Maternidade dá trabalho mas não é um emprego

Está aquecido o debate sobre maternidade enquanto um trabalho não remunerado. Há muito feministas denunciam sobre a exploração da mão-de-obra das mulheres para o trabalho reprodutivo e para o trabalho doméstico. Inúmeras pesquisas já demonstram o quanto vale o trabalho invisível que mulheres exercem para a economia global (trilhões), tanto na administração dos seus lares quanto na criação das crianças (incluindo aí o aleitamento). Chegamos finalmente a um momento que esse problema, a exploração de mulheres para manutenção do privilégio masculino, começa a vir a tona de maneira consistente, perceptível, a ponto de movimentar discussões, teses e legislações a respeito.

No entanto, ao finalmente percebermos o problema, me parece que estamos indo num caminho bastante equivocado em relação a uma possível solução.

Quando analisamos a história compreendemos que homens entenderam o quão estratégicas são as mulheres para o funcionamento da vida e rapidamente apressaram-se em dominá-las, explorando sua força reprodutiva. Compreendemos que existe um sistema político extremamente complexo que é estruturado para garantir a perpetuação dos privilégios masculinos. Que papeis sociais são desenhados para serem desempenhados por homens e por mulheres, que são aprendidos durante nossa socialização e constantemente reforçados socialmente. Que esses papéis sociais de sexo reforçam essa estrutura hierárquica, criando meninos para se tornarem homens dominantes e meninas para ocuparem o papel de mães e esposas, subalternizadas. Percebemos que existem inúmeros mecanismos sociais, culturais e institucionais que existem somente para garantir que esta hierarquia seja mantida, e com ela os privilégios masculinos. Que em uma sociedade patriarcal mulheres estão na posição de servas domésticas e sexuais dos homens.

Quando dizemos que mulheres são exploradas, que a atividade doméstica não remunerada é um trabalho, que cuidar de crianças é um trabalho, que a maternidade é um trabalho, estamos fazendo a denúncia do papel que é delegado às mulheres dentro do sistema capitalista-patriarcal. Estamos dizendo: às mulheres é destinado o papel de executar sozinhas essas tarefas, que resultam em produção de riqueza para homens usufruírem. E com esta denúncia queremos também reivindicar: esse papel social precisa ser extinto.

Portanto, a solução para a exploração das mulheres dentro do sistema patriarcal, não é remunerar mulheres. Não é reivindicar salários. Essa provocação é justa no sentido de denunciar o papel que mulheres ocupam mas não tem validade enquanto possibilidade de reestruturação social. Até porque inserir uma lógica de remuneração não extingue a exploração de ninguém, temos aí um sistema chamado capitalismo nos mostrando isso todos os dias.

Quando de fato vamos pelo caminho de exigir “salários” para o trabalho reprodutivo e doméstico nós estamos reforçando esse papel social que é destinado às mulheres dentro do patriarcado. Mulheres são socializadas para realizar essas tarefas gratuitamente como ato de “amor” e muito pouco muda ao trocarmos isso por “dinheiro”. Ainda serão as mulheres realizando esse trabalho. A divisão sexual do trabalho permanece completamente inalterada.

Remunerar mulheres pelo trabalho reprodutivo não discute a lógica da distribuição das tarefas de cuidado. Não tira o peso de serem as mulheres as responsáveis pela execução desses trabalhos e tampouco insere homens para realizarem essas tarefas. Ao contrário é uma solução que beneficia muito mais aos homens porque é a resposta que eles precisam para a reivindicação por divisão igualitária dos trabalhos domésticos.

Ao exigir “salários para o trabalho doméstico”, como uma proposta mais que meramente retórica estamos propondo mercantilizar e precificar o papel social destinado às mulheres, inserido-as numa lógica capitalista neoliberal de mercado. E isso não só não rompe com a lógica de subordinação baseada no sexo, como ainda piora tudo transformando-se também em um problema de luta de classes.

Afinal, para existir um trabalhador remunerado é preciso existir um patrão, não? E para quem mães estarão trabalhando? Para o pai da criança? Para o Estado? E se maternidade é um “trabalho” de fato, os filhos são então um “produto”? E o corpo da mulher? Poderá ser tratada como uma “fábrica”? E os pais? Como entram nessa equação? Se cumprirem sua função na parte de cuidado dos filhos devem também ter um salário? E como fica a relação com o filho? Como fica a relação intrafamiliar sendo operada por uma lógica mercantilista? E como fica a relação entre homens e mulheres quando pedimos medidas que ratificam nosso lugar de eterna cuidadora? Como isso opera para romper a hierarquia estabelecida?

Quando dizemos: “a maternidade é um trabalho, portanto me pague”, estamos concordando e assumindo para nós em definitivo essa função que o patriarcado há tantos milênios se organiza para nos dedicar. Estamos dizendo também que é função das mães assumirem o cuidado integral dos filhos, que é função das mulheres serem mães, estaremos consolidando em definitivo nossa posição subalterna de reprodutoras de pessoas a serviço de um Estado patriarcal e elevando essa relação a outro patamar.

Neste panorama dado de exploração das mulheres o que podemos e devemos fazer é rejeitar e rediscutir para já os papeis sociais baseados em sexo. Devemos rejeitar a ideia de que somos inerentemente cuidadoras. Que nascemos com esse “instinto”, com esse “dom” e discutir nosso papel na reprodução e cuidado de crianças. Excetuando gestar e parir não há nenhuma tarefa que exija ser realizada exclusivamente por uma mulher. Portanto precisamos decidir, enquanto classe: que papel mulheres e homens devem ter na criação de crianças? E qual o papel que Estado deve ter no suporte para a criação de crianças?

Mulheres precisam exigir que homens assumam sua parte nas tarefas de cuidado reprodutivo e doméstico. Devem recusar o papel de cuidadoras exclusivas, de rainhas do lar. Precisamos recuperar nossa autonomia reprodutiva junto ao Estado para que possamos realmente decidir quando, como e de que maneira desejamos ter filhos. Para que a maternidade não seja uma coisa compulsória. Que não sejamos jogadas nesse lugar sem escapatória, mas agora com um salário para calarmos a boca.

Ser mãe dá trabalho, mas maternidade não é um emprego. Precisamos redefinir as tarefas impostas pelo patriarcado para nós mulheres, na nossa maternidade. Que mãe seja apenas o nome dado para a fêmea humana adulta que gesta. E que ser mãe não signifique mais nada além disso. Nada. Que não venha com nenhuma atribuição embutida que não seja previamente entendida, combinada e aceita por aquela mulher, com seus pares, na criação e cuidado daquela criança. E que crianças deixem de ser posse do seu núcleo familiar para serem vistos como seres íntegros, de direitos, amparados por uma politica de Estado voltada para o suporte ao crescimento digno dos seus cidadãos. A maternidade no patriarcado é um trabalho do qual precisamos pedir demissão e não remuneração.

Ser mãe, no país dos absurdos, durante a tempestade

Talvez nunca tenha sido tão insuportável ser mãe como nessa longa tempestade que atravessamos, nesse país dos absurdos, governado por pessoas tão más. Porque atravessamos esta tormenta com nossos filhos nos braços, e muitas de nós estão ficando pelo caminho, e muito pouco estamos conseguindo fazer para ajudar umas as outras.

Eu nunca, particularmente, senti medo de morrer. Até que tive um filho. O primeiro e mais forte sentimento então que eu tomei contato, mais até que o profundo amor que me tomou, foi o medo da morte. Medo de partir sem saber que destino meu filho teria então. Medo que meu filho partisse, levando com ele meu coração dilacerado. Nesses tempos que vivemos, todas nós, que somos mães, convivemos com essa sombra pesada sobre nossas cabeças como nunca antes, porque são inúmeras as ameaças. E sim, para cada filho que se vai, a dor é todas as mães, porque toda mãe conhece esse terror, esse medo desesperado de partir antes dos seus filhos. E para onde olhamos só há dor.

Então eu queria deixar aqui o meu mais sincero abraço a todas as mães que perderam seus filhos nessa pandemia que é muito mais horrorosa do que deveria por conta do desgoverno que vivemos.

Para cada mãe que perdeu seu filho para a violência do Estado e para todas as mães, principalmente negras, pobres, periféricas, que além do medo da pandemia nunca sabem se seus filhos retornarão vivos para casa porque sabemos que nossa cor nos torna um alvo.

Para as mães que perderam seus bebês da maneira mais horrenda, vítimas da violência masculina.

Quero deixar toda minha solidariedade para todas as mães que estão nesse momento sem saber como vão alimentar seus filhos, porque a pobreza nos assola.

Para cada mãe que está sofrendo as mais terríveis violências dentro do seu lar, sem perspectiva de fuga e proteção para suas crianças.

Para todas as mães que estão em burnoutdepressão, crises de pânico, ansiedade crônica, ou cuja saúde mental está esvaindo com algum outro quadro, porque já não dão conta de dar conta de tanta coisa.

Para todas as mães que estão exaustas, sofridas, amedrontadas, sem saber o que fazer com seus filhos, que resposta oferecer, sem saber que mundo existe lá fora para oferecê-los.

Para todas que estão hospitalizadas, ou que estão nesse momento com seus filhos internados.

Queria deixar o meu mais sincero abraço para todos filhos que perderam suas mães, para aqueles que estão com muito medo de perdê-las.

Queria também que cada criança hoje pudesse sentir-se especialmente confortada, querida, segura. Mas eu sei que não é possível, mas ainda é possível desejar, de todo o coração, e mandar os pensamentos mais felizes e acreditar que eles podem ter força sim.

Só nos resta resistir, é o que estamos fazendo. O que sempre fizemos. Não sei ainda por quanto tempo. E nos resta também acreditar que vai passar. Trincar os dentes e seguir em frente. Resistir, sim. Mas até quando?

A culpa não é da mãe

A mídia foi tomada pelo caso do menino Henry, de 4 anos, que foi barbaramente assassinado por espancamento pelo padrasto com a anuência e/ou omissão de todos os que os cercavam, inclusive a mãe, que tinha sua guarda e era a cuidadora primária direta. E a culpa, obviamente, está recaindo sobre a mãe.

Eu não sou muito fã de ficar repercurtindo atos de violência contra as crianças, até porque o menino Henry é (infelizmente), apenas o caso da vez. Já tivemos outras crianças vítimas cuja história foi intensamente explorada pela mídia, como caso do Bernardo, da Isabela Nardoni, e outras que não recebem tanta atenção assim, visto que negras, como é o caso das crianças de Belford Roxo.

Estou trazendo então esse tema pra comentar sobre o comportamento padrão em casos de violência contra crianças que é o de apontar todos os dedos para a mãe. E não, eu não pretendo aqui advogar em defesa dessa mãe ou de nenhuma outra, mas antes comentar sobre os inúmeros problemas que decorrem de responsabilizarmos unicamente as mães sobre o cuidado e segurança dos filhos e como isso serve tão bem aos interesses de um sistema patriarcal.

Culpabilizamos exclusivamente as mães por qualquer evento que acontece com as crianças principalmente por conta da romantização da maternidade que vende a imagem de que toda mãe é naturalmente “santa”, “amorosa”, “pacífica”, “boa”. O mito da “mãe leoa” que protege (ou deveria proteger) os filhos a qualquer custo é na verdade um problema para as mulheres e crianças. Em primeiro lugar porque mulheres são pessoas. E a despeito da socialização feminina treiná-las sim para que sejam mais cuidadosas, amorosas e menos agressivas, elas — como qualquer pessoa — também são capazes de todo tipo de atrocidades, inclusive contra crianças.

Então, quando culpabilizamos mulheres por elas terem “falhado” na sua responsabilidade, por terem desviado da norma do que uma mãe deve ser, quando reforçamos o discurso da “mãe monstra”, nós cada vez mais naturalizamos essa a ideia de que toda mãe é naturalmente e necessariamente boa. E isto está bem longe de ser verdade. Maternidade não conserta caráter de ninguém.

O mito da “mãe leoa” também mais constitui uma enrascada que uma espécie de elogio para as mulheres porque faz com que toda a sociedade espere que mães estejam sempre à postos e atentas, a despeito de terem ou não condições para isso. E mais, faz com que toda uma rede que cerca cada criança, delegue para a mãe essa responsabilidade da proteção, e simplesmente lave as mãos.

Quando alguém encontra uma criança em risco, o que essa pessoa faz é buscar a mãe da criança para que ela resolva o problema, e não garantir que o risco a essa criança cesse. Ninguém considera que a mãe pode não ter condições ou mesmo vontade de proteger essa criança. Ninguém considera que a mãe pode ser a ameaça.

As pessoas não estão preocupadas em proteger crianças porque elas são tratadas como um problema que precisa ser tirado da frente. Um problema que mães causaram, ao tê-las. Então mães que assumam e resolvam. A sociedade age devolvendo o “problema” para que mães resolvam, afinal elas que resolveram transar e resolveram parir. E quando alguma coisa bizarra demais para merecer manchetes de jornal acontece todos ficam “abismados” como se um cotidiano das mais absurdas violências não fosse o comum de boa parte das nossas crianças, sob o nosso olhar complacente. E, obviamente, vão atirar pedras na mãe, que deveria ser onipotente, onipresente e onisciente.

O menino Henry morreu espancado. Morreu de tomar chutes de um homem adulto. Um menino franzino de 4 anos tomando bicudas no abdômen. Quem falhou foi a mãe? Não. Falharam todos que em algum momento perceberam que essa criança estava em perigo e simplesmente se eximiram de protegê-la, justamente por considerar que isso era “assunto da mãe”. Que acionaram a mãe e viraram os olhos sentindo que a missão de proteger uma criança acaba quando devolvemos a responsabilidade para quem é “de direito”. Porque somos uma sociedade que trata crianças como coisas, como objetos que pertencem aos pais. E que quando há algum problema é só “avisar ao dono”, e eles que resolvam. Mesmo que esses pais, que essa mãe, que essa unidade funcional familiar seja a principal fonte de violência contra essa criança.

