Mulheres aprendem que devem sexo. E homens aprendem a cobrar.

Mulheres aprendem que devem sexo e homens aprendem a cobrar. Falamos sobre assédio, estupro e abuso, tentamos buscar maneiras de ensinar nossas meninas a se defender mas muitas vezes ignoramos que vivemos em uma cultura que organiza a relação entre homens e mulheres com base na compulsoriedade sexual onde meninos aprendem que podem – e devem – tomar sexo para si no momento que desejarem e mulheres que negam podem ser coagidas.

Falamos sobre assédio, explicamos, mas falamos sobre consentimento em bases incompletas, fazendo parecer que basta dizer “sim”. Não dizemos que o “sim” não é suficiente se ele for obtido em bases coercitivas, se for para agradar, se for para não ser importunada, se for para obter alguma vantagem.

Não falamos abertamente para mulheres que elas têm direito absoluto de sentir desejo de fazer sexo. Tesão. E que tem direito a não fazer sexo quando não estão com vontade. Que quando fazemos algo sem desejo não é consentimento é concessão. E ceder não é consentir. Cedemos por muitos motivos e homens se especializam em manipular, chantagear, subornar, ameaçar, coagir mulheres até que elas cedam. E não se importam com o real desejo da mulher, apenas querem que elas cedam e então chamam hipocritamente isso de consentimento. E mulheres, sem saber que têm direito a ter vontade, assumem a culpa por envolver-se em uma relação de abusividade nas quais são puramente vítimas.

Falar sobre assédio é falar sobre recusa. Sobre direito a mulheres recusarem qualquer tipo de abordagem, de proposta, de presença masculina se assim desejarem. De não serem coagidas a serem receptivas, simpáticas, amáveis, com quem não estão dispostas a ser. Sobre poderem dizer não e sair de uma interação a qualquer momento, não importando se em algum momento ali elas também quiseram ou desejaram.

Meninas precisam aprender a conhecer os mecanismos da socialização que a deixam expostas a manipulação masculina. Precisam fortalecer-se para fazer valer sua recusa e também para poder participar de interações amorosas e sexuais de maneira saudável, não-hierarquizada. Que possam flertar em paz, sem isso significar um sinal verde para que sejam violadas.

Não é função da mulher cuidar da higiene do companheiro

Um grande desafio que mulheres enfrentam nos seus relacionamentos é entender que não é sua função cuidar da higiene do companheiro. E isso por causa de uma socialização que começa na infância. Meninas aprendem que autocuidado é embelezar-se (para aprovação masculina) e essa lógica ricocheteia e meninos aprendem a repudiar tudo que tem a ver com higiene e autocuidado por ser considerado “coisa de mulher” e consequentemente “frescura”. Uma ameaça ao ideal de virilidade que homens precisam ostentar a todo custo.

Homens também não se preocupam em cuidar de si, é bom dizer, porque crescem com a percepção de que sempre haverá uma mulher ali, monitorando sua saúde e seus hábitos de higiene. Avisando que está na hora de cortar o cabelo, comprando roupas novas, sugerindo cortes de cabelo, comprando produtos de higiene, mandando pro banho, limpando o banheiro que eles sujam. Não amadurecem e não adquirem uma verdadeira autonomia.

E os homens que fazem o básico, saber se cuidar, são tão raros que são considerados “diferentes”, “especiais”. Mulheres sentem-se “afortunadas”, apenas se o companheiro não for um porcalhão completo. E é tanta negação do hábito de autocuidado que homens que são asseados tem sua sexualidade questionada, ou mesmo questionam-se se não são “femininos”, como se gostar de banho, gostar de sentir-se “bonito”, cheiroso, andar limpo, fosse uma prerrogativa de mulheres.

Mulheres precisam compreender que não são responsáveis pela higiene dos seus companheiros, ainda que exista essa expectativa implícita. Seu companheiro é um homem adulto e ter que gerenciar a maneira como ele se limpa para poder ter alguém higienizado ao seu lado é um absurdo que já naturalizamos porque aprendemos que é normal maternar nossos companheiros. São aos filhos que devemos orientação para que aprendam o padrão de higiene e saúde desejado e façam a manutenção disso por sim mesmos a medida que crescem.

Por mais difícil que isso seja, uma pessoa que seja responsável pelo próprio asseio, que tenha autocuidado, preocupação com a própria saúde é o mínimo de onde você deve partir dentre inúmeros outros critérios na hora de escolher alguém com quem compartilhar a vida. Não normalizem a pouca higiene! Não se relacionem com homens que não tem capacidade de manter a própria bunda limpa! Busquem homens adultos, autônomos e autossuficientes de verdade.

Da transgressão indesculpável de declarar-se feminista

Declarar-se feminista é uma transgressão indesculpável. O feminismo, por definição é a luta pela emancipação feminina da dominação masculina. Numa análise mais profunda, podemos sim, inclusive, falar de libertação. De exploração. E de escravização. Masculina.

O agir feminista portanto consiste em praticar o feminismo. Ou seja, lutar pela emancipação feminina. E essa luta se dá em muitos fronts, de muitas pequenas e grandes maneiras. Muitas mulheres tem um fazer feminista ainda que assim não se declarem. Muitas mulheres se declaram feministas mas tem um fazer claramente antifeminista.

E por essa mesma lógica que homens não podem ser feministas. Eles podem, no máximo, tomar consciência dos seus privilégios e tentar abrir mão deles, podem tentar resolver seus próprios problemas de masculinidade, machismo e violência, podem constranger seus iguais, abrir mão da cumplicidade e da omissão. Mas não podem lutar pela libertação feminina porque nessa equação eles estão do lado a ser combatido. São algozes. São o inimigo.

Sim. Homens são os inimigos. Sem aspas. Homens matam, violentam, exploram e escravizam mulheres. Generalização? Todo o sistema que gira o mundo é comandado por homens. Observe todos os grupos que governam todos os países do mundo. Quem está lá? Por quem é formada a maioria? Homens. E não só no executivo. No legislativo, no judiciário. Homens fazem as leis, julgam, prendem, soltam. Homens nas forças policiais e armadas. Homens no comando de todas as empresas, na publicidade, na mídia, na produção artística.

Então talvez “nem todo homem” seja um abusador, agressivo ou estuprador mas entenda, o meu, o seu “cara legal” é no mínimo omisso e cúmplice.

Todo homem, absolutamente todo homem, é inegavelmente, ao menos omisso ou cúmplice em relação a tudo o que mulheres sofrem na nossa sociedade. Porque se assim não fossem, como permitiriam tanta violência contra as mulheres? Como permitiriam que mulheres fossem tratadas como são? Tanta morte, tanta exploração, tanta mágoa. Onde estão os homens “bons”?

Se homens verdadeiramente amam mulheres como pessoas e não como objetos, se são os homens que hoje controlam o mundo, se o feminismo está errado em combater a supremacia masculina, por que toda mulher tem uma história de horror pra contar? Envolvendo um homem.

Onde estão os “homens bons” que não fazem nada a respeito?

É difícil perceber e aceitar isso, eu sei. É muito difícil sim.

Por isso, para além do agir feminista — que muitas mulheres o fazem sem saber — declarar-se feminista é um ato político. É um ato de trazer para a polis, para discussão pública, a guerra contra a misoginia. É deflagrar que há mulheres que sim, sabem o que está acontecendo e estão lutando contra isso.

Acima de tudo, declarar-se feminista é declarar-se antagônica aos homens. É isso é dificílimo em uma sociedade que nos socializa para amá-los acima de todas as coisas e a servi-los sem hesitar. Numa sociedade que nos desumaniza. Declarar-se feminista é um ato de profunda rebeldia. Uma trangressão indesculpável. Que tem um alto preço social. Não á tôa muitas mulheres que lutam por outras mulheres declaram meio constrangidas “eu luto por direitos, mas não sou feminista”, “eu sou feminista, mas não sou radical”, “eu sou feminista, mas sou feminina”.

Porque perceber-se feminista e declarar-se feminista, é berrar aos quatro cantos para que todos os homens ouçam: eu sei que vocês nos odeiam, que vocês odeiam nosso corpo de fêmea, eu sei que vocês nos exploram, eu sei que vocês se omitem, eu sei que vocês não se importam conosco, e eu vou lutar contra vocês.

E como fazer isso nessa sociedade androcêntrica, se nós só nos “tornamos mulheres” quando aceitamos ser acessórios de um homem? Quando aceitamos o cabresto da feminilidade? Então eu entendo sim, todas as mulheres que não conseguem, não podem, não concebem essa perversão cabal: rejeitar homens e colocar mulheres no centro do seu universo.

E isto não tem a ver com odiar homens — mas se quiser pode, porque certamente você tem motivos. Mas tem a ver com uma coisa muito mais profunda e complexa: aceitar que não é possível confiar neles, de maneira nenhuma. Não é sobre amor. É sobre confiança. Mesmo os que você ama profundamente, mesmo os que te amam verdadeiramente, mesmo os nunca te fizeram ou nunca te fariam mal, mesmo o que te gerou, mesmo os que você gerou. Porque aceite. Todo homem, em algum momento da sua vida, já magoou alguma mulher. Já xingou, ou assediou, ou traiu, ou abandonou, ou agrediu, ou estuprou, ou matou. Ou no mínimo se omitiu diante de tantas violências. Os bons homens que você conhece, que você ama. Todos eles. E enquanto todas as mulheres não estiverem livres, nenhuma estará.

Então não importa se os homens que você conhece nunca te feriram. Acredite, ele já feriu alguma mulher. Direta ou indiretamente. Você pode não negar o seu amor mas não seja ingênua oferecendo sua confiança plena.

Se houvesse um único conselho que eu pudesse dar a todas as mulheres do mundo em relação aos homens seria: proteja-se e protejam umas às outras.

Estamos sós. Ou melhor, estamos juntas. Somos nós por nós.

Essa consciência da gravidade da nossa situação é dura e provoca reações distintas, todas compreensíveis. Algumas negam, outras combatem, outras preferem fingir que não sabem. Outras vão pro enfrentamento.

Para aquelas que estão na linha de frente queria dizer: estamos juntas e somos muitas. Muito mais do que você imagina. Muito mais do que você percebe. Persista. Faça o que pode, do jeito que dá. Porque sempre é muito. Precisamos de tudo e todas que estiverem dispostas. “Militância de internet” também é militância sim. E militância importante. Há mulheres que só possuem um celular velho conectado no Facebook na promoção do 3G que podem estar te lendo. Que podem estar, a partir de coisas que você disse, refletindo e tomando atitudes que nunca tomariam se não tivesse tido acesso a informações e a ideias e a uma inspiração que você deu a ela e nem sabe. Inspire outras mulheres a rebelarem-se.

Há mulheres ajudando mulheres por toda parte, de todo jeito. Há muitas pautas, muitas lutas. Muitos fronts.

Proteger. Informar. Capacitar. Fortalecer. Ocupar. Libertar.

Resista. Plante sementes. Essa não é a luta de uma primavera, mas de uma vida inteira. Estações e estações e estações. Uma luta que começou muito antes de nós por mulheres maravilhosas e que continuará muito depois de nós. Colhemos os frutos de sementes plantadas há muito. Devemos continuar semeando.

O trabalho é de formiga. Você já observou as formigas? Já viu tudo que elas são capazes de fazer?

Endureçam vossos corações mulheres!

Feminista. Do tipo radical.

Eu sou feminista. E não qualquer feminista. Eu sou do tipo radical. Do tipo que acredita que mulheres são fêmeas humanas adultas e que enquanto uma de nós não for livre, nenhuma será.

Eu sou feminista do tipo que acredita que o pessoal é político e que gênero não é identidade mas uma ferramenta para manter mulheres em situação de submissão. Do tipo que defende o nosso direito à humanidade e recusa qualquer proposta de objetificação e comercialização do nosso sexo. Porque sexo não é um direito. Porque nosso corpo não está à venda. Nossos úteros também não.

Eu sou feminista do tipo que percebe os insidiosos mecanismos da nossa socialização para feminilidade e que tenta, todo dia, desconstruir-se um pouco, porque eu também sou um fruto fresco dessa socialização. Que ama ser mãe mas reconhece que a maternidade é um mecanismo compulsório para nos manter reproduzindo mão de obra e fora do espaço público de disputa de poder. Que tem um relacionamento hetero mas sabe que ele nunca será simétrico, pois por mais o seja da porta pra dentro, da porta pra fora eu sei bem quem a sociedade enxerga como “chefe da família”. Temos muitas contradições a conciliar e erramos o tempo todo. Porque não somos perfeitas. Somos pessoas. E pessoas erram.

Ser feminista não te libera da socialização que você recebeu. É um exercício constante de análise, tomada de consciência, correção de rumos, avanços e retrocessos. O feminismo é uma porta que uma vez aberta, não fecha. E nada melhora. A consciência feminista é libertadora mas também dilacerante.

Eu não odeio homens. Mas eu não confio mais neles. Mesmo nos que amo. Porque a decepção e o desapontamento vindo do entendimento do que essa casta faz com nós, mulheres, é grande demais. Dolorida demais. E sendo amaldiçoada com a heterossexualidade, tento, todo dia, conviver e conciliar também mais essa contradição em mim. Trazer lucidez a essa Síndrome de Estocolmo.

Eu sou mãe de um menino. E o que tento fazer de mais importante é minimizar, dentro do que está no meu alcance, os efeitos perversos da socialização masculina sobre ele. Não tenho ilusões de evitar completamente que ele se torne machista. Me resta rezar todos os dias para que ele seja um homem bom. Um homem que verdadeiramente ame mulheres, reconheça e respeite sua humanidade, dignidade e integridade. E as defenda.

E onde estão os homens bons, hoje? Por que não se levantam e lutam contra os seus pares que nos exploram e nos exterminam? Por que se omitem? Eu sei a resposta: porque todos eles, direta ou indiretamente, se beneficiam da exploração de uma mulher. Da exploração da sua mão de obra doméstica, do seu corpo, do seu trabalho emocional, do status social.

E por isso o feminismo é fundamental. Feminismo não é o que a maioria vê por aí na TV, não são as mulheres de peito de fora, ou enfiando coisas na bunda… isso é o que o patriarcado (bem representado pela mídia) quer que a maioria de nós pensemos. O feminismo é o movimento de luta das mulheres por sua libertação, emancipação e direitos. E enquanto uma mulher não for livre, nenhuma será. E se hoje estamos aqui, falando sobre isso, temos que agradecer à luta das mulheres que nos antecederam.

Há 200 anos nós não tínhamos direito de estudar. Não podíamos votar. Não podíamos trabalhar fora. Não podíamos nos divorciar. Não podíamos fazer nada que não fosse estar em casa completamente à mercê do marido e criação de — incontáveis — filhos. Há pouco mais de 100 anos mulheres negras sequer eram reconhecidas como pessoas humanas.

E se hoje estamos nas ruas, exigindo mais direitos, dignidade e justiça é porque houve muita luta antes de nós. Muito sangue, suor e lágrimas de mulheres maravilhosas que lutaram, lutaram e continuam lutando. Tudo, absolutamente tudo, cada direito, foi a duras penas conquistado. Homens nunca cederam um milimetro.

Isso é feminismo. É uma pergunta simples para identificar: “isso liberta mulheres?”. Se não contribui para libertar, para emancipar, para dar humanidade e dignidade a todas as mulheres, para libertar seus corpos do controle masculino… não é feminismo.

Além da dor da consciência da minha realidade, o feminismo também me trouxe o amor. O amor por mulheres. Um amor diferente que eu ainda não conhecia porque a socialização me ensinou a odiar mulheres. Ensinou-me a odiar a mim mesma. A somente amar e admirar e homens. E de repente olhar para mim, para outras mulheres, admirá-las, acolhê-las, ser acolhida, me acolher… eu não tenho palavras para expressar como isto é grande e poderoso e transformador. Nem para dizer como é grande meu amor por vocês.

E por isso hoje achei importante dizer. Somos muitas.

Eu sou feminista. E do tipo radical. E você?

Nossas palavras não mudarão a realidade

Estamos em um momento terrível e palavras não mudarão nossa realidade, precisamos articular ações que concretizem essas palavras de ordem. Na data desse texto, agosto de 2021, vivemos uma pandemia, empobrecimento e mais um milhão de incontáveis desgraças nesse apocalipse a conta-gotas e um fato em particular sensibilizou quase todas as mulheres que tenho notícias. Estamos presenciando o retorno do Talebã ao governo do Afeganistão, um grupo paramilitar fundamentalista islâmico que caracteriza-se por impor um regime de governo totalitário marcado pela violência e por leis absolutamente restritivas para mulheres. São inúmeras as possibilidades de impedimentos, desde trabalhar e estudar até a andar na rua desacompanhada de um homem ou ter sua voz ouvida em um espaço público. No Talibã, mulheres devem ser invisíveis. Isso tudo movido a castigos físicos, violência sexual e casamentos forçados. Milhares de mulheres naquele território estão em pânico, nesse exato momento, sem saber dos seus destinos. Vendo toda sua vida e todos os seus planos sendo jogados pela janela.

Basta uma crise política para que os direitos das mulheres sejam os primeiros a serem confiscados. No Afeganistão mulheres já tiveram muitos direitos e inclusive por algum tempo tiveram um tipo de vida muito semelhante ao nosso, mulher ocidental. Não que nós estejamos em ampla e larga “vantagem”, aqui mesmo no Brasil vemos como o fundamentalismo religioso também prega que mulheres não devem estudar ou trabalhar, como devem se vestir, se portar, e nossos parcos direitos de autonomia reprodutiva estão sendo paulatinamente caçados. E se não ficarmos atentas e combativas corremos sim o sério risco de perdê-los. Porque direitos das mulheres conquistados sob um estado patriarcal estão em constante risco. Basta uma crise. Uma pequena ou grande crise e seremos o grupo que será rifado.

Afinal, qual é o grupo que está sendo mais prejudicado nessa pandemia? Mulheres, óbvio. Expulsas do mercado de trabalho, precarizadas, pauperizadas, largadas a própria sorte com os filhos em casa, vulnerabilizadas, agredidas. Um show de horrores. Lá e cá.

Por outro lado nunca estivemos tão ativos nas redes e isso me faz pensar sobre como nossas lutas são facilmente capturadas pra uma disputa narrativa que mais desmobiliza que qualquer outra coisa. Eu fico pensando sobre como fomos engolidas por um debate pós-moderno que quer vencer tudo no textão e na hashtag. Sobre como gastamos tempo e energia com debates um tanto inuteis que — por levar toda nossa energia — nos dá a sensação de que estamos nos movimentando. É tão bonito esse mundo proclamado (e profetizado pela Xuxa), em que tudo pode ser e basta acreditar que tudo será. Antes fosse. Antes toda essa verborragia passasse no teste da realidade. Eu juro mesmo que tudo que eu queria agora era que todas aqueles mulheres no Afeganistão pudessem autoidentificar-se como homens, pegar em armas e praticar um pouco da violência “intramasculina” explodindo uma meia dúzia de cabeças por lá. Que elas sentissem que não são mulheres. Que elas sentissem que não se identificam com a cisnormatividade blablabla de poderem ter um mão amputada caso pintem a unha e que elas pudessem mudar a realidade delas apenas autodeterminando que pensando bem não são mulheres.

Só faltaria combinar com os Talibãs.

É óbvio que essa baboseira queer não se sustenta na realidade, o que não parece tão óbvio é sobre como estamos completamente entorpecidos e apartados dessa mesma realidade. Ou melhor, como construímos um ambiente virtual que é hoje é uma espécie de “realidade” que vai preencheendo dias, vazios, perspectivas. Que vai tampando buracos emocionais e funcionando como rota de fuga de uma vida que parece cada vez impossível de ser resolvida. Nas redes conseguimos trazer paz e equidade com hashtag, acabamos com o sexismo mudando a grafia das palavras, podemos até confundir vogal temática com pronome, não tem problema nem ser burro, ninguém liga. É sim um lugar de mais liberdade onde, se você procurar bem, acha uma bolha quentinha cheia de pessoas que vão concordar com você e ajudar a falar mal do amiguinho. Dá paz, eu entendo.

Porque a vida, pulsando lá fora, não tem fluidez nenhuma. É o país de Bolsonaro, é o país onde voltamos pro mapa da fome, onde continuamos a morrer feitos moscas por causa de uma pandemia que ninguém sabe ainda quando vai acabar, é um mundo infestado de imbecis negacionistas que esqueceram o básico da geografia, da biologia e de tudo quanto noção básica de ciência que deveríamos ter aprendido na primeira infância. É o mundo onde há a situação das mulheres afegãs, das haitianas, de nós, latino-americanas, e tantas outras realidades igualmente massacrantes para mulheres a ponto de nem saber enumerar. É um mundo insuportável que estupra mulheres e crianças por minuto, que vende bebês na deep web pra pedófilos, onde meia dúzia de bilionários tem dinheiro suficiente para comprar nações inteiras e salvar milhões da miséria mas preferem investir dando uma voltinha no espaço num foguete fálico ridículo. É um mundo que está derretendo e congelando simultaneamente porque nós conseguimos ignorar os problemas climáticos por tempo bastante a ponto de já não podermos fazer mais nada exceto arregalar os olhos com as consequências. Um mundo onde a gente não tem nem mais lágrimas pra chorar afinal o que são 5 pessoas mortas pisoteadas num aeroporto quando já perdemos mais de 3000 pessoas por dia só por aqui?

Eu entendo o apelo sedutor do discurso pós-moderno, que não te exige inteligência, coerência e te dá poder a partir de uma das poucas coisas que você pode tentar controlar: o seu discurso. Que diz que você pode se empoderar mana, é sobre isso, vai planeta. É o que tem pra hoje para lidar com essa maldita impotência diante de um mundo que se esfacela. Vamos correr para dentro da bolha, pra quem pode, pra quem consegue. E a esta altura eu já nem sei se condeno essa pulsão de loucura generalizada. É luta ou fuga, e luta já sabemos que não está rolando. Mas palavras não mudam a realidade, ações mudam. A materialidade está lá, inalterada, dando na nossa cara quando olhamos para ela. Você não destrói monstros que te ameaçam dizendo que eles são nuvens de algodão doce, você reúne um exército e corta a cabeça dele fora. E essa tentativa pueril de não olhar esse monstro da desigualdade de sexo, raça e classe nos olhos vai cobrar seu preço para nós. Já está cobrando.

Lugar de mulher é onde o patriarcado quiser

Acreditamos na máxima “lugar de mulher é onde ela quiser”, mas basta uma crise para o patriarcado nos colocar de joelhos cumprindo aquilo que somos destinadas dentro desse sistema de opressão.

Eu já falei que é preciso pelo menos 4 pessoas para dar conta saudavelmente de todas as demandas da criação de filhos: duas pessoas em revezamento tomando conta das necessidades básicas da criança (que inclui não deixá-la sozinha, por exemplo); uma pessoa para ganhar o sustento; uma pessoa para cuidar das questões de limpeza, alimentação, roupa e cuidados gerais de manutenção do ambiente. Esse cenário não se produz, obviamente, nem em condições normais da vida, mas ainda assim, mulheres sempre conseguiram desdobrar-se e equilibrar-se terceirizando tarefas e contando com parceiros como a escola e a família.

Com a pandemia, todos estes artifícios externos para conseguir dar conta das responsabilidades que são jogadas sobre os ombros da mulheres foram retirados e o cenário — previsível e trágico — é de terra arrasada, afinal quem cuida das crianças enquanto os pais trabalham se não há mais cuidadores terceirizados? A resposta é tão fácil e automática, que chega a ser cruel: as mulheres. Não importa se elas também precisam trabalhar para se sustentar. Não importa se elas estudam, se elas produzem. Lugar de mulher é em casa e elas são as primeiras a irem pro sacrifício.

Mulheres hoje são as principais afetadas pela pandemia, estão sendo expulsas dos postos de trabalho, estão sobrecarregadas de tarefas domésticas, são as principais responsáveis pelos cuidado das crianças, dos doentes. Estão em cativeiros com seus companheiros sendo violadas, abusadas, agredidas, mortas. Enquanto isso, homens estão sendo plenamente atendidos em suas necessidades, roubando nossos postos de trabalho porque não são responsabilizados pelo cuidado de nada e ainda aumentando sua produtividade.

E todos se perguntam — e se espantam — sobre como isso pode estar acontecendo.

Eu respondo

No patriarcado existe uma coisa chamada divisão sexual do trabalho, que é a maneira como as tarefas do trabalho são divididas na sociedade levando em conta o sexo dos indivíduos. É a divisão sexual do trabalho que separa as atividades em “trabalho de homem”e “trabalho de mulher” e que também hierarquiza fazendo com que o tal “trabalho de homem” valha mais, sejam melhor remuneradas e tenha mais status. É pela divisão sexual do trabalho que homens são destinados ao mundo externo, à esfera produtiva e mulheres são relegadas ao mundo doméstico, à esfera reprodutiva. E isso acontece desde sempre, em diferentes sociedades, a ponto de podermos afirmar com razoável segurança que existem dessa forma desde o início do patriarcado, o que cobre quase tudo que conhecemos.

É muitíssimo importante que entendamos isso. Isso é o puro suco do patriarcado cuja exploração sobre mulheres se estrutura sobre a divisão sexual do trabalho, a maternidade compulsória e a heterossexualidade compulsória. Esse é o tripé estrutural consolidado para manter toda e qualquer mulher em posição de subalternidade, cuidando dos serviços domésticos, das crianças, dos adoecidos, dos idosos, dos homens.

A despeito de todas as “conquistas” que tenhamos conseguido, a despeito de leis e mudanças de costumes, percebemos como esse tripé segue inabalável quando em momentos de crise como esse mulheres são atiradas de volta ao “seu lugar”: cuidando da casa, dos filhos, do companheiro, dos vulneráveis. Veja como esta pandemia trouxe um retrocesso de mais de dez anos em participação no mercado de trabalho para mulheres no Brasil e na América Latina. Como somos a parcela mais empobrecida e mais explorada. Como os numeros de feminicídio e violência doméstica explodiram pelo mundo (assim como os de divórcio).

É para isso que existimos no patriarcado e só sairemos desse lugar rompendo essa lógica e destruindo os mecanismos que o sustentam. Não acreditem na falácia de que: “lugar de mulher é onde ela quiser”, que “mulheres já estão em pé de igualdade com homens”, que “mulheres já podem fazer tudo”. Isso é uma mentira mil vezes contada para nos manter no mesmo lugar de subalternidade mas com um sentimento (falso) de liberdade. Quando a crise bate, nós não temos todo esse direito de “escolha” que imaginamos ter e nossa agência é muito limitada porque não existe nenhum olhar para nossas demandas, somos descartadas enquanto sujeitos de direitos, com necessidades. Sobramos nós e as crianças.

A pandemia escancarou a realidade nua e crua de todas as mulheres. Está aí, inegável, sendo vivida em maior ou menor grau por todas nós. Que consigamos enxergar de uma vez por todas o lugar que a sociedade nos reserva e romper com isso. Lutar contra isso. Nomear os nossos inimigos e combatê-los, senão não importa quantas conquistas e “avanços” sejam pretensamente conseguidos, nós mulheres nunca abandonaremos esse lugar de servilidade e subalternidade. Nossas necessidades nunca serão consideradas. Nunca seremos pessoas. Com direitos. Livres.

O medo não nos paralisará

Não há o que dizer hoje para amparar tanta dor e angústia que nos atravessam irmãs. O medo paira no ar, mas não nos paralisará. É a noite escura. Não sabemos do futuro. Não há palavras para nos consolar e não podemos sequer nos furtar um abraço. Eu gostaria de poder dizer a cada uma de vocês, mulheres, que vamos resistir e tudo vai passar. E vai, sim, eu sei. Mas também sei que quando tudo fica difícil demais no mundo, é sobre nós, sobre nossos ombros, que recaem todas as chagas.

Estamos com medo.

Mulheres, o que posso dizer? O medo nunca nos abandona. Ele é nosso companheiro fiel desde que nascemos, desde nossa primeira lufada de ar. É nosso companheiro mais antigo, a primeira fera que aprendemos a domar. A sombra que nos acompanha noite e dia, sempre à espreita. Sempre nos mantendo vigilantes. Onde fazemos morada. Nós conhecemos o medo desde sempre e sabemos o que fazer.

E sim, está tudo muito mais difícil. Estamos adoecendo, empobrecendo, perdendo nossos amores, nossos pais e também nossos filhos. Estamos passando fome, vendendo nossos corpos de diferentes maneiras para nos sustentar. Estamos nos submetendo a todo tipo de violência. Confinadas. Sequestradas. Reféns de um poder patriarcal que não se importa com nada e muito menos com mulheres.

Mas eu acredito, ainda acredito, que não há força maior e mais revolucionária, e potente, que a de mulheres quando finalmente se unem na mesma direção. Eu acredito na força que só mulheres, criadas para resistir desde sempre a todo tipo de abuso apenas por serem fêmeas sob o patriarcado, desenvolveram. Tiveram que desenvolver.

Toda mulher é uma sobrevivente e não é agora que seremos paradas.

Que nossas semelhanças nos unam, mais do que nossas diferenças nos separam. Esqueçam os “feminismos”, nós somos uma única voz, lutando por questões pungentes, de vida e morte. Lutando por comida, por abrigo, por dignidade. Lutando para defender nossas crianças. Lutando umas pelas outras. Mulheres por mulheres. Sempre. Precisamos agora ser um único corpo, compacto, indevassável, um corpo de mulher, que faz as pazes com seu sangue e resiste. E vai pra luta defender a si e os seus.

Hoje, 8 de março de 2021 é um dia de lutas. E mais que nunca brigamos para sobreviver. Lutamos contra a fome, contra a exploração, contra a violência, lutamos contra o poder patriarcal materializado de forma pura diante de nós. Olhem e vejam. Encarem a batalha que descortina-se diante de nós sem subterfúgios. Vamos sair dessa fase de negaçao. A guerra agora é sobre resistir, sobre sobreviver, sobre não perecer de fome, adoecimento, totalitarismo. É sobre permanecer caminhando até sair do outro lado desse longo caminho escuro e interminável e assistir ao sol nascer.

Cuidem-se. Protejam-se. Protejam os seus. Não tenham ilusões que cairá alguma migalha dessa mesa para mulheres e crianças. Está tudo bem se você está com medo. Quem não está com medo não está entendendo nada sobre o que está acontecendo. Lembre-se que o mundo nunca nos paralisou. E não vai nos paralisar. Vamos juntas.

Representatividade sem revolução é uma armadilha

Em algum momento de um passado não muito distante nós começamos a perceber como vivemos uma sociedade estratificada por sexo, classe e raça. Em algum lugar desse passado nós conseguimos nomear o inimigo e ensaiar estratégias. Que só o desmantelamento das estruturas opressoras poderiam reordenar nossa sociedade em nome de um modelo que ainda não temos claro qual seja, mas que certamente não passa pelo genocídio e exploração sistemática de mulheres, pobres, negros.

E então, o contragolpe.

Ele sempre vem.

Inúmeras armadilhas narrativas foram plantadas e agora florescem em solo forte. E já estamos colhendo seus frutos, nos estilhaçando por dentro. Qualquer ensaio de uma coesão em nome de lutar contra um poder hegêmonico desfez-se em teses identitárias e subjetivas que parecem muito bonitas mas só causam dissenso, brigas e disputas e mais disputas inúteis que não levam a lugar nenhum.

Dividir pra conquistar. Esse, visivelmente, é o lema.

Tudo começou com essa ideia imbecil de que somos “múltiplos”, “plurais”, “diferentes”, dissolvendo completamente a possibilidade de nos vermos enquanto classe. Classe sexual, classe racial, classe proletária. Nós somos múltiplos no explorar das nossas subjetividades mas na vivência material? Somos muito mais iguais do que pensamos, há muito mais o que nos une do que o que nos separa.

Entre numa sala com 100 pessoas. Misturados ali, homens, mulheres, pessoas brancas, pessoas negras e pardas, pessoas ricas, pessoas pobres. Pergunte como cada um se sente. Pergunte sobre o que cada um pensa. Pergunte sobre o que cada um percebe. Você ouvirá 100 respostas distintas.

Agora pergunte sobre as vivências.

Quem já sofreu violência sexual. Quem já sofreu assédio. Quem já sofreu violência obstétrica. Quem já se prostituiu para poder comer. Quem já sofreu violência doméstica.

Pergunte quem já foi perseguido em uma loja. Quem tem medo da polícia porque é alvo. Quem já perdeu um amigo para violência policial. Quem já foi humilhado por sua cor. Quem já foi preterido. Quem já foi agredido.

Pergunte quem já sentiu fome. Quem já teve medo de não ter onde morar. Quem já precisou da caridade de terceiros para coisas como roupas para vestir. Quem nunca teve acesso a coisas simples como livros.

Você verá grupos distintos e muito bem demarcados. Unidos pela sua experiência material, de vida. Que só aconteceram por causa do seu sexo, da sua classe social, da sua cor.

A subjetividade nos separa, mas a materialidade nos une. Nos divide claramente entre quem manda e quem obedece. Quem oprime e quem é oprimido.

E estamos perdendo isso de vista e atacando uns aos outros.

Nesse cenário, não há armadilha maior que a ideia de “representatividade”, tal como é apresentada, com literalmente a inclusão feita de cima pra baixo de representantes de minorias (mulheres, negros, pobres) de maneira puramente simbólica. Como embaixadores de uma falsa ideia de sociedade democrática.

E isso é especialmente problemático porque não podemos perder de vista que não há interesse — e nunca haverá — que minorias tradicionalmente oprimidas e marginalizadas realmente acessem espaços de poder. E permitir a presença simbólica de alguns indivíduos em determinados lugares é uma estratégia de pacificação e cooptação de pautas para o seu esvaziamento. É uma concessão, não é uma conquista real da reivindicação dos movimentos, porque essa inclusão não acontece nas instâncias decisórias, mas nas esferas de estimulação do consumo. Garotos-propaganda sempre, diretores e presidentes, nunca. O discurso da “representatividade” é esvaziado e repaginado como uma genial estratégia de ampliação de mercado.

Sabe para quem a “representatividade” importa? Para a Natura que adquiriu a Avon e a receita da marca cresceu 19,3% em reais na América Latina, impulsionada especialmente pelas vendas no Brasil, e avançou 22,5% na operação internacional, que reúne 50 mercados na Europa, Ásia, África e Oriente Médio e está de olho no mercado de beleza para negros e pardos que apesar de comportem 57% do total de habitantes do país, representam apenas 5,9% das vendas no mercado nacional.

E você pode questionar-se: mas qual é o problema? Pessoas pobres, pretas e pardas tem direito de ser vistas como consumidoras, não? Claro que tem, o problema não é esse. O problema é que antes de ser consumidor, essa população precisa ser vista como GENTE. Como cidadãos de direitos. E nesse momento, a representatividade que grita é essa aqui: 38% da população mais empobrecida do Brasil é composto por mulheres pretas ou pardas, 35% por homens pretos ou pardos, perfazendo 73% das pessoas em condição de pobreza. O que está sendo feito por essas pessoas? Não é curioso que no momento que o discurso da tal da representatividade esteja mais em voga, os números mostrem que na vida a população negra e parda nunca esteve tão empobrecida e vulnerável?

Representatividade sem revolução é uma armadilha
a representatividade que importa

A “representatividade”, hoje, virou um produto que compramos para nos sentirmos menos humilhados por toda a exploração que sofremos. Para nos sentirmos “vistos”, “acolhidos”, “percebidos”. Não há interesse das elites em representatividade de verdade. Estratégias sérias, programáticas, para diminuir a enome desigualdade social e consequentemente garantir uma representatividade real, quantitativa, qualificada, não só nunca foram realmente aceitas como foram sistematicamente boicotadas. A política de inclusão de cotas raciais nas Universidades, por exemplo, existe há mais de 15 anos, uma política séria, efetiva, para garantir acesso às cadeiras de educação superior para populações marginalizadas e excluídas e sempre foi atacada. Programas de renda mínima como Bolsa Família? Sucateados.

Olhem bem para a cara das famílias mais ricas do mundo:

Representatividade sem revolução é uma armadilha
as famílias mais ricas do mundo: brancas, do norte global

Lá de cima da pirâmide, homens brancos cada vez mais ricos e poderosos refastelam-se. Nada os afeta. Nunca estiveram tão protegidos, tão blindados, tão tranquilos. E isso porque aqui, no rés do chão, ao invés de organizamos a revolução que vai pôr abaixo essa estrutura que nos esmaga, estamos brigando, batendo boca e disputando migalhas, achando muito bacana sermos “representados”. Sabe o que a representatividade é na prática? um mimo dos opressores. Um petisco que jogam da mesa para apaziguar os ânimos quando sentem que ideias subversivas demais estão a correr. Onde estão as mulheres pretas e pardas, onde estão as mães, sendo consideradas DE VERDADE nessa equação? Olhem para a REALIDADE. Na hora do vamos ver, mães são chutadas dos espaços políticos, pessoas negras são escorraçadasse não dobram sua retórica.

Nenhuma introdução de ideais contra-hegemônicos, nenhum movimento que realmente desafie o status quo, será bem recebido ou terá espaço para florescer sem uma forte resistência ou tentativas sistemáticas de descaracterização e enfraquecimento. Lutamos contra duas estruturas muito bem articuladas e poderosas — o patriacardo e o capitalismo. E essa super-estrutura também é fluida e muito eficiente em abarcar as dissidências e transformá-las em acessórios colaboracionistas disfarçados.

A representatividade que precisamos precisa ser reflexo de reparação histórica e social. Precisa ser o resultado de um processo revolucionário que desmonte a lógica de exploração a qual todos estamos submetidos. Precisa vir através do desmantelamento das estruturas e instituições que corroboram para nos manter nesse estágio de exército de reserva, marionetes do sistema. E esse processo só pode se dar através de construção coletiva, pelo reconhecimento do que nos une, pelo reconhecimento de quem nos ataca, pela nomeação de quem nos oprime.

Representatividade sem revolução é uma armadilha. O que precisamos é da ocupação natural dos espaços que vem depois da revolução de uma sociedade que nos mantém cativos.

Mulheres salvaram minha vida

Mulheres salvaram minha vida. E por isso, eu pensei longamente em como e no que escrever sobre rivalidade feminina. Em falar sobre como somos socializadas para entender que nosso lugar no mundo só é validado pelo olhar masculino e como isso atravessa toda nossa relação com outras mulheres porque nos coloca como rivais já de partida.

E a rivalidade feminina, além desse componente basilar, que é a disputa pela atenção masculina também é fomentada por um motivo não tão óbvio porém absolutamente estratégico aos objetivos de manutenção do patriarcado: nos manter profundamente desunidas, desconfiadas umas das outras, nos manter em silêncio, sem trocar experiências sobre o que acontece em nossas vidas, nos manter sempre na defensiva, colocando homens no centro. Desde amigas de infância que brigam por causa de um namorado, até cunhadas, sogras, noras, e todas as outras relações entre mulheres que envolvem homens e que são alimentadas por ódio na maior parte das vezes gratuito e disputa pelo amor do macho em questão.

Eu poderia escrever laudas e laudas sobre como mulheres tomam por elogio ser diferenciada (“você não é como as outras”), sobre como nunca dão o benefício da dúvida para outras mulheres, sobre como não falam da sua vida para “não atrair inveja”, sobre como encaram críticas vinda de uma mulher como “recalque”, sobre como giram tudo em torno de quem é a mais “bela” (e consequentemente chama mais atenção masculina) e sobre como não confiam no alerta de outras mulheres — principalmente sobre homens.

E eu penso nisso tudo e me dá uma tristeza profunda porque eu vejo como são insidiosos e eficientes os mecanismos do patriarcado em nos manter desunidas e em impedir que nos enxerguemos como classe, como iguais, como irmãs. Como somos impedidas na origem de enxergar como é poderosa a união entre mulheres, sobre como a revolução acontece quando mulheres reúnem-se e conversam.

Tudo o que eu tenho, tudo o que eu sou, eu devo a outras mulheres. Tudo. Da minha mãe – a primeira mulher que eu amei, passando pela minha irmã, minhas sobrinhas, todas as minhas preciosas amigas. Eu não sei se elas sabem, se eu já disse assim tão textualmente, mas eu digo agora: vocês salvaram minha vida muitas e muitas vezes. Com afago, conselhos, esporros, abraços, acolhimento, ajuda material, psicológica, emocional, física e extrafísica. Em todos os momentos cruciais era uma mulher que estava do meu lado, me apoiando de alguma forma. Todas as vezes que cai, foi pela mão de uma mulher que eu me ergui novamente. Sempre que tudo ficou escuro demais, foi uma mulher que apareceu com uma lanterna, mesmo de luminosidade débil. Eu não estaria aqui, eu não seria eu, se não fosse pelas mulheres que atravessaram minha vida.

Os homens que por aqui passaram quase sempre me trouxeram a dor que elas vinham ajudar a curar. E se eu tenho algum arrependimento é de não tê-las ouvido mais, de não tê-las antes junto de mim, desde sempre. De não nascer sabendo que são as mulheres, umas pelas outras, que vão te pegar pela mão nessa dura travessia da vida e colocar flores no seu cabelo enquanto cantamos canções.

Eu sou profundamente grata a todas, que ainda estão, ou que passaram e as que certamente virão. Profundamente. Talvez elas nunca saibam o quanto. E também tenho um amor desmedido por todas, companheiras que somos desse cativeiro que é ser mulher sob patriarcado. Eu acredito na força do amor que só uma mulher pode te oferecer, e sei que elas sempre estarão lá por você. Alguma mulher sempre estará lá por você, basta você dar a chance

O que é masculinidade?

Não se nasce homem, torna-se. E nesse fazer, aquele menino, um ser dotado de inúmeras potencialidades, é podado, transformado. O que é masculinidade, afinal?

E o que consta nos manuais da “Escola Patriarcal de Formação de Homens”? Regras que ditam como ele deve ser (ou demonstrar ser, a qualquer custo), comportar-se, sentir. Instruções tão detalhadas e que são passadas tão cedo e tão sistematicamente que em pouco tempo o comportamento torna-se um padrão a ponto de chegarmos a achar que “meninos são assim”. A ponto de acreditarmos que existe um “energia masculina” ou uma “energia feminina”.

Forte, rápido, agressivo, implacável, corajoso, heróico, destemido, objetivo, resolvedor, esperto, ativo, conquistador, sexual, extrovertido, dominante, controlador. Meninos aprendem desde cedo que o homem manda e os outros obedecem. Que o homem produz, ou faz produzir. Que ele tem a prerrogativa de usar o grito, a intimidação, a imposição, a manipulação, a chantagem, a força. Tudo para conseguir o que quer. Que ele, a saber de sua condição de raça e classe, pode inclusive dominar outros homens. Conquistar o mundo. Que o corpo das mulheres o pertence e ele pode pegar a hora que ele quiser. E principalmente, meninos aprendem que um homem não é uma mulher. Em hipótese alguma ele pode comportar-se, gostar, sentir coisas que “são de mulher”. Porque ser mulher é ser o elo fraco. E aprendem a odiar e rejeitar tudo que é relacionado ao “feminino”.

E essa informação é muito importante.

Não existe a ideia de masculinidade sem o seu oposto complementar que é a ideia de feminilidade. A fortaleza simbólica do homem só existe em contraste à pretensa fragilidade da mulher e foi a masculinidade que criou a feminilidade para que esse contraponto fosse feito.

Dessa forma, o que é a mulher? Ela representa exatamente tudo aquilo que o homem não é. O outro. O não-homem. É sua via negativa. O homem é o sol, a mulher a lua. O homem é a luz, a mulher a escuridão. Ela é a passividade, a fragilidade, a sensibilidade, a empatia o cuidado, a interioridade, domesticidade, empatia, cuidado, reserva, discrição, o sutil, suave, a organização, a beleza, doçura. A candura, os tons pastéis, o perfumado, sensual, sedutor, lascivo. Que é feito para ser conquistado. Meninas aprendem que mulheres cuidam. Mulheres nutrem. Mulheres criam. Mulheres reproduzem. E principalmente aprendem que devem conquistar um homem provando a ele seu valor, para finalmente terem lugar no mundo. E devem dar filhos ao homem. Cuidar dele, honrá-lo, servi-lo. Para serem protegidas. São aquelas que existem para serem salvas. E que aprendem a admirar e defender tudo que é “masculino”.o “homem masculino” não foge do conflito

Qual a primeira “ofensa” que um menino recebe para aprender a como deve portar-se enquanto homem? “não seja como uma menininha”. Isso está dizendo a ele: não seja fraco senão ou será dominado.

“Mulher” é um xingamento. Perceba aliás como a quase totalidade dos palavrões e ofensas verbais tem a ver com atacar a virilidade masculina com comparações a mulheres. E como a homofobia é um filhote da misoginia pois o homem gay, é tido como o homem “feminino”, e o maior crime que um homem pode cometer é associar-se ao “feminino” de qualquer forma.

“Meninos não choram”, “meninos não fazem drama”, “seja homem!”, “seja forte”, “vai lá e dá uma porrada nele”, “homem não tem medo”, “não seja covarde”, “é fracote agora?”, “vai deixar barato?”, “ai, se fosse homem não deixava falar assim com você”, “vai encarar?”, “ihh, ta de blusa rosa agora, é viadinho”, “toma esse copo azul, que rosa é coisa de menina”, “flores é coisa de menina”, “pôneis são coisas de menina”, “bonecas são coisas de menina”, “brincar de comidinha é coisa de menina”, “cara, pra que tanto tempo se arrumando, virou viado agora?”, “tem que gostar de esporte de macho”, “cinza, cor de macho”, “comida de macho”, “filme de macho, com muito tiro”, “jogo de macho”, “roupa de macho”, “não me abraça não cara, tá me estranhando?”, “tá me olhando assim porquê, tá me estranhando?”, “ihhh olha lá de mão dada com outro cara, é viado”, “olha lá que mulezinha gostosa, bora assoviar”, “pow, você deixou ela te dizer não? volta lá e cata ela”, “dá bebida pra ela”, “conta aí, como foi lá com a mina, comeu? tirou foto?”, “ihh ta arrumando a casa igual mulherzinha agora?”, “larga isso aí que sua mãe que é mulher cuida”, “pede pra tua irmã cuidar ué, ela é mulher”, “vai ser jogador de futebol e pegador de mulher”, “pára de frescura, virou viado agora”, “ihh vai chorar? não é macho não?”, “aguenta porra! vira homem!”, “tem que chegar em cima e sair pegando as mulé”, “mulher gosta é de homem cafajeste”, “mulher boa é mulher com a boca ocupada”, “resolve logo na porrada não é na conversa não”, “tu não manda na tua mulher não?”, “mulher só pensa em dinheiro, são todas aproveitadoras”, “você conta a verdade pra sua mulher? é otário mesmo”, “mete a porrada logo!”, “quem tem que cuidar do filho é a mãe”, “quem tem que cuidar da casa é a mulher?, “tá lavando louça da madame? é mané mesmo”, “olha ali, cresceu rápido, o corpo já tá todo formado”, “sentou no vaso e colocou o pé no chão já aguenta” , “você tem que pensar em você”, “você pode ser o que você quiser”, “não deixa nenhuma mulher atrapalhar você”, “o casamento só vai atrapalhar sua vida”, “se tiver filhos vai ter que pagar pensão”, “você pode ter um futuro brilhante”, “se nada der certo, assalto um banco”, “olha lá, maior safada, aposto que todo mundo já comeu, não vale nada não”, “cara, olha a roupa dela, ta pedindo uma apertada”, “é piranha”, “essa é pra casar”, “já vem com pacote”, “mulher direita não faz isso”, “se me deixar eu mato”.

Assim nasce o homem. Como é que meninos tão rapidamente tornam-se um grupo cuja principal característica é a agressividade, violência e dominação, não só da outra metade da população mas de todo o ecossistema, sempre numa relação predatória? Que faz com que sejam majoritariamente os agressores de mulheres e crianças, os violadores, os abusadores, os atiradores em massa. Que faz com que sejam majoritariamente os que deflagram guerras e conflitos de toda ordem. Que disseminam a tortura, o medo, a destruição.

Homens estão no comando do mundo há 6 mil anos. Um mundo cuja lógica é a dominação através da força, do massacre, da invasão e da guerra.

E não sou eu quem estou dizendo. São as estatísticas. Os fatos históricos. Fatos esses de onde mulheres sequer constam porque foram sistematicamente apagadas. A história é sempre contada pelos conquistadores, lembram?

Não há nada na concepção de masculinidade que não passe pela formação de um ente feito para dominar através da violência e da agressividade. Todos os símbolos, toda a liturgia.

Não há nada na concepção de feminilidade que não passe pela formação de um ente a ser dominado, submetido e subalternizado. Criado com a ideia de que deve ser eleito e conquistado, reproduzir e servir ao seu amo e senhor.

E tudo isso pra dizer que não existe “masculinidade tóxica”. É incoerente e politicamente improdutivo se aferrar a essa ideia. Há movimentos até legítimos de homens que estão finalmente querendo pensar e discutir a formação do seu comportamento então é importante entender que é impossível separar uma masculinidade boa de uma ruim quando tudo que tem a ver com o esse tema faz parte de um terrível sistema de violência e conquista.

A masculinidade não se torna “boa” só porque um homem que continua usufruindo seus privilégios de dominância social, agora também “chora” e usa um pulôver rosa. Porque ser “menos tóxico” não tem a ver com fazer concessões aderindo a estereótipos de gênero do campo do “feminino”. Isso não faz nem cócegas no sistema de hierarquia que a ideia de masculinidade e feminilidade sustentam. E isso em última instância, limpa a consciência de todos os envolvidos, fazendo homens e mulheres pensarem que “algo está sendo feito”, que “homens estão melhorando”, que “homens estão se esforçando”, quando no fim eles só estão afrouxando um pouco o nó da gravata que aperta o próprio pescoço. Agora eles podem ser exploradores de mulheres, que choram.

Para homens que realmente desejam engajar-se na proposta de serem pessoas melhores o único caminho viável é romper com a ideia de masculinidade. E isso implica em abrir mão da sua prerrogativa de dominação e uso sistemático da violência. Implica em repudiar e combater veementemente toda e qualquer ação que passe pela coação, coerção e uso da força como estratégia para transitar no mundo.

Isso significa ir contra os seus e denunciar a exploração de homens para com mulheres. Significa reequilibrar a distribuição de todas as históricas funções da esfera reprodutiva que estão convenientemente no campo do “feminino”, que revertem em benefícios para homens. Significa também repudiar a feminilidade enquanto construção do ideal de mulher perfeita, bela, recatada e do lar. Da mãe e esposa. Criadas para servir ao homem nos seus propósitos.

Isso é sobre desmontar a indústria do sexo que lucra trilhões através da objetificação e comercialização do corpo feminino. Desde maneiras “sutis” como a industria da moda e beleza até seu resultado final na pornografia e prostituição. É repudiar toda e qualquer exploração do corpo feminino. Combater o assédio, o estupro. Proteger as meninas. Combater o casamento infantil. Reconhecer toda a dívida histórica que vocês possuem para com as mulheres, todo o sangue derramado, trabalho usurpado, toda a dor e violência.

Rever a “masculinidade” é tomar consciência do que significa tornar-se homem na nossa sociedade e romper com isso. E combater, ativamente. Junto a todos os outros homens. Quebrar a roda. Isso é assumir compromisso com ser homens melhores. Abrir mão do privilégio que representa pertencer a uma classe que é ensinada a ser servida e atendida o tempo inteiro por outras mulheres.

Quando o feminismo fala em “igualdade”, isso não é sobre direitos civis, ou uma equiparação dom o privilégio masculino de conquistar e invadir. Não queremos ser como os homens são dentro desse sistema. “Igualdade” para mulheres é ter o reconhecimento que somos PESSOAS, que temos integridade, dignidade, inviolabilidade. Assim como cada homem tem, só por ter nascido homem.

Eu olho para o meu filho de 5 anos e me recuso a perdê-lo para esse sistema de moer consciências. Meu filho, meu menino não é assim. Crianças não são assim. Nós a tornamos. Nós usurpamos sua humanidade. Eu acredito em um mundo onde nossos filhos tenham o direito de crescerem livres de todos estes estereótipos que os convocam a dançar essa melodia mortal tocada pelo patriarcado. E como feminista, eu acredito na revolução. E acredito que a revolução está neles, mas também está em nós, mulheres. E sim, pode estar também nos homens.

Há um teórica feminista fantástica chamada Andrea Dworkin que escreveu um discurso essencial chamado “Eu quero uma trégua de 24 horas sem estupro”. E com uma trecho desse discurso que eu quero encerrar esse texto e convocar todos a pensarem.

“Eu vim aqui hoje porque eu não acredito que o estupro é inevitável ou natural. Se eu acreditasse, eu não teria razão para estar aqui. Se eu acreditasse, minha prática política seria diferente dessa. Vocês já se perguntaram por que nós não entramos em um combate armado contra vocês? Não é porque não há uma escassez de facas de cozinhas neste país. É porque nós acreditamos na humanidade de vocês, contra todas as evidências.

Nós não queremos fazer o trabalho de ajudar vocês a acreditarem em sua humanidade. Nós não podemos fazer mais isso. Nós sempre tentamos. E em troca, temos sido pagas com exploração e abusos sistemáticos. Vocês vão ter que fazer isso sozinhos de agora em diante e vocês sabem disso.”


Dica: sugiro demais que toda a família assista ao documentário “The Mask You Lived In”, do Netflix:.

A sociedade prepara meninas para o abate.

Recentemente circulou um print por aí falando da prática de depilação com cera em meninas púberes. Uma excelente demonstração de como a sociedade prepara meninas para o abate.

sociedade prepara meninas para o abate.

E aí tem um milhão de críticas possíveis, sobre feminilização, escolha, pressão estética. Sobre como o padrão construído de como uma mulher deve se parecer é opressor e agressivo,

MAS

eu quero falar de meninas se tornando mulheres nesse mundo que odeia mulheres. Nesse mundo em que mulheres tem uma função muito clara: servir sexualmente aos homens.

Antes que comece o choro e o ranger de dentes sobre o debate da “escolha” e o argumento do “sentir-se bem”, eu queria sinalizar com algumas informações que não têm condições de ser esgotadas aqui e que portanto cada um deve fazer o seu caminho de procurar saber mais:

Primeiro ponto: o padrão estético de como um mulher deve parecer-se para ser considerada “bonita” mudou e muda constantemente, sempre de acordo com questões históricas, sociais e principalmente econômicas, sendo sempre ditada pelos homens, da classe dominante, reproduzido pelas suas mulheres e então disseminado para as classes subalternas. E aí é importante ressaltar que, historicamente esse “homem” que falo, pode ser representado pelo homem branco, anglo-saxão, que promoveu todo um processo de colonização em quase todos os continentes e impõe-se até hoje por diversos mecanismos.

E aí, como exemplo, eu posso citar como em algum momento o o padrão de beleza foi o de mulheres corpulentas. E isso por quê? Porque antigamente só quem se alimentava com fartura eram pessoas ricas e portanto ser gordo era sinal de pertencimento a uma elite. Unhas compridas e manicuradas por exemplo, originalmente eram um símbolo de beleza porque demarcava status de mulheres que não precisavam fazer trabalhos domésticos. E podemos ir ad infinitum analisando como cada elemento da nossa cultura que define o que é ser “bela” e portanto desejada e aceita (já que mulheres só são validadas socialmente se forem belas), tem um componente sexista, classista, e racista (por motivos óbvios). E dessa forma temos hoje como modelo de beleza “oficial” se persegue a qualquer custo: ser branca, magra, cabelos lisos, olhos e peles claras, traços faciais finos, poucos pelos.

Esse padrão é disseminado nas artes, literatura, música, moda e no último século levado às últimas consequências pela industria cinematográfica, TV, publicidade e agora internet. Que é dominada por homens e tem uma influência absurda nas mulheres, na maneira como elas se enxergam, como formam a imagem de como devem ser e se parecer, e de como influenciam os meninos sobre que tipo de mulheres devem desejar. Além do fato de como meninas nascem e têm sua estima como pessoa inteira, digna, íntegra, sendo destruída paulatinamente, e deixando apenas a aparência física e a docilidade como valores elogiáveis e aceitáveis. Acho que toda mulher sabe como teve toda sua potencialidade minada durante a vida e como o único que principal elogio que receber é “está linda”.

Então vamos ao segundo ponto. Hoje, os padrões de beleza que são criados atendem também a ensejos do mercado. É uma associação nefasta entre capitalismo e patriarcado que busca disseminar esses padrões em forma de demanda , criando nicho. E transformando a indústria da beleza em uma das que mais tem faturamento no mundo. Então como isso funcionou no caso da depilação por exemplo? Embora seja uma prática encontrada em culturas na antiguidade, a prática para mulheres disseminou-se como é hoje no século passado (1920 por aí) por editoriais de moda e beleza em revistas, associado a ideias como “higiene”. Ou seja, há pouco mais de cem anos, ter ou não pelos não era uma questão de beleza e muito menos higiene para as mulheres. Essa ideia foi criada e disseminada pela indústria e pela mídia (do mesmo jeito que inventaram o dia do namorados ou o dia das mães).

É importante notar e ressaltar de novo que todos esses padrões são criados por HOMENS, porque são eles que estão no comando de tudo, das empresas, da mídia, dos governos, das artes, da ciência. E que eles se beneficiam porque submetem mulheres ao que precisam e agora ainda lucram com isso. E mulheres pagam um preço alto por não reproduzir esses ditames. Se você não é magra, se você não depila, se você não se maquia, se não usa salto-alto, você será rechaçada, rejeitada, humilhada, não conseguirá arranjar parceiro, não conseguirá arranjar trabalho. Mulheres sentem-se mal, deprimidas, odeiam seus próprios corpos quando eles não estão em conformidade com o que a sociedade patriarcal dita. E são punidas. E ainda são convencidas que estão “escolhendo” se submeter. Que estão escolhendo gastar seu tempo, seu dinheiro, sua saúde emocional, fazendo mil procedimentos diferentes para ficaram dentro do que se definiu como sendo “bom”.

E aí vamos então ao terceiro e mais importante e principal ponto. A principal característica da nossa sociedade HOJE é que ela é extremamente pornificada. É a indústria pornográfica (comandada por homens) uma das que mais movimenta dinheiro e que dita qual o padrão que a mulher deve parecer. Qual o padrão de mulher desejável. E que mulher é essa?

É uma mulher pequena. Magra. De aparência frágil. Sem nenhum pelo. Vulva pequena e rosada.

O padrão de mulher que a indústria pornográfica vende como sendo a mulher desejável, a mulher comível, é a de uma criança.

E mulheres estão cada vez mais tentando transformar sua aparência, na aparência de uma criança. Extremamente magras. Nenhum pelo em parte nenhuma do corpo principalmente genital. Vulva e anus rosados. Pele sem nenhuma marca, sem nenhuma mancha. Lábios rosados e mais protuberantes. Olhos saltados. Cílios alongados. Crianças têm essa aparência, não mulheres adultas. Mulheres adultas estão sendo impulsionadas a emular um comportamento cada vez mais infantil e erotizado e impedidas de envelhecer. E crianças estão sendo erotizadas, adultizadas, pornificadas, e aliciadas.

O padrão de beleza da nossa atualizado é pornificado e pedófilo. Precisamos proteger nossas crianças. Estamos lutando para dar uma infância as nossas meninas, para que elas tenham direito de crescer, estudar, decidir o que querem fazer das suas vidas. Ainda assim o número de casamentos infantis no mundo é uma coisa assustadora. O número de abuso infantil, e violações de toda ordem é uma coisa alarmante. Precisamos acordar desse pesadelo e proteger nossas meninas. Elas nasceram em uma sociedade que as prepara para o matadouro. Que de um jeito ou de outro tenta valer sua lei de que mulheres foram feitas para a apreciação sexual masculina. Há pouco mais de cem anos era praxe que meninas se casassem logo depois que tivessem sua primeira menstruação. A maioria de nós teve avós que se casaram crianças e tiveram diversos filhos, vivendo uma vida pra criar crianças e cuidar do lar e do marido. E agora estamos permitindo que essas meninas voltem para o mesmo lugar, colocando-as na prateleira para exposição e assédio masculino tão logo entram na puberdade. Achamos que é escolha. Não é escolha. Isso é o que patriarcado sempre fez conosco, mas agora com um golpe de mestre, deixa que nós mesmas façamos o trabalho sujo com a ilusão de “empoderamento”. Isso não é empoderamento. Empoderamento é o que os homens tem.

Não caiam na falácia da escolha. Façam um movimento de analisar os motivos reais que nos levam a reproduzir determinados comportamentos, que nos levam a agir como agimos. Se fosse escolha e fosse tão bom, homens em massa estariam fazendo o mesmo e usufruindo, afinal eles constroem o mundo pra eles. Mas eles estão escolhendo opções de conforto sobre a própria aparência, o mundo que eles construíram pra eles é um mundo em que não precisam da aprovação de ninguém para sentir-se validado. Homens estão escolhendo consumir mulheres, explorar mulheres, homens estão escolhendo meninas porque elas são mais frágeis, inexperientes, imaturas. Homens escolhem meninas porque são presas fáceis para o abate e nós não podemos facilitar o trabalho deles.

Rivalidade feminina: dividir para conquistar

Há um tipo de amor que só uma mulher pode oferecer, e que no entanto pouquíssimas vezes conseguimos acessar. Nossa socialização é perfeitamente moldada para nos vermos como inimigas, nunca aliadas, e isso é providencial para que não consigamos nunca nos unir em função de lutarmos juntas. A principal estratégia do patriarcado é fomentar a rivalidade feminina: dividir para conquistar.

A cruel competição por atenção masculina

Nascemos e somos impulsionadas a buscar aprovação e aceitação masculina para nos validar enquanto seres humanos perante a sociedade (“finalmente arranjou um marido”) e para cumprir nosso destino social imposto de procriar a espécie (“uma mulher só é completa quando se torna mãe!”). Somos doutrinadas a atrair e conquistar um macho que nos valide e nos fecunde (“a um casamento sem filhos falta alguma coisa!”) com a vã promessa de sermos transportadas para uma vida de conto de fadas (“e eles viveram felizes para sempre”).

Para alcançar este objetivo, “conquistar” — portanto casar — com um homem e ter filhos, que é o único objetivo absolutamente definido e completamente socialmente aceito para uma mulher, é necessário basicamente um único pré-requisito básico: ser bela.

Ser bela, a maldição de toda mulher, desde o nascimento (“mas que linda é a princesinha, parece uma boneca”; “coloca o brinquinho pra ficar bonita”; “e esse laço, pra ficar bonita”; “esse vestido, fica mais bonita”). Bonita, bonita, bonita, bonita, bonita. Seja bonita, mulher.

Desde crianças, não somos elogiadas, via de regra, pela nossa inteligência, pelo nosso bom humor, pela nossa perspicácia, independência ou engenhosidade. É o nosso cabelo, sorriso, olhos, pele, e até características que nunca deveriam ser levadas em conta em um bebê (“nossa, que perninha grossa, vai dar trabalho”) que entram na lista do que é digno de nota para ser elogiável. A “boquinha”, o “narizinho”, “vai ter um cabelo bonito”, “menina bonita não chora”, “sua feia”, “não come tanto, vai engordar, ninguém vai te querer”, “cabelo ruim”. Feia, feia, feia, feia. Não seja feia. Ou vai ser rejeitada. A sociedade vai te rejeitar, criança, menina feia. Porque você não é um projeto de menina bonita. Feita para atrair, conquistar um macho. Procriar.

Inteligência? Equilíbrio? Resiliência? Caracteres secundários. Sempre precedidos por uma conjunção que explicita muito bem o seu valor pois “não é bonita ‘mas’ é inteligente ou “é bonita e ‘ainda’ é inteligente”. Nenhum homem fala pra outro homem que a mulher que ele está saindo é “super legal”: Ela é “gata”, “gostosa”, “mulherão”.

Você pode até dizer que beleza é subjetiva. Mas não é. Toda mulher sabe bem. É muito claro quem é bonita e quem não é. Objetivamente. Está estampado em todas as capas de revista, em todos os horários da programação da TV, no cinema. Há instruções bem definidas para todos sobre como a mulher bela deve parecer. E os homens sabem muito bem como aumenta o seu capital social perante seus pares quando estão com uma “mulher bonita” ao lado. Não à toa, homens idosos, ricos e poderosos, compram a beleza e a juventude de mulheres para desfilarem status.

E às mulheres, o que resta? Uma vez que a beleza que é vendida para que seja alcançada é inalcançável? Competir umas com as outras (“espelho, espelho meu, existe alguém mais bela que eu?”). Competem ferozmente para serem as mais belas, até porque sua estima nunca está bem construída. Mesmo a mais bonita é ensinada a sequer se reconhecer bela, para permanecer frágil e não usar sua beleza como arma.

Toda mulher é ensinada a nunca se sentir boa o suficiente. Temos tanta disforia que nem nomeamos, é nossa velha companheira, desde sempre. Pergunte a uma mulher o que ela não gosta no próprio corpo, o que ela mudaria. Ela dirá “tudo”, ou quase tudo. Somos ensinadas a odiar nossos corpos e compelidas a modificá-los sempre. Em nome de uma beleza cruelmente esculpida em parâmetros inatingíveis com o objetivo se sermos eternos objeto do desejo masculino.

Competimos umas com as outras, sofremos, odiamos nossos corpos, em nome de sermos objetos sexuais. Na infância, doutrinadas para sermos belas. Na adolescência, jogadas na arena da validação de nossos corpos púberes.

Compete-se com as meninas que antes eram amigas de infância e brincadeiras por causa de outros garotos. Garotos que são educados a avaliar mulheres por sua beleza e disponibilidade sexual. Que fazem listas das mais belas. Das gostosas. Das “fáceis”. Que filmam as calcinhas das meninas às escondidas e compartilham às risadas. Que fotografam suas experiências sexuais e expõem como um troféu. Que atraem meninas dizendo “você é diferente”, “você não é como as outras”, “você é especial”.

Meninas que aprendem que “as outras meninas são chatas”, que “mulher tem muito mimimi”, que “mulher é tudo falsa, se você der mole elas roubam seu namorado”, que “mulher se arruma para competir com as outras”. Meninas, quando não “belas”, que aprendem a desprezar as outras meninas para serem validadas no grupo dos meninos como “uma garota muito legal”, que “nem parece mulher”.

Garotas que não conseguem confiar em ninguém. Porque não conseguem conversar com a mãe. Porque não aprenderam a confiar em outras meninas. Porque não tem com quem compartilhar seus medos, temores, experiências, e passam por isso sozinhas. Socializadas para se isolarem. Não trocarem experiências entre si. Não se solidarizarem. Não se ajudarem. Porque “mulher fala demais”.

Garotas que acabam tendo suas primeiras experiências com outros homens sem nenhuma rede de apoio para entender se estão num relacionamento saudável. Se estão tendo experiências sexuais plenas. Que acabam completamente reféns de um relacionamento porque “estão amando” e sentem que finalmente estão recebendo o combo prometido: aceitação e validação de um macho. Amor. Quem sabe casamento e filhos?

Quantos relacionamentos abusivos acontecem porque um homem olha nos olhos de uma mulher e diz que ela é especial? Que é só dele? Que juntos viverão felizes para sempre? Que finalmente fez essa mulher se sentir aceita, desejada, escolhida, validada, finalmente “completa”?

Nós mulheres somos socializadas para odiarmos umas às outras. Porque a outra mulher é uma competidora em potencial pela atenção e validação social que nos ensinaram que deveríamos receber. Sendo belas. Sendo objetos sexuais.

É assim que o patriarcado atua. É assim que patinamos e somos massacradas. Todos os dias.

Do amor que só uma mulher pode oferecer

Precisamos aprender a amar de verdade outras mulheres. De verdade. Compartilhar intimidade, nossos segredos, nossas dores. Nossas dores são tão iguais! Tão semelhantes. Assim como nossas alegrias. Nossos corpos, nossa socialização. Tantas cicatrizes vindas do mesmo agressor.

A maternidade, às vezes, te oferece esse possibilidade de ponto de encontro. Existe uma intersecção nas experiências de gestar, parir, alimentar, cuidar de uma criança, que te aproxima de outras mulheres. Embora mesmo na maternagem sejamos impelidas a competir, há um olhar de compreensão que só uma mãe exausta tem para outra mãe exausta que pode abrir uma comporta reprimida de afeto que só uma mulher consegue oferecer a outra mulher.

Sim. Há uma qualidade de afeto que só uma mulher pode oferecer a outra mulher. É aquele afeto de quem carrega dores muito semelhantes pela vida. De quem nasceu, cresceu, foi socializada, e foi tratada como mulher a vida inteira. Para o bem e para o mal. Há um lugar de conforto e carinho, de mulheres que choram juntas, que se entendem, se confortam, se perdoam. Que vertem sangue, leite, lágrimas. Que quando começam, que quando se permitem confiar, quando se permitem se amar, se sentem acolhidas. Se sentem em casa.

Não existe lugar mais solitário para uma mulher que na maternidade. Talvez por isso se abra essa janela de oportunidade. De receber outras fêmeas, de falarem de suas crias, lamberem suas dores. E quando isso acontece as coisas ficam menos sombrias. Porque quando mulheres se reúnem, e se amam, elas se fortalecem.

Há mulheres incríveis por aí. Maravilhosas, inteligentes, dedicadas. Com tanta coisa a ensinar. Mulheres não são falsas, nem fúteis. Ou estão espreitando para roubar seu homem. Elas estão ali sobrevivendo. Com histórias tão duras. Com tanta força, tanta coragem, tantas experiências incríveis de como conseguem permanecer inteiras numa sociedade que nos massacra, nos pisoteia. Mulheres resistem.