é tão ruim de mira assim, urine sentado. Apenas encontre a melhor maneira para não molhar tudo porque depois é você quem deverá limpar a bagunça que fez.
Caso respingue para fora do vaso sanitário, limpe tudo com o papel higiênico.
Enxugue o pênis após urinar para tirar os resíduos de urina.
Lave as nádegas se for possível após defecar. Se não for possível limpe o ânus e arredores com papel higiênico até o papel sair limpo, o que significa que não resta nenhum resíduo. Não há nenhum problema em tocar o próprio ânus. Isso não afeta sua sexualidade. Há problema em ficar sujo a ponto de manchar a cueca por não ter sido capaz de limpar a própria bunda.
Cultive o hábito de observar o que sai de você, isso é um sinal de como vai a saúde. Urina escura e com odor forte por exemplo pode significar que você está bebendo pouca água. Fezes com cores e formatos pouco convencionais também pode significar algum problema de digestão ou indicar que sua alimentação vai mal. Presença de sangue pode significar algum problema mais grave. Aprenda a se observar.
Dê descarga.
Abaixe a tampa.
Lave as mãos.
Certifique-se que deixou o ambiente na mesma ordem que o encontrou.
Não urine no meio da rua. Não saia colocando seu pênis para fora em ambientes públicos. Isso é crime, é atentado violento ao pudor. Tenha o mínimo de vergonha na cara. Acredite, você é capaz de administrar a vontade até conseguir um banheiro. Mulheres fazem isso o tempo inteiro, você também pode, seu trato urinário não tem nada de especial ou diferente.
Dicas gerais
Ninguém está interessado nas suas funções gastro-intestinais. Embora sejam atividades naturais que o corpo executa, não precisam ser anunciados, festejados, nem são motivos de riso ou troça. São eventos absolutamente comuns a todos. Homens e mulheres arrotam e peidam. E como muitas vezes produzem um cheiro desagradável, é desejável — se possível — tentar buscar um lugar discreto e mais afastado para poder peidar e arrotar em paz sem perturbar ninguém com seus sons e odores.
A mesma lógica é válida para escarradas. Não cuspa no chão! Se não houver um banheiro, uma lixeira, um bueiro, ou nenhum lugar mais adequado para cuspir, faça num lenço, num guardanapo, ou coisa parecida e jogue fora quando for possível.
Não espirre e tampouco tussa nas pessoas! Tente usar a dobra do cotovelo.
Não fique tocando sua genitália em público. Se você está com algum incômodo, busque um lugar discreto para resolver. Se você sente coceira, e ela é constante, busque um médico. Ninguém quer ver você coçando e ajeitando o saco o tempo todo. Isso não é viril, não é sexy. Na verdade é bem desagradável e assustador.
Sente de pernas fechadas. Isso não é tanto sobre higiene mas sobre percepção corporal. Você não tem ovos de páscoa no lugar de testículos. Ocupe um lugar proporcional às dimensões do seu corpo, sem mais, nem menos.
Manter-se limpo e bem cuidado, higiene e asseio não são sinais de falta de “masculinidade”, são sinais de civilidade e auto cuidado. É sua e apenas sua a responsabilidade de cuidar do seu corpo. Não é da sua mãe, não é da sua namorada, não é da sua esposa, não é de nenhuma mulher. Isso é o mínimo que você deve fazer por si mesmo para conviver em sociedade, ser capaz de manter uma aparência limpa e asseada, ser capaz de cultivar hábitos que vão contribuir para a sua saúde. Isso não é falta de masculinidade, isso é auto-cuidado e inteligência emocional.
Ensinem aos seus meninos. Não é óbvio. A sociedade os desestimula e os desencoraja de serem asseados. A sociedade estimula e premia que eles sejam desleixados, como se fosse muito engraçado. Ele vai assistir filmes de homens que arrotam, cospem no chão, peidam em público, e todo mundo ri. Ele vai ser ridicularizado e chamado de “menininha” se demonstrar muito asseio pessoal. Meninos são abandonados muito precocemente na instrução de como cuidar de si mesmo primeiro pela impressão de que eles são autorizados a ter péssima higiene pessoal, segundo porque acreditam que sempre haverá uma mulher (primeiro uma mãe e depois uma esposa) garantindo que eles tenham um mínimo de asseio.
Meninos são perseguidos se demonstram “vaidade” e ainda recebem péssimos exemplos de todo lado, inclusive do próprio pai e outros homens da família. Não seja esse cara. Não seja um exemplo tosco para nenhum menino que o esteja observando. Ensinem meninos a serem asseados e cuidadosos com seu próprio corpo. A observarem e cuidarem da própria saúde. Por eles mesmos. Sem delegar essa responsabilidade. Sem achar que isso é “coisa de mulher” e que alguma mulher deverá estar tomando conta disso para ele por toda a sua vida.
E não permita que sua menina aceite a companhia de homens que não tenham noção de autocuidado e cuidado do ambiente. Que não tenham autonomia. Que ela terá que ficar lembrando ou cobrando coisas básicas como tomar banho, escovar dentes, abaixar a tampa do vaso que ele mesmo urina. E não faça isso pelo seu companheiro também, ele não é uma criança. Isso é maternidade compulsória. É a ideia de que mulheres tem que dar conta de homens como se eles fossem eternos bebês. É a noção de que temos que aceitar qualquer coisa de homens em troca de migalhas de atenção afetiva, passando por cima do nosso próprio
E finalmente, é uma vergonha ter que escrever um texto desses pedindo que homens façam o básico, tenham um mínimo de asseio pessoal, que é algo que renegam por achar que é “coisa de mulher”. Não existe “coisa de homem” e “coisa de mulher”. E isso vale para tantas coisas que muitas vezes nem observamos. Vejam a que tipo de coisas a misoginia (ódio às mulheres) da nossa sociedade nos leva. Podemos ser melhores que isso.
Precisamos de um pacto contra a violência na criação de meninos, criar filhos sob a sombra do patriarcado é uma tarefa brutal. Porque a lógica do patriarcado é a lógica da dominação masculina sobre tudo e todos, e isto tem um preço. Subtraímos a humanidade dos nossos meninos para que eles se tornem homens que possam perpetuar a estrutura de hierarquia que temos estabelecida.
Eu sempre me pergunto onde estão os homens bons na sociedade em que vivemos. Mulheres são dominadas, humilhadas e massacradas das formas mais vis e homens são os responsáveis por isso, seja agindo ativamente ou por completa omissão. Por que compactuam? Como não se indignam? Por que não se rebelam contra seus pares?
Eu olho para o meu filho, ele é um menino tão doce e amoroso. E eu vejo todas as mensagens que ele recebe, todo dia, o dia inteiro, dos desenhos animados, jogos de vídeo game, brincadeiras, filmes. Todas as imagens e narrativas onde um homem — ainda que por “bons motivos” — age sempre em uma escalada de violência e agressividade e no final é celebrado como herói. Eu sei, eu entendo que pode parecer meio entediante ver o Batman e o Coringa sentados conversando sobre suas dissidências ou assistir o Super Man conduzindo uma investigação policial e prendendo o Lex Luthor em flagrante sem precisar atirar nem um raio laser com os olhos, mas será que não estamos condicionados demais e condicionando nossos meninos a celebrar apenas a agressividade como método para lidar com conflitos?
Sim, nossos meninos. Isso não é um problema de garotas, que são as vítimas aqui. Meninas crescem assistindo Ursinhos Carinhosos resolverem as coisas com um arco-íris que sai de suas barrigas. Temos aliás uma questão contrária que é a ode à passividade e submissão. Meninos aprendem a ser extremamente agressivos e dominantes, meninas aprendem a ser extremamente dóceis e passivas.
Aprendem. Isso é o importante a se ressaltar. Passividade e agressividade não são características intrínsecas do sexo biológico. Isso são traços de temperamento que estão mais ou menos presentes em todas as pessoas e que vão sendo socialmente moldados, sendo reprimidos ou estimulados.
Se você tem filhos meninos faça esse exercício por uma semana: atente para todas as mensagens que esta criança recebe celebrando a violência como uma coisa boa. Observe como nas histórias para meninos quase tudo se resolve envolvendo uma briga, uma luta, uma competição, uma disputa. Como nos jogos essa dinâmica é levada ao extremo. Como na vida os meninos são tempo inteiro cobrados para serem fortes, corajosos, não levar desaforo para casa. Como uma aventura só é uma aventura se necessariamente houver um enfrentamento que envolve destruir alguém ou alguma coisa.
Nossos meninos são privados de afetividade à medida que crescem. Beijos, abraços, carinhos, consolo, conforto. Gradualmente vão perdendo acesso a tudo isso em nome de se “tornarem homens”. Se tornar homem na nossa sociedade é trocar a capacidade de amar pelo poder. É desalmar-se para ser capaz de dominar. É desejar-se super-humano, dotado de poderes, especial e admirado por todos. Porque ele é forte. E ser forte na nossa sociedade necessariamente significa saber ser violento.
Qual o preço que estamos pagando, enquanto sociedade, pela privação de afetividade e doutrinação da agressividade que submetemos nossos meninos na sua socialização de homens dominantes sob o patriarcado?
Vocês já notaram que mais praticamente a totalidade dos perpertradores de tiroteios em massa é homem? Que mais de 90% dos estupradores e abusadores sexuais é homem? A maioria dos serial killers? Vocês nunca se perguntaram por quê? Nunca se perguntaram porque para homens é tão naturalizado o ato de matar?
Homens não nascem assim. Meninos não nascem assim. A sociedade patriarcal faz isso com eles porque é pelo uso da violência que se mantém a dominação. E todos pagamos um preço demasiadamente alto.
Um pacto pela não violência é também um acordo de armisticio da guerra que homens travam, homens brancos dominando a todos (inclusive outros homens negros), contra as mulheres. É um cessar fogo que vai permitir que finalmente haja paz e equidade nas relações. Um acordo em que todos ganham porque ninguém aguenta mais tanto sangue derramado.
E é possivel realizar essa recusa se compactuarmos todos, os adultos de hoje, com valores melhores para as nossas crianças. Se aceitamos rever nosso sistema de crenças. Se reconhecermos que este modelo faliu, que estamos matando, que mesmo para homens em dominância, a despeito de todos os privilégios que isto traz há um preço sendo pago que pode ser alto demais. Podemos começar lentamente uma correção de rumos.
Não se nasce homem. Torna-se. e homens também podem tomar consciência do que foram tornados, abrir mão dos privilégios e se juntar nesse pacto pelos nossos meninos. para que possamos, aos poucos, sermos tornados homens e mulheres que recusam a violência e a hierarquia.
Eu sou uma mulher feminista. E sou mãe de um menino. E esta é uma equação muito difícil de equilibrar. Nasceu de mim, está sob meus cuidados e é o dono do meu coração um potencial “opressor”. Como futuro homem, um dia meu filho será convocado a ocupar seu lugar no mundo, um posto cheio de privilégios. E ele será incentivado a preservar essa posição à base de dominação e agressividade.
Eu morro de medo que meu filho se torne um produto perfeito e acabado do processo de socialização que está dado para ele pelo mundo. Um “macho escroto”, violento, assediador, abusador de mulheres. Incapaz de reconhecer mulheres como pessoas. É engraçado que muitas mães fantasiam o futuro para os seus filhos como eles sendo homens de sucesso, em profissões importantes e empregos invejáveis. Com fama, fortuna e todo o combo que isso traz. Eu só torço todos os dias para que meu menino se torne um homem bom. Digno, com consciência crítica sobre a sociedade em que está inscrito e que seja capaz de refletir, rejeitar e combater os privilégios que terá de mão beijada.
Como uma mulher feminista, eu tento fazer minha parte, eu sei. Tento não reforçar estereótipos, tento cercá-lo de bons exemplos de homens e mulheres, tento desconstruir os escravizantes modelos de masculinidade e feminilidade que nos cercam. E levo meus dias destruindo aos seus olhos esse mundo de promessas que o cerca. Explicando que esse lugar de homem na sociedade tem como preço o sangue de mulheres e crianças.
Mas eu sei também que a socialização dele não depende só de mim. Não tem como eu criá-lo numa bolha. Que além de mim e o meu menino, existe o mundo.
E o mundo é patriarcal e a opressão de mulheres é sua principal engrenagem. Está em toda parte, é como oxigênio. Meu filho vai para a escola, convive com outras pessoas, com outras referências, assiste TV, filmes, desenhos, ouve músicas. Ele vê a vida acontecendo na sua frente e aos poucos ele percebe como esses privilégios que lhe são negados em casa o mundo lhe coloca de bandeja para que ele se sirva. Simplesmente porque ele é homem. Ele percebe como meninos e meninas são tratados de maneira diferente. Ele nota como mulheres e meninas vão sutilmente sendo colocadas a seu serviço.
Ele vai aprendendo como a sociedade o considera mais forte, mais apto, e mais inteligente do que a todas as mulheres porque sim. Vai sendo incentivado a competir com os outros meninos e que as meninas são os troféus. Vai convivendo com outras famílias, formando seu próprio grupo de amigos, sendo cobrado, avaliado, medido, aceito ou rejeitado de acordo com seu grau de “macheza”. Por mais que ele nunca ouça de mim a frase “isso não é coisa de menino”, ele vai percebendo de maneira muito dura o preço que se paga por usar itens rosas, por usar pintura na cara, por querer manter o cabelo comprido. Apenas porque sim, porque ele acha interessante, bonito, e ele nunca soube que era “coisa de menina”, mas vai ser confrontado, vai ser testado, “mãe, o que é coisa de viado?”.
E ele vai sendo empurrado para a um modelo absolutamente distorcido de masculinidade que vai afastá-lo da sua essência mais sensível, empática, cuidadora em troca do posto no topo da cadeia alimentar da opressão. E do outro lado estou eu, neste cabo de guerra. Eu, meu menino, o mundo.
Como preparar meu filho para resistir a um convite tão tentador? Como preparar o meu menino para ir contra os seus iguais? Para contestar o machismo dos seus pares? Estaria eu o condenando ao ostracismo? Como ensinar o meu filho a resistir ao canto da sereia do corporativismo masculino, que vai acolhê-lo, transformá-lo num “brother”? Como ensiná-lo lidar com o inevitável escracho por ir contra a ideologia dominante?
Será que eu consigo explicar pro meu menino que, apesar de tudo que ele vê na mídia, de todas as representações culturais (onde ele aparece como ser humano em destaque sobre a mulher submissa, sempre um objeto), que homens e mulheres são pessoas iguais, de mesmos direitos?
Será que eu posso ensiná-lo a amar e admirar mulheres de maneira tão honesta e verdadeira, reconhecendo sua humanidade e considerando inadmissível tanta dor, crueldade e violência para com elas a ponto de lutar por sua libertação? Que ele combata seus iguais? É preciso que meu menino seja um traidor do patriarcado e isso tem um preço altíssimo a se pagar. Estarei eu pronta para lançá-lo aos leões? Mas existe alguma outra forma digna de estar neste mundo?
É um trabalho hercúleo. Diário. De Davi contra Golias. Um desafio que tenho que estar preparada inclusive para não vencer. De me contentar com pequenas vitórias. Por entender justamente que — apesar do que tentam convencer a todas as mulheres — eu não sou a única pessoa responsável pela sua educação, formação e socialização. E o número de variáveis sob meu controle é infinitamente menor que o número de variáveis que me escapa. E respirar fundo e aceitar que, apesar de toda minha luta, mesmo com mamãe feminista o filho pode crescer machista.
E eu sei, eu sei sim que todo o meu trabalho lança sementes. Que muita coisa frutifica. E que a melhor aposta hoje no horizonte ainda é tentar ajudar a formar homens melhores. E que há toda uma tribo se formando por aí, filhos de mulheres maravilhosas que lutam diariamente para desconstruir a si mesmas e a quem está próximo, buscando ambientes mais arejados para suas crianças. Eu tenho muita esperança sim. E continuo firme. Mas eu confesso que tenho medo. Que eu olho pro meu garotinho e todos os dias torço para que ele se torne um homem bom.
Nossa sociedade prega uma educação machista que tritura crianças. Já reparou que quando queremos que alguém seja forte, decidido, corajoso nós dizemos: “seja homem!” e quando queremos insinuar que alguém é fraco, frágil, medroso, vulnerável, dizemos “é uma mulherzinha!”? Que a mulher sempre é representada como uma vítima, como objeto de disputa ou conquista, alguém que precisa ser salva, alguém que causa problemas, enquanto o homem chega e resolve tudo (normalmente com bastante violência?). Que “mulher no volante, perigo constante”, “só podia ser mulher”, “lugar de mulher é em casa com os filhos”, “mulher não nasceu para comandar”, “mulher fala demais”, “mulheres são invejosas”, “mulheres são muito fofoqueiras”, “mulher demora demais para se arrumar”, “mulher é tudo fresca”, “mulheres são vaidosas”, “mulher tem que se cuidar”, “mulher tem que cuidar da casa”, “a responsabilidade com os filhos é da mulher”, “mulher não tem cabeça para essas coisas”, “homem não gosta de mulher inteligente”, “homem não gosta de mulher independente”, “mulher provoca”?
E o homem? “Homem é assim mesmo”
Isso são estereótipos de gênero reforçando a ideia de que mulheres são seres inferiores aos homens.
E o cruel disso tudo? Já dissemos. Estereótipos são expectativas, não expressam a verdade de um indivíduo. Todas as características que citamos na verdade podem ser de qualquer pessoa, não escolhem em que sexo biológico vão se manifestar. “Delicadeza”, por exemplo, é um atributo. Que mulheres podem ter. Ou não. E homens também. E tudo bem.
A grande questão é que tudo isso está tão intrinsecamente arraigado na nossa cultura e nos é ensinado a todo momento e há tanto tempo que passamos a acreditar que é de fato REAL. Passamos a acreditar que as pessoas de fato SÃO os seus estereótipos de gênero.
A maioria das mulheres hoje, quando engravida, é estimulada a esperar saber o sexo da criança para comprar todo o enxoval de acordo com uma determinada cor que é usada como um marcador para o sexo biológico do bebê.
E por que é tão importante saber se o bebê é menino ou menina e informar isso para a sociedade? Porque ferimos nossas bebês, furando suas orelhas, pendurando acessórios na sua cabeça, para que não se corra nenhum risco do seu sexo ser confundido? Por que as pessoas ao invés de perguntar o nome da criança primeiro, costumam perguntar seu sexo? Que diferença faz para adultos a genitália de um bebê?
menino ou menina? Como saber sem dar um colorido né?
E eu respondo: é importante saber o sexo daquela criança para que desde cedo já fique muito claro para a sociedade qual o clube (feminino ou masculino) a que ela pertence. E para que ela seja tratada, educada e instruída de acordo com as regras do seu estereótipo de gênero. E que ache que aquilo tudo é natural, nasceu com ela.
Você nunca reparou como o tratamento do bebê muda, a partir do momento em que você informa qual o sexo? (“ que princesinha LINDA!”, “que garotão FORTE!”)
E esse “treinamento” é bastante limitador e cruel. Meninos e meninas vão ser ensinados a se sentirem, serem e se comportarem de acordo com as expectativas do seu gênero, desde bebê, de forma sutil ou bem direta.
Fábrica de heróis
Meninos vão ser inseridos na cultura dos “heróis”, dos “campeões”, dos “guerreiros” (que já trazem embutidos os valores de força, coragem, ousadia, rapidez, e agressividade e violência). Verão a si mesmos representados como protagonistas em tudo, filmes, novelas, desenhos e terão uma noção distorcida da própria importância. Sempre como o personagem principal, o mais importante, o herói que salva o dia, aquele de quem todos precisam e a quem todos servem.
Brincarão com coisas que trabalham sua criatividade, suas habilidades racionais, espaciais, lógica. Serão estimulados a correr livremente e praticar esportes, com o desenvolvimento de sua potência física valorizada. Serão treinados para ter uma vida profissional e estimulados a quererem profissões desafiadoras, de status, carreiras de sucesso.
Não aprenderão que devem ter responsabilidades de auto-cuidado, cuidar dos filhos ou da própria casa, porque percebem que não precisam se preocupar com essas coisas já que sempre tem uma mulher fazendo isso por eles. Seja a mãe, seja uma irmã, seja a companheira, seja uma trabalhadora doméstica.
Qualquer contato com o universo de brincadeiras das meninas será duramente repreendido e aprenderão a rir e a debochar das meninas, porque serão tratados como mais espertos, mais fortes, mais inteligentes, mais rápidos, mais “legais”. E que meninas são o seu oposto, logo tolas e chatas. Serão incentivados a punir os amigos que demonstrarem estarem “saindo da linha”das regras da masculinidade xingando de “mulherzinha”, “mariquinhas”, “viadinho”. E os espancando se for preciso para “virarem homens”.
A agressividade desde muito cedo será naturalizada e valorizada. Serão estimulados a brigar e a bater uns nos outros. Brincarão de lutar. E de matar. A competir e a sempre vencer. A não “deixar por isso mesmo”. E serão duramente repreendidos se não se demonstrarem másculos, viris, agressivos. Se não partirem para a “porrada”.
Serão estimulados a hipervalorizar o sexo, e sua maior responsabilidade social será sempre mostrar que é “macho”. Carregarão o peso da virilidade nas costas, de conquistar sempre o maior número possível de mulheres, estarem sempre à caça. Nunca negarem sexo, mesmo que não estejam com vontade. Buscar sempre exibir uma mulher bonita, como um troféu. Que mulheres dizem “não” querendo dizer “sim” e como eles possuem um “instinto animal” que não conseguem conter, isso justifica ultrapassar qualquer limite.
Serão coibidos de mostrar os próprios sentimentos, a nunca parecerem que se importam de verdade, porque sentimentos pertencem ao universo feminino. E aprenderão que tudo que é desse mundo é inferior e fragilizante. Entenderão que sua única preocupação é desbravar o mundo e que tudo lhe pertence. Inclusive as outras mulheres, de quem crescem tão distantes, tão separados, que têm dificuldade de enxergar como pessoas. Pensarão que mulheres são seres de outro planeta (mulheres são de “Vênus”, homens são de “Marte”), são um objeto, e que só os outros homens os entendem e são verdadeiramente dignos da sua amizade e companheirismo.
que divertida essa brincadeira de atirar nas pessoas, não? Por que será que os atiradores em série são sempre homens?
Triturador de donzelas em perigo
Meninas vão ser embebidas na cultura das “princesas” (um título que já traz embutido diversas das características que são empurradas para as mulheres como beleza, docilidade, vulnerabilidade, fragilidade, delicadeza, etc etc); Serão treinadas para serem vaidosas, prendadas, domésticas, mães, cuidadoras, através dos brinquedos que são destinados a elas (bonecas, pelúcias, conjuntos de cozinha, e tudo que é parafernália de beleza).
Verão a si mesmas sempre representadas como coadjuvantes, donzelas em perigo, princesas à espera de um príncipe. Nunca se verão em cargos importantes, ganhando prêmios, vivendo aventuras, realizando grandes descobertas. E se acostumarão com a ideia de ocupar um lugar secundário na sociedade. De se ver como um acessório.
Perceberão como em toda parte mulheres sempre estão sendo elogiadas apenas pelo seu corpo e sua aparência. E receberão mensagens confusas sobre estar sempre disponível sexualmente e ao mesmo tempo “se valorizarem”. Serão vigiadas para que não engordem e duramente censurada caso comam muito. Aprenderão a odiar o próprio corpo que nunca será suficientemente belo. A se acharem sujas. “Bonita” é o principal elogio que ouvirão e crescerão com a percepção (reforçada pela mídia) que este é o único atributo de poder que possuem.
Serão estimuladas a dançar, cantar, sensualizar, participar de concursos de beleza. Brincarão com brinquedos que simulam cuidados com o lar, com os filhos e serão responsabilizadas precocemente para realizar atividades domésticas, para “ir aprendendo”. Cuidarão dos irmãos. Serão desestimuladas a realizarem atividades esportivas, ativas, “brutas”, ou qualquer coisa que fira sua imagem “feminina” de objeto de decoração. Serão subestimadas se decidirem se aventurar pelo mundo das ciências exatas. Ridicularizadas e afrontadas se demonstrarem apreço por itens do universo masculino.
Serão orientadas a ficarem quietinhas, caladas, de perna fechada, sem gritar, correr, protestar, porque “são meninas boazinhas”. Serão censuradas sempre que manifestarem desagrado, sempre que forem mais incisivas, que falarem aberta e objetivamente sobre seus desejos. Serão exploradas emocionalmente, chamadas de loucas.
Ouvirão desde o nascimento que o seu destino é “conseguir um namorado”. Que é a maternidade onde uma mulher se completa. Que felicidade está na manutenção de uma família e não de uma carreira. Que homem não gosta de mulher que não se cuida, não gosta de mulher inteligente, não gosta de mulher independente. Que outras mulheres são falsas e querem roubar seu homem de todo jeito. E apesar disso, também aprenderão a nunca confiar completamente no homem porque ele tem uma “natureza animal” irrefreável.
brincando de ser bela, recatada e do lar no inferno rosa
Essas são as instruções que todos nós recebemos e que nós, adultos, ensinamos para as crianças. Reforçamos e reforçamos e reforçamos estereótipos de gênero e prendemos as crianças nessa armadilha que as obriga a performar um personagem que muitas vezes está longe de fazer parte da essência dela, da personalidade dela.
Ou você, mulher, realmente se identifica com todas as características que são atribuídas ao sexo feminino? Elas fazem parte da sua personalidade só porque você nasceu com uma vagina? E você, homem? Você realmente nasceu assim?
Como é que se vai conhecer de verdade a personalidade do bebê se ele já nasce com tantas expectativas sobre como ele deve ser, se comportar, agir, só por causa do sexo biológico dele? E se todo esse treinamento de gênero que se está oferecendo não tiver nada a ver com ele? E se a menina odiar bonecas e adorar carrinhos? E se o menino adorar bonecas e odiar lutar?
Crianças são pessoas em desenvolvimento.
Crianças estão sofrendo por causa dos estereótipos de gênero. Por causa do seu machismo. Meninas e meninos estão sendo privados de um despertar pleno, de terem contato com o desenvolvimento de todas as suas habilidades porque só são estimulados pela metade.
Nossas crianças estão no meio de uma guerra de estereótipos e estão sofrendo. Tendo que atender desde cedo expectativas muito duras de comportamento. E isso é especialmente mais grave e cruel com nossas meninas, que são criadas para serem a parte mais fraca e são as maiores vítimas dessa cultura machista que violenta, abusa e mata mulheres.
Romper com os estereótipos é difícil mas não é uma tarefa impossível. É um enfrentamento que começa com o entendimento de como a engrenagem funciona e com o desmantelamento da sua lógica interna.
Existe um protocolo de comportamento esperado para homens e mulheres que obedece a lógica de manutenção de uma estrutura social que privilegia homens e subalterniza mulheres.
Este protocolo é baseado no nosso sexo de nascimento, ensinado num intenso processo de domesticação e conformação, e o chamamos de “gênero”. É, resumidamente, o conjunto de regras que determina como meninos e meninas devem se comportar para serem aceitos socialmente como sendo meninos ou meninas.
Crianças que demonstram resistência, interesse, curiosidade ou propensão em questionar estas regras estão em sérias dificuldades. É cada vez mais comum ver pais desesperados porque seus filhos se comportam de maneira diferente do que é esperado para o seu sexo: “meu filho gosta de brincar de bonecas", “minha filha não gosta de usar vestidos”, “meu filho não gosta de brincar com os outros meninos".
Dessa forma, crianças "dissidentes" estão sendo punidas e levadas de todo jeito a se “encaixar”, seja pelo discurso conservador do “nascemos assim", seja pelo discurso progressista do “nascemos no corpo errado”. Comportamentos que antes eram entendidos apenas como sendo a personalidade se manifestando hoje viraram motivo de preocupação e tomaram um caminho de patologização sob a desculpa de "evitar o sofrimento" (que na verdade é a vergonha dos adultos pela inadequação do comportamento da criança).
Este texto é, portanto, não só para pais, professores e cuidadores, mas para todos os adultos que sentem-se confusos e tentados a classificar comportamentos infantis a partir de uma ótica de “identidade de gênero”, incorrendo no grave risco de patologizar infâncias, classificar crianças segundo sua própria interpretação do mundo e no anseio de corrigi-las, levar grande sofrimento psíquico.
Começando do começo – o gênero
Gênero, falando a grossíssimo modo, é um conjunto de ‘regras’ que existem para definir e demarcar qual é a expectativa sobre o comportamento de um grupo que nasce com um determinado sexo.
Ou seja, crianças nascem, tem seu sexo identificado e imediatamente começam a ser socializadas para pensar, sentir-se e comportar-se de acordo com as prerrogativas do seu gênero. Ou seja, se nasce do sexo masculino é empurrado para o “clube de formação de homens”, onde aprenderá a ser forte, viril, dominador, agressivo, usar azul, gostar de esportes, carros, etc. Se nasce do sexo feminino, vai para o “clube de formação de mulheres” onde aprenderá a gostar de rosa, ser cuidadora, mãe, esposa, delicada, bela, maternal, brincar de bonecas, etc.
E isso é muito importante de pontuar: crianças são ensinadas. Não existe um comportamento que seja natural e inerente ao fato de se nascer menino ou menina. Tudo o que manifestamos em sociedade são comportamentos aprendidos.
As regras do gênero são formadas puramente por estereótipos.
Estereótipos são “pré-conceitos”, conceitos que antecedem um fato. Por exemplo, quando dizemos que meninas gostam de rosa, ou que meninas são mais delicadas, estamos usando um estereótipo de gênero. Uma expectativa pré-concebida de que o fato de alguém ter nascido menina significa que é delicada, frágil e gosta de rosa.
Os estereótipos de gênero são a base de formação do machismo. Todos os estereótipos que são atribuídos a meninos tem um campo semântico mais valorizado, são mais ligados a ideia de força, virilidade, controle, potência, liberdade, atributos muito importantes na nossa sociedade. Enquanto que os estereótipos de gênero atribuído às meninas falam de fragilidade, delicadeza, vaidade, cuidado, gentileza, obediência… atributos que não só não são valorizados como colocam o grupo em posição de subalternidade e submissão em relação aos homens.
Dessa forma, o “gênero” tem uma função estratégica. Ele ensina como o grupo de pessoas do sexo masculino e do sexo feminino devem se comportar. E como resultado temos um grupo que tem comportamento dominador (homens), que conquistam e detém privilégios em função da dominação do grupo com comportamento subalterno (mulheres). É a fórmula mágica da manutenção do patriarcado.
De uns anos para cá o processo de generificação das crianças foi se tornando cada vez mais intenso. Compare as prateleiras coloridas de uma loja de brinquedos dos anos 90 com uma hoje, 30 anos depois dividida nas cores azul e rosa ou as lojas de roupa infantil. Os comportamentos esperados estão cada vez mais marcados e cada vez mais precoces. O advento do “chá de revelação” fez com que o processo de socialização de gênero comece antes mesmo que o bebê tenha nascido.
E como crianças são pessoas, únicas, com personalidade, podem ser sempre mais ou menos resistentes a essa socialização, que é um aprendizado duríssimo e cruel. Se você nasce uma menina naturalmente mais assertiva, ativa, combativa, vai ser podada. Se você nasce um menino naturalmente sensível, delicado, tímido, vai ser podado. A conformação dentro dos estereótipos de gênero implica em reduzir pelo menos pela metade todo o seu potencial de experimentação do mundo.
Então se uma criança, por sua personalidade, apresenta “sinais trocados”, se uma menina aparenta ser “masculina” (ou seja, tem mais aderência aos estereótipos que são eleitos para os homens), ou se um menino é “feminino” (ou seja, tem mais aderência aos estereótipos que são eleitos para as mulheres), há um curto-circuito no sistema que rapidamente se encarrega de tolir esse comportamento através da censura, do constrangimento, do banimento social e da violência.
Essa intensificação nos padrões de gênero fez com que crianças cujo comportamento não se encaixam, que apresentem “inconformidade de gênero” passassem a ser vistas como tendo uma questão que precisa ser tratada. Um menino que brinca com bonecas ou uma menina que não gosta de vestidos, hoje corre o sério risco de ser “diagnosticado” como sendo uma “criança trans” e entrar numa rota de tratamentos que na via final incluem cirurgias esterilizantes e medicação para uma vida inteira.
E isso vem acontecendo com o endosso e o incentivo da indústria médica e farmacêutica, por motivos de criação de um mercado que já movimenta milhões de dólares.
Os absurdos critérios médicos para identificar “disforia de gênero”
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) elaborou um documento sobre como lidar com crianças e adolescentes com “inconformidade de gênero” em 2019. O material, intitulado “Recomendações sobre Crianças e Adolescentes com Inconformidade de Gênero”, visa orientar profissionais de saúde e educadores sobre o tema, oferecendo diretrizes para o acompanhamento dessas crianças e adolescentes.
Este documento é um exemplo perfeito de como os estereótipos e a necessidade social de conformação de crianças dominaram o panorama, incluindo o discurso médico. As indicações são uma coleção de orientações equivocadas porque são baseadas em identificar “desvios” a partir do enquadramento da criança em comportamentos esperados de gênero, no melhor estilo se gosta de azul de carrinho é menino, se gosta de boneca é menina. Vamos analisar detalhadamente o que o documento diz.
fonte )
Disforia de gênero em crianças: critérios diagnósticos segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria
O primeiro critério elencado pela SPB para diagnosticar “disforia de gênero em crianças é:
“incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e o gênero designado de uma pessoa, com duração de pelo menos 6 meses.”
O que se quer dizer com isso: que o primeiro “sintoma” de “disforia de gênero” em uma criança é que por pelo menos 6 meses o seu comportamento geral (gênero experimentado/expresso) seja incongruente (diferente/incompatível) do comportamento socialmente esperado de acordo com seu sexo (gênero designado). Traduzindo em um exemplo: se a criança nasceu com o sexo masculino, espera-se e ela será ensinada a se comportar dentro dos estereótipos para meninos (gênero designado). MAS, se por um acaso, esse menino, por 6 meses, apresentar no seu comportamento coisas que são entendidas socialmente como sendo típicas de meninas (gênero experimentado/expresso), então esse menino tem um SINTOMA de disforia de gênero. Parece absurdo e é, principalmente quando nós vamos ver qual é a lista desses comportamentos “incongruentes, dos quais ele deve apresentar 6 de 8 para ser considerado “disfórico”:
forte desejo de pertencer a outro gênero, ou dizer que seu gênero é outro Quando seu menino diz que é menina, ou sua menina diz que é menino. Esse é um comportamento absolutamente comum em crianças, principalmente as menores, elas fantasiam e experimentam o mundo e podem dizer desde que são de outro sexo, até de que são de outra espécie (meu filho costumava dizer que era um gato). Há também aqui um outro fenômeno que faz com que crianças afirmem ser de outro sexo que é uma confusão sobre si causada pelos adultos que a cercam. Imagine um menino que gosta muito de brincar de bonecas. Ele pega uma boneca e fica ouvindo que isso é coisa de menina. Ele é sensível e chora muito e fica ouvindo que parece uma menininha. E os adultos em pânico com esses comportamentos desviantes reforçam ainda mais a cobrança por “comportamentos de menino” a ponto dessa criança concluir que ele não tem nada a ver com um menino, talvez ele seja mesmo uma menina. Quase sempre essas declarações vinda de crianças tem a ver com um momento de fantasia ou por alguma confusão causada por adultos na percepção da criança sobre si.
Em meninos uma forte atração por vestir roupas femininas. Em meninas uma forte atração por vestir roupas masculinas. Aqui a SBP apresenta como sintoma o fato de meninos interessarem-se por roupas de menina e vice-versa. Esse aspecto é especialmente perverso porque para crianças pequenas roupas não tem significado simbólico e sim lúdico. Então, por exemplo, roupas para meninas são muito mais coloridas, divertidas, engraçadas e atraem muito mais atenção e elogios. É natural despertar o desejo por usá-las, nos meninos. Roupas para meninos são muito mais práticas, confortáveis e protetoras. É natural despertar o desejo por usá-las, nas meninas. Fora que crianças tem interesse natural em experimentar as roupas dos pais, independente do seu sexo. E à medida que crescem crianças vão tendo personalidade, é muito preconceituoso e cruel dizer, por exemplo, que uma menina que gosta de roupas masculinas típicas (leia-se, bermuda, camiseta, calça, tons frios, motivos esportivos) tem um sintoma.
Forte preferência por papéis transgêneros em brincadeira de faz-de contas Aqui a SBP está regulando como uma criança deve fantasiar nas suas brincadeiras. Ou seja, se o seu filho brinca que é uma menina, ou uma princesa, ou a rainha, ou a “mãe”, ou a mulher-maravilha, ou a Elza do Frozen. Ou se sua filha brinca que é um menino, ou um príncipe, um guerreiro, o “pai”, o Super-Man, o Batman, o Ben 10. Não sei o que fazer caso eles brinquem que são um elefante, talvez procurar um veterinário.
Forte preferência por brincadeiras, jogos ou atividades tipicamente usados ou preferidos por outro gênero. Neste item a SBP joga fora o axioma “não existe brincadeira de menino ou de menina” e considera que se um menino brinca de boneca ou se uma menina brinca de carrinhos ela tem um problema.
Forte preferência em brincar com pares de outro gênero. Neste item se torna um problema se a criança prefere brincar com outras do sexo diferente do seu. Ou seja, se seu filho gosta mais de brincar com meninas do que com meninos, aparentemente é um “sintoma”. A mesma coisa se sua filha preferir brincar mais com meninos do que com meninas. Afinidade, personalidade, nada disso importa mais, pelo visto.
Em meninos, forte rejeição de brinquedos, jogos ou atividades tipicamente masculinas e forte evitação de brincadeiras agressivas e competitivas; em meninas, forte rejeição de brinquedos, jogos e atividade tipicamente femininas Isso é tão errado e ao mesmo tempo tão elucidativo. Este item está claramente dizendo que se um menino não é agressivo e competitivo ele pode ter um sintoma e ser uma menina. E que se sua filha, por outro lado, não gosta de brincadeiras delicadas e “tipicamente femininas” (leia-se casinha, boneca, maquiagem) ela pode ser, na verdade, um menino. Depois a gente vê as estatísticas de violência, vê como homens são empurrados para serem essas máquinas de matar e como mulheres fiam impassíveis nessa relação, e não entende como isso acontece.
Desejo intenso de por características sexuais primárias e/ou secundárias, compatíveis com o gênero experimentado. Esse item fala sobre a criança expressar ter uma genitália diferente da que possui (característica sexual primária). Para características sexuais secundárias (seios, pêlos), já estamos falando de púberes. Este aqui é o único item digno de maior observação que é entender: o que está acontecendo com essa criança a ponto dela desenvolver ódio ou aversão específico pela própria genitália? Em tese, para uma criança, sua genitália deveria ser um item com a mesma importância do nariz ou da orelha. Então se uma criança manifesta tanta consciência e desconforto com a própria genitália vale ficar alerta se já que talvez isso seja evidência não de disforia de gênero mas de abuso sexual.
E seguida, temos o item B, que é o segundo pré-requisito para indicar que uma criança tem “disforia de gênero”, segundo a SPB:
“A condição está associada a sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, acadêmico o em outras áreas importantes da vida do indivíduo.”
Sobre esse item é importante contextualizar que ele é uma consequência de um estado de coisas muito bem evidenciado pelo item A. Acompanhe comigo.
Imagine os valores e preocupações de adultos que observam um problema no fato da sua criança (e aqui estou listando somente os critérios da SBP): 1. fabular que é de outro sexo, 2. querer vestir roupas diferentes associadas a outro sexo, 3. brincar que é um personagem de outro sexo, 4. gostar de brincar livremente, inclusive de brincadeiras associadas ao outro sexo, 5. gostar de brincar com amigos do sexo diferente do seu, 6. é um menino que não gosta de ser agressivo ou é uma menina ativa.
Imagine essa criança. Cujo comportamento, absolutamente normal e que expressa a sua personalidade, é visto (pelos adultos) como um sintoma, como um problema, como a manifestação de que algo está errado com ela? É óbvio que ela vai estar em sofrimento psíquico.
Porque a criança sente, e muito precocemente, a rejeição, a preocupação dos adultos, a apreensão. Ela sente como o comportamento dos pais muda quando ela tenta corrigir o comportamento. Ela sofre quando ela não consegue manter-se dentro daquilo que os pais esperam. Ela percebe o que é premiado e o que será punido.
Existe sim “sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social” em crianças que apresentam “inconformidade de gênero”, mas não porque há algo errado com elas, e sim com os adultos que estão infernizando sua vida.
Se você entender que “conformidade de gênero” é “conformidade de comportamento esperado socialmente” e “inconformidade de gênero”, é “inconformidade de comportamento esperado socialmente” vai compreender também o tamanho da violência que adultos estão cometendo contra crianças e adolescentes neste momento.
Mas existe “disforia de gênero”?
A disforia corporal é um sentimento de mal estar persistente sobre alguma característica do próprio corpo. É uma condição clínica que pode afetar a qualquer um e que tem diferentes tipos e graus de manifestação. Muitas pessoas que tem anorexia por exemplo sofrem de disforia corporal ou seja, enxergam seus corpos gordos, mesmo estando num estado de extrema magreza.
Hoje a “disforia de gênero” é definida como um sentimento de angústia e inadequação em relação ao próprio corpo sexuado. Chamamos “disforia de gênero” mas é uma disforia corporal.
Crianças que são persistentemente confrontadas em relação aos seus gostos pessoais podem sim desenvolver algum tipo de confusão ou disforia em relação ao seu corpo. Basta pensar como fica a cabeça de uma criança que escuta o tempo inteiro que tudo aquilo que ela gosta não foi feito para ela e sim para quem é do outro sexo, e que o jeito que ela é está errado. Pense por exemplo em um menino que escuta o tempo inteiro: “isso é coisa de menina”, “parece uma menina”, “não pode, é para as meninas”? Não é difícil ele concluir: “se tudo que eu gosto é para meninas e se o meu jeito parece de uma menina então eu sou uma menina”. E dessa conclusão para o desconforto psíquico com o corpo é um passo.
O tratamento para a disforia corporal é terapia, acolhimento, conforto, aceitação do próprio corpo, elevação da estima, autocuidado. No caso da disforia de gênero, principalmente em crianças, o adequado seria terapia familiar, porque em 99,9% das vezes a origem do desconforto da criança está na dificuldade de ser aceita com sua personalidade (que não se encaixa nas expectativas de gênero) pelos seus entes mais próximos.
E aqui uma nota importante: terapia e acolhimento é a indicação para qualquer tipo de disforia corporal. Da mesma forma que não receitamos dietas ou cirurgias plásticas para pessoas disfóricas por causa do seu peso corporal, não se deve fazer afirmação de gênero, tampouco intervenções medicamentosas ou cirúrgicas em que apresenta disforia por causa do seu corpo sexuado.
Ademais, pesquisas indicam que cerca de 90% dos casos de disforia de gênero se resolvem espontaneamente no final da adolescência e todos os protocolos médicos que tratam do tema do gênero em crianças estão sendo revisados apontando para a terapia como tratamento.
Como lidar com crianças com “inconformidade de gênero”?
É impossível para uma criança ser livre e feliz se tiver que cumprir todos os ditames dos estereótipos de gênero. Um menino, por exemplo, que é mais sensível, delicado, avesso a combates, e/ou interessado por “coisas de meninas” vai ser visto como “mulherzinha”, “criança viada”, “gay”, “afeminado”, e será profundamente rechaçado e rejeitado socialmente. Uma menina que é mais ativa, mais agressiva, agitada, assertiva, que goste de esportes, vai ser marginalizada, chamada de “moleca”, vai ser terrivelmente cobrada para que seja uma “mocinha”.
Só que crianças são pessoas e tem personalidade própria. E também são uma esponja e rapidamente percebem que tipo de comportamentos e posturas são desejados para que eles sejam aprovados. Para essas crianças perceber que aquilo que elas são é muito diferente daquilo que esperam que ela seja é muito dolorido. Principalmente se a criança for o tempo todo coberta de críticas, censuras, e declaração de “preocupação”.
Então o que eu queria dizer aqui é: seu filho não é uma menina porque gosta de bonecas, e cor de rosa, e não gosta de socar os amigos, nem sua filha é um menino porque ela não quer se maquiar, ou usar vestidos, ou brincar de casinha. E tampouco tem alguma coisa de errado com eles.
Eu tenho certeza que você consegue entender que brincadeiras, roupas, fantasias, comportamento, não definem se alguém é menino ou menina.
Então, quando uma criança tem uma personalidade que acaba destoando muito da expectativa social sobre ela e começa a receber muitas cobranças para ser de outro jeito, a família deve:
ser a primeira a reconhecer que não há nenhum problema com a criança e que é apenas a personalidade dela se manifestando;
acolher a dor e confusão dessa criança com eventuais rejeições sociais ao seu jeito de ser;
promover um ambiente familiar seguro, de experimentação, liberdade e conforto;
explicar o motivo pelo qual ela está sendo rechaçada socialmente (que não é culpa dela mas de um terrível sistema que quer obrigar pessoas a determinados comportamentos e visa crianças);
e pensar junto com ela mecanismos para que ela possa estar segura e protegida também nos espaços fora de casa respeitando seu jeito.
A outra opção, a pior delas, é acreditar que o problema está com a cria e não com essa sociedade horrorosa e castradora, que ela nasceu “no corpo errado”, e que você vai “ajudá-la” a se “encaixar”.
Aliás, “encaixar” é uma palavra mágica um tanto irresistível que faz muito pais desesperados tomarem decisões bastante questionáveis sobre suas crianças. Eles não querem que os filhos sofram, sabemos como a sociedade é cruel com quem não se encaixa. É compreensível.
Mas aí cabe pensar o preço que estas crianças estão pagando para se “encaixar” nessa sociedade que está aí, ao invés de confrontarmos e lutarmos e colocarmos abaixo essas regras. Pensar se é nessa sociedade terrível, sexista, racista, elitista, cruel, que queremos que nossos filhos se encaixem. Pensar se não é mais fácil até, simplesmente deixarem nossas crianças se desenvolverem livremente experimentando tudo aquilo que a personalidade deles vai demandando.
E buscando referências, novas maneiras de estar no mundo, que ainda são poucas mas que estão surgindo sim, impulsionando essa possibilidade (veja aqui 5 filmes infantis que nos ajudam a pensar um pouco sobre isso)
Hoje, cada família precisa escolher qual vai ser a filosofia que vai adotar na criação dos seus filhos. Porque claramente vemos discursos que parecem o mesmo mas são claramente contraditórios. Ou acreditamos que estereótipos de gênero são um problema e deixamos as crianças livres para experimentar ser do jeito que quiser, acreditamos que não existe brinquedo de menino e menina, que não existe cor de menino e de menina, e damos a possibilidade de uma infância mais rica e menos reprimida, ou acreditamos definitivamente que nascer de um determinado sexo define seu comportamento o mundo e adotamos esse manual de comportamento de gênero para ser seguido desde o nascimento.
Rejeitar o gênero, transgredir essas regras, definir-se como PESSOA, e não como “homem” ou “mulher”, segundo os parâmetros do patriarcado, é a verdadeira revolução. Todos nós somos, ou deveríamos ser inconformes com o gênero. Porque ele é uma armadilha, uma prisão. Crianças são seres visionários e tem muito a nos ensinar. Deveríamos aprender com elas ao invés de tentar “encaixá-las”.
Round 6 (Squid Game) é uma série coreana, sucesso absoluto na Netflix, e que conta história de um grupo de pessoas disputando literalmente até a morte uma fortuna em dinheiro. É uma boa série, o enredo é relativamente simples e muito bem contado, e possui classificação de 16 anos. Não é indicada para crianças e nem mesmo adolescentes por possuir cenas explícitas de assassinato, suicídio, tráfico de órgãos e sexo. E no entanto, todas as crianças não param de falar nela, para desespero dos pais. É possível controlar o que crianças assistem? E aí antes de ficarmos preocupados ou indignados, precisamos levar algumas questões muito importantes em consideração para que estejamos, acima de tudo preparados para esse tipo de coisa. Porque esse não será o primeiro, e muito menos o último, conteúdo “inadequado” que nossos filhos terão contato.
É impossível controlar completamente o que as crianças vêem
Num mundo hiperconectado como o nosso a questão não é mais SE crianças vão tomar contato com determinado tema, mas QUANDO e COMO.
Boa parte das crianças de hoje está sendo criada por pais que tiveram sua infância em um mundo bastante analógico. Assistíamos programas infantis, desenhos animados, filmes, quase tudo na TV aberta ou em meia dúzia de canais de TV a Cabo. Era bem mais simples controlar o conteúdo audiovisual porque tínhamos poucos emissores (TV, rádio, revistas) e conteúdos emitidos de maneira mais ou menos centralizada. Então, nossos pais, se assim desejassem, poderiam organizar praticamente tudo a que teríamos acesso ou pelo menos conhecer toda a programação. Não é o nosso caso.
Hoje crianças tem acesso a dezenas de serviços de streaming diferentes que por sua vez tem centenas de desenhos animados, filmes, séries e todo tipo de conteúdo, fora os próprios canais de TV a Cabo e a TV aberta. Por um celular (que muitas vezes é próprio) crianças acessam a internet, tendo acesso a buscadores que podem trazer praticamente qualquer informação. Elas acessam o Youtube, e seus ídolos são Youtubers que fazem às vezes de babá eletrônica e dizem uma infinidade de coisas interessantes assim como toneladas de bobagens. Acessam TikTok onde milhares de outras crianças fazem todo tipo de coisa sem nenhuma supervisão. Há um ecossistema tecnológico que pouco dominamos e uma infinidade de conteúdos disponíveis impossíveis de serem contabilizados.
Há também o fato de que os cuidadores (e aqui invariavelmente estou falando da mãe, que acaba sendo a principal responsável e quem lança olhos pra essas coisas) não têm como ficar 24 horas sobrevoando os filhos para regular o que eles estão assistindo. Muitas crianças estão nas mãos de terceiros enquanto a mãe trabalha, e muitas vezes, todo esse aparato eletrônico faz as vezes de babá entretendo as crianças enquanto adultos fazem coisas como tentar ganhar dinheiro para sobreviver, limpar a casa para manter um mínimo de salubridade, cozinhar, e etc. E a despeito de todas as críticas (válidas), sobre o excesso de telas, esta acaba sendo uma consequência de uma realidade imposta pelo tipo de vida que temos a nossa disposição: pessoas empobrecidas, em dupla, tripla jornada com pouco tempo para fazer coisas como dar atenção qualificada e em quantidade aos filhos.
Então a primeira informação aqui é: se já era difícil antes, hoje é impossível dar conta dos conteúdos e informações que nossas crianças terão acesso. Todo o tempo que não temos as crianças têm de sobra para estar por dentro de todas novidades. Se algo faz parte do hype, elas estarão sabendo, acredite.
Quase nenhum conteúdo cultural é realmente bom para as crianças, mesmo os infantis
Nós temos apego a classificação indicativa e ela é realmente importante, mas pensar o que é “adequado” e o que não é requer um pouco mais de reflexão. Se pensarmos que a mídia é um braço do patriarcado para a nossa socialização fazendo propaganda sobre como devemos nos comportar, o que devemos naturalizar, o que é aceitável e o que não é, vamos perceber que quase nenhum conteúdo (mesmo os ditos infantis) deveria passar sem algum acompanhamento ou problematização junto às crianças. Desde o mais singelo conto de fadas (Branca de Neve foi beijada desacordada), passando por canções de ninar (o Boi da Cara Preta ataca crianças que sentem medo), cantigas de roda (o Cravo despedaça a Rosa em uma briga), chegando aos desenhos, filmes, séries, games e todo o resto. Nossa produção cultural a despeito de nos entreter e até informar, serve principalmente para nos educar dentro da agenda patriarcal. Nossa cultura espelha nossa sociedade e nossa sociedade molda nossa cultura. É uma roda que se retroalimenta.
E é fácil verificar isso. Estamos escandalizados com Round 6 e assemelhados mas, voltemos para nossa idílica infância por um momento. Onde não havia internet e nem tantos conteúdos, tik toks, e influenciadores. Uma época melhor? Mais fácil? Nós víamos programas infantis onde as apresentadoras estavam seminuas, e recebiam convidados para cantar músicas profundamente sexualizadas. Nós aprendemos a descer na boquinha da garrafa nesses programas, inclusive. Assistíamos desenhos infantis onde os “inimigos” eram combatidos na base de muita briga e violência. Tom e Jerry, Pica Pau, Papa Léguas, He-Man, Liga da Justiça, Batman, e uma lista infinita atestam isso. Assistíamos Sessão da Tarde (onde passava Goonies mas também passava Porky’s), e víamos novela. Produções dos anos 80 e 90 (não que a dos anos 2000, 2010, 2020, estejam melhores) onde violência, racismo, machismo, pedofilia, caricaturização da pobreza, normalização da prostituição, romantização da maternidade e de relacionamentos abusivos eram a regra e não a exceção.
E poderíamos inclusive fazer o exercício de analisar os produtos culturais disponíveis para as gerações anteriores (aí em formato de cinema, radionovela, fotonovelas, livros, revistas diversas). Em todos eles teremos o mesmo combo de naturalização da violência, sexismo, racismo, elitismo porque a mídia, os produtos culturais e artísticos pertencem ao grupo que nos domina (homens brancos), refletem seus valores e fazem propaganda das suas ideias de dominação.
Dessa forma pensar em produtos “adequados” ou “inadequados” é questão de um ponto de vista. A violência do Round 6 é gráfica, crua, espirra sangue na tela, mas o adolescente de 17 anos que tem permissão pela classificação indicativa para assistir a isso já teve seu espírito preparado para a ideia de que opositores podem ser assassinados desde a época em pisava na cabeça de cogumelos jogando Super Mario. Você não vê ninguém, nos desenhos, nos filmes, nas séries, do Harry Potter até a Turma da Mônica, resolvendo seus conflitos com Comunicação Não-Violenta. A dominação, punição e aniquilação do inimigo é a regra.
Dessa forma precisamos atentar para o fato de que muitas vezes só nos chocamos e nos atentamos pro que nossos filhos consomem quando o sangue jorra ou aparece gente pelada. E na verdade todos os conteúdos que nos são oferecidos precisam de um apreciação mais atenta. Somos bombardeados de mensagens que vão nos formando também, que vão nos conduzindo a pensar de uma determinada forma, que vão naturalizando comportamentos e fatos que nunca deveriam ser considerados normais em uma sociedade saudável.
A violência é tão fascinante e nossas vidas são tão normais
Violência pode causar morte, mas violência não é sobre morte. A morte é um fato que faz parte da vida. Tudo morre e crianças tomam contato muito precocemente com essa noção por inúmeros motivos. E as histórias muitas vezes a ajudam a elaborar esse conceito de perda.
Violência é sobre dominação com uso de força, intimidação, coerção.
Vá a uma sessão de brinquedos e veja a quantidade de armas que estão reservadas para serem vendidas aos meninos. E nós compramos. Nós naturalizamos crianças brincando de “bandido e polícia”. Crianças aprendem sobre “heróis e vilões”, “bom e mau”, sobre “defender” os inocentes, numa representação onde aquele que tem permissão para perseguir e matar tem sempre a mesma cara masculina e branca. Onde as mulheres sempre precisam ser salvas. Onde a disputa é sempre por poder, dinheiro, terras, dominar o mundo. Ensinamos a lógica da dominação para nossas crianças. Legitimamos o uso da força por detrás de uma narrativa heróica e justificamos seu uso em nome de um “bem maior”.
A linguagem da nossa cultura é a violência com fins de intimidação e dominação. Somos violentos uns com os outros, com vulneráveis, mulheres e crianças. Com pessoas negras, pobres. A depender da raça e classe, crianças já presenciaram mais sangue e assassinatos recaindo sobre os seus que em um episódio fraco de Round 6. A normalização da violência é uma estratégia fundamental para a manutenção do poder masculino e não é interessante que seja diferente já que é através dela que homens mantêm-se no poder.
Um mundo onde meninos repudiam a violência, onde meninas rebelam-se contra a violência, onde a violência torna-se inadmissível simplesmente inviabiliza a manutenção dos sistemas de poder vigentes.
Então precisamos falar sim sobre violência com as crianças. Precisamos explicar qual a lógica que move as engrenagens desde mundo em que elas irão viver. Explicar qual o objetivo das regras implícitas que lhes são sutilmente apresentadas. Crianças precisam aprender, o mais cedo possível, a reconhecer, repudiar e denunciar todo tipo de violência e isto é um feito dificílimo porque levado ao pé da letra vamos notar que toda nossa vida está completamente impregnada de códigos abusivos.
Como lidar com as crianças e os conteúdos que elas acessam?
Primeiro é preciso trazer as crianças para o problema. Estamos falando sobre Round 6, mas pornografia é um problema infinitamente maior e acredite, elas também estão acessando ou em vias de acessar. Não temos como controlar os conteúdos mas temos como orientar as crianças para fazerem escolhas mais qualificadas. Explicar o que é a classificação indicativa, para que serve, qual a importância. Que tipo de conteúdos podem encontrar pela internet e como alguns podem ser bastante nocivos. Que a despeito da curiosidade, há conteúdos e temas que é preciso um pouco mais de maturidade emocional para acessar. Que muitas vezes um determinado assunto será um burburinho no grupo dela mas que isso não significa que os amigos estão conseguindo ter a melhor abordagem do tema. Contar um pouco que a própria criança conseguirá realizar certos filtros a partir do que você orienta que é melhor para ela. Se a criança tiver medo, ou simplesmente for proibida, coagida, ameaçada, para não acessar… a primeira coisa que ela vai fazer é correr para ver tudo.
Outra dica que pode ajudar é tentar limitar minimamente, e na medida do possível mesmo, a quantidade de conteúdo que a criança acessa. Promover uma certa curadoria. Limitar acesso a diversos serviços de streaming, sempre com filtro de classificação etária, limitar o número de canais de youtubers que a criança segue e sempre, na medida do possível dar uma olhada na playlist do youtuber para ver que tipo de conteúdo ele produz, assistir uns vídeos de amostra. O mesmo para o Tik Tok.
Use todos os recursos de restrição e filtro que estiverem ao seu alcance nas plataformas e dispositivos que a criança acessa. Caso a criança tenha seu próprio celular usar aplicativos de controle parental onde você consegue monitorar todo o conteúdo que a criança vai acessar do seu próprio aparelho.
Reduzir o tempo das telas e redes na medida do possível. Assistir conteúdos junto com a criança, ou colocá-la assistindo perto de você. Compartilhar um pouco dos filmes, desenhos e demais coisas que ela vê. Isso ajuda a criar vínculo e parceria para que você fique minimamente inteirada do que está acontecendo no universo virtual infantil.
Conversar com a criança sobre o que ela anda vendo, pedir pra ela contar sobre as histórias que assistiu, sobre as últimas youtuber predileto também é um bom caminho para fazer uma ponte para o mundo dela e ficar de olho.
Resolve? Não. Funciona 100%? Também não. Mas já ajuda a pelo menos mapear por onde sua criança anda se informando. Se nosso desafio aqui na criação deles é a socialização, nossa principal batalha parece mesmo ser os produtos culturais e os valores que eles propagam.
Tá, mas e Round 6?
Retomando as premissas de que: é impossível controlar o que elas vêem, nenhum conteúdo pode ficar inteiramente sem alguma problematização e que existe um sistema de dominação que é retroalimentado na socialização das crianças para se tornarem adultos violentos, Round 6 é o menor dos nossos problemas. Mas sim, eu entendo que muitos cuidadores estejam preocupados e desconfortáveis.
Então acho que vale saber que ainda que crianças e adolescentes não estejam vendo a série, elas têm uma boa noção do conteúdo, seja através de canais de You Tube, Tik Tok, ou conversando com os amigos que viram. Em seguida, a premissa “pessoas morrem em jogos de disputa” não é exatamente uma coisa chocante para a maioria delas. O que, é claro, não justifica assistir a série porque, como disse, há cenas explícitas de assassinato e também de sexo. E há uma diferença entre saber que pessoas foram assassinadas e ver um cérebro espirrar na tela. Então aí acho que cada família vai precisar regular isso de acordo com suas regras internas mesmo.
De qualquer forma o que não se pode mesmo é menosprezar a capacidade das crianças de apreenderem o mundo e aproveitar o hype para problematizar algumas questões muito interessantes, a depender da idade delas, como: que tipo de vida é essa que temos onde pessoas preferem disputar dinheiro dispostas a matar e arriscando-se a morrer? Quanto vale vida de uma pessoa? É ético ser bilionário em um mundo com tanta gente miserável? Será que há espaço nesse mundo para existir algo assim de verdade? Será que tanto horror é somente ficção? O que a gente precisaria para não existir um Round 6 nesse mundo? Qual a verdadeira violência ali, pessoas tomando tiro na cabeça, ou pessoas estarem tão desesperadas a ponto de aceitarem arriscar-se a morrer por dinheiro? Ou ver pessoas bilionárias divertindo-se com isso? O que é mais desumano?
Colocar as crianças para pensar o mundo. Pensar o mundo junto com elas. Criar crianças críticas, conscientes. É um exercício que vale a pena.
Há 5 violências que cometemos contra crianças, que são comuns. São pequenas coisas que violam a integridade das crianças e muitas vezes nem notamos. No geral, como sociedade, não tratamos crianças como indivíduos. O fato delas serem completamente dependentes dos adultos que as cercam as deixam em uma situação completamente fragilizada e sujeitas a abusos que nem mesmo os seus adultos responsáveis identificam como tal.
E os primeiros a cometer pequenos e grandes abusos são, obviamente, os pais. É comum a ideia de que o filho é uma propriedade, uma posse, uma conquista. Quase um objeto. “O filho é meu e eu faço o que eu quiser” é a máxima que governa boa parte das relações parentais. E aí toda sorte de fronteiras são ultrapassadas. Mas ignoramos solenemente que crianças possuem limites e não raro as tratamos como um bichinho de pelúcia fofo que podemos brincar, apertar, jogar pra cima e pra baixo, enfeitar como quisermos, dar uns tabefes talvez. Mas por amor, é claro.
E isso é importante sublinhar. Não há aqui nenhuma dúvida sobre a legítima boa intenção da esmagadora maioria das mães, pais, cuidadores em geral. Não há nenhuma dúvida sobre o amor, sobre o cuidado, sobre o sacrifício dispensado para a criação daquela criança. Nada disso anula o fato de que temos conceitos muito equivocados e que mesmo recheados de boas intenções cometemos muitas trapalhadas e algumas tantas violências.
Eu vou citar aqui algumas coisas simples, corriqueiras, que costumeiramente fazemos com crianças e que representam um grande desrespeito a sua individualidade e até a sua dignidade. Nada feito “por mal”, mas feito sempre sem pesar muito o que aquilo implica, sem considerar a subjetividade da criança envolvida.
E antes de começar para fazer entender bem como essas ações costumeiras podem ser graves e nós sequer percebemos, eu gostaria de propor um exercício de imaginação relativamente simples:
imagine que você é um extraterrestre recém-chegado a outro planeta e que para estar lá tem que ser tutelado por um grupo a quem deve obedecer a todas as orientações. Você não conhece absolutamente nada das regras sociais daquela civilização, você não conhece o idioma, não pode andar pelos lugares desacompanhado, nem ficar sozinho. Você precisa de orientação para se alimentar, porque não consegue preparar o alimento sozinho, e precisa de supervisão até para se vestir e ir ao banheiro. Até se adaptar nesse planeta, você é completamente dependente dessa família para sobreviver. Você, nessa condição, é como qualquer criança e essa família, são seus cuidadores. E, por pura dependência e desconhecimento, você está submetido às regras dos seus cuidadores e desse novo planeta.
Vamos começar então?
1. tocar em crianças sem sua permissão.
Imagine que nesse planeta em que você é recém-chegado todos os habitantes sentem-se no direito de tocar seu corpo, a qualquer momento. Eles estão fascinados com a sua espécie e se encostam em você sem pestanejar, onde quer que você esteja. Eles se aproximam e tocam seu cabelo, apertam sua bochecha, fazem cócegas em você. Seres que você acha agradáveis, seres que você acha assustadores, seres repugnantes. Não importa. Você tenta desvencilhar-se. Você diz não. Você foge. Não adianta. Riem de você. Te tratam com condescendência. Te ofendem e te humilham se você parecer zangado. Te obrigam a ser tocado apenas porque sim. Ignoram o seu pesar, o seu medo, o seu nojo. Afinal você é tão fofo, por que resiste? Não seja um alienígena mal educado, submeta-se, dá um beijinho aqui!
Sentiu desconforto com a ideia? Pois é isso que acontece com crianças o tempo inteiro. A autonomia corporal delas é constantemente violada por terceiros. O corpo das crianças é tratada como um bem público onde todos sentem-se a vontade para tocar quando bem entendem a despeito dos protestos dessas crianças. Ainda no útero qualquer pessoa se sente no direito de tocar, desde a barriga da mulher grávida, até toda e qualquer criança, durante todo o seu estágio de desenvolvimento infantil, a sua revelia.
Crianças são indivíduos, não as toque, ponto final. Use os mesmos critérios que você usa para você. Quem você permite que te abrace, que te beije, que te faça carinhos? Qualquer estranho na rua? Ou pessoas da sua confiança a quem você PERMITIU fazer isso? Protejam crianças que não conseguem se expressar, não é porque ela não fala que essa situação é desejada para ela, não precisa muito para entender a problemática dessa situação.
2. desnudar crianças em público
Agora imagine que neste planeta onde você foi parar, o grupo que te acolheu tenha que trocar constantemente suas roupas para sua adaptação à atmosfera do planeta e eles o deixam nu ou seminu a qualquer momento, em qualquer lugar, não importando quem ou quantos outros estejam presentes, e não importando o que você pensa ou como se sente a respeito. Sentiu-se vulnerável?
Nós, adultos, desnudamos nossas crianças com muita facilidade e em qualquer lugar, com muito pouca preocupação em resguardar sua integridade corporal nesses momentos. Afinal, “são só crianças, não tem problema”. Mas será que esse é um lugar confortável para crianças, principalmente a medida que crescem, se verem nuas em um ambiente onde todos os outros estão vestidos? Onde podem receber olhares e também comentários não-solicitados sobre seu corpo? É será que é seguro? Não há uma questão moral aqui apenas um questionamento, será que é realmente uma boa ideia naturalizar para as crianças que elas podem ficar nuas na frente de desconhecidos? Que “não tem nada a ver”? Que ela “é só uma criança?”. Nós podemos garantir que essa instrução não pode deixá-la desarmada demais diante de pessoas mal-intencionadas? Nós podemos assegurar completamente que está criança não está sendo fotografada ou filmada e terá sua imagem nua/seminua exposta ou comercializada junto a predadores sexuais? Nós temos, em última instância, o direito de desnudar nossas crianças em público, quando nós mesmo não fazemos isso? Nós não saímos ficando pelados por aí (para além de ser ataque violento ao pudor) por todas as questões supracitadas (insegurança, exposição, vulnerabilização…). Por que para crianças dizemos que é “normal”?
3. orientar crianças a urinar e defecar em público
De repente você chega para os habitantes do novo planeta e diz: preciso ir ao banheiro. E eles apontam para o chão e dizem: “pode fazer aí”. Como você se sentiria? O que isso estaria ensinando a você sobre aquele planeta?
Muito comumente instruímos crianças a urinarem e até defecarem no meio da rua. E sim eu compreendo que é bastante difícil administrar as idas ao banheiros das crianças quando estamos em espaços públicos porque elas ainda não tem controle da bexiga por longos períodos mas o ponto aqui é como meninos são incentivados a se aliviar em qualquer lugar enquanto meninas são coibidas e obrigadas a aprender a reter até encontrar um banheiro.
Meninos aprendem aqui, de partida, que suas necessidades físicas são mais urgentes e imperiosas que a das meninas. Que eles não precisam aprender a se conter por muito tempo. Que eles tem o direito de expor a genitália principalmente se for para aliviar uma necessidade. Que eles não precisam ter nenhuma preocupação com higiene e preservação do espaço público. Que o espaço público é deles, e eles tem o direito de fazer o que quiser, inclusive destruí-lo.
Como resultado, temos meninos que crescem e tornam-se homens que se acham no direito de expor a genitália a qualquer momento e em qualquer lugar. E mulheres que naturalizam a exposição da genitália masculina em público, caso eles precisem “se aliviar”. Para além de um ambiente público desagradável e demarcado pela urina masculina.
4. brincadeiras humilhantes e provocações
Finalmente, os habitantes desse planeta que você está visitando tem uma hábito muito curioso. Eles adoram uma experimentação e você é o campo de provas! Como você não conhece nada daquele planeta eles te contam histórias assustadoras, inventam fenômenos que não existem, insistem em ser desagradáveis e todo tipo de coisa. Eles se divertem com suas reações e estão constantemente te enganando, te assustando, te irritando, te aborrecendo, apenas para ver como é bonitinha a sua “cara”, como é engraçado quando você fica bravo, ou chora, ou fica morrendo de medo. Você é tratado com extrema condescendência, não é levado a sério, subestimam seus sentimentos, não te escutam com atenção e percebe que só é interessante a medida que funciona como entretenimento. Você quase os odeia. Mas depende de todos eles. E aprende a aceitar porque simplesmente é a parte mais fraca e será punido se reagir. Parece bom pra você?
Temos o hábito de ficar “provocando” as crianças. Queremos vê-las chorar, rimos quando estão assustadas, enraivecidas, debochamos delas. Não as ouvimos com consideração. Não acreditamos nelas. Nosso comportamento geral com crianças é uma coisa horrorosa e desrespeitosa.
Parem, apenas parem de tratar crianças como experimentos científicos. Que vamos “implicar”, assustar, fazer “testes”, pregar peças, enganar, apenas para ver suas “reações”. Adultos são uma legião de “tios do pavê” quando trata-se de crianças. Achamos bacana rir dos seus tombos, dos seus medos, das suas dúvidas. Tratamos crianças como seres muito pitorescos, muito “fofinhos” e “bonitinhos”. Essas são as crianças que “servem”. As que funcionam como entretenimento, que levam “alegria” por sua “inocência”. Mas na hora que elas apresentam seus temores, inseguranças e dificuldades, ninguém quer estar perto.
4. expor informações sensíveis na internet
Subitamente os habitantes do novo planeta começam a provocar você. Eles parecem bravos, você está confuso, começa a ficar com medo. Você não sabe o que está acontecendo e começa a ficar muito assustado. Você corre, você chora. Você se esconde. E subitamente todos começam a rir e você descobre que tudo não passava de um grande trote. Que toda sua reação de terror foi filmada e agora você era um entretenimento gratuito para milhares de desconhecidos que estão rindo do seu momento de vulnerabilidade.
Parem de filmar/fotografar e postar informações sensíveis sobre a sua criança. Você não é dona da imagem dela. Ao contrário, você deveria ser guardiã da reputação dessa pessoa que está em formação. Pergunte-se: você gostaria de virar um meme? Você gostaria de crescer tendo sido um meme? Ser reconhecido como “a criança do meme”? Não percebem que uma piada só é engraçada para quem ri e não para o objeto do riso? Crianças são pessoas e não objetos a disposição do entretenimento dos pais.
Em resumo
Crianças têm direito a proteção da sua integridade física e psíquica, têm direito a sua imagem e de serem donas da sua história. Somos seus guardiões até que elas tenham idade e maturidade bastante para pesar e assumir as consequências dos seus atos. Mas nós tratamos crianças como posse, como uma coisa que não possui uma crescente autonomia, que não tem compreensão — ainda que limitada — dos fatos. Achamos que “crianças não entendem as coisas” e as tratamos como seres que não percebem e não sentem os pequenos e grandes abusos que cometemos. Fazemos com uma criança aquilo que nunca faríamos com qualquer outro adulto que por quaisquer motivos estivesse sob nossa supervisão e cuidados.
Nós, constantemente, violamos a autonomia corporal e a integridade das nossas crianças. É algo tão incorporado na nossa cultura e nos nossos hábitos que sequer percebemos isso como uma violação. Mas com um pouco de bom senso é muito fácil perceber os limites, basta considerar que crianças são pessoas. Basta considerar que a despeito de terem dificuldade de elaborar, elas tem sim sentimentos. E podemos aprender a considerá-los e respeitá-los.
Será que é realmente possível educar crianças que cresçam para não só não praticar como para repudiar a homofobia? Eu acredito que a resposta é talvez, e apenas talvez, por mais progressistas que sejamos, porque para ensinar como não discriminar pessoas homossexuais precisamos repensar todo o conceito de heterossexualidade.
Em primeiro lugar, precisamos entender um pouco dos motivos pelos quais ser homossexual é considerado um problema tão grande na sociedade que vivemos hoje. Sim, porque o comportamento homossexual não é novo, nem novidade, nem incomum, nem nos humanos e nem em inúmeras outras espécies. Inclusive existem estudos antropológicos que remontam práticas rituais homossexuais já há cerca de 10.000 anos, ou seja, pessoas transam com outras pessoas desde sempre, a despeito de serem ou não do mesmo sexo.
E quando tudo isso começou a mudar sistematicamente? Com o fortalecimento de instituições como o casamento e a família nuclear que surgiram para garantir a manutenção da heterossexualidade compulsória.
É um regime político organizado para garantir o controle da sexualidade de mulheres, de forma que elas estejam sempre subordinadas sexual e afetivamente a homens, ligadas a uma família nuclear e comprometidas com o cuidado do ambiente doméstico, da manutenção da vida de um homem, com a reprodução e cuidado de crianças. E dizemos que é um regime compulsório porque essa é a única forma de relacionacionamento afetivo-sexual que é permitida aos indivíduos, tendo mecanismos punitivos desde sutis (preconceito velado), até bem contundentes (a morte) para os que não seguem. Vivemos sim em uma sociedade em que não apenas é proibido não ter um comportamento heterossexual como todas as instituições sociais se organizam para garantir a heterossexualização dos seus indivíduos.
E como isso acontece? Desde boa parte das religiões que tem cláusulas bem específicas sobre o tema, passando pelos modelos de conduta ensinados na família, escola, etc (que reforçam a ideia da formação de uma família nuclear, com pai, mãe e filhinhos, como o ápice do acontecimento de uma vida), passando pelas instâncias legais que não reconhecem uniões homoafetivas (e isto está mudando bem aos poucos com muita luta dos grupos interessados), até o principal propagador: a cultura de massa, que nos bombardeia incessantemente com a romantização das relações heteroafetivas.
Ou seja, a despeito de como se constitui a atratividade afetiva e sexual (pergunta para a qual não existe uma resposta definida), ter homens e mulheres unidos e reproduzindo a espécie, com a fêmea em situação de subordinação (que é uma situação dada pela maneira como o casamento se organiza) é uma estratégia basilar do patriarcado e do capitalismo. Não é interessante que mulheres (e aí também homens, consequentemente) sejam livres para de repente decidirem que NÃO querem formar um tipo de organização social (a família-nuclear) que é a peça-chave para a manutenção desse sistema que nos oprime.
Entender a compulsoriedade da heterossexualidade é fundamental para compreendermos o fenômeno da discriminação sexual. Pessoas que decidem fazer sexo com outras do mesmo sexo, de forma não-procriativa, estão transgredindo não só as leis de “Deus”, mas principalmente as leis de regulação da mão de obra para a sustentação do capitalismo e as leis de manutenção da hierarquização sexual entre homens e mulheres. Isso não é sobre “heteronormatividade”, é muito maior que isso. É, repito, um regime político, uma agenda para garantir a imobilidade das castas sexuais.
E aí você pode se perguntar: mas se o patriarcado está aí há 6000 anos porque tão recentemente é que podemos dizer que existe uma organização tão complexa para garantir a heterossexualização das pessoas? Simples, porque antes mulheres não tinham direito a dar nenhuma opinião sobre o destino dos seus corpos. Elas eram vendidas, negociadas pela família, trocadas entre tribos, dadas de presente, como meros objetos comerciais. Mulheres e homens não precisavam ser convencidos a nada quando se tratava de reproduzir a espécie, isso era um negócio, uma solução para ter mãos para lavoura. Até o advento da disseminação das ideias eclesiais, sexo não andava junto com a ideia de casamento, ou amor, ou nada que valha. Quando a prática de vender mulheres em casamento foi abolida (e ainda é uma prática muito comum em muitas partes do mundo, não se enganem), e mulheres começaram a ter alguma autonomia sobre quem seriam seus parceiros, ganharam no colo uma bomba chamada romantização dos relacionamentos heterossexuais, toda a sociedade se reordenou para que a essência de como as uniões se organizavam não mudasse tanto assim, para que sequer pensássemos nisso, em outras formas de estar, de amar, de desejar. Para que mulheres sequer cogitassem a ideia de não unirem-se nunca mais a homens, por exemplo. Continuamos a celebrar os mesmos rituais medievais, mas agora chamando de “escolha”.
Eu acredito firmemente que a maneira mais fácil de educar crianças sobre relacionamentos é buscando fugir o máximo possível dessas noções heterossexualizantes, que estão presentes em tudo que ensinamos, o tempo inteiro, na nossa linguagem, nossa cultura, nos nossos modelos. Dizemos que a vaca é a “mulher do boi” (por que ela não pode ser a irmã? por que não dizemos que ela é a versão fêmea daquela espécie?), dizemos que dois irmãos que são um menino e uma menina são um “casal”, dizemos que crianças namoram, e isso pra citar alguns poucos exemplos que passaram agora na minha cabeça.
Temos que nos observar ao máximo para evitar essa visão do mundo pautada pela divisão sexual. Até porque crianças não têm uma noção erótica. Elas vêem o mundo dividido muito mais entre adultos e crianças do que entre homens e mulheres. Somos nós, ADULTOS, que nos esforçamos o tempo inteiro em doutrinar essa organização mental pautada no sexo.
Eu também não gosto muito do discurso da “aceitação”, porque — a depender de como é feito — isso indiretamente ainda reforça a ideia de que existe um comportamento normativo, padrão, e um “desviante”. “Aceitar”, “incluir”, pressupõe uma concessão. Uma ideia de que aquele outro ali está fazendo algo que não deveria, não poderia, não é natural, está “fora”. E esse entendimento (para crianças) reforça uma ideia de “falta de naturalidade” em comportamentos homossexuais, de que a heterossexualidade é o “certo” mas temos que ser bacanudos e “inclusivos”, quando na real é que ninguém tem nada a ver com a vida sexual de ninguém e pessoas não têm que ser organizadas, ou aferidas, ou validadas, de acordo ou por causa da sua sexualidade.
Diga a seu filho que adultos namoram e crianças não namoram. É isso que ela precisa saber sobre o tema. Quando a criança vir dois homens se beijando, verá adultos namorando. Quando vir duas mulheres se beijando, verá adultos namorando. Quando ela vir um homem beijando uma mulher, verá adultos namorando. Quando ela vir um casal de homens ou mulheres com um filho, verá dois adultos que resolveram criar uma criança. Dois pais, duas mães. Sequer há muito o que ser “explicado” sobre isso. É a vida dos adultos. Fim de papo. Não há o que “aceitar”, não há nada “diferente” nisso. Precisamos parar de projetar nossos constrangimentos e nosso preconceito para o mundo das crianças.
Se há algo a ser “explicado” para crianças sobre esse tema é que vivemos em uma sociedade que valoriza e condiciona um comportamento heterossexual. E isso nos leva a um comportamento de estranhamento, reativo e muitas vezes agressivo a tudo que foge a essa domesticação. O que crianças precisam entender não sobre o que é que a “homossexualidade” e sim sobre o que é realmente a heterossexualidade, sobre o que ela representa, sobre como ela nos é imposta, a que ela se destina. Que pessoas não são “naturalmente” uma coisa ou outra. Elas são pessoas, humanas, complexas, e têm o direito de crescer fazendo valer seus desejos e afetos sem ter que prestar contas a ninguém.
Em uma sociedade que prestasse, onde pessoas fossem verdadeiramente livres, todos saberiam que comportamento sexual de alguém é um tema de foro íntimo e de competência dela e que ninguém tem que se meter nisso. E que isso não define ninguém. Que classificar, discriminar, perseguir, segregar, estigmatizar pessoas com base no seu comportamento sexual só faz sentido em uma sociedade patriarcal, que precisa controlar corpos e sexualidades. Que só funciona porque realiza esse controle.
Então, considerando todas as poderosas engrenagens da heterossexualidade compulsória eu não tenho ilusões que seja possível criar crianças 100% descontruídas, seres de luz, porque a própria lógica de “desconstrução” que temos já está contaminada, porque o capitalismo já colocou as patas nessa pauta (e está se dando MUITO bem), enfim, são muitos poréns. Mas eu acredito sim que é possível explicar a nossas crianças e adolescentes como e porquê as coisas são como são. E acho que é possível esse esforço de contrabalancear essa educação que é toda baseada na divisão sexual da sociedade e consequentemente na dominação e na subalternidade de homens e mulheres respectivamente. Vale a pena pelo menos esse esforço dirigido.
Quanto ao meu filho eu espero apenas que ele faça sexo protegido, consciente e consentido. E que curta muito, e se divirta, porque sexo é uma coisa bastante boa, convenhamos. O resto, realmente, não é da minha conta.
Meu filho, você completa seis anos. Seis longos anos se passaram desde que te peguei no colo pela primeira vez e hoje quando te vejo assim, já um menino, meu coração é só saudades. Sim, eu já sinto agora saudades desse garoto divertido e esperto que você é porque descobri que o tempo passa muito rápido. Eu ainda não esqueci teu cheiro de bebê, eu ainda não esqueci teus primeiros passos e agora tudo são saltos e pulos pela casa. Eu ainda não esqueci teus balbucios e agora você matraqueia sem parar. Eu sinto tantas saudades, saudades de tudo. Saudades de você, saudades de mim antes de você. Meu coração é só confusão, eu sinto falta de poder dormir tranquila até a hora que quiser e sinto falta do seu sorriso que me acompanha incansavelmente todas as manhãs. Eu sinto falta do meu corpo antes que você o invadisse e sinto falta de sentir você se transformando em você dentro da minha barriga. Eu sinto falta da minha vida antes de tudo ser sobre você e sinto falta cada vez que você não está aqui. Como é possível tanta contradição num coração?
Você na minha vida me impulsionou a ser coisas que jamais sonhei. A olhar para lugares e abrir portas que nunca mais conseguirei fechar. Tua presença cotidiana, que me tornou mãe, também me tornou uma mulher que anseia e luta por uma possibilidade de mundo melhor para todas as mulheres e para todas as crianças. Mas foi você, é por você. É por não querer perder sua alma, por não querer deixar você entregá-la, num pacto por privilégios. Eu sinto saudades. Saudades de quando a vida parecia mais fácil apenas porque eu não entendia, eu não via, eu não sentia. Eu não sentia nada, e agora eu sinto tudo, meu filho. E foi você, rasgando minhas vísceras com a tua chegada.
Eu sei que foi a socialização que me trouxe até aqui, mas não posso negar a intensidade desse vínculo, de amor, de afeto. Tudo passa tão rápido, e eu sinto alívio também, porque foi tudo tão difícil, e então eu penso que bom que passou, nunca mais faria de novo, mas aí me doem as saudades de um jeito que não tem jeito. E digo “não tenham filhos”, como dizer o contrário? Mas não, eu não vou negar, a maternidade me transformou, ela me trouxe até aqui, ela me forjou essa mulher melhor. E não, não acontece com todas. E sim, acontece com muitas. E às vezes um sorriso apaga tudo, mas é sempre só por um instante. Você tem seis anos, meu filho, e eu não odeio ser mãe. Eu não odeio mesmo. Mas odeio o patriarcado, eu odeio esse mundo que explora mulheres e que nos impede de mergulhar no mar intenso dessa experiência sem medo de rachar a cabeça no fundo.
Você faz seis anos e eu sou só saudades. Saudades de quando você não estava aqui. Saudades de cada versão de você que se vai enquanto você cresce, assim tão rápido.
A socialização de crianças ocorre a partir do dizemos para elas mas principalmente a partir daquilo que ela vê, os modelos de comportamento que ela apreende do mundo. Crianças aprendem o que ensinamos e, principalmente, apreendem o mundo a partir daquilo que elas vêem dos seus adultos de referência. Vamos para o mundo imitando esses adultos e com a maturidade é que vamos tendo possibilidade emocional e bagagem crítica para reorganizar esses comportamentos na vida. Por isso os tipos de exemplos que adultos devem dar às crianças podem ser determinantes no futuro:
homens realizando trabalho doméstico não adianta apenas dar panelinhas para os meninos ou subtraí-las das meninas, crianças precisam ver homens e mulheres realizando todos os tipos de trabalho doméstico nos ambientes que ela frequenta, a ponto dela não ser capaz de fazer nenhuma associação de atividades a um sexo pois vê todos fazendo de tudo: lavando, passando, cozinhando, limpando, cuidando dos outros. E idealmente, ela precisa ver isso dentro da própria casa, ver todos os adultos ali conversando e realizando a divisão das tarefas da maneira mais justa possível para todos, e inclusive incluindo a criança nas pequenas tarefas.
mulheres divertindo-se Traga na mente a imagem de mulheres da infância? Quantas estavam à toa, rindo, fazendo nada, apenas curtindo um pouco a vida? Possivelmente pouquíssimas, porque mulheres não aprendem que têm direito a isso quando chegam na vida adulta. Homens cultivam seus hobbies, tem seus esportes, carteado, videogame, encontro com os amigos no bar, e toda uma série de coisas que ocupa esse lugar de lazer e entretenimento. Para mulheres resta o trabalho doméstico, o trabalho invisível que nunca termina, e quando sobra tempo, uma novela ou série. E convenientemente mulheres ainda aprendem que “lazer” é embelezar-se, então gastam o seu pouco tempo livre dedicadas a rituais de beleza que são tudo, menos divertidos. Então faça um favor as suas crianças e divirta-se. Deixa a louça na pia e senta pra jogar videogame também, saia com suas amigas ou receba-as em casa e passe a tarde gargalhando com elas. Cultive também seus hobbies, escute suas músicas, cante alto, dance pela sala. Deixe as crianças saberem que mulheres são pessoas que existem para além do serviço, da utilidade pública e do embelezamento de ambientes.
homens emocionando-se e falando sobre sentimentos Quase tudo que crianças veem sobre homens é com eles envolvidos em conflitos. Homens gritando, com raiva, socando coisas, resolvendo tudo no tapa e no tiro. Homens demonstrando força, brutalidade. Crianças precisam saber que homens possuem sentimentos e que emocionar-se, ter empatia, ter sensibilidade, gentileza, fragilidade não é uma prerrogativa feminina. Que os homens da vida da criança chorem junto com ela assistindo desenho animado, usem roupas coloridas, não tenham medo de dizer que erraram, pedir desculpas, dizer que não sabem, que estão com medo. Que crianças possam conhecer homens que sejam humanizados, despreocupados do compromisso de serem dominantes, desvinculados do compromisso de serem heróis, guerreiros, príncipes. Homens rebelados com o pacto de dureza que o patriarcado exige de todos eles. E que haja cada vez mais retratos desses homens (e meninos) nas narrativas midiáticas para além da caricatura das comédias românticas.
mulheres reais, despreocupadas em serem belas Crianças precisam tomar contato com mulheres reais. Mulheres que têm pêlos, marcas, cicatrizes, seios flácidos, celulites, cabelos desgrenhados, rugas. Precisam ver mulheres despreocupadas com roupa, maquiagem, comendo e bebendo com prazer, sem contar calorias compulsivamente. Crianças precisam ver mulheres parando de autodepreciar ou supervalorizar a própria aparência e a de outras mulheres, falando coisas do tipo “nossa, como fulana engordou”, ou “meu cabelo está horrível”. Precisam ver mulheres elogiando-se sem ser pela forma física, aparência ou roupas. E parar de ver mulheres gastando horas do dia em rituais de roupa, unha, cabelo, depilação, maquiagem, para somente depois disso as ouvirem dizer que “estão ótimas”. E parar de ver concursos de beleza e mídias onde mulheres e meninas tem uma aparência absolutamente irreal e falsificada. Parar de ganhar bonecas que já chegam magras, loiras e maquiadas. Meninos e meninas precisam ter contato o tempo inteiro com mulheres reais, validando outras mulheres reais e levando suas vidas sem angústia de estar “bela”.
adultos repudiando violência esse é o mais difícil e o mais importante. Crianças precisam testemunhar homens e mulheres repudiando a violência. E isso implica ver homens não sendo violentos com mulheres nem crianças. Isso implica mulheres não sendo violentas com seus filhos. Isso implica rever toda a nossa produção cultural que exalta a força e a violência como maneira de transitar no mundo. Crianças precisam, no mínimo, de um ambiente onde haja um esforço contínuo pelo estabelecimento de acordos, de conversas, de estratégias para resolver problemas que não envolvam gritos, agressões verbais, chantagem emocional, ameaças, agressões físicas. De um ambiente formados por adultos que abandonem o punitivismo como forma de relacionamento e aprendizado. Crianças precisam conviver com isso, e casa, na escola, na maior parte de ambientes possível. Precisam ver adultos conscientes e críticos, empenhados em combater todos os males que uma sociedade tão agressiva, violenta e voltada para a dominação dos mais vulneráveis nos causa. E como adultos, esse é o nosso principal desafio. Combater a dominância, a hierarquia e a violência que nos rege e mostrar a todas as nossas crianças que é possível vivem em comunidade sem tanto sofrimento.
Dessa forma, há algumas coisas que crianças precisam começar a VER acontecendo por aí, não esporadicamente, mas o tempo todo, na sua casa, na casa dos parentes e amigos, nas histórias que lê, que assiste. São mensagens simples mas poderosas que vão mostrando outras possibilidades, que ajudam a quebrar a lógica da exploração patriarcal e da hierarquia entre homens e mulheres, que é afinal contra o que lutamos.
Pode não parecer, mas lutamos pelo direito de criar nossos filhos com dignidade. A sociedade é estruturada de forma que cada um de nós seja a engrenagem de uma super-estrutura exploratória que funciona para beneficiar plenamente uma parcela muito específica e diminuta da população, a saber: homens brancos ricos. Logo, se você não é um homem branco rico, certamente está sendo explorado em algum ponto dessa cadeia, seja em função do seu sexo, sua raça, sua classe, ou tudo junto.
Nosso bem-estar enquanto indivíduos e enquanto comunidade não é algo que seja uma finalidade na nossa vida da forma como ela é organizada. Ou seja: na realidade não nascemos para “ser felizes” e sim para manter em funcionamento um sistema que faz homens brancos e ricos felizes e cada vez mais poderosos. As necessidades subjetivas de felicidade e bem-estar que nos são permitidas almejar e alcançar (e que são necessárias até como um mecanismo de regulação social, senão nos revoltaríamos) são insufladas de maneira artificial e calculadas para nos manter pacíficos, iludidos e alimentando uma roda de consumo que garante o lucro de quem nos explora.
Dito e entendido isto, precisamos ser bem honestos na seguinte questão: o sistema não liga para as crianças, que são propriedade das suas famílias até atingirem uma idade em que possam ser utilizadas na estrutura. E neste contexto, as famílias são as unidades funcionais para criar e manter os indivíduos mais ou menos em bom estado para serem usufruídos em sua capacidade produtiva e reprodutiva, e cujo funcionamento gira basicamente em torno da exploração do trabalho de uma mulher.
É por isso que toda mulher cresce aprendendo que a felicidade vem de ter “amor” ou algo que valha, que manifesta-se em casar-se, ter filhos e cuidar de uma casa e de um marido; e que todo homem cresce aprendendo que a felicidade vem de ter “dinheiro”, sucesso e afins, que manifesta-se em trabalhar, trabalhar, trabalhar. Para que, como resultado final, mulheres mantenham-se sempre cumprindo sua função de gestar e cuidar dos filhos e manter um lar que vai dar assistência para que um homem mantenha-se trabalhando para o capital em potência máxima. Todos sendo explorados. É a máquina perfeita. E os discursos em torno disso vão se adaptando, remodelando-se com o tempo, mas todos os rios desaguam no mesmo mar, não se engane. Nós crescemos aprendendo isso, e nós estamos ensinando isso aos nossos filhos — querendo ou não.
Logo, criar TODAS as crianças felizes, saudáveis, protegidas, capazes de construir um mundo melhor não é prioridade de ninguém que detenha o poder. As pesquisas, descobertas científicas, tecnologias e teorias sobre o melhor desenvolvimento de bebês existem para garantir uma melhor criação apenas das crianças que importam: aquelas que se tornarão adultos que comporão as partes mais acima da grande pirâmide de exploração a qual pertencemos. Criar filhos com alguma dignidade é um privilégio reservado a quem pode pagar. E quem pode pagar, historicamente, tem raça e classe muito bem definidos. Em resumo, moradia adequada, segurança alimentar, acesso a informação, tempo, informação, rede de apoio, possibilidade de autoconhecimento, e tudo mais que uma criação decente de crianças demanda, é acessível basicamente pra uma bolha que contém pessoas brancas com dinheiro.
Afinal, para quem estamos falando de humanização do parto, com os sistemas de saúde pública completamente sucateados? Com o SUS sendo destruído? Para quem estamos fazendo campanha de amamentação prolongada se a licença-maternidade é de 120 dias? Para quem estamos pregando “criação com apego” se quase sempre o que a maior parte das famílias consegue fazer pelos filhos é manter o básico da estrutura de sobrevivência, colocar na escola com um beijo de bom dia, colocar na cama com um beijo de boa noite, torcendo pra ter dado tudo certo entre uma coisa e outra?
Como é que a gente fala de alimentação saudável sem falar de segurança alimentar? Sem falar de renda-mínima? Valor da cesta-básica? Agricultura familiar, aumento salário-mínimo? Como é que a gente fala de comer bem com quem passa fome? Como fala de criação sem violência sem discutir saúde mental, adições, pobreza, violência doméstica, cultura da pedofilia, desamparo estatal, ausência de proteção policial e legal?
Como é que discute antirracismo com os filhos sem falar de desigualdade social, distribuição de renda, políticas de cotas de alto a baixo, reparação histórica, taxação de grandes fortunas, redistribuição de terra e moradias? Sem falar em genocídio de pessoas pretas e pobres, encarceramento em massa?
Quando a gente toca em todas essas questões superficialmente, ou apenas do ponto de vista individual e subjetivo, sem partir da base, sem tocar na raiz dos problemas, para quem estamos falando afinal ? Quem são as pessoas que conseguem burlar estas questões estruturais básicas e ter acesso aos benefícios de um discurso progressista porque tem dinheiro para pagar por isso? E em que isso resulta senão no reforço da lógica de exploração que rege todas as nossas relações?
E fiz essa longa explanação até aqui para dizer que: não existe proposta sobre uma sociedade melhor, mais justa, que não passe pela necessidade de todos criarem seus filhos com dignidade, respeito e consciência crítica. Todos. E não somente as pessoas que chegaram até aqui carregadas historicamente por um acúmulo de privilégios. E para que todos tenham essas possibilidades, para que famílias não sejam apenas uma máquina de produzir gente a serviço da estrutura capitalista-patriarcal precisamos reivindicar estratégias que confiram condições materiais para as pessoas.
Sem condições materiais mínimas asseguradas: moradia, alimentação, segurança, educação, assistência médica, etc, não dá pra criar crianças com qualidade. Porque para garantir esse básico, temos que abrir mão do principal recurso necessário para realizar essa tarefa que é o nosso tempo. Quando se precisar estar 18 horas por dia dedicado a um trabalho laboral de manutenção da vida não interessa quanta informação nós recebemos, quantos livros lemos, quantos cursos fizemos, quantas teorias revolucionárias de criação nós conhecemos, não conseguiremos aplicar isso. Só vamos acumular a angústia e frustração.
E ocupar todo o nosso tempo também é uma estratégia do capitalismo. Precisamos ser mantidos ocupados e exaustos para que não consigamos sequer refletir sobre nossa situação. Para que a gente não pense sobre que tipo de organização de vida é essa em que estamos inseridos, que vamos sobrevivendo, passando pra frente toda a socialização que aprendemos, no automático, deixando exploração, violência e sofrimento como legado. Nosso tempo é completamente ocupado, roubado de nós para que a gente não tenha tempo nenhum de refletir quem somos, de onde viemos, para onde vamos.
A ninguém interessa uma geração de pessoas despertas, que esteja interessada em criar crianças críticas, conscientes. Que vão se tornar adultos potentes para rebelar-se. Pessoas conscientes são um problema e propor uma criação libertadora, anti-sexista, antirracista, anticapitalista é dos discursos contra-hegemônicos mais revolucionários que podem existir, e cabe a nós, pais, cuidadores, educadores, adultos interessados em plantar sementes para um futuro mais promissor, conquistar o direito fundamental e inalienável de poder criar nossos filhos com dignidade hoje. Já.
E portanto, nós temos o compromisso de ser mais ousados do que temos sido. Ou no mínimo menos ingênuos. ENXERGAR as artimanhas em que somos engendrados, denunciar, opor-se, reivindicar condições mais justas, humanas, Condições materiais. Concretas. Pensar em uma organização social que não se baseie em exploração. Que não dependa de lotes de crianças em sofrimento sendo produzidas a toque de caixa para poder prosperar. Criar uma sociedade melhor para nossos filhos só funciona se essa sociedade for melhor para todos os filhos de todas as pessoas. Porque enquanto uma criança ainda crescer com fome, sendo explorada, sendo abusada em algum lugar significa que ainda falhamos com ela e com o adultos que ela será. Que fatalmente perpetuará esse ciclo de indignidades. E vamos só afundar na ilusão de que estamos fazendo algo e continuaremos a entregar nossos filhos para esse mesmo mundo bosta com um futuro de cartas marcadas que tem cara de passado.
A felicidade de todos nós deveria ser nosso objetivo enquanto sociedade. E pra isso precisamos até entender o que consideramos felicidade. Enquanto nos for negado o direito de pensar por conta própria (roubando nosso tempo, direcionando nossos pensamentos e emoções) vamos seguir patinando. Mas acima de tudo precisamos entender que esse desafio não é dos nossos filhos, não é mais dos nossos pais. É todo nosso, e não podemos fugir. Pelo direito de criar nossos filhos e pelo direito de toda criança ser criada com respeito e dignidade.
Criar crianças antirracistas é garantir que vidas negras importam. E para ensinar crianças sobre antirracismo é preciso contar-lhes histórias. Contar sobre como, ao longo de toda a trajetória da nossa civilização, grupos de pessoas — quase sempre brancas — sistematicamente invadiram outros territórios e dominaram os povos ali nativos, os assassinaram, e espoliaram.
Precisamos contar como esses grupos foram acumulando riquezas saqueadas e aumentando seu poder de invasão e domínio, sempre privilegiando seus iguais. Uma prática ancestral, imemorial, e definidora quando falamos da formação do que conhecemos como Brasil.
Precisamos explicar aos nossos filhos como fomos invadidos por um povo de homens brancos ricos, que chegaram e exterminaram milhares e milhares de pessoas que aqui viviam suas vidas. Sobre como eles perseguiram e escravizaram os habitantes que sobreviveram, e aqui se instalaram e começaram a apropriar-se de tudo, com fúria, à custa de muito sangue derramado. Precisamos explicar como esse lugar se tornou refúgio de uma monarquia acossada que veio para cá fugida e quis transformar essa terra no seu albergue particular. Como fizemos parte e aperfeiçoamos o tráfico sistemático de pessoas negras trazidas do continente africano para trabalho escravo, pessoas que eram vendidas como coisas, como objetos na banca do camelô da praça e vilipendiadas.
Temos que contar as nossas crianças como durante séculos, milhares e milhares e milhares de seres humanos foram tratados como coisas, comercializados, explorados até a última gota de suor e como, em algum momento, esse modelo de economia esgotou-se e eles foram “libertos”. E explicar a farsa da abolição da escravatura e deixar que crianças entendam como, há pouco mais de 100 anos, uma incalculável população de pessoas negras, homens, mulheres, crianças, foram jogadas na rua. Sem casa, sem comida, sem emprego, sem patrimônio, sem estudo. Para permanecerem, a partir daí, eternamente coagidas economicamente por pessoas brancas, oprimidas por uma estrutura criadas para mantê-las eternamente em posição de subalternidade racial, em subempregos, sempre vistas como seres sem distinção ou dignidade.
E precisamos dizer também como todas as mulheres indígenas e escravizadas foram sistematicamente estupradas, como foram abusadas por seus senhores, que nossa nação “feliz e miscigenada” é fruto da dor e da violência sexual sofrida pelas nossas ancestrais.
Não basta “falar sobre racismo” para crianças ou “reconhecer o seu privilégio branco” sem explicar os motivos pelos quais o racismo existe. Sem explicar a estrutura que é sustentada pela segregação racial que existe para manter pessoas brancas em situação de vantagem econômica, social, financeira e em posição de manter sua hierarquia sobre pessoas negras, para que elas continuem servindo, continuem fazendo o trabalho pesado, subutilizado, que os brancos não querem realizar.
É preciso apontar que pessoas negras hoje, como resultado de tudo que pessoas brancas fizeram, compõem a maioria das pessoas pobres, periféricas, menos escolarizadas, imersas em situação de violência, exploração, marginalidade, violência sexual, abandono parental. Que sofrem exclusão institucional, são a maioria da massa carcerária, a maioria da massa evadida das escolas, a maioria da massa que está subempregada. Que jovens negros são executados compulsoriamente pela polícia. Que estão à margem dos sistemas de justiça. Que elas apenas passaram a ser vistas como “pessoas”, há pouco mais de 100 anos, tendo que correr atrás de tudo que lhe foi roubado, herança, história, cultura, patrimônio, ancestralidade. Que muitas dessas pessoas não sabem nem definir quem foram seus tataravós porque eles foram retirados à força do seu lugar de origem, separados da sua família e jogados em uma senzala. Que isso tudo acontece porque pessoas negras foram raptadas, traficadas, foram assassinadas, foram escravizadas, por anos e anos. Tudo isso feito por pessoas brancas.
Então não adianta falar sobre racismo para crianças se você também não fala em privilégio e principalmente se você não fala em reparação. Se você acredita em meritocracia. Se você fala de tudo o que acontece com a população negra como se isso não fosse um problema que, mesmo que você, indivíduo, não tenha causado diretamente, hoje se beneficia. Se você conhece seus ancestrais, se sua família tem um patrimônio, se você tem herança a receber, é porque seus antepassados brancos, em algum lugar, estiveram escravizando uma pessoa negra. E hoje você colhe os frutos dessa exploração. Você acumula para si os resultados de anos de sangue negro derramado.
E sim, é preciso que as crianças brancas que estão aí hoje entendam isso. Que mais que entender-se com sendo detentores de inúmeros privilégios, que mais que serem capazes de não reproduzir preconceitos raciais, elas sejam capazes de recuar. Educar crianças para combater o racismo é mais que mostrar que pessoas negras existem, mostrando fotos de revista ou programas de TV, é sobre alertá-las que é preciso tirar o joelho do pescoço das pessoas negras. Porque nascemos com esse joelho posto, lhes tirando o ar.
Ensinar crianças sobre democracia racial é sobre a compreensão de toda a violência que pessoas brancas impuseram e impõem à pessoas negras. É sobre reconhecimento de todo o privilégio que advém dessa violência estrutural. E é sobre reparação. Sobre apoiar e lutar sobre essa reparação. Sobre recuar nos seus direitos adquiridos à custa do sangue dessas pessoas para permitir que pessoas negras acessem os espaços dos quais foram historicamente alijados, sobre eleger pessoas negras para ocupar espaços de poder, sobre consumir de pessoas negras, sobre defender pessoas negras da violência estatal.
Você vai ser capaz de tirar o seu filho do banco protegido do carro e caminhar com ele pelas ruas onde a população negra se atropela pedindo comida? Ou vai mostrar pessoas negras pela janela? Você vai ser capaz de abrir mão de colocar o seu filho nas “melhores escolas” e nos “melhores ambientes”, com “pessoas da classe dele”, para que ele possa “vencer na vida”, em nome dele frequentar lugares mais democráticos, plurais? Você vai ser capaz de manter seu filho em universidades particulares que você pode pagar em nome de abrir espaço na disputa das melhores escolas públicas? Você vai ser capaz de abrir espaço nos concursos públicos? Vai abrir mão de explorar a mão de obra doméstica de pessoas negras? Vai deixar seu filho brincando com as pessoas da “comunidade”? Se você não atravessa sua prática com essa compreensão de como cada pessoa negra chegou até aqui dentro desse sistema e não consegue dar passagem, não adianta nada usar camiseta com frases bonitas e hashtags.
Se você no fundo olha pra todo menino negro maltrapilho como um potencial trombadinha, se você olha para toda menina negra como uma serviçal, se você é incapaz de reconhecer beleza e potência neles. Se você mesma os rejeita, acusa e pune na primeira oportunidade. Enquanto pessoas brancas que estão dispostas a repensar seus privilégios não assumirem esse nível de consciência sobre as origens e desdobramentos dessa questão, vamos apenas ficar em articulações momentâneas que passam em poucos dias dando lugar apenas a novas ondas de indignação quando uma outra pessoa branca comete uma nova atrocidade.
Antirracismo é uma prática diária. É uma vigilância constância sobre o pensamento colonialista com que cada pessoa branca é socializada no sentido de manter todos os privilégios rapinados por seus ancestrais com violência e morte. É a recusa de privilégios travestidos de direitos.É retirar esses privilégios dos próprios filhos em detrimento de um sistema justo. Escancarar as vísceras desse sistema e assumir a responsabilidade por como chegamos até aqui. É assumir para si, definitivamente, o compromisso de que vidas negras importam.