O menino Henry estava sendo agredido há meses. É óbvio que ele pediu socorro de maneiras diretas e sutis para diversas pessoas. É óbvio que os sinais estavam ali. Não teve uma única pessoa que lançou um olhar mais atento para esse menino para notar que talvez tivesse alguma coisa profundamente errada? Como é que ninguém foi capaz de ouvir o choro, os pedidos de socorro verbais e não verbais, olhar as marcas, ver as mudanças de comportamento? Foi toda uma cadeia de cuidado que passava por mãe, pai, babá, avós, tios, escola, terapeutas, vizinhos… que simplesmente não notou, ou ignorou, ou considerou que isso era “um problema da mãe”.

Quantas crianças em situação de vulnerabilidade e risco de vida passam sob nossos olhos todos os dias e nós viramos a cara porque isso é um “problema da mãe?”. Por que nosso “compromisso” com o bem-estar de crianças se resume em localizar a mãe para culpá-la quando alguma coisa dá errado?

E quantas mães não estão completamente vulnerabilizadas, sem nenhuma condição física, emocional, psicológica, financeira de proteger seus filhos? E estão completamente abandonadas nessa tarefa? Quantas mulheres não estão indo além dos limites aceitáveis para a dignidade humana em nome de proteger seus filhos sob os olhares cúmplices da sociedade que acredita que nada que mulheres façam é demais porque “mães devem fazer tudo para proteger seus filhos?”.

Mães não tem que fazer TUDO para proteger seus filhos. Porque esse “tudo” para a sociedade inclui todo tipo de sacrifício e degradação. Porque a responsabilidade de proteger crianças é usado contra essas mulheres, que são chantageadas, são humilhadas, são usadas, e que quase sempre aceitam de um tudo em nome de garantir a segurança de seus filhos. Aceitam ficar em relacionamentos abusivos, aceitam violência doméstica, aceitam subempregos humilhantes, aceitam vender seus corpos. E tudo bem por isso, ninguém move um dedo para apoiar mulheres, vamos dar um troféu de “mãe guerreira” e uma sessão de apedrejamento público se alguma coisa sair errado. Ninguém liga pro bem estar dessa mulher e menos ainda com crianças.

Parem de apontar dedos para as mulheres. Deixem as mães em paz. Cuidar de crianças é compromisso de todos. Não só das nossas crianças, mas de todas as crianças. Crianças são pessoas em formação, vulneráveis e precisam de proteção 24 horas, e em uma sociedade que não fosse tão predatória, isso seria oferecido a ela em todos os espaços. A despeito da presença dos pais.

Em uma sociedade que realmente se preocupa com suas crianças, Henry, Bernardo, Isabela Nardoni, os meninos de Belford Roxo, e mais tantos outros casos “famosos” e anônimos não existiriam. Mães não estariam acuadas, desesperadas, com a tarefa solitária de defender seus filhos. Mães seriam vistas como pessoas, que falham, e por isso também precisam de ajuda, orientação, apoio. Mães também seriam observadas se sua maternagem é realmente protetiva ou violenta. E principalmente mães não seriam culpabilizadas porque quando algo acontecesse com uma criança, TODA a sociedade, todos nós, sentiríamos esse peso dessa culpa. Sentiríamos que falhamos. Como pessoas, como grupo, como comunidade. Como seres humanos.

Cada vez que uma criança sucumbe, todos nós falhamos. A culpa é nossa.

Lugar de mulher é onde o patriarcado quiser

Acreditamos na máxima “lugar de mulher é onde ela quiser”, mas basta uma crise para o patriarcado nos colocar de joelhos cumprindo aquilo que somos destinadas dentro desse sistema de opressão.

Eu já falei que é preciso pelo menos 4 pessoas para dar conta saudavelmente de todas as demandas da criação de filhos: duas pessoas em revezamento tomando conta das necessidades básicas da criança (que inclui não deixá-la sozinha, por exemplo); uma pessoa para ganhar o sustento; uma pessoa para cuidar das questões de limpeza, alimentação, roupa e cuidados gerais de manutenção do ambiente. Esse cenário não se produz, obviamente, nem em condições normais da vida, mas ainda assim, mulheres sempre conseguiram desdobrar-se e equilibrar-se terceirizando tarefas e contando com parceiros como a escola e a família.

Com a pandemia, todos estes artifícios externos para conseguir dar conta das responsabilidades que são jogadas sobre os ombros da mulheres foram retirados e o cenário — previsível e trágico — é de terra arrasada, afinal quem cuida das crianças enquanto os pais trabalham se não há mais cuidadores terceirizados? A resposta é tão fácil e automática, que chega a ser cruel: as mulheres. Não importa se elas também precisam trabalhar para se sustentar. Não importa se elas estudam, se elas produzem. Lugar de mulher é em casa e elas são as primeiras a irem pro sacrifício.

Mulheres hoje são as principais afetadas pela pandemia, estão sendo expulsas dos postos de trabalho, estão sobrecarregadas de tarefas domésticas, são as principais responsáveis pelos cuidado das crianças, dos doentes. Estão em cativeiros com seus companheiros sendo violadas, abusadas, agredidas, mortas. Enquanto isso, homens estão sendo plenamente atendidos em suas necessidades, roubando nossos postos de trabalho porque não são responsabilizados pelo cuidado de nada e ainda aumentando sua produtividade.

E todos se perguntam — e se espantam — sobre como isso pode estar acontecendo.

Eu respondo

No patriarcado existe uma coisa chamada divisão sexual do trabalho, que é a maneira como as tarefas do trabalho são divididas na sociedade levando em conta o sexo dos indivíduos. É a divisão sexual do trabalho que separa as atividades em “trabalho de homem”e “trabalho de mulher” e que também hierarquiza fazendo com que o tal “trabalho de homem” valha mais, sejam melhor remuneradas e tenha mais status. É pela divisão sexual do trabalho que homens são destinados ao mundo externo, à esfera produtiva e mulheres são relegadas ao mundo doméstico, à esfera reprodutiva. E isso acontece desde sempre, em diferentes sociedades, a ponto de podermos afirmar com razoável segurança que existem dessa forma desde o início do patriarcado, o que cobre quase tudo que conhecemos.

É muitíssimo importante que entendamos isso. Isso é o puro suco do patriarcado cuja exploração sobre mulheres se estrutura sobre a divisão sexual do trabalho, a maternidade compulsória e a heterossexualidade compulsória. Esse é o tripé estrutural consolidado para manter toda e qualquer mulher em posição de subalternidade, cuidando dos serviços domésticos, das crianças, dos adoecidos, dos idosos, dos homens.

A despeito de todas as “conquistas” que tenhamos conseguido, a despeito de leis e mudanças de costumes, percebemos como esse tripé segue inabalável quando em momentos de crise como esse mulheres são atiradas de volta ao “seu lugar”: cuidando da casa, dos filhos, do companheiro, dos vulneráveis. Veja como esta pandemia trouxe um retrocesso de mais de dez anos em participação no mercado de trabalho para mulheres no Brasil e na América Latina. Como somos a parcela mais empobrecida e mais explorada. Como os numeros de feminicídio e violência doméstica explodiram pelo mundo (assim como os de divórcio).

É para isso que existimos no patriarcado e só sairemos desse lugar rompendo essa lógica e destruindo os mecanismos que o sustentam. Não acreditem na falácia de que: “lugar de mulher é onde ela quiser”, que “mulheres já estão em pé de igualdade com homens”, que “mulheres já podem fazer tudo”. Isso é uma mentira mil vezes contada para nos manter no mesmo lugar de subalternidade mas com um sentimento (falso) de liberdade. Quando a crise bate, nós não temos todo esse direito de “escolha” que imaginamos ter e nossa agência é muito limitada porque não existe nenhum olhar para nossas demandas, somos descartadas enquanto sujeitos de direitos, com necessidades. Sobramos nós e as crianças.

A pandemia escancarou a realidade nua e crua de todas as mulheres. Está aí, inegável, sendo vivida em maior ou menor grau por todas nós. Que consigamos enxergar de uma vez por todas o lugar que a sociedade nos reserva e romper com isso. Lutar contra isso. Nomear os nossos inimigos e combatê-los, senão não importa quantas conquistas e “avanços” sejam pretensamente conseguidos, nós mulheres nunca abandonaremos esse lugar de servilidade e subalternidade. Nossas necessidades nunca serão consideradas. Nunca seremos pessoas. Com direitos. Livres.

O que é a Lei de Alienação Parental (LAP)?

Quando fala-se em Lei de Alienação Parental (LAP), a primeira coisa que vêm à mente são histórias de casais em pé de guerra, usando os filhos como munição para atingir um ao outro. Relatos e relatos surgem sobre como um pai impediu o convívio do filho com a mãe, ou sobre como a mãe “fez a cabeça da criança” contra o pai. E como as famílias no geral são muito mais um campo de batalha do que um espaço de harmonia, esse é sempre um tema muito sensível para se abordar porque afeta memórias muito sensíveis na história de várias pessoas que estiveram no meio de disputas de custódia.

E portanto, o lugar mais preciso para se começar essa discussão é esclarecendo logo de partida: essa pressão que crianças sofrem nesse processo de disputa dos pais é terrível, a dor é real, esses embates precisam de mediação sim, mas não é “alienação parental”. É abuso psicológico de crianças, o que os pais sofrem é calúnia, difamação, ou qualquer outro nome ou figura jurídica passível de ser aplicada, mas “alienação parental” é uma outra coisa, e não podemos defendê-la enquanto dispositivo legal porque ela tem no seu escopo muito mais problemas que soluções, além de ser profundamente misógina e feita para prejudicar mulheres e crianças.

O que é a SAP?

Para entender o que é a Lei de Alienação Parental (LAP) é preciso conhecer o conceito da “Síndrome da Alienação Parental (SAP)” surgiu em 1985 proposto pelo psiquiatra americano Richard Gardner (guarde bem esse nome), como sendo um distúrbio passível de acometer crianças envolvidas em disputas de custódia, principalmente quando um dos genitores agia ativamente no sentido de interditar o filho material e emocionalmente na criação de vínculos com o outro genitor. Para Gardner, a SAP, quando não identificada e devidamente tratada, poderia trazer graves consequências psíquicas e comportamentais para a criança. Diversos sintomas como ansiedade, depressão, aversão injustificada ao genitor foram associadas a esse quadro, assim como implantação de falsas memórias (guarde essa informação também) nas crianças.

A SAP desde a criação sempre foi uma teoria controversa, sem comprovação científica, questionada e pouco fiável. Recusada pela própria Associação Americana de Psicologia, sequer foi incluída na quinta edição do Manual de Diagnósticos e Estatísticas dos Transtornos Mentais (DSM-5), que lista todos os distúrbios mentais já identificados, e em virtude dessa discordância, em junho do ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a existência apenas do termo “alienação parental” e não da “síndrome da alienação parental”. No entanto, mesmo sem muita credibilidade, ela foi rapidamente acolhida no meio jurídico servindo aos tribunais mundo afora para basear sentenças de guarda em divórcios litigiosos.

No Brasil, ela serviu de base para a criação da lei 12.318, de 26 de agosto de 2010, que dispõe sobre a alienação parental, criada no intuito de “proteger” a psiquê das crianças em caso de separação dos seus pais, e prevê desde multa a pais alienadores, até reversão completa de guarda.

A fundamentação Gardnerista da lei não é invenção da nossa imaginação delirante. O projeto de lei 4053/2008 foi proposto, à época, pelo deputado Regis Oliveira, do PSC/SP, e todo projeto de lei, quando é proposto, precisa de uma justificação. Você pode ler tudo você mesma aqui, mas nós vamos destacar algumas coisas.

Na justificação, lê-se:

lei de alienação parental

Literalmente todas essas fontes giram em torno dos mesmos grupos que elaboram artigos e análises que acabam por remeter ao mesmo autor — Richard Gardner.

livro “Síndrome da Alienação Parental e a Tirania do Guardião” — “direcionado aos magistrados, pais, advogados, psicólogos, psicanalistas, assistentes sociais e demais operadores do direito” — foi organizado e publicado pela Associação de Pais e Mães Separados — APASE, responsável também pela tradução do artigo “Síndrome de Alienação Parental” de François Podevyn, cuja fonte teórica principal é — você já sabe — Richard Gardner.

O site da associação SOS Papai se baseia largamente em fontes belgas — principalmente na ACALPAAssociation Contre l’Aliénation Parentale. Dando uma rápida olhada no site — notadamente, no item de “diagnóstico da alienação parental” -, é possível perceber a mesma linguagem de sempre e os mesmos critérios descritos por… Gardner. Na listade referências bibliográficas recomendadas pela organização sobre o assunto, naturalmente, ele é referenciado.

As associações Pai Legal e Pais Por Justiça também possuem amplo material sobre a SAP, sempre referenciando os mesmos materiais, os mesmos julgamentos; empenhadas em “denunciar falsas acusações de abuso sexual”.

A justificação desse Projeto de Lei finaliza com a citação de um artigo publicado em 2006 por Maria Berenice Dias, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul — nome recorrente na defesa da LAP e da SAP -, intitulado “Síndrome da alienação parental, o que é isso?”. Vamos deixar aqui só um trecho:

lei de alienação parental

Maria Berenice Dias atualmente é Vice-Presidenta Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), referência em doutrina e jurisprudência em direito de família no Brasil, além de ser uma de suas fundadoras. Ela também preside a Comissão de Direto Homoafetivo e Gênero do mesmo instituto e já presidiu a Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB. Maria Berenice ajudou a elaborar a Lei de Alienação Parental.

Se você ainda não entendeu o problema, deve ser porque nunca leu de fato o que esse tal de Gardner escreveu. Nós temos muitos e muitos exemplos de absurdos que não cabe expor neste texto especificamente — porque já fizemos uma compilação aqui.

Em suma: nossa lei é, de fato, baseada numa teoria que relativiza e naturaliza pedofilia, além de ativa e automaticamente colocar em dúvida a denúncia feita por mães de abuso sexual de crianças, com base em estereótipos misóginos de mulheres loucas, histéricas, ciumentas, controladoras e dissimuladas.

Como a lei funciona de fato?

Em resumo, com a Lei de Alienação Parental, mães estão perdendo a guarda dos seus filhos para pais pedófilos. A mãe, com guarda compartilhada, percebe que o filho está sendo abusado sexualmente pelo pai e o denuncia na Justiça Criminal. É aberto um inquérito para investigar, mas, antes mesmo de ele ser concluído, o pai consegue uma decisão de reversão da guarda, na Vara de Família, alegando “falsa denúncia” por parte da mãe, que é então acusada de ser alienadora. Os processos correm em instâncias diferentes e em geral as provas do abuso são ignoradas, se perdem, os laudos psicológicos das crianças são desconsiderados, e ao final, a criança fica sob a custódia justamente de quem é acusado de ser o seu abusador.

Já são inúmeros casos. Terríveis. Mulheres aterrorizadas, sendo deslegitimadas, incapazes de proteger suas crianças de uma situação tão aterradora quanto a violência sexual. Mulheres que são acusadas de implantar “falsas memórias” de abuso nos próprios filhos para que eles acusem os pais. Mulheres que passaram a ser coagidas, ameaçadas com esta lei. Que recolhem-se, silenciam-se, aceitam acordos onde entregam seus filhos parcialmente nas mãos do abusador para não perdê-los completamente. Mulheres que desistem de buscar direitos. De buscar justiça para seus filhos. Por medo de perdê-los.

É esse o estrago que causa a Lei da Alienação Parental no Brasil hoje, e causou em todos os outros países onde vigorou, e foi derrubada.

Uma lei que não foi feita para proteger crianças, mas sim proteger abusadores

Para entender um pouco sobre o sentido verdadeiro dessa lei, é preciso voltar-se para os fundamentos da sua criação. E para isso é preciso falar de Richard Gardner (lembram-se dele), o criador da teoria da SAP.

Gardner foi um médico que defendia pedofilia abertamente em seus livros, que fez carreira defendendo nos tribunais indivíduos acusados de abuso sexual de crianças. Não coincidentemente, a sua “pesquisa” e a “teoria” (SAP) que desenvolveu foi amplamente utilizada por ele e aumentou muito sua fama e seus honorários, justamente protegendo genitores pedófilos.

Richard Gardner também é o autor do livro Sex Abuse Hysteria: Salem Witch Trials Revisited” (Creative Therapeutics, 1991), onde escreveu coisas como: “Há um pouco de pedofilia em cada um de nós”, ou no seu livro True and False Accusations of Child Sex Abuse (Creative Therapeutics, 1992), onde naturaliza o incesto dizendo que mulheres não devem deixar seus parceiros sem sexo já que “Sua sexualidade aumentada pode reduzir a necessidade de que seu marido se volte para a filha do casal em busca de prazer sexual”.

Profundamente misógino, a obra de Gardner é mais uma a alimentar o mito da mulher histérica e oportunista, ao passo que naturalizava o contato sexual entre crianças e adultos.

O que podemos fazer?

A Lei da Alienação Parental já existe no Brasil desde 2010 e desde o início vem causando estragos. Inúmeras mães, que perderam a guarda dos seus filhos, ou fugiram com eles para não ter que entregá-los ao pai abusador, organizam-se, em diversos grupos, pedindo a revogação dessa lei que causa tanto estrago. A lei precisa ser revogada e mecanismos mais eficientes de proteção à criança precisam ser pensados.

repercuta essas informações

Muitas pessoas ainda não sabem como esta lei está sendo usada contra mulheres e como ela está sendo um recurso que coloca em risco crianças que sofrem abuso sexual intrafamiliar. Compartilhe essas informações o máximo possível, combata a ideia de que a lei da alienação parental (a despeito de algumas aplicações “bem-sucedidas”) é uma avanço para proteção de mulheres e crianças.

vote na consulta pública do senado

Mulheres organizadas conseguiram levar suas denúncias e provocar uma audiência públicae hoje a luta é pela revogação dessa lei. Vote na consulta pública e mostre seu apoio.

apoie os grupos de mulheres que estão em luta por essa causa


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FONTES

O que é Síndrome de Alienação Parental?

Entenda porque revogar a Lei de Alienação Parental é importante para mulheres e crianças – Themis

Lei expõe crianças a abuso – Agência Pública

O empenho da Justiça para evitar os danos da alienação parental

Lei da Alienação Parental: problema ou solução? Debate esquenta

Pai abusador usa Lei de Alienação Parental para tomar guarda de filho

Lei pode obrigar crianças a conviver com abusadores – AzMina

Alienação parental: uma nova forma de violência contra a mulher


Os mitos que romantizam a maternidade

São muitos os mitos que romantizam a maternidade. A romantização constrói uma narrativa sobre algo, escondendo seus aspectos opressivos, e idealizando e hiperdimensionando aspectos positivos. Esta é uma estratégia muito astuta dentro das estruturas de opressão para criar amarras psicológicas que garantem que as pessoas submetam-se a determinados papeis sociais e naturalizem situações onde são imensamente prejudicadas, sem dar-se conta disso. Para mulheres, a romantização da maternidade é fundamental para garantir a compulsoriedade dessa tarefa. A despeito dos dispositivos mais diretos e objetivos (como a dificuldade de garantir a contracepção ou a impossibilidade de interromper a gravidez), são esses gatilhos psíquicos que são construídos durante toda nossa socialização que garantem que quase toda mulher necessariamente acabe se tornando mãe em algum momento da sua vida, ou que sintam-se compelidas a maternar animais, plantas, seus companheiros, ou qualquer outra coisa que apareça no caminho.

Aprendemos sobre a maternidade e sobre o que é ser mãe de muitíssimas maneiras. Recebemos instruções diretas e também observamos o mundo. Vemos nossa própria mãe e a de outras pessoas, e também representações culturais, artísticas e midiáticas: teatro, livros, músicas, filmes, novelas, séries, matérias jornalísticas, e etc. É a nossa cultura — machista, a serviço dos valores do patriarcado — que oferecem todo um referencial com o qual vamos organizando mentalmente todo um aparato simbólico sobre o que significa ser mãe. Sobre o que a sociedade espera de nós nesse lugar. Como devemos agir, pensar, sentir e nos comportar. Somos moldadas para a maternagem atravessadas por mitos românticos que funcionam tanto como uma isca para este lugar, quanto uma medida de controle do comportamento da mulher que materna.

Os mitos que existem sobre a maternidade são a armadilha que nos atraem, nos mantém presas e condicionadas e que embaçam nossa reflexão crítica sobre nosso verdadeiro papel no patriarcado. Por isso é muito importante conhecê-los, para reconhecê-los e principalmente, combatê-los:

  • a mãe sagrada: 
    O sagrado é algo conectado diretamente a uma força superior, imaculada. O sagrado é venerado, infalível e existe para servir a humanidade e ao mesmo tempo ser adorado. Desde mitos antigos, com o arquétipo da “deusa mãe”, cristalizando com Maria, mãe de Jesus, aprendemos que ser mãe é um ser “divino”, “sagrado”, “puro”. Envolvemos o tema da maternidade em uma aura mística, onde a grávida é a mulher “escolhida” e filhos são uma bênção “dos céus”, uma missão sagrada que mulheres devem aceitar custe o custar, estejam prontas ou não, queiram ou não. Uma missão cuja recusa é tida como heresia. A ideia da mãe sagrada vai ancorada na de que a maternidade é um “sacro ofício”, que a dor, o sofrimento, o sacrifício, fazem parte do ato de criar crianças e que nenhuma mulher deve reclamar ou rebelar-se, mas sim resignar-se, e mais sentir-se agraciada afinal “filhos são um presente divino”. A ideia de que a maternidade é um lugar de divindade, e que toda mãe deve ser “adorada”, “reverenciada”, como uma Deusa, também abre espaço para muito abuso de poder onde mulheres incorporam esse mito e comportam-se com total onipotência perante seus filhos exigindo amor e respeito porque sim.
  • a mãe especial:
    esse é um mito muito ancorado no da sacralidade da maternidade. Vende-se a ideia de que mães são seres “especiais”. Isso cria uma falsa sensação de status na maternidade e mascara toda a opressão dessa condição, a ponto de mulheres que não são mães afirmarem que há “privilégios de tratamento” para as que são, antagonizando esses dois grupos. Mulheres deixam de se enxergar como iguais, pressionadas pelo patriarcado para o exercício da maternidade, para verem-se como rivais, onde mães se tornam as “preferidas”, as “paparicadas”, por terem cumprido o seu destino como mulher. Essa promessa é especialmente potente porque a estima das meninas é desde muito sendo esmagada e todas as outras possibilidades de existência e potencialidades vão sendo minadas. Meninas muito precocemente vão entendendo que seus talentos não servem ao mundo, a não ser que estejam a serviço da sedução de um homem ou da criação de filhos. Esse discurso da “mulher especial”, então, torna a maternidade um lugar desejado para muitas mulheres, um lugar onde elas entendem que finalmente terão atenção, reconhecimento social, terão algo que é uma criação sua (sim, um bebê). E é um choque para muitas quando, ao terem filhos, percebem que caíram em uma armadilha, e que se tornaram-se completamente invisíveis.
  • a mãe guerreira/heroína:
    a função do mito da mãe guerreira ou mãe heroína é romantizar o sofrimento e o abandono materno. É uma estratégia eficiente que faz com que mulheres assumam esse arquétipo diante de dados desafios da criação dos filhos, trazendo para si toda a responsabilidade de resolvê-los, e que faz com que a sociedade também “lave as mãos” diante de suas dificuldades, já que toda mãe “é guerreira”. É um prêmio de consolação emocional, uma espécie de “biscoito” psíquico que jogamos para mulheres manterem-se firmes enquanto sofrem todo tipo de horror e aniquilação na tarefa de criarem de seus filhos. Via de regra a mãe “guerreira” foi abandonada por todos e teve que fazer os maiores sacrifícios e abrir mão completamente da própria vida. E muitas vezes esse “elogio” vem dos próprios filhos como forma de gratidão e reconhecimento para a mãe pelo tremendo esforço que aquela mulher fez para criá-los. Mas de fato, quase sempre, por trás de uma mãe “guerreira”. de uma “mãe heroína” o que existe mesmo é miséria, violência, abandono do Estado, e muita exploração.
  • a mãe dotada naturalmente:
    esse é um mito muito presente e muito nocivo: a ideia de que é natural para mulheres cuidar do outro. Que mulheres “levam jeito”, que mulheres tem um “dom”, um “instinto” maternal e de cuidado. Isso não é verdade em absoluto e traz como único resultado uma idealização absurda sobre o tipo de mãe que mulheres devem se tornar. Mães que não erram, que estão sempre ali à disposição dos filhos, mães que amam naturalmente tudo que tem a ver com suas crias e com a maternidade. Essa ideia de que pode haver algum elemento inerente às mulheres para o cuidar de filhos é injusta e profundamente misógina. Injusta porque sequer considera homens nessa equação colocando todo o peso e expectativa nas costas das mulheres e misógina porque enxerga mulheres necessariamente sob uma ótica de serviço e dedicação às necessidades do outros. E esse mito também é a desculpa perfeita para homens fugirem da responsabilidade do cuidado, e para meninas serem socializadas com muito mais afinco nessa direção enquanto não é feito nenhum investimento no ensinamento dos meninos. Mulheres muito facilmente assumem todo tipo de tarefa de cuidado e sentem-se desestimuladas a cobrar ou ensinar ou delegar essas mesmas tarefas aos homens porque “eles não levam jeito pra isso”.
  • a mãe que ama incondicionalmente:
    um dos mitos mais perniciosos que ronda a maternidade é sobre o amor. Tanto o que mães sentem pelos filhos quanto o que filhos sentem pelas mães. Na maternidade, este sentimento é imposto como absolutamente necessário, verdadeiro e inequívoco, que surge sem reservas e de maneira intensa. Para as mulheres é uma espécie de “salário”, a “compensação” por todo o trabalho que ela realiza sozinha, tanto o amor que ela sentirá pelo filho (“você nunca sentirá nada igual”), quando o amor que ela aprende que filhos deverão sentir por ela (“ninguém nunca vai te amar tanto”). E essa lenda que atravessa a relação parental traz também uma visão romântica do amor. Das mães espera-se um amor abnegado, aquele que tudo doa e nada espera, o amor carinhoso e dedicado, sempre a serviço da necessidades dos filhos. Dos filhos o reconhecimento devotado de todos os sacrifícios que a maternidade impôs àquela mulher e a gratidão eterna. Como resultado existe uma série de distorções de relacionamento entre mães e filhos, onde mulheres agarram-se aos filhos e ao seu sentimento por eles como a única coisa importante e que justifica suas vidas, e cobram afeto e gratidão dos seus filhos apenas porque sim, mesmo que sua relação e sua criação seja permeada por equívocos e violências. Do outro lado há filhos romantizando as possibilidades afetivas de suas mães, querendo delas total dedicação e serviço, desumanizando essas mulheres, tirando delas o direito ao erro, muitas vezes patologizando como “narcisista” comportamentos que distem do ideal de “mãe amorosa e dedicada”. E sempre há culpa, muita culpa. Mães que sentem que não amam seu filho o bastante, ou que sentem que não tem o seu trabalho reconhecido. Filhos culpados por não sentirem todo o amor e gratidão que são cobrados o tempo inteiro.
  • a mãe perfeita:
    esse mito constrói a narrativa de que mães são perfeitas e não tem direito ao erro, ao equívoco, à dúvida, no exercício da sua maternagem. E é uma excelente e uma das principais ferramentas de controle do comportamento das mulheres porque, na expectativa de corresponder a esse ideal de perfeição, mulheres aceitam muito facilmente todas dificuldades, o abandono, a dor, a solidão, o desamparo e a exploração do seu trabalho por parte do homens. Elas envergonham-se de sentir as dificuldades de maternar, acham que o problema é com elas, que não são boas o suficiente, e tem muito constrangimento em reclamar e contar suas dores e medos. E ai não conversam sobre o que realmente acontece, não conseguem sair do personagem de mãe infalível. Porque admitir que está dificil demais é lidar com o fato de que não correspondem ao ideal de mãe perfeita, sagrada, que a tudo se doa sem reclamar. Que não são capazes de serem gratas pela benção que é ter um filho. E mulheres que ousam verbalizar para si que não se sentem “abençoadas”, que a experiência da maternidade para elas tem sido na verdade um problema, são escrachadas socialmente, punidas, e invariavelmente sentem-se culpadas.

Os mitos maternos agem assim. Romantizam. Criam a imagem de que a maternidade é um lugar especial, de júbilo, plenitude e amor. Cria um cenário tão idílico que torna-se atraente para mulheres, enquanto elas crescem sendo desprovidas de todas as outras possibilidades de estar no mundo, enquanto elas são massacradas pela ideia de que possuem um “dom” natural para maternar, que possuem um “relógio biológico”, que não possuem nenhum talento, ou utilidade, ou que não há nada mais importante que possam fazer que não seja tornar-se mãe. E uma vez lá, mães, estas mulheres se vêem completamente perdidas e ficam reféns desses mitos e de toda essa romantização porque tentam a todo custo fazer a lenda acontecer, e a sociedade, que opera essa narrativa para garantir que mulheres permaneçam desejosas e “sonhando” com a maternidade, reforça e reforça o discurso e pune as mães que ousam romper o pacto com a mitologia e falar sobre a realidade de de exploração laboral que é a maternidade. E isso opera tão consistentemente que até o tal discurso da “maternidade real” já está sendo romantizado.

Homens sabem muito bem o que significa ser pai. Tanto que adiam ao máximo esse momento (quando pretendem assumir) ou simplesmente fogem. Onde está a romantização da paternidade?

Eu me chamo mãe

Eu me chamo mãe. E há muita, mas muita mesmo, confusão sobre o termo “mãe” na nossa sociedade. Afinal, quem seria a mãe? O que ela faz? O que a caracteriza? Seria gestar? Mas e as mães adotivas? Seria parir? E as mães de aluguel? Seria então amamentar? E as inúmeras mulheres que não amamentam? Mãe é quem cuida? E as mulheres que precisam terceirizar os cuidados? E as avós, as tias, as vizinhas, as babás, que estão ali pelo cuidado dessas crianças? O que determina afinal, quem é a mãe?

Vamos por partes. Primeiramente é preciso entender como se dá a cadeia do trabalho reprodutivo e demarcar bem demarcado a função específica da mulher nesse processo de reprodução da vida. Há aqui tarefas fisiológicas essenciais e irreproduzíveis que apenas e tão somente mulheres podem realizar, a saber: gestar, parir e em alguma medida, amamentar (já que esse processo já pode ser reproduzido com eficiência embora não com equivalência). E embora se possa dizer “mas sem os espermatozoides não há concepção”, sem óvulos também não há. Inclusive mulheres podem doar óvulos, homens doar esperma e a fertilização ser realizada sem a necessidade de contato sexual. Então o jogo começa empatado. Efetivamente é no útero da mulher que o show começa. Quem desempata esse game é a maravilhosa fábrica de produzir pessoas, chamada corpo feminino.

Essa é a parte biológica, imutável, da criação de crianças. O vínculo indissociável que toda e qualquer mulher possui com a maternidade. Por seu aparelho reprodutivo ela já nasce uma mãe em potencial.

No entanto, uma vez a criança gestada e parida, o fato é que qualquer um pode se encarregar dos seus cuidados.

QUALQUER PESSOA.

Seja homem, seja mulher.

Criar uma criança, amá-la, realizar todo o trabalho de cuidado físico, emocional, social, educação, sustento, não tem nenhum pré-requisito biológico. Não requer “dom”, “vocação”, não requer “instinto”, não requer absolutamente nada específico exceto comprometimento. Assim um casal pode criar uma criança. Dois homens podem criar uma criança. Duas mulheres podem criar uma criança. Uma aldeia inteira pode criar uma criança. Alguns desenhos até indicam que ela pode ser criada por lobos ou macacos embora eu duvide um pouco.

E no entanto, esse trabalho de cuidar é realizado quase que exclusivamente por mulheres. Sempre. Guarde essa informação.

E, veja só o nó, conceber, gestar/parir, e criar são tarefas interdependentes mas não necessariamente conectadas. Ou seja, dá sim pra uma pessoa conceber, outra gestar/parir, e outras criarem. Exemplo: quem é a mãe de uma criança que nasce de fertilização in vitro de doadores anônimos, na barriga de aluguel de uma terceira pessoa? É a doadora do óvulo? É a mulher que gestou? É a mulher que criou? E se ela for criada por homens, ela não tem mãe? Um deles é “pãe”? Se levarmos em conta a parte do “mãe é quem cuida” então, a coisa fica muito mais complicada. Quantas e quantas crianças não são criadas por diversas pessoas ao longo da vida? Passam por avós, tias, vizinhas. Ou passam tanto tempo com a babá, que ela vira o adulto de referência com muito mais força que a própria mãe.

O que é ser “mãe”?

Voltemos um pouco. Gestar e parir coloca mulheres no epicentro das possibilidades de continuação da espécie. Nós produzimos pessoas, apenas. Produzimos trabalhadores para serem explorados, produzimos herdeiros para explorar. Do servo ao senhor. Do burguês ao proletário. Produzimos fucking PESSOAS. Isso é forte e absurdamente poderoso. O que aconteceria se nós tivéssemos ciência do poder disso e nos recusássemos a realizar esse trabalho? O que aconteceria se mulheres se recusassem a assumir os cuidados das crianças? Se mulheres parissem e entregassem aos homens dizendo: “já fiz minha parte, agora boa sorte”?

Como evitar então que mulheres simplesmente se neguem a produzir mais crianças? Como evitar que elas parem de se engajar em todas as tarefas necessárias para entregar trabalhadores prontinhos pro sistema funcionar?Sistema capitalista, racista e patriarcal, a propósito, onde homens exploram mulheres em todas as esferas possíveis (e homens brancos ricos estão no topo da cadeia alimentar). Como evitar que mulheres tomem consciência que são domesticadas para realizar esse trabalho, enquanto homens apenas usufruem os benefícios?

Ganha um brinde quem disser: maternidade compulsória. Um sistema que se retroalimenta e que faz que toda e qualquer menina, assim que indicada como tal pela identificação de que possui uma vulva, seja imediatamente inserida numa lógica de funcionamento do mundo onde sua única finalidade é concretizar seu potencial biológico de gestar.

A MATERNIDADE, como conhecemos, é um sistema compulsório, simbólico e cultural que é estruturante e pilar fundante da dominação patriarcal, onde mulheres são doutrinadas e submetidas a realizar todo o trabalho de gestação e cuidado de novas pessoas para o funcionamento do mundo.

E é importante demarcar isso bem claro porque maternidade não é sobre amor. Não é sobre seus sentimentos em relação a criança que você cuida. O seu amor por ela tem a ver com o relacionamento que vocês desenvolvem com uma pitada bem generosa de socialização. A maternagem é uma marca quase impressa a ferro na psiquê de todas as meninas que são treinadas para o cuidado de terceiros desde a infância. Levadas a relacionar amor e cuidado. Levadas a acreditar que ter filhos é a melhor coisa que podem fazer da própria vida. Que é uma “missão”, um “dom”, uma “função da mulher”. Meninas são sistematicamente subestimadas e rejeitadas para que se convençam de que o amor maternal é a experiência mais sublime que podem experimentar.

E muitas mulheres só encontram algo parecido com “realização” ao ceder a essa profecia auto-realizável sobre suas vidas.

Ser “mãe” é único lugar de real “destaque” que é reservado para mulheres na sociedade. Por isso a maternidade é romantizada, exaltada. Por isso que ninguém fala sobre a realidade das mulheres-mães. Por isso que ela é justificada, divinizada. Porque sob o patriarcado, se mulheres não forem mães, elas não poderão ser mais nada. E mulheres que se recusam são demonizadas e perseguidas e culpabilizadas. E mulheres que maternam são “exaltadas” para que não percebam a armadilha em que foram atiradas ao mesmo tempo que tem seu comportamento fiscalizado para saber se não estão rebelando-se.

E todas as mulheres, TODAS, seguem pela vida com essa necessidade de serem “mães” arraigada, nunca conseguem se livrar completamente. Com senso de responsabilidade em serem cuidadoras de tudo e de todos. Toda mulher em algum momento já se autodeclarou mãe de alguma coisa ou alguém: “eu sou mãezona”, “é como se fosse um filho”, “adotei pra mim”. Ter um filho para chamar de seu. Seja parentes, companheiros, vizinhos, colegas de trabalho, amigos, plantas, pets, nada escapa.

Então, em um mundo onde homens exploram mulheres por causa do seu potencial exclusivo de produzir pessoas, e onde todas essas mulheres são condicionadas, coagidas e submetidas a cumprir esse destino, não faz nenhum sentido discutir quem é a “mãe”.

Toda mulher é “mãe”, não importa se ela teve, tem ou terá filhos, porque uma vez potenciais gestantes todas são treinadas para ocupar uma função em algum ponto da cadeia de trabalho reprodutivo, se necessário. E é por isso também que a categoria “mãe” é PROPOSITALMENTE confusa porque ela é feita para abarcar toda e qualquer mulher, a qualquer momento. E quanto mais tarefas dessa linha reprodutiva essa mulher acumula mais consolidada está a função de “mãe” para ela. Uma mulher que gestou, pariu, amamentou, cria seus filhos é aquela que sente todo o peso do pé do patriarcado no pescoço. É a mãe concretizada.

“Mãe” é toda mulher que é diretamente envolvida e responsabilizada em alguma etapa do trabalho reprodutivo de pessoas.

Dessa forma, em algum nível, a que gesta e pare é mãe. A que é responsabilizada pela tutela é mãe. A que é cria é mãe. Se você borra essa categoria, mesmo ela sendo propositalmente confusa, indistinta, você não consegue delimitar esse grupo a partir dessas funções que são compulsoriamente realizadas. E se você não delimita, você não consegue lutar por DIREITOS.

Não consegue discutir licença-parental, apoio puerperal, apoio à amamentação, não consegue denunciar a dupla/tripla jornada, não consegue discutir a divisão dessas tarefas de cuidado, falar sobre exclusão dos espaços, sobre discriminação no mercado de trabalho, sobre precarização, sobre pobreza, sobre abandono parental, sobre aborto, sobre políticas de contracepção, sobre violência sexual, sobre casamento, sobre exploração de útero de aluguel, sobre divisão de bens, sobre educação e proteção de crianças, sobre inúmeros temas que são problemas de mulheres envolvidas em trabalho reprodutivo: MÃES.

E é por isso que feminismo é sobre maternidade. Que maternidade é o tema-chave que deveria interessar a todas as mulheres (mãe e não-mães). Que está no epicentro da nossa opressão. Parar de falar o nome disso não vai fazer as questões desaparecerem, muito pelo contrário, isso é uma estratégia pra minar os esforços cada vez mais conscientes de mulheres que finalmente estão entendendo o recado do feminismo sobre isso e estão se organizando como CLASSE. Dividir para conquistar, lembram?

“Mãe” precisa ser entendida como uma categoria de análise fundamental para desmantelar o poder do patriarcardo (em confluência com o capitalismo e o colonialismo numa superstrutura). Essa é uma nomenclatura que deve ser fortalecida e discutida e não embaçada ou diluída. Isso é categoria política de mulheres sob exploração. Mulheres, repito. Apenas mulheres. Pessoas nascidas com aparelho reprodutor feminino. Porque são mulheres que possuem potencial de gestar e parir pessoas e isso é intransferível e é isso que nos “torna mulher” nesta sociedade. Com todas as suas implicações.

Não caiam em armadilhas de inclusividade excludente. A sociedade patriarcal sabe muito bem definir, apontar, encontrar e responsabilizar a “mãe”, quando lhe é conveniente. Quem é mãe sabe que é, e sabe como é, ainda mais quanto mais for atravessada por outras opressões como raça e classe.

E é por isso eu me chamo “mãe”. Porque esse nome foi marcado na minha testa pelo patriarcado quando eu nasci. Não me chame de outra coisa, porque vai ser no reconhecimento dessa categoria que vamos implodi-la. Então vai ter feminismo materno sim e a revolução será pela via da derrubada desse pilar da maternidade compulsória. Só as mulheres conscientes do lugar a que foram levadas por sua capacidade reprodutiva e organizadas como categoria POLÍTICA é que poderão fazer isso.

Seguimos. A militância é materna.

Eu amo meu filho e amo ser mãe, o que eu odeio é o patriarcado

Há uma frase inclusive muito famosa que é especialmente reveladora que diz “amo meu filho, mas odeio ser mãe”. Isso não faz nenhum sentido para mim. Eu amo meu filho e amo ser mãe, o que eu odeio é o patriarcado.

O que isso significa na realidade a frase “amo meu filho, mas odeio ser mãe”? Porque inclusive essa frase é uma contradição em termos. Você ama seu filho por causa da relação que tem com ele que é a relação de maternagem. Você não ama o bebê da vizinha. Não é um amor universal por todos os bebês do mundo. É um amor exclusivo, característico que você sente por essa criança por ela ser quem é: seu filho. Então, na real, não dá pra “amar seu filho” mas “odiar ser mãe”, porque uma coisa está intrínseca na outra, não existe sem a outra.

Mas eu estou dizendo a maternidade na nossa sociedade então é uma coisa boa e que as mulheres estão reclamando demais, porque o amor compensa tudo? Nem pensar uma blasfêmia dessa. O que eu estou dizendo é que se você ama seu filho, você ama ser mãe porque você só é mãe porque tem esse filho. É uma relação intrínseca. É a existência de um filho que torna uma mulher, mãe. Então no fim, não é a maternidade que você odeia. Você odeia tudo que a sociedade te tornou e maneira como ela te trata em função de te obrigar a ter filhos e criá-los absolutamente sozinha e da maneira que se espera. E aí, vamos dar nome aos bois: você odeia o patriarcado. Mais especificamente aos homens. Porque são eles que fizeram isso.

Vamos responsabilizar a quem é de direito.

São os homens que, no controle das leis, nunca se preocuparam em criar legislações específicas de proteção e amparo para mulheres gestantes e mães. São os homens que, no controle das empresas, disseminam a cultura de discriminação de mulheres que tem filhos. São os homens que objetificam os seios femininos a ponto de você ter constrangimento em amamentar em público e são eles que projetam os espaços públicos e nunca se preocupam em criar espaço para mães e suas crianças. São homens que no controle das políticas públicas não constroem uma rede eficiente de creches e escola que atenda a necessidade de trabalho e descanso das mulheres.

São homens que estão no comando dos centros de pesquisa desenvolvendo métodos contraceptivos cuja responsabilidade do uso cai no colo das mulheres e nunca métodos que eles mesmos podem usar. São eles que se recusam a usar camisinha. São eles que fazem e votam as leis que não permitem a interrupção de uma gravidez indesejada.

São homens que abandonam em massa seus filhos ou exercem uma paternidade de ocasião, não dividem tarefas domésticas, exploram suas mulheres e as deixam completamente sobrecarregadas. São homens que praticam violência sistemática contra mulheres e crianças as deixando sob um regime de completo terror e desamparo.

São homens que fazem — ou não fazem — as leis que deveriam proteger mulheres e crianças. São eles que as aplicam — ou não aplicam. O desamparo da mulher-mãe tem nome e endereço.

Se cada homem cumprisse essa obrigação mínima, no aconchego do seu lar, de fazer apenas e tão somente a sua parte, o fardo da criação já diminuiria imensamente sobre as mulheres. Se cada homem constrangesse outro homem que pratica abandono parental, que agride, que maltrata, violenta, abusa, sequestra, mata sua mulher e seus filhos, se fizessem esse mínimo, mulheres sentiriam-se mais seguras, livres, menos reféns do medo.

Escutem as mães. Escutem o que elas dizem. Quando uma mãe fala sobre sua maternidade e diz que “um sorriso paga tudo”, ou que “não existe felicidade maior”, ela não está só tentando minimizar uma situação que é de sofrimento (embora também), ela está dizendo: “olha, mas há coisas boas nessa experiência a ponto de valer a pena”. Porque mesmo homens, quando efetivamente resolvem assumir para si realmente a criação dos seus filhos, relatam encontrar esse lugar de satisfação emocional.

Não podemos ignorar a dimensão subjetiva da experiência que é a parentalidade, porque no fim, a subjetividade é essa força motriz que nos impulsa enquanto humanidade. Com maternidade compulsória ou sem maternidade compulsória, com socialização ou sem socialização, o fato é que mulheres pariram, parem e parirão ainda por um bom tempo. E essa experiência também é um lugar que oferece recompensas emocionais para muitas e muitas delas.

O que a maternidade precisa é ser retirada desse lugar instrumentalizado. A mulher precisa ser retirada desse lugar de reprodutora de mão-de-obra pro capitalismo, de capataz do patriarcado. Para que uma maternagem menos sacrificante não seja quase um privilegio de classe, onde todas as demandas faltantes no processo de criar um filho são resolvidas por se ter dinheiro.

O discurso da “maternidade real” e todo o discurso que está sendo criado sobre maternidade não está sendo efetivo para construir pontes entre a sociedade no geral e mulheres-mães e principalmente para a proteção das crianças. Que acabam sendo eleitas as grandes culpadas, afinal, elas insistem em nascer e existir. São vistas como pequenas maldições que as mulheres precisam “aguentar”. O discurso de ódio contra crianças na nossa sociedade já é consistente demais para que as próprias mulheres venham engrossar o coro.

Precisamos nomear o problema da maternidade: o problema são os homens. Não são as mulheres, não são as mães, não são as crianças. A maneira como tratamos esse tema só nos leva a um lugar onde mulheres-mães vão sendo cada vez mais isoladas, onde são vitimizadas, ostracizadas, postuladas como “coitadas”. Onde crianças vão sendo vilanizadas, como se elas fossem pequenos gremlins que só suas mães aturam. Como se o problema da maternidade fosse ter que criar essas crianças que são… veja só! crianças! com suas demandas específicas de um ser em desenvolvimento. Como se não houvesse beleza e encantamento nesse processo para quem está envolvido. Como se algumas vezes, no final do dia, realmente um sorriso não pagasse tudo.

Criar crianças, preparar seres humanos para conviver em sociedade (que é afinal do se trata a parentalidade, não?), é uma tarefa de muita beleza e muita dor. Mas essa dor só é tão intensa porque a sociedade para a qual as criamos, e na qual estamos inseridas, é esse caldeirão de injustiça, exploração e caos que vemos todos os dias. Então vamos nos organizar para atacar o problema na sua raiz, que certamente não são as mulheres, ou as crianças, mas sim, como sempre, esse sistema capitalista-heteropatriarcal.

10 coisas que realmente ninguém diz sobre a maternidade

Você notou a quantidade de coisas que realmente ninguém diz sobre a maternidade? Quando ainda não temos filhos ouvimos falar da maternidade sempre de maneira distante, romantizada ou ainda de maneira que nos soa sempre exagerada demais para parecer real. E o fato é que parece que há alguns aspectos que ninguém aborda de verdade, que só vamos descobrir quando nos tornamos mães. Vamos ver alguns agora?

1. Não existe nenhuma maneira 100% segura de evitar gravidez

É exatamente isso. Não existe nenhuma maneira completamente efetiva para se evitar uma gravidez. Pílulas, camisinhas, DIU, Diafragma, mesmo vasectomia e laqueadura não oferecem 100% de garantia. Sua melhor opção é SEMPRE utilizar métodos combinados (camisinha + alguma coisa). Portanto não existe muito escolha na maternidade e “só é mãe quem quer” é uma falácia. Se você faz sexo com homens, corre o risco de engravidar. Você pode minimizar a possibilidade ao máximo, até margens bastante seguras. Mas eliminar o risco por completo só abrindo mão de sexo heterossexual.

2. O sistema de saúde não está preparado para atender gestantes

Essa você nem imaginava não é? Mas é mais pura verdade. Ambos os sistemas— publico e particular — são cesaristas e utilizam protocolos obstétricos e pediátricos completamente desatualizados. Isso mesmo. São práticas que não estão exatamente de acordo com as últimas evidências científicas. Muitas técnicas de atendimento utilizadas estão obsoletas ou mesmo condenadas resultando em muita violência obstétrica. E para fugir dessa situação sequer é somente uma questão de ter dinheiro (não à tôa vira e mexe você vê artistas famosas e endinheiradas que caem na conto da cesárea – mas com muito glamour, é claro). Sua melhor opção é se informar ao máximo, pesquisar muito sobre profissionais que atuem por protocolos atualizados, buscar hospitais da rede pública mais humanizados, e aí entra realmente o fator sorte de encontrar atendimento público decente ou poder aquisitivo para pagar algo semelhante ao valor de um rim por profissionais da rede particular. Nesse caso se você tiver boas indicações de profissionais o dinheiro fará diferença. Na média, é tudo bastante aterrorizante porque o atendimento duvidoso começa já no pré-natal e quase sempre só resta a resignação ou passar toda a gestação peregrinando de médico em médico até acertar um.

3. Você será atormentada pela “indústria da maternidade

Prepare o coração e o bolso. Há toda uma indústria focada em vender um sonho de maternidade romantizada que vai tentar extorquir todo o seu dinheiro criando necessidades surreais e rituais desnecessários para o advento do nascimento do seu filho. Você duvidará de si mesma e da sua capacidade de ter e criar essa criança tamanha a quantidade de geringonças e apetrechos que serão empurrados para você. A maioria desnecessária. Mais uma vez você terá que mergulhar por conta própria em busca de informação de qualidade para entender quais costumam ser exatamente as demandas de uma criança, que tipo de criação combina mais com o seu perfil, e exatamente que tipo de coisas você precisa para conciliar isso. E economizar milhões. Você será incentivada e cobrada para fazer books, enxovais, mesversários, chás de tudo que é jeito e caso não sucumba terá a opção de sair de circulação, se aborrecer, ou passar toda a gestação se justificando.

4. Você será massacrada por estereótipos de gênero

Bem vinda ao mundo dos chá de revelação, meu mundo rosa, meu mundo azul, onde o sexo do seu bebê define tudo, até a cor da chupeta que ele levará na boca e não na genitália. Será impossível comprar qualquer item por mais inofensivo que seja sem responder à inútil pergunta: “é menino ou menina?”, e você será o tempo todo muito bem orientada sobre que tipo de educação que esperam que você dê para sua “princesa” ou para o seu “príncipe” e ai de você se ousar dizer que não vai seguir à risca o manual dos estereótipos de gênero. Resistir a essa pressão é uma tarefa difícil, solitária e bastante aborrecida porque todo o sistema da nossa sociedade hoje parece obcecado em dividir o mundo em coisas de menino e coisas de menina e decidido a não deixar os mundo se misturarem.

5. Você se sentirá infeliz, sozinha e abandonada após parir

Você se sentirá assim e essa percepção será real. Porque as pessoas em geral abandonam mesmo as mulheres assim que elas têm seus filhos. Depois que a parte da curiosidade social cessa mães ficam confinadas com os bebês largadas à própria sorte enquanto a vida de todos continua. Inclusive — na maioria das vezes — do pai do bebê. Muitos amigos se afastarão porque não saberão como se encaixar nessa nova fase da sua vida. As amigas que já são mães estarão envolvidas nos seus próprios problemas, que são muitos. Se você trabalha vai sentir culpa e alívio ao término da licença-maternidade. Culpa porque uma parte de você vai querer estar ali para o seu bebê. Alívio porque você não aguentava mais o confinamento e estava ansiosa para voltar a sua forma humana. Aliás, culpa e alívio serão sentimentos conflitantes que te acompanharão para sempre em relação aos seus filhos.

6. O seu corpo vai mudar para sempre e talvez você nunca mais se aceite

Você receberá pressões absurdas em relação ao seu corpo. O seu corpo “perdido”. Você mal terá saído da maternidade e já estarão te cobrando para que você tenha seu corpo “de volta”. Vão querer enfiar você em uma cinta quando você ainda estiver tentando encontrar uma posição para sentar após o parto. Vão te pressionar a fazer exercícios quando você mal consegue dormir. E vão fiscalizar o que você come. Talvez a única alegria que você tenha nesse momento da sua vida: comer. Exceto que o seu corpo agora é esse mesmo. Diferente do que era antes. Seu. Mas como somos criadas em uma cultura que valoriza mulheres somente pela sua aparência e uma aparência que é adequada a um padrão cruel e impossível de ser alcançado, talvez você nunca mais goste completamente do que vê. Não por culpa sua. Não porque o seu corpo não é bom. Mas porque a sociedade e a indústria da beleza que está sempre pronta para arrancar o seu dinheiro estarão sempre ali à postos, te cobrando e fazendo você lembrar das estrias e da flacidez ou de qualquer outra coisa que não deveriam ter importância nenhuma, afinal, pelo amor da Deusa, você está ocupada tentando manter um bebê vivo. O corpo do pós-parto, que é um corpo renovado porque fabricou um ser-humano deveria ser motivo de orgulho para cada mulher. Deveria ser não, é.

7. Você nunca mais será independente e autônoma

Essa é uma constatação muito dura. Depois de ter filhos, até que eles se tornem adultos, você nunca mais poderá se dizer independente. No sentido de que sozinha você não tem como dar conta de cuidar dos filhos, de si e do seu sustento ao mesmo tempo então você sempre estará dependendo de alguém. Independente da sua situação financeira. Você dependerá de um parceiro que cumpra sua parte como pai e alivie sua carga de trabalho te liberando para fazer outras coisas. Caso não exista esse parceiro você dependerá da ajuda de amigos ou familiares. Caso tenha dinheiro você dependerá da ajuda de mão-de-obra terceirizada. E é dependência mesmo, porque mesmo que você tenha um caminhão de dinheiro, você precisa que os profissionais cumpram a sua parte ali no acordo, já que você não pode simplesmente deixar a criança sozinha amarrada no pé da cama com um pote de ração do lado. Sua relação com o emprego vai mudar, porque você sabe que a inserção de mulheres-mãe no mercado de trabalho é muito mais difícil então talvez você se submeta a situações que nunca se submeteria caso não tivesse filhos. Porque antes era só você e você se virava e talvez passasse o dia só com um sanduíche de pão com manteiga na barriga. Mas agora você tem filhos e você não quer que eles tenham apenas uma refeição diária. Você se sentirá vulnerável e com o peso do mundo em suas costas e é um sentimento acertado. O Estado não oferece apoio para as mães pobres, para as mães trabalhadoras, os companheiros quase nunca cumprem seu papel de pai e marido como deveriam (isso quando estão lá), e é isso, por mais que você tenha rede de apoio você terá que aturar muita coisa simplesmente porque agora você tem um filho sob sua responsabilidade e isto te deixa vulnerável.

8. O seu relacionamento vai mudar, não necessariamente para melhor

O seu relacionamento com seu parceiro vai mudar. Este é um fato irrevogável. Pode ser para a melhor e pode ser para a pior. O seu companheiro pode simplesmente não dar conta da ideia de ser pai e ir embora. Ele pode agir feito uma criança e querer continuar te fazendo cobranças que você não tem como corresponder — como muito sexo por exemplo — e usar isso como desculpa para te trair. Ele pode fingir que nada está acontecendo e continuar com a mesma vida de sempre enquanto você está afogada em um turbilhão de mudanças e completamente sobrecarregada com as novas tarefas. Ele pode abraçar o projeto com você, como deveria ser, e tornar sua vida mais fácil e até prazerosa e juntos vocês se descobrirem mais fortes e unidos. Mesmo assim será difícil: vocês não terão mais tanto tempo um para o outro. Você sentirá falta de como vocês costumavam ser. Você se sentirá carente muitas vezes. Você pode não sentir mais vontade nenhuma de estar com ele. Ou pode levar muito tempo para vocês se reencontrarem. Esta não é uma situação permanente porque crianças crescem. E uma vez que elas estejam mais autônomas a vida vai voltando pro lugar. Mas é preciso muita maturidade para lidar com esse período e essas mudanças. Um filho pode ser uma oportunidade para que um casal cresça junto e a melhor opção é desde a gestação o casal conversar muito sobre as expectativas, procurar ouvir outros casais, chegar num entendimento de como vai ser a vida que os espera, saber que terão aí pelo menos uns 5 anos pela frente em que uma criança será o centro de tudo até que vocês possam voltar a uma rotina mais ou menos própria. Filhos são uma nova fase no relacionamento, o que essa nova fase vai reservar muitas vezes é uma caixinha de surpresas.

9. A maternidade é a arte de conciliar contradições internas e nem todos os sentimentos são publicáveis

Com a maternidade você vai se deparar o tempo inteiro com sentimentos contraditórios dentro de si, nem todos publicáveis principalmente porque existe uma romantização muito grande que fará você se sentir culpada por boa parte dos seus sentimentos. Mas acredite, todas as mulheres sentem-se assim. Só que algumas reconhecem os sentimentos de si, outras não. E quase todas negam. Para si mesma e com os outros. A vontade de estar sempre junto ao filho, a necessidade de estar sozinha. O amor despertado pela presença da criança e pela nova vida que isto representa, a saudade da vida antiga onde não tinha tanto perrengue. A raiva por ter que se submeter a tanta coisa por causa da criança, a culpa por sentir raiva sabendo que a criança não tem nada a ver com isso. Transitamos o tempo todo entre o amor e a dor, com muita culpa causada por um sociedade que responsabiliza mães por tudo, romantiza maternidade e não nos dá nenhum apoio. Seja generosa consigo mesma nesse processo e saiba que todos os seus sentimentos são perfeitamente legítimos. Reconhecer os próprios sentimentos é uma estratégia importante para não transferir para os filhos (e puni-los) por algumas frustrações — que sim são recorrentes — com relação ao que a vida se tornou em função da difícil vivência da maternidade. Porque fato é nisso tudo que mulheres não tem culpa nesse processo, mas as crianças muito menos. E nessa equação mãe-filho, os filhos são os vulneráveis.

10. Ninguém liga para mães e crianças

Pois é. Isso é algo que você só descobre realmente depois que tem filhos. Na prática ninguém liga para mulheres e crianças e há inclusive um sutil discurso de ódio em uma sociedade que é movida pela cultura do estupro e da pedofilia e profundamente adultizada e etarista. Mulheres precisam de uma lei que as proteja para que possam amamentar seus filhos em paz onde necessitarem. Quantos equipamentos sociais existem que são adequados para receber mães com seus filhos? Transportes, áreas de lazer, restaurantes? Sair com crianças na rua é uma verdadeira operação de guerrilha. Se você não estiver bastante atento algo realmente sério pode acontecer com ela porque esta não é uma sociedade em que você transita sentindo-se acolhida sabendo que a comunidade toda do entorno está zelando pelas suas crianças. Ao contrário, a comunidade é predadora e pode roubar o seu filho e vendê-lo na deep web. Tudo é pensado para receber pessoas adultas. Pessoas adultas essas que ainda torcem o nariz para crianças e pressionam os pais a discipliná-las inclusive violentamente para que “se comportem”, leia-se, para que não se comportem como crianças no espaço público. O discurso da sociedade em relação a crianças é autoritário, estimula a agressividade como forma de disciplina. Pais são incitados a uma síndrome de pequeno poder e muitos se tornam pequenos ditadores em relação aos seus filhos. Onde a “imposição de limites” é a desculpa para a violência. A criança nasce e rapidamente começa um esforço para que ela se torne adulta sob a falácia do “tornar-se independente”. O bom filho é o filho independente. O que significa isso afinal? Precocemente crianças são treinadas para fazer tudo sozinhas, dar o menor “trabalho” possível, se tornarem produtivas. Se tornarem adultas. E as mães, capatazes do patriarcado, seguem nesse baile. Igualmente desprezadas.

Precisamos conversar abertamente sobre os impactos da maternagem sobre as mulheres, só assim teremos condições de pensar políticas de apoio que sejam verdadeiramente eficientes e libertadoras.

Da mãe que queremos ser

Existe uma distância – considerável – da mãe que queremos ser para a mãe que conseguimos ser. E talvez por isso, toda mulher-mãe em algum momento (ou quase sempre) já se sentiu incompetente enquanto mãe. Perceba o peso dessa palavra: “incompetência”. Não ter competência de. Não ser capaz de. Toda mãe em algum momento (ou quase sempre) já se sentiu incapaz. Será que estamos olhando pro que fazemos ou pro que acreditamos que deveríamos ser feito? E aquilo que acreditamos que deveria ser feito, porque a mídia disse, a família disse, o blog disse. É possível? É realmente possível ser essa mulher-mãe com tantas competências?

Nessa hora em que nós sentimos aniquiladas porque não ticamos todos os itens do check list das nossas expectativas é preciso um pouco de generosidade. Generosidade com nós mesmas. Que é tão difícil de nos oferecer porque fomos ensinadas a sempre dar e nada receber. Porque aprendemos que verdadeira e boa mãe sempre se sacrifica.

É importante sermos generosas com nós mesmas para podermos contemplarmos sem chicote na mão os resultados que conseguimos obter. Que estão ali na nossa frente. Tirar um pouco o foco de tudo que ainda não fizemos e admirar com orgulho aquilo que conseguimos fazer.

Porque somos mulheres, humanas e limitadas. E a maternidade, ao contrário do que apregoam, não dá super poderes. Não nos torna divinas. E o custo de dar conta de tudo é alto demais. Pra qualquer um. Porque é preciso uma aldeia pra cuidar de uma criança e via de regra nos sobra fazer tudo sozinha. Não dá.

A sociedade capitalista cria problemas o tempo inteiro para a maternagem para vender as soluções. A maternidade é a única função possível que o patriarcado nos ofereceu e ela tem que ser cumprida à risca segundo seus parâmetros. Mulheres são treinadas para vigiar umas às outras e a competirem incessantemente pelo posto de melhor esposa, melhor mãe, mulher mais bonita.

Aceite com generosidade e orgulho aquilo que você consegue oferecer ao seu filho. Se dê algum crédito. Tem uma sociedade inteira de dedos apontados querendo te colocar nesse lugar de angústia, dúvidas e incertezas. Há toda uma máquina que lucra com seu medo. Há toda uma socialização que te empurra para esse lugar de achar que toda a responsabilidade pela criação de um filho é sua, que faz você sentir culpa o tempo inteiro. Que faz você dar mais do que realmente pode. Te faz infeliz. Tem gente plantando expectativas para lucrar com tuas frustrações.

Olha pra tua cria com o amor que você tem pra dar, que é o que você tem, e acolhe a ti mesma com o abraço carinhoso que certamente tua cria pode te ofertar. Acolhe a ti mesma, mulher. Aceita a mãe possível que tu és. O mundo já é duro demais para nós.

Mãe de pet também é mãe?

Mãe de pet também é mãe? Em todo Dia das Mães ressurge a polêmica sobre as tutoras que intitulam-se mães dos seus animais de estimação versus os exaustivos argumentos de mulheres-mães que se se sentem incomodadas e até ofendidas com esse título.

De tudo que sempre é dito, sempre me resta a mesma reflexão: o que é SER mãe? Note que não estou perguntando o que uma mãe FAZ (logo a resposta não é “cuidar”); tampouco estou perguntando o que uma mãe SENTE (para que se diga que ser mãe é “amar”).

Dizer que ser mãe é amar e cuidar é bastante incompleto, inclusive. Vejamos, se uma mãe está em DPP (Depressão Pós Parto) e não consegue sentir amor pelo seu filho, naquele momento ela não é mãe? E se ela não vier efetivamente a sentir esse amor avassalador? Deixa de ser mãe?

Ser mãe é cuidar? Se uma mulher tem algum fator que a impede de cuidar dos filhos ela deixa de ser mãe? Se é a avó que cuida dos netos, ela deixa de ser avó para ser a mãe?

Ser mãe é gestar? E as mães adotivas? Se um pai ama e cuida, ele é mãe? Se amar e cuidar é prerrogativa de “ser mãe”, o que sobra para o pai?

Perceba então que não é tão simples definir a partir de parâmetros de comportamento ou sentimento o que uma mãe é. Até porque existe esse script que fala de amor e cuidado que dita como uma mulher deve agir para ser qualificada como um mãe. E este é um script romantizado, uma ferramenta da maternidade compulsória para que mulheres queiram ocupar esse lugar de qualquer jeito. Que queiram ser mãe. Porque o que é vendido é que maternidade é status. Que mães são seres especiais, que mulheres são seres mágicos com o dom divino de cuidar e amar. Que uma mulher só está completa quando cumpre sua missão de cuidadora. De gente, de bicho, de planta. E em troca vão receber muito amor. E dar todo o amor que toda mulher tem que cultivar dentro de si pra distribuir por aí.

Nós mulheres somos socializadas dentro de uma carência profunda. Somos ensinadas a cultivar um vazio emocional que só consegue ser preenchido com um vínculo afetivo duradouro e presente. Seja um romance, seja um filho, seja um pet. Somos ensinadas que uma vida com amigos, família, relacionamentos casuais ou ocasionais não pode ser plena. Não pode ser leve. Temos que ter alguém. Ali. Alguém “nosso”. Então companheiros, filhos, ou pets, muitas vezes vêm pra preencher um buraco que não tem fundo que foi cavado no nosso subconsciente.

Antes de uma mulher desdobrar-se pra explicar sobre os motivos pelos quais ela é mãe do seu pet (eu sei, ela o ama e cuida “como a um filho”), se poderia parar, respirar, e pensar na necessidade que toda mulher demonstra de maternar alguma coisa. Por que a necessidade de humanizar um animal, chamá-lo de “filho”? Em que momento a ideia de que ser mãe virou essa batalha tão importante? Porque para uma “mãe de pet”, teoricamente, não deveria fazer tanta diferença a escolha carinhosa como ela trata seu animal de estimação. Ela o ama, ela cuida. E tem diversas opções de interação com este animal que não vão ser legisladas pela sociedade. Ela pode se dizer tutora (que é o que ela é) e chamá-lo de mil nomes amorosos. Isso não vai ter nenhum peso social. Ao contrário.

Uma mãe não pode chamar o seu filho de “pet”. Não pode dizer “vem cá, meu cachorrinho”. Ela não tem a opção de “animalizar” o seu filho. Uma mãe não tem nenhuma opção a não ser um manual de instruções bem detalhado sobre como ela deve agir, pensar e se comportar sob pena de ser durante constrangida, penalizada e rechaçada socialmente. E está aí onde reside toda a diferença. Para “mães de pet” maternidade é escolha. É “amor”. Para mães, maternidade é compulsória. E suas ações na maternagem não são fruto de nenhuma escolha individual que consiga tomar com liberdade. Maternidade é uma questão política e a grande questão que permeia essa polêmica das mães de pet é que isso revela além de uma imprecisão tremenda sobre a realidade do maternar uma grande romantização do que é a maternidade. E nenhuma mãe precisa de mais romantização sobre suas cabeças. A maternidade tem peso sobre todas as mulheres, traz consequências materiais para suas vidas, não tem a ver com sentimento, com amor, mas com ter um filho, uma pessoa, sob sua guarda para cuidados. Quase sempre compulsoriamente.

E socialmente mulheres pagam o preço por serem mães, não há nada de romântico ou de belo nisso. Se você quer saber quem é mãe e quem não é, não pergunte a uma mulher, pergunte a um homem. Ele sabe quem é a mulher que ele vai abandonar, desprezar, julgar, qual mulher ele vai classificar como “sexo casual”. Quer saber quem é mãe? Pergunte ao Estado. Ele sabe bem quem ele considera um peso social. A quem cobrar e culpabilizar. Pergunte ao mercado de trabalho quem é a mãe. Ele sabe quem ele vai contratar, quem vai ser vista como problema. Ser mãe não é um sentimento ou algo que você se auto-define. É algo que é definido quando você tem um filho.

E é importante também ressaltar que, apesar de todas as dificuldades da maternidade, está é uma condição propositalmente ocultada nas narrativas. O que vemos é a exaltação da figura materna como sendo a mais importante função que uma mulher ocupar. É o único posto a que é conferido algum “status” e reconhecimento (ainda que falso) na condição de mulher perante os olhos da sociedade em geral. Então é bem previsível que mulheres inconscientemente disputem esse espaço. A rivalidade feminina está em toda parte.

Dessa forma, a reivindicação das mães perante as tutoras não passa por querer legislar sobre a vida privada dessa mulher nem sobre a maneira como ela chama seus animais de estimação. É sobre abandonar a por um título que confere opressão. É sobre empatia e consciência política. Ela está pedindo reflexão sobre o papel da maternidade. Está pedindo que essas mulheres que não tem filhos OUÇAM as mulheres que tem filhos. Que estão pedindo ajuda. Estão pedindo que elas não engrossem o coro da romantização que tanto prejudica a luta política das mulheres que pautam a problematização da maternidade. Estão pedindo que, como mulheres, possamos avançar nas pautas do feminismo combatendo uma das principais formas de opressão que nos assolam.

Uma mulher, tecnicamente, pode se declarar mãe do que quiser. Animais, vegetais, plânctons. Não importa. Mas entenda que é um privilegio poder escolher se afirmar mãe de alguma coisa que não um ser humano, com suas demandas bem específicas, e listar como motivo para isso “o amor”. É bonito. Só que uma mulher nunca saberá de verdade o que é maternidade até ter um SER HUMANO sob sua tutela. Porque ela só será mãe, e entenderá o que é ser mãe, quando a sociedade colocar seu carimbo na testa dela.

Maternidade não se trata de se sentir mãe. Se trata de ser tratada como mãe. E entenda, isso não tem nada de bom. Ser tratada como mãe é ser humilhada, perder autonomia, ser relegada a segundo plano, ser ignorada. Taí a treta da mãe de pet que não me deixa mentir onde mulheres-mãe estão exaustivamente falando, se explicando, pedindo voz. E continuamente sendo silenciadas. Ignoradas. Pois, repito, ninguém se importa com as mães. Essa discussão incessante, em boa parte alimentada pela competição feminina (socialização não falha) poderia dar outros frutos num ambiente de escuta. Mas somos tachadas de ridículas. Somos acusadas de falta de empatia. Chega a ser irônico.

Você, “mãe de pet”, não quer ser TRATADA como mãe. Você quer se SENTIR mãe porque foi ensinada que isso é muito importante, e sublime e bonito. Estamos todas nós, mulheres, muito fudidas nesta história. E enquanto a maternidade não for vista como pauta política do feminismo vamos chafurdar nessa lama. E continuar a sermos massacradas.

Devo ter filhos?

Muitas mulheres me perguntam: “devo ter filhos”, “qual a parte boa de ser mãe?”. E eu confesso que são das perguntas mais difíceis que me surgem porque a maternidade enquanto função social em um mundo onde mulheres tem sua capacidade reprodutiva completamente explorada é um massacre. Mas eu estaria mentindo se dissesse que não há nada bom ou não há felicidade possível, levando em conta a experiência individual e subjetiva das mulheres.

Para aquelas que conseguiram estar em um ponto de suas vidas que avaliam conscientemente a opção de ter filhos, o que fazer? Não sei.

Mas sei que há fatores importantes sobre a decisão de ter filhos que precisam ser considerados:

1. É preciso pelo menos duas pessoas:

Primeiro, é preciso pelo menos duas pessoas desejosas e empenhadas nessa missão porque sozinha as chances de se afogar nessa empreitada é muita alta. “Nossa, eu não posso então tentar uma maternidade solo?”. Pode, claro, mas na prática isso não se realiza, você necessariamente precisará de alguma rede de apoio para conseguir caminhar, a matemática de criar um filho completamente sozinha não fecha. Então ter alguém ali dividindo a carga de criação da criança, seja o pai, um companheiro ou companheira, uma pessoa amiga, não importa. Sozinha é da ordem do impossível para a saúde mental.

A maternidade é um mar bravio em que é preciso que se entenda bem onde está entrando e como navegar sem enlouquecer e naufragar. E preciso entender como manejar o barco e é preciso uma tripulação. Sempre.

2. É preciso entender quais as suas motivações:

Há inúmeras justificativas que damos a nós mesmas sobre isso que são um sintoma claro da nossa socialização para maternagem e da romantização da maternidade. E nem é tão difícil identificar porque que sempre são coisas falam de necessidades que não elaboramos por conta própria, mas que são clichês sociais que foram repetidos à exaustão até que nós adotássemos: como “formar família”, “atender ao chamado do relógio biológico”, “cumprir o destino de toda mulher”. Ou como solução para coisas que falam de nossas carências e questões que estamos vivendo e que creditamos a um filho a missão de resolver, como: “unir mais o casal”, “dar um irmão pra fazer companhia ao primeiro filho”, “ter alguém pra amar”, “completar um vazio”, etc. E fora a pior motivação de todas, e infelizmente a mais comum: ter um filho porque todos estão insistindo e você quer que parem de encher o seu saco.

E o problema de iniciarmos essa empreitada com motivações equivocadas ou expectativas pouco elaboradas é que é muito fácil se perder no caminho da criação dos filhos e odiar tudo aquilo. Inclusive o filho. Criar uma criança pode até atender sim a expectativas e sonhos pessoais que tenhamos mas isso será pura casualidade. Não sabemos o resultado dessa experiência, não temos controle. Criar filhos não é nunca sobre nós, nossos sonhos, desejos, sentimentos ou carências afetivas e sim sobre preparar da melhor maneira possível um ser humano para o mundo. Viver isso. Fazer parte disso. Sabendo inclusive que em muitas partes da jornada teremos um grau de dor muitas vezes mais agudo que de prazer. É algo que nos propomos a fazer pelo outro. Um outro que não se conhece ainda, que pode ou não ser como se espera, que aliás tem muita chance de não ser nem um pouco como você espera. Que não nos deve nada.

Nós navegamos nesse mar da maternidade pelo prazer de navegar, de guiar o barco, sentir a ondas, o vento no rosto. A beleza do nascer e do pôr do sol. É pelo céu estrelado. Porque não há um mapa indicando qual terra está à vista. Qualquer bússola não nos serve para muito. Não há uma terra para aportar, um filho não é um objetivo, ele não tem que nos dar nada. Crianças são pessoas.

Qualquer coisa fora disso pode criar uma relação de dívida para com um indivíduo que nem nasceu ainda e na real poderia nem nascer porque o mundo está aí lotado de gente, não é mesmo? Se isso está acontecendo dentro de um movimento consciente e minimamente planejado, é importante entender que a criança realmente não tem que atender a expectativas de ninguém porque efetivamente é o popular “ela não pediu para nascer”.

Ter filhos é sobre empregar seu tempo e sua energia para criar crianças pro mundo da melhor maneira possível, sem recompensas no horizonte. É um trabalho sim, que exige demais, exige apoio, exige ajuda, exige dedicação e que vai exigir entrega também. De TODOS os envolvidos, repito. E o ganho é fazer parte desse processo.

3. É preciso entender o que é a maternidade e o que é ser mãe de fato, para a sociedade patriarcal:

A despeito do que nós entendemos e como nos pensamos enquanto mães, da porta para fora a conversa muda. A sociedade tem muito bem desenhado o papel da mulher-mãe, o que ela pode e não pode fazer, o que ela deve realizar, como ela será cobrada, que lugares ela pode estar, como ela pode se comportar e principalmente, que punições irá receber. Há limitações objetivas que a maternidade impõe às mulheres, e é preciso conhecê-las.

Então quando você pensar em ser “mãe”, é importante não se concentrar apenas naquilo que você pensa que uma mãe deve ser, mas sobre como você passará a ser vista, pensada e tratada socialmente. Entender que, como mulher, você será sempre responsabilizada. Que a presença inicial de um pai (mesmo consciente, ativo, engajado) não garante nada pro futuro porque homens são socializados de uma maneira completamente diferente para a paternidade e que se eles quiserem realmente fugir à responsabilidade… irão. É importante saber que não há um sistema a seu favor, não há um Estado a seu favor, não há uma sociedade a seu favor. É importante saber que existe uma romantização tremenda em cima da maternidade, que mulheres mentem sobre suas realidades porque sentem-se coagidas, perdidas e um tanto enganadas. E que é especialmente confuso porque muitas vezes elas amam e odeiam na mesma medida o que estão fazendo. Você será vigiada, culpabilizada e monitorada e terá um outro tipo de vida pela frente talvez bastante diferente do atual, onde por um tempo muita coisa deixa de ser sobre você e passa a ser sobre esse filho.

E portanto, para mulheres, decidir-se por ter filhos requer sim é algum planejamento. Que não passa só por tomar vitaminas, mas uma organização de vida, emocional, profissional, financeiro, de rede de apoio. Tentar entender as diversas demandas decorrentes da criação de crianças e salvaguardar-se para atender sem tantos sacrifícios.

É preciso ressaltar também que, enquanto experiência objetiva, as possibilidades de uma vivência mais plena e tranquila da da maternidade são bem mais aumentadas com o acesso a determinados privilégios de raça e classe que são capazes de atenuar muitos dos desafios impostos a essa tarefa. Por exemplo, ter segurança alimentar, segurança de moradia, uma rede de apoio consistente, fazem toda diferença (e isso quase sempre está relacionado a ter dinheiro). Isso é um fato dado, mães de filhos brancos de classe média não precisam se preocupar, por exemplo, em ensinar aos seus filhos como entrar em lojas sem serem seguidos pelo segurança.

A parte boa em ser mãe

Do ponto de vista pessoal, a maternidade te oportuniza uma profunda mudança interna e a possibilidade de uma visão bastante integrada e consciente da sociedade. São mudanças profundas que podem nos tornar uma pessoa completamente diferente, muitas vezes num aspecto positivo. E maternidade não santifica, não reforma caráter, não cura dores da alma, mas te desafia e te coloca em lugares que você não esteve, e te exige coisas que você nem sabia que tinha pra dar. E isto pode ser transformador sim. Quase sempre é.

(Pessoalmente, eu aprendi tanto nesses anos de maternidade, com uma criança, quanto em trinta e tantos anos anteriores. Aprendi sobre mim, sobre o outro, sobre o mundo. Eu não estaria aqui hoje, escrevendo para vocês se não fosse essa experiência.)

Há também a possibilidade de acompanhar o crescimento de uma pessoa e acredite isso é uma das experiências mais lindas que se pode ter. Ver o seu desenvolvimento, ensinar coisas, mostrar o mundo. Compartilhar as primeiras descobertas de uma criança conhecendo o mundo nos dá a oportunidade de tomar contato com sentimentos muito belos e apaziguadores, como a ternura e a esperança.

Há a responsabilidade de oferecer instrução, valores e explicar o mundo para um pessoa que irá crescer e tomar seu lugar nessa selva que é a vida. Nós mulheres somos educadas para sermos as capatazes do patriarcado, não me canso em dizer. E observar atentamente os valores que passamos para a frente pode ser revolucionário.

E há o amor. Que não posso afirmar que seja universal, que sei eu do coração de todas as mulheres? O amor não é uma coisa automática, que surge só porque se tornou mãe, mas sim uma construção fortalecida pelo vínculo que se estabelece no cuidado, no convívio, na responsabilização pelo outro. Mas é um fato, uma vez lá, é um sentimento colossal. Tão intenso que chega a doer. Mães não estão loucas, ou inventando, ou romantizando quando falam sobre isso, e vocês podem atribuir ao que quiser, a hormônios, a socialização, no fim não importa tanto.

E sim, é muito difícil separar o que é maternidade compulsória e romantização da maternidade do legítimo desejo de viver essa experiência. É muito difícil dizer se a maternagem, individualmente falando, e a despeito de todas as variáveis que uma mulher tenha a sua disposição (favoráveis e desfavoráveis) vai ser plena e feliz ou não. Social e politicamente falando, a maternidade é um grande problema para mulher. Mas fato é que, individualmente, é uma experiência que pode sim oferecer muita alegria e plenitude. E realização. Não há como tirar isso de tantas mulheres que chegaram nesse lugar. Negar essa vivência legítima.

E sim, em uma sociedade de maternidade compulsória, falar sobre motivos “válidos” para ter filhos pode parecer um tanto “elitista” no sentido de que hoje apenas pessoas muito privilegiadas conseguem dar-se ao luxo de cercar-se de tantas variáveis para poder vivenciar uma parentalidade mais plena. E é justamente por isso que precisamos politizar e discutir esse tema. Porque mulheres não deveriam ser fábricas de produzir gente. Mulheres são pessoas e não ter filhos deveria ser o padrão, e não o contrário. Não deveríamos ser tratadas como máquinas de produzir pessoas, assim, todas aquelas que finalmente decidissem pela tarefa de gestar e criar crianças o fariam pelo melhores motivos possíveis para si e para o outro e receberiam todo o reconhecimento, apoio e valorização pela realização da árdua tarefa de produzir cidadãos para manter a sociedade funcionando.

Então, para as mulheres que estão navegando nesse mar da maternidade, ou querem navegar, eu desejo que todas possam curtir plenamente a parte boa de ser mãe. E que a luta política de tantas pessoas em torno das pautas maternas possa permitir que todas as mulheres possam escolher de fato caso queiram ter a experiência da maternidade e ter apoio para isso. Para uma vivência mais feliz e plena. Tendo mais tempo com seus filhos. Tendo apoio da família. Tendo a correta divisão de responsabilidades sobre tudo com o pai da criança. Tendo políticas de Estado. Tendo apoio dos sistemas de saúde e dos sistemas educacionais. Tendo seus filhos respeitados no espaço público. Tendo apoio da comunidade.

E que a parte boa, essa possibilidade de aprender, se transformar, ajudar na educação de um novo ser, vivenciar esse amor intenso e belo, se sobressaia a toda dificuldade inerente. E que possamos chegar em um momento que a maternidade não seja mais uma coisa compulsória que atravessa a vida das mulheres sem elas pensarem a respeito munidas de todas as informações possíveis. 

A maternidade e a dança da solidão

Exercer a maternidade é dançar uma estranha dança da solidão. Como é possível sentir tão só em um momento da vida que é quase que literalmente todo preenchido pela presença dos filhos é possível?

Conversando com outras mulheres, é possível notar como o maternar pode ser desalentador e opressivo. Quase nenhuma mulher, atualmente, está preparada de verdade para o que significa a maternidade. Não há literatura, filmes, novelas, séries, publicidade, escola, família… nada que de fato faça entender o que a espera, em termos físicos, emocionais, sociais, psicológicos. Antes, a maternidade é apresentada como um privilégio, como bênção, como um dom divino que nos arrebata a um patamar sagrado. A ponto de mulheres desejarem engravidar para alcançar um novo status na sua comunidade. E esse “altar” a que somos elevadas nos condena a uma vida de solidão, desamparo e profundo silenciamento.

De onde vem a solidão materna?

1. O silenciamento das emoções

Quando uma mulher engravida, já há todo um script ditando como ela deve se comportar, pensar, agir e principalmente sentir. Há um manual, um guia invisível de boa conduta que rege o comportamento da futura mãe. Ela é tutelada e perde autonomia. Vira uma “mãezinha”. Gestantes não podem se sentir mal e reclamar da dor física, da confusão emocional, do desconforto, do desequilíbrio psicológico, do medo, e da fragilidade que uma gestação traz, afinal “está carregando um milagre”. A quem uma mulher-mãe consegue dizer “eu não gosto de estar grávida”? ou “eu não estou feliz por ser mãe”? ou simplesmente “estou com medo”?. Que mulher não sente culpa por se sentir assim? Já que é doutrinada por todos os cantos para achar que uma gestação e filhos devem ser a coisa mais importante do universo para ela?

Com quem conversar? Amigos sem filhos se afastam ou simplesmente não compreendem como é o novo mundo daquela mulher e o abismo entre as realidades muitas vezes causa afastamento emocional ressentido. A família, na expectativa de ajudar, pode acabar atropelando a autonomia da mãe e igualmente lhe nega o direito de se sentir infeliz ou confusa ou angustiada com a maternidade.

Com quem uma mãe consegue desabafar sem julgamentos?

2. Ausência do pai

O pai da criança, quando ainda está lá, via de regra, se faz apenas de corpo presente, não assumindo sua parte na responsabilidade dos cuidados com os filhos e a casa. E ainda acaba sendo mais um problema que uma solução, comportando-se como um segundo filho, fazendo cobranças extras para a mulher já sobrecarregada, e sendo incapaz de compartilhar as questões que assombram as mães no cuidado com os filhos.

Quantos pais você conhece que estão ativos em grupos de cuidado com crianças buscando ou compartilhando informações? Quantos grupos de pais-cuidadores existem discutindo criação e cuidado com os filhos? Quantos pais aparecem apresentando dúvidas em grupos de pediatria? Quantos em grupos de alimentação, carregamento de bebês, sono, educação, escola? Quem, no fim das contas, carrega sozinha o peso de aprender como cuidar de uma criança? E acertar sempre? Quantas mães conseguem compartilhar com seus companheiros todas as dúvidas, questões, problemas, medos, angústias, e decisões inerentes a criação e cuidado das crianças? Quantas mulheres conseguem compartilhar com seus companheiros suas angústias em relação a transformação que ocorre na sua vida com a maternidade, na sua individualidade, e serem aceitas e compreendidas nas suas dificuldades?

3. A exclusão social das mães

Mulheres-mães vivem uma quarentena sem fim onde tudo o que existe no seu mundo obrigatoriamente tem que ter a ver com o seu filho. São expulsas do espaço público. Constrangidas por amamentar em espaços abertos. Suas crias são abertamente alvo de ódio por conta do comportamento infantil. Essa é uma sociedade intolerante com crianças. Não há acolhimento para as mães e suas demandas. Não há acolhimento para as pautas maternas. Crianças e suas mães são vistas como um problema. Uma carga. Um peso vulnerável. Mulheres são coagidas a manter seus filhos sempre “sob controle”, longe de espaços onde podem ser um “incômodo”. São integralmente culpadas por qualquer comportamento desviante da norma que seus filhos possam apresentar. Poucos são os olhares solidários. Fique longe, é o que a sociedade sutilmente diz.

4. A sobrecarga de responsabilidades

De repente a mãe se torna praticamente a unica responsável pela gestação, nascimento, sobrevivência e socialização de outro ser humano. Para a sociedade, o pai é uma figura absolutamente acessória e secundária. E não é possível falar em escolha da mulher quando não existe nenhum contraceptivo que realmente a proteja. Não quando meninas ganham como primeiro brinquedo uma boneca e são massacradas pela ética do cuidar como principal aprendizado. Não quando é vendido para a mulher que a felicidade e completude se realiza através da maternidade. Homens não conhecem esse peso. Não são educados para paternidade. Meninos ganham carros, aviões e promessas de uma vida de aventuras e é isso que saem em busca por toda sua vida.

Mulheres estão sobrecarregadas. Estão, na prática, sozinhas na tarefa de criar os filhos. Todos os dedos apontados. Com quem ela pode contar de fato? Não há políticas de Estado que apoiem efetivamente uma boa maternagem. Não há uma cultura de compartilhar socialmente a responsabilidade pela criação das crianças. Sequer há uma cultura que constranja os homens a assumirem seus próprios filhos. Por mais que possam existir as condições satisfatórias para algumas mulheres, essas são a exceção na sociedade. A regra é a maternidade ser uma empreitada feminina, sempre.

A dança da solidão

Nós, mulheres, somos forjadas no aço da solidão e do desamparo. Não somos socializadas para sermos irmãs, companheiras ou amigas e sim mães, cuidadoras, responsáveis, carregadoras do peso do mundo. Não precisamos ir muito longe, inclusive, pra entender isso, está nas novelas, nos filmes, na publicidade, na literatura. Quantas belas histórias você conhece sobre amizade entre mulheres? Sobre amor entre mulheres? Sobre companheirismo entre irmãs? E quantas histórias lhe foram contadas sobre o amor entre uma mulher e um homem, e sobre como a vida finalmente encontra um sentido, principalmente quando nascem os filhos?

E nos são atiradas todo dia as migalhas da expectativa da felicidade através do amor. Senão o amor do marido, o amor dos filhos. Maternidade não é somente sobre amor. É sobre cuidado. E cuidar de outro ser de maneira tão intensa é exaustivo. Não é possível de ser feito sozinho. Mulheres estão sendo atiradas nesta empreitada por conta própria e naufragando num mar de solidão. Silenciadas, incompreendidas, isoladas, excluídas e obrigadas a ostentar eternamente um ar de felicidade. Porque são mães.

Dizem então que “ser mãe é padecer no paraíso”. Perceba a crueldade dessa frase. Você vai chegar no paraíso. E vai padecer. Não há nada mais solitário que isso.

Do profundo desamparo da maternidade

Basta que uma mulher torne-se mãe para descobrir que não há com quem contar e conhecer o profundo desamparo da maternidade. Nenhuma mulher é preparada para as implicações da maternidade. E nenhuma mulher consegue cuidar de uma criança sozinha, sem nenhum tipo de apoio. Se tornar mãe é, em instância primeira, perder a autonomia. Um outro ser humano passa a depender de você num nível de simbiose tal que te impede de qualquer outro tipo de performance plena. E é quando se perde esta autonomia e percebe-se a necessidade de uma rede de amparo, que nos damos conta que ela não existe. Não existe.

O retrato de uma maternidade sem amparo

Com o que de fato mulheres podem contar ao terem filhos? A reposta é: nada.

  • Não podemos contar com nenhum método contraceptivo eficiente, pois nenhum é 100% seguro (tampouco podemos contar com a parceria dos homens que dificilmente se preocupam em apoiar um método de dupla barreira: camisinha + outro método).
  • Não podemos contar com o apoio do Estado para garantir a interrupção de uma gravidez que é compulsória, com a mulher tendo empurrada para si a responsabilidade de controlar a contracepção, sendo culpabilizada caso ocorra uma gravidez indesejada.
  • Não podemos confiar no sistema obstétrico numa realidade em que a rede pública te oferece violência obstétrica e a rede privada te vende cesárea eletiva.
  • Não podemos contar com o apoio, companheirismo e fidelidade dos companheiros durante a gestação e o puerpério, que via de regra exigem que a mulher continue performando plenamente o papel de “esposa”, inclusive gerando uma pressão absurda em relação à estética e libido.
  • Não podemos contar com leis trabalhistas que garantam que você consiga suprir plenamente o período de seis meses da amamentação exclusiva que tanto é cobrada.
  • Não podemos contar com quem deixar os filhos para trabalhar porque a rede de creches públicas é numericamente insuficiente e a rede privada é cara demais.
  • Não podemos contar com apoio no mercado de trabalho, empregabilidade, plano de carreira, salários justos, flexibilidade de horários, porque mulheres-mães são vistas como um problema.
  • Não podemos contar com um sistema de saúde pediátrico que esteja disponível, atualizado e oferecendo as melhores informações para as mulheres-mães e seus filhos.
  • Não podemos contar com uma indústria que ofereça alimentos saudáveis e confiáveis a preços acessíveis.
  • Não podemos contar com o apoio dos companheiros para dividir o cuidado doméstico e com os filhos.
  • Não podemos contar com acessibilidade e políticas de inclusão para filhos neuroatípicos e com deficiência.
  • Não podemos contar com lugares e pessoas que sejam acessíveis e amigáveis com crianças e suas especifidades características da infância.
  • Não devemos contar com o suporte dos filhos, quando ficarmos velhas. E tudo ficar difícil demais. Porque preferimos não dar trabalho.

A felicidade não é a regra

E entenda, isso não é sobre você. Individualmente. Não é sobre você que nunca teve uma gravidez indesejada nunca ficou desesperada sem saber o que fazer. Ou seu parto humanizado. Ou sobre seu marido bacanão, que ainda está aí, assumiu os próprios filhos e ainda troca a fralda deles. Ou sobre seu chefe legal que te libera mais cedo para você pegar seus filhos naquela creche Montessori. Todas essas coisas existem sim, mas infelizmente. estão longe de ser a regra. Esse texto é sobre o desamparo materno. Sobre não haver nenhum sistema estrutural de apoio a uma mulher-mãe, para que ela possa criar seus filhos mantendo sua sanidade mental. Mantendo algum nível de felicidade.

As mães estão infelizes. Mães se sentem inseguras o tempo inteiro. Porque não podem, simplesmente não podem, contar com 100% de certeza com nenhum tipo de apoio em nenhuma área. Não temos segurança mínima se vamos conseguir uma boa gestação, um bom parto, se o companheiro será realmente um bom companheiro, se vamos conseguir sustentar os filhos, se vamos conseguir bons médicos, se a informação que recebemos é segura, se vamos ter apoio para amamentar, se o trabalho vai nos aceitar, ou se vamos conseguir trabalho, onde vamos deixar os filhos e se ele estará seguro, se conseguiremos bons médicos, acesso a remédios, acesso a boa informação, acesso a boa alimentação, acesso a opções de lazer. Não há espaço de segurança para crianças, não há leis que regulem e protejam e garantam o exercício da maternagem sem a exploração da mulher. Sem a imposição da disponibilidade feminina para cuidar e sua conformidade em não ser cuidada.

É muito cruel sermos educadas para cuidar de tudo, e nunca para “dar trabalho”. Nós mulheres nunca “damos trabalho”, apenas tomamos todo o trabalho do mundo pra executarmos. E ninguém está segurando essa onda. Mulheres mentem dizendo que está tudo bem e que dão conta. Mentem para os outros. Mentem para si mesmas. Porque fomos ensinadas que é pra isso que servimos. Porque não tem nenhuma opção mesmo. É muito mais profundo que romantização da maternidade.

As mulheres-mães estão doentes, depressivas, estressadas, solitárias. Suportando casamentos fracassados e relacionamentos abusivos por falta de suporte para sustentarem seus filhos. As mulheres estão em sub-empregos, se prostituindo para alimentar suas crias. Estão interrompendo seus estudos. Estão o tempo inteiro tendo que escolher entre si mesmas e os filhos e sendo julgadas por isso. Contando com a sorte para cuidarem das crias porque não há políticas públicas sérias e eficazes para apoiar a maternagem. Dizem que as mães são sagradas, crianças são anjos. Isso é mentira. Ninguém se importa de verdade com mulheres e seus filhos. Não há nenhuma rede de apoio estrutural que apoie mães. Mulheres-mães e seus filhos são vítimas sistemáticas de todo tipo de violência. Ninguém se importa.

A única coisa que uma mãe pode contar, de fato, é com a sorte